Alguns esclarecimentos sobre a dívida pública Um dos temas que aparecem, ultimamente, com frequência no noticiário econômico é o nível “alarmante” a que teria chegado a dívida pública brasileira, geralmente apresentado como decorrente de erros na condução da política econômica e indicador da necessidade de profundas reformas, até mesmo nas despesas com os direitos sociais garantidos na Constituição. A pedido do Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, o economista Pedro Paulo Zahluth Bastos, professor associado (livre docente) do Instituto de Economia da Unicamp e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE), dá uma aula sobre dívida pública: como se forma e até que ponto é legítima e não um sintoma de má gestão das contas públicas, quem ganha com os seus títulos, os vários diagnósticos sobre a sua trajetória, as diferenças entre as visões dos economistas ortodoxos e heterodoxos, entre outros pontos. Leia, a seguir: 1. O que é a dívida pública? Ela é um recurso legítimo do Estado para financiar empreendimentos/programas de interesse da sociedade? A dívida pública é aquilo que o setor público (no Brasil, união, estados e municípios) deve a bancos (como créditos bancários) e, principalmente, portadores de títulos públicos (que também podem ser de propriedade de bancos). Os títulos públicos podem ter juros pré-fixados ou pósfixados. No caso de títulos pré-fixados, os juros são definidos previamente ao lançamento ou são determinados nos leilões de venda. No caso de títulos pós-fixados, os juros dependem de variáveis que flutuarão no futuro, principalmente a taxa de juros determinada para operações curto prazo pelo Banco Central (a SELIC), mas também índices de inflação ou variação cambial. A dívida pública é legítima e é usada em todos os países do mundo, pois nem sempre é possível ou desejável que dispêndios públicos sejam financiados com impostos ou com emissão monetária pura e simples. Neste caso, o gasto público é financiado com dívidas. Isso é importante, sobretudo, em momentos em que o setor público precisa realizar políticas contracíclicas para evitar a contração de gastos privados e, portanto, uma recessão que pode prejudicar a própria arrecadação de impostos e aumentar a própria dívida pública. A dívida pode aumentar também por conta dos juros cobrados sobre a dívida anterior, independentemente de déficits primários do setor público, ou seja, independentemente do fato de as despesas nãofinanceiras serem maiores do que receitas não-financeiras. Enquanto o balanço ou resultado (superávit ou déficit) primário exclui o gasto (“serviço”) oriundo da dívida pública, o resultado nominal das contas públicas inclui. Além de financiar gastos financeiros e não-financeiros do setor público, títulos públicos também são usados para realização da política monetária, através das operações de mercado aberto, voltadas a diminuir (ou aumentar) liquidez no mercado financeiro com a venda (ou recompra) de títulos públicos e, desse modo, influenciar a taxa de juros. 2. Quando a dívida pública passa a ser um problema para a saúde das contas públicas? Não há um número mágico a partir do qual a relação dívida pública/PIB torna-se problemática. Itália e Japão, por exemplo, têm dívida pública de 133% e 230% respectivamente. A dívida pública pode, no entanto, tornar-se um problema em duas circunstâncias: 1) quando a taxa de juros sobre a dívida é muito elevada, aumentando o custo dos serviços da dívida e, eventualmente, gerando uma trajetória explosiva da dívida que pode exigir juros ainda mais altos, o que pode acabar em moratória da dívida ou em emissão de moeda para pagá-la, o que em certas circunstâncias pode provocar inflação e desvalorização cambial. Itália e Japão, por exemplo, têm dívida alta que não representa um problema iminente porque podem refinanciar (“rolar”) a dívida a taxas de juros muito baixas, às vezes até negativas (embora a Itália não possa mais fazer isso, porque não tem controle sobre o Banco Central relevante, ou seja, o Banco Central Europeu); 2) quando é dívida externa, ou seja, denominada, vendida e paga em moeda que não é emitida pelo Estado endividado. Isso gera fragilidade financeira, pois o país pode ter dificuldade de obter moeda externa ou só obtê-la a preços caros. Curiosamente, como a Itália não controla o Banco Central que emite a moeda em que sua moeda é denominada, ou seja, o Euro, sofre um tipo diferente de vulnerabilidade “externa” (como, em diferentes graus, Espanha, Portugal e Grécia), pois está sujeita a variações de juros sobre sua dívida que não é capaz de controlar por meio de operações do Banco Central. 3. Na publicação “Vinte Anos de Economia Brasileira”, do Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, observamos que a composição da dívida pública federal mudou muito de 2002, quando 67,4% referiam-se à dívida interna e 32,6% à dívida externa, para 2014, quando a interna passou a 95,1% e a externa 4,9%. O que provocou essa mudança? E por que ela é considerada positiva? A dívida externa caiu porque o país acumulou superávits nas suas contas com o exterior (balanço de pagamentos) no período e, entre 2003 e 2007, chegou a ter superávits de transações correntes, ou seja, excluindo variações no passivo externo. Por isso, acumulou reservas cambiais em excesso aos compromissos de curto prazo, ao mesmo tempo em que a União (proprietária das reservas cambiais) reduziu seu endividamento externo. Além disso, parte importante da dívida externa (ou seja, ativos financeiros de propriedade estrangeira) é denominada em Reais, o que diminui a vulnerabilidade do país a desvalorizações cambiais. Como as reservas são concentradas em dólares, uma desvalorização do dólar reduz a dívida pública líquida (a dívida bruta menos os ativos do setor público, como as reservas cambiais) e gera ganhos patrimoniais que o Banco Central transfere semestralmente para o Tesouro Nacional. Em 2015, esses ganhos patrimoniais resultantes da depreciação cambial (de 49% em relação ao dólar) somaram R$ 260 bilhões, algo bem maior do que o prejuízo do BC com operações de seguro cambial oferecido a agentes privados (na forma de swaps cambiais), de R$ 90 bilhões. 4. Economistas de perfil mais ortodoxo costumam atribuir o aumento exponencial da dívida pública brasileira à elevação de gastos públicos orçamentários, com servidores, programas sociais etc. Mas pouco se fala da política de alta de juros como responsável por essa curva ascendente. Em que medida a política monetária de elevação dos juros é responsável pelo aumento da dívida pública? Antes de tudo, é importante explicar que os economistas neoclássicos, chamados ortodoxos no Brasil, consideram que uma economia de mercado tende ao equilíbrio com pleno emprego de recursos, pois variações de preços estimulariam o uso vantajoso de todos os recursos sem que haja qualquer motivo intrínseco para reter riqueza em formas líquidas, já que a moeda e outros meios de pagamento serviriam apenas para intermediar transações, assegurando o consumo presente ou meramente o postergando. Nesta visão, desequilíbrios como desemprego e inflação resultariam apenas de intervenções “exógenas” ao mercado, como políticas públicas equivocadas (que criam demanda exagerada ou fixam preços arbitrariamente) ou sindicatos trabalhistas (que exigem salários e condições de trabalho “arbitrariamente”). Economistas heterodoxos, por sua vez, que consideram que a economia não tende a operar com pleno emprego de recursos existentes porque é puxada por expectativas de demanda, que é financiada agregadamente com aumento das dívidas privadas. Nada garante que a demanda esperada ou as condições de financiamento das decisões de gasto assegurem o pleno emprego dos recursos, uma vez que ambas as coisas são sujeitas a grandes incertezas. Pelo contrário, o normal é a existência de recursos ociosos, podendo inclusive ocorrer ocasiões de grande instabilidade no valor dos ativos e passivos, e ociosidade de recursos, por causa do aumento da incerteza e da dificuldade de financiar passivos. Por isso, o Estado deve intervir para mitigar a instabilidade da demanda efetiva e das condições de financiamento do gasto. Ademais, como a heterodoxia considera que os trabalhadores não têm o mesmo poder de barganha dos empregadores (como os ortodoxos dizem acreditar), a renda tende a ser concentrada para os capitalistas, o que também justifica intervenções para mitigar ou reverter a concentração da renda. No Brasil, o Banco Central é dirigido por economistas ortodoxos que acreditam que a inflação resulta da pressão de demanda sobre recursos escassos, que se manifesta em pressões de custos salariais que contaminam o conjunto de preços. Isso justificaria elevações de taxas de juros para aumentar o desemprego e combater a inflação reduzindo salários reais, mesmo que as pressões de custo não resultem de pressões salariais, mas, como normalmente ocorre no Brasil, resultem de desvalorização cambial, inflação de preços administrados e de commodities internacionais. Assim, entre 1997 e 2013, o setor público teve superávits primários, de modo que o aumento da dívida pública no período se explica exclusivamente pelos serviços financeiros associados aos juros altos ou à desvalorização cambial. Ou seja, a ortodoxia do Banco Central tem grande responsabilidade no crescimento da dívida. Em momentos de desaceleração da economia, a austeridade fiscal também pode, paradoxalmente, piorar o déficit público. Em 2014, a queda da arrecadação provocada pela desaceleração da economia foi o principal motivo do déficit primário de 0,6% do PIB. Em 2015, o corte de gasto público e a elevação de impostos, que os economistas ortodoxos recomendaram para gerar um superávit primário para controlar o crescimento da dívida pública, gerou exatamente o contrário, como economistas heterodoxos afirmavam ainda em 2014. De fato, o Manifesto de Economistas pelo Desenvolvimento e pela Inclusão Social, apresentado em novembro de 2014, já alertava o governo eleito que esse tipo de austeridade deprimiria o consumo das famílias e os investimentos privados, levando a um círculo vicioso de queda na arrecadação tributária, menor crescimento econômico e maior carga da dívida pública na renda nacional.1 Foi o que ocorreu: em 2015, a política monetária e cambial do Banco Central gerou um custo fiscal de R$ 501,8 bilhões. A austeridade fiscal, por sua vez, foi contraproducente: ao deprimir a atividade econômica, contribuiu para que a arrecadação tributária despencasse, de modo que o déficit primário triplicou em relação ao PIB, de 0,6 % em 2014 para 1,88% em 2015. Com isso, a dívida pública bruta aumentou 9% em relação ao PIB entre 2014 e 2015 (de 57,2% para 66,2%), sendo que o custo de juros nominais foi de R$ 501,8 bilhões (ou 82% do déficit nominal de R$ 613 bilhões) e o déficit primário (provocado pela redução da arrecadação apesar da redução das despesas) foi de R$ 111,2 bilhões (ou 18 %do déficit nominal), considerando as “despedaladas” (despesas com pagamentos de dívidas do Tesouro anteriores a 2015 com bancos públicos, o FGTS e o INSS). Isto é, a política monetária e cambial continua a principal responsável pelo aumento da dívida pública, além de provocar indiretamente o aumento do déficit fiscal primário ao elevar a incerteza sobre a demanda efetiva e as condições de financiamento do gasto privado, levando ao corte de planos de gasto, à ociosidade de recursos e à queda da arrecadação tributária. 5. É verdade que não existe hoje aplicação mais rentável no mundo que os títulos da dívida brasileira? Quem são os grandes credores do país? Segundo o site MoneYou (http://moneyou.com.br/), que compara juros básicos em termos reais nos 40 países mais relevantes do mercado de renda fixa mundial, o Brasil é campeão disparado, com 6,78% anuais, mais do que o dobro do segundo lugar (a Rússia, com 2,78%). Os maiores credores são os bancos comerciais (que operam carteiras próprias com suas tesourarias) e grandes proprietários de riqueza financeira, sejam residentes (cujas aplicações são geridas por bancos em departamentos de private banking e fundos mútuos) e nãoresidentes. A seguinte tabela, do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal de Dezembro de 2015, publicado pelo Tesouro Nacional, apresenta o perfil genérico dos credores: A concentração da propriedade da riqueza financeira, incluindo a dívida pública, é enorme. Para ilustrar com alguns dados, segundo o professor Fernando Nogueira da Costa, havia, em 2015, 57.505 clientes do Private Banking, com renda per capita de R$ 12.069.350,71 em investimentos financeiros (http://brasildebate.com.br/bancarizacao-efinanceirizacao/#sthash.j0ChLJQ9.dpuf). Segundo ele, “0,33% de contas bancárias (DV, CDB, DP, LCI, LCA, etc.) concentram 55% da riqueza financeira.” (https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2016/01/22/renda-docapital-x-renda-do-trabalho-e-concentracao-da-riqueza-financeira/). Além disso, segundo o estudo do IPEA coordenado em 2008 pelo professor Marcio Pochmann, Os Ricos no Brasil, “cerca de 20 mil clãs familiares (grupos compostos por 50 membros de uma mesma família) apropriamse de 70% dos juros que o governo paga aos detentores de títulos da dívida pública.” (http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/200801-29/maior-parte-dos-juros-da-divida-publica-vai-para-20-mil-gruposfamiliares-revela-ipea). 6. A dívida pública brasileira precisa ser auditada, como defende, por exemplo, a associação Auditoria Cidadã da Dívida, coordenada por Maria Lucia Fattorelli? Por quê? Não creio que a proposta da Auditoria seja pertinente, se pretender cancelar a dívida pública existente com base em irregularidades identificadas no passado. Acontece que os portadores da dívida não são necessariamente os mesmos que praticaram irregularidades, e o risco de default pode não apenas implicar em injustiças como poderia elevar ainda mais o custo de rolagem da dívida. Mais importante que isso seria mudar a gestão ortodoxa hiper-conservadora do Banco Central do Brasil. Não obstante isso, uma Comissão da Verdade para avaliar o aumento da dívida pública na ditadura militar, ou uma CPI sobre o uso de títulos da dívida agrária no processo de privatização brasileira, por exemplo, não se confundem com a proposta de cancelar a dívida pública existente e podem ser iniciativas importantes senão para incriminar culpados de crimes prescritos, pelo menos para conhecer melhor a história brasileira. 7. Citando mais uma vez a publicação “Vinte Anos”, uma de suas tabelas faz uma comparação da dívida pública (% PIB) média de vários países no período 2009-2014, após a crise de 2008. Nela, vemos que a do Japão é de 230,3% e dos EUA de 98,7%, por exemplo, enquanto a do Brasil é de 66,1% do PIB. Por que aqui a dívida pública é apontada como um problema seriíssimo, que justifica a implementação de medidas de austeridade, e o mesmo parece não ocorrer em países desenvolvidos como os citados, onde ela é ainda mais alta? Há um problema real associado à trajetória da dívida pública no Brasil e seu enorme custo fiscal. No entanto, o problema não resulta da gastança e do déficit primário, mas das políticas monetária e cambial do Banco Central, como apontado anteriormente. O déficit primário de 2014 e 2015 resultou da desaceleração da economia e não da gastança. Por isso, cortar gastos não-financeiros e elevar impostos indiretos é contraproducente para conter o crescimento da dívida e ajustar as contas públicas, sobretudo se o Banco Central aumentar o custo financeiro da dívida pública e o custo de crédito para empresas e famílias. A força do diagnóstico responsável por políticas de austeridade contraproducentes pode ser explicada pela influência da opinião econômica ortodoxa, que por sua vez repousa no interesse dos credores da dívida pública e dos contribuintes ricos que não querem pagar mais impostos, embora, proporcionalmente, paguem menos impostos que os pobres e remediados e sejam beneficiários de isenções fiscais. Para o texto do manifesto, ver http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Manifesto-dos-economistaspelo-desenvolvimento-e-pela-inclusao-social/7/32180.