Francisco Valdério Pereira da Silva Júnior - PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Francisco Valdério Pereira da Silva Júnior
Filosofia em retomada: compreensão do projeto da filosofia com Éric Weil e Paul Ricoeur
São Paulo
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Francisco Valdério Pereira da Silva Júnior
Filosofia em retomada: compreensão do projeto da filosofia com Éric Weil e Paul Ricoeur
Doutorado em Filosofia
Tese, sob a orientação do Professor Doutor Marcelo
Perine, apresentada à Banca Examinadora de
Defesa como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo
2015
Banca Examinadora
Prof. Dr. Marcelo Perine – PUC/SP (Orientador)
Prof. Dr. Evanildo Costeski – UFC
Prof.ª Dr.ª Jeanne-Marie Gagnebin de Borns – PUC/SP
Prof. Dr. Jean-Luc Amalric – UNICAMP
Prof. Dr. Antonio José Romera Valverde – PUC/SP
A Odara e Olga para que sempre se inspirem naqueles que persistem em viver a inconveniente
verdade como aposta na humanidade.
AGRADECIMENTOS
A Ana minha amorosa esposa, primorosa companheira com quem, a mais de vinte anos, vivo
uma grande história de amor e divido as melhores, as mais interessantes, inteligentes e bem
humoradas horas de conversas...
A minha Mãe por toda sua dedicação e por ter me ensinado, com sua fé, o significado de
palavras como bravura, persistência, coragem, tenacidade...
A Marcelo Perine não apenas pela orientação e ensinamentos no curso deste trabalho, mas,
sobretudo, pela inesperada e grata amizade que me ofertou ao longo desses, já, oito anos...
Aos professores que compuseram a Banca do Exame de Qualificação, Antonio José Romera
Valverde e Jean-Luc Amalric, pelas contribuições enriquecedoras e aos demais professores do
programa, sobretudo, aqueles com quem tive o imenso prazer de conviver e aprender muito:
Antonio José Romera Valverde (mais uma vez), Jeanne-Marie Gagnebin, Marcio Alves da
Fonseca, Mario Porta, Rachel Gazola, Salma Muchail...
A todos que encontraram, no turbilhão da correria dos nossos dias, algum tempo e forma de
me ajudar e incentivar, em especial: Andréa de Araújo, Alex Oliveira, Alessandro Francisco,
Anderson Everton, Antonio José Moraes, Augusto Lobato, Berenice Gomes, Bira do Pindaré,
Carolina Martins, Cristiano Capovilla, Elio Pantoja, Fabio César Costa, Fernando
Nascimento, Flávia Tane, Francisco Gonçalves, Francisco Viana, João de Deus Castro, José
Antonio Pinheiro Jr, Joslene Rodrigues, Julio Guterres, Katia Cilene Pereira da Silva, Lincoln
Serejo, Luís Magno Veras, Marcelo Vais, Marlon Botão, Nelsinho Brito, Raimundo Fonseca,
Raimundo Marques, Ricardo Ferro, Rita de Cássia Oliveira, Silvio Bembem, Thaís Pagano,
Ubiratane Rodrigues, Willian de Jesus.
A FAPEMA pela bolsa que tornou possível a formação de mais um pesquisador em nosso
sofrido Maranhão...
RESUMO
Essa tese aborda a relação entre Éric Weil e Paul Ricoeur. Malgrado estilos inteiramente
distintos no tratamento das questões filosóficas, suas perspectivas convergem para o que aqui
advogamos sob o estatuto do projeto da filosofia – seja por uma Lógica da Filosofia (Weil),
seja numa hermenêutica filosófica (Ricoeur). Weil e Ricoeur optam pelo sentido presente em
todo discurso, mesmo no que procura eliminar o sentido pela atestação da indecisão diante do
conflito das interpretações e/ou da impossibilidade da redução da violência ao discurso. Nem
o lógico da filosofia nem o hermeneuta fazem qualquer concessão à fácil leitura da
multiplicidade dos discursos tentando suprimi-los numa mediação totalizadora. Tampouco
cedem para a poderosa crítica demolidora da possibilidade de universalização que, ao
sustentar a polarização radical entre todos os discursos, consolida a fragmentação e o
permanente ambiente de insuperabilidade do impasse. O recurso que ambos lançam mão é a
retomada: conceito capaz de operar uma orientação através das disparidades discursivas em
confronto, respeitando-lhes a diferença, ao mesmo tempo em que as eleva além de toda
fragmentação e incomunicabilidade. Aceitando o desafio de pensar a continuidade a despeito
das rupturas, na história e no discurso, buscam conduzir a reflexão ao nível da compreensão
universal pela possibilidade do direcionamento coerente, isto é, sensato. Nesse sentido, a tese
defende que a tomada de posição de Ricoeur não é apenas em favor do projeto filosófico
weiliano – sintetizado na fórmula kantiano pós-hegeliano –, é também a reapropriação efetiva
desse projeto atuante, agora, não mais pelo encadeamento das tipologias discursivas, mas
através das singularidades filosóficas.
Palavras-chave: Retomada, Projeto da Filosofia, Sentido, Violência, Tomada de Posição.
SUMMARY
This thesis addresses the relationship between Eric Weil and Paul Ricoeur. Despite being their
styles fully different, at the treatment of philosophical questions, their perspectives converge
in what we advocate here under the statute's project of philosophy - whether for a Logic of
Philosophy (Weil), whether in a philosophical hermeneutics (Ricoeur). Weil and Ricoeur opt
for this sense in any discourse, even in attempts to eliminate the sense, by attestation of
indecision in view of the conflict of interpretations and / or of the impossibility of reducing
violence to the speech. Neither the philosophy's logician, nor the hermeneut, it makes any
concession to the easy reading of the multiplicity of discourses, trying to suppress them at a
totalizing mediation. Nor they give in in to the powerful devastating criticism of the
possibility of universalization that by supporting the radical polarization between every
speech, consolidates fragmentation and permanent insuperability the deadlock environment.
The resource that both throw hand is the resumption: concept able to operate a guidance
through the discursive disparities in confrontation, respecting them the difference, while that
rises beyond all fragmentation and incommunicability. Accepting the challenge of thinking
about continuity, in spite of the ruptures in the history and discourse, they seek lead to
reflection at the level of universal understanding by the possibility of coherent directioning,
that is, judicious. In this sense, the thesis argues that the taking of Ricoeur's position is not
only in favor of the weiliano philosophical project – synthesized in the Kantian formula postHegelian –, It is also the effective reappropriation of this active project, now, no longer by the
chain of discursive typologies, but through the philosophical singularities.
Keywords: Resumption, Project of Philosophy, Sense, Violence, Taking Position.
Não é o tempo que passa, mas nele passa a existência do mutável
Immanuel Kant, CPR – Analítica dos Princípios
Sumário
Resumo...............................................................................................................
05
Lista de Siglas....................................................................................................
09
Introdução.............................................................................................................
10
1. Pensar o sentido e a violência...............................................................................
22
1.1. Residual poético e o entretempo da filosofia.........................................................
22
1.2. A violência e o desvio pelos símbolos, “A Simbólica do Mal”..............................
30
1.3. Topologia da violência: “linguagem e violência, o debate de 1967”.....................
39
1.4. Niilismo e filosofia................................................................................................
45
1.5. Filosofia e tomada de posição................................................................................
54
2. Rupturas, retomada, releitura..............................................................................
62
2.1. Nota sobre o esquematismo...................................................................................
62
2.2. O significado da tradução de reprise.....................................................................
63
2.3. Aplicação da retomada...........................................................................................
71
2.3.1 Filosofia, história e história da filosofia..........................................................
71
2.3.2 Retomada na composição da hermenêutica ricoueriana.....................................
79
2.3.3. “Ruptura irreparável” e “aporética leitura” do discurso filosófico weiliano....
86
2.3.4. O sentido, a ruptura, os “mestres da suspeita”.................................................
94
2.3.5. Decisão pela não violência na narrativa do processo jurídico...........................
102
3. Pós-hegelianos.........................................................................................................
109
3.1 Eric Weil: Hegel e a escritura de um projeto inacabado........................................
109
3.2 Paul Ricoeur: entre tentação e renuncia à Hegel..................................................
118
3.3 Ricoeur e a leitura do Hegel de Weil.....................................................................
131
3.4 Os enredos do poder e a theoria................................................................................
136
3.4.1. O paradoxo do político.......................................................................................
137
3.4.2. Filosofia Política e o problema do indivíduo...................................................
141
Conclusão ....................................................................................................................
150
Bibliografia..................................................................................................................
160
Anexos........................................................................................................................... 172
Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur
A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
Obras de Eric Weil
LP
PP
PM
HE
PK
EC I
EC II
PR I
PR II
Logique de la Philosophie
Philosophie Politique
Philosophie Morale
Hegel et l’État
Problèmes Kantiens
Essais et Conférences, Philosophie I
Essais et Conférences, Politique II
Philosophie et Réalité I
Philosophie et Réalité II
LF
FP
FM
HE
PK
Lógica da Filosofia
Filosofia Política
Filosofia Moral
Hegel e o Estado
Problemas Kantianos
Obras de Paul Ricoeur
SM
CC
TA
TI
MV
TR 1
TR 3
HMO
SMA
PR
RF
HV
L1
L3
J1
TT
La Symbolique du Mal
La Critique et la Conviction
Du Texte à l’Action
Teorie de la Interpretation
Metaphore Vivre
Temps et Récit 1
Temps et Récit 3
Histoire, Memoire, Oubli
Soi Même comme un Autre
Parcours de la Reconnaissance
Reflexion Faite
Histoire et Verité
Lecture 1,
Lecture 3
Le Juste 1
Les Temps du Texte
SM
CC
TA
TI
MV
TN 1
TN 3
HME
SMO
PR
AI
HV
L1
L3
J1
A Simbólica do Mal
A Crítica e a Convicção
Do Texto à Ação
Teoria da Interpretação
Metáfora Viva
Tempo e Narrativa 1
Tempo e Narrativa 3
História, Memória, Esquecimento
O Si Mesmo como Outro
Percurso do Reconhecimento
Autobiografia Intelectual
História e Verdade
Leituras 1
Leituras 3
O Justo 1
HI
Hermenêutica e Ideologias
Outras siglas e/ou abreviações
CRP
Fil. Dir
Enciclopédia
Fenomenologia
Lógica.
Crítica da Razão Pura
Filosofia do Direito
Enciclopédia das Ciencias Filosóficas
Fenomenologia do Espírito
Ciência da Lógica
INTRODUÇÃO
L’homme trouve dans l’action l’unité de la vie et du discours
Éric Weil
Desde a tese de Luís Manuel Bernardo, bem como outros trabalhos na mesma linha, 1
nos parece bastante fecundo e interessante abordar o viés hermenêutico da filosofia de
Éric Weil.2 Para o intérprete português, a obra de Éric Weil é capaz de potencializar
leituras renovadas ao se concentrar no gesto da antecipação hermenêutica, sobretudo no
papel desempenhado pelo conceito operatório da retomada no interior da Lógica da
Filosofia. Ainda segundo Bernardo, de algum modo, a filosofia de Weil voltada para o
duplo linguagem-discurso se situa no ponto do que se convencionou chamar viragem
linguística do pensamento. Esse mesmo duplo acompanha as reflexões que partem da
filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur posicionada na mesma quadra histórica e,
portanto, participante do mesmo debate. É fato que há diferenças entre uma e outra
filosofia, e a elas nos reportaremos sempre que a exigência se fizer presente.
No entanto, o que desperta nossa curiosidade é a existência de certas convergências e
cruzamentos no tocante ao que intentamos compreender sob a ideia de projeto da filosofia ou
projeto de pensamento, ao qual os filósofos e/ou as filosofias se agrupam ao tomarem posição
no bojo da própria tradição constituída, da qual a história da filosofia não é senão sua expressão
mais acentuada. A Lógica da Filosofia de Éric Weil e a hermenêutica filosófica de Paul Ricoeur
têm motivos de sobra para pertencer ao mesmo projeto de pensamento como um todo. E já
adiantando em nossa interpretação, isso se nota no uso que faz a filosofia de Ricoeur da matriz
hermenêutica retomada, presente no quadro da Lógica da Filosofia.
Pressupomos haver uma moldura comum de análise entre a filosofia sistemática de
Weil e a hermenêutica de Ricoeur. Ambos têm na linguagem a fonte primeva do filosofar;
não é estranho para eles que o problema do conflito entre as filosofias seja um desafio à
própria filosofia. O afrontamento desse problema, no caso da filosofia weiliana, ocorre
1
Em mente, basicamente, os trabalhos de J. M. Breuvart, Tradition, effectivité et theorie chez Éric Weil et Hans
George Gadamer, e J. M. Buée, La Logique de la Philosophie et l’Hermeneutique de Gadamer, in Cahiers Éric
Weil I, Lille, PUL, 1987, respectivamente, p. 143-163 e p. 165-195.
2
Cf. Luís Manuel Bernardo. Linguagem e discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Éric Weil, Lisboa:
INCM, 2003. Texto em polêmica com interpretação tradicional do pensamento weiliano que centra no binômio
razão/violência e não no par linguagem/discurso, como sugere o título da tese. O trabalho visa ainda converter toda
filosofia de Éric Weil numa teoria linguística, exatamente por ter neste binário o centro de gravidade desta filosofia.
10
pela articulação de uma lógica que busca a compreensão de todas as figuras dos discursos
filosóficos num mesmo movimento, 3 enquanto em Ricoeur se dá por uma hermenêutica
que – dialogando “de próximo em próximo”, “de nó em nó” –, possa arbitrar o conflito
das interpretações.
O debate entre Éric Weil e Paul Ricoeur não é apenas virtual. Ambos estiveram frente a
frente em algumas ocasiões. Ricoeur, por exemplo, dedica uma longa crônica à Filosofia
Política na edição de setembro de 1957 da revista Esprit4, à qual Weil responde com uma
carta.5 Convidado pela Société Française de Philosophie em 1963 para uma exposição
sobre a Lógica da Filosofia, Éric Weil apresenta o texto Philosophie e realité a eminentes
interlocutores entre os quais figuram Jean Wahl e Paul Ricoeur, este na ocasião lhe dirige
três questionamentos (cf. PR I, 7ss). Dividiram também a mesa por ocasião da Semana de
Intelectuais Católicos ocorrida em 1967, em Paris, sobre o tema Violência e linguagem. A
comunicação de Ricoeur, subsequente à intervenção de Weil, faz questão de referendar a
Lógica da Filosofia como seu ponto de partida, texto no qual o hermeneuta encontra
elementos mais que suficientes para contrapor as teses advindas do estruturalismo no
tocante à linguagem. 6 Além disso, na conclusão do Colloque International de Chantilly em
homenagem a Éric Weil, em 1982, Paul Ricoeur pronunciou uma magistral comunicação De
l’Absolu à la Sagesse par l’Action na qual buscava responder a contribuições anteriores
acerca da Lógica da Filosofia, em especial quanto ao que denominou de “as transições mais
difíceis”, no que concerne ao projeto weiliano do discurso coerente a ser mantido para além
da categoria do Absoluto7. Para tanto, adotou a leitura que na ocasião qualificou de “aporética
leitura do texto weiliano”.8
Voltaremos, no transcurso desta tese, a todos esses encontros. Por ora destacamos que a
3
A Lógica da Filosofia é a principal obra de Éric Weil, o que ele propõe nela é “o discurso sobre a
discursividade e a pluralidades das formas discursivas, nas quais esta se inscreve, na efetividade dos discursos
concretos produzidos pelos homens”, conforme Bernardo, op. cit. p. 15. Ela está organizada em 18 categorias
filosóficas cuja sequência é: Verdade, Não-Sentido, Verdadeiro e Falso, Certeza, Discussão, Objeto, Eu, Deus,
Condição, Consciência, Inteligência, Personalidade, Absoluto, Obra, Finito, Ação, Sentido, Sabedoria.
4
P. Ricoeur. La «philosophie politique» d'Éric Weil, Esprit, n.º 254, octobre (1957): 412-429, depois em L1, 3958 [Ed. Brasileira].
5
Éric Weil carta a Paul Ricoeur de 15 de outubro de 1957.
6
E. Weil. Violence et langage in Cahiers Éric Weil I, Lille, PUL, 1987, p. 23-31 e P. Ricoeur. Violência e
linguagem in L1, 59-68 [Ed. Brasileira].
7
Cf. P. Ricoeur. De l’Absolu par l’Action à Sagesse in Actualité d'Éric Weil. Actes du Colloque International.
Chantilly, 21-22 mai 1982, éd par le Centre Éric Weil, UER de Philosophie de Lille III, Paris: Beauchesne, 1984,
p. 407.
8
Marcelo Perine levanta severas suspeitas e não vê assim tão aporéticas as questões lançadas pelo filósofo
hermeneuta. Acredita mesmo que se tratam muito mais de problemas do que de aporias propriamente cf. M.
Perine. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2013, p.
188ss.
11
leitura filosófica, desatada pela hermenêutica ricoeuriana, se compreende como leitura de
segunda ordem, como releitura que procura articular toda a tradição filosófica e cultural com
o discurso da modernidade em vistas da transformação do tempo presente. Portanto, trata-se,
como tentamos demonstrar, de uma “retomada” sui generis da qual a hermenêutica filosófica
lança mão no sentido de orientar seus esforços para a compreensão da realidade histórica. Eis
porque é possível o estabelecimento de uma cumplicidade entre o conceito weiliano da
retomada e o procedimento da leitura (releitura, refiguração, apropriação) da hermenêutica
filosófica ricoeuriana. Cumplicidade conceitual-metodológica porque, antes, solidariedade de
projeto filosófico: Ricoeur toma para si, com certa recorrência, o mesmo qualificativo com
que Weil manifestava sua própria maneira de filosofar, o de ser um kantiano póshegeliano, e isso não é de modo algum despropositado de sentido, sobretudo para um
filósofo e uma filosofia de franca opção pelo sentido como é a filosofia ricoeuriana.9
Talvez se torne mais clarividente o vínculo de projeto filosófico ao qual aqui aludimos,
dando as indicações das fontes de nossa inquietação quanto ao empreendimento desta tese. A
senha inicial foi dada por Marcelo Perine. Esse pioneiro e renomado intérprete brasileiro do
pensamento weiliano, ao documentar a gratidão de Ricoeur para com Weil, narrando seu
impactante encontro com o hermeneuta, após se apresentar como estudioso da obra de Weil,
colheu do pensador de Valence a singela afirmação: “O senhor não pode imaginar o quanto eu
devo a Eric Weil”.10 Mas essa generosa declaração não fornece o material de sua gratidão,
deixando tão somente implícita uma dívida no âmbito da pesquisa filosófica cultivada pelo
hermeneuta, que tomamos por inspiração inicial desta tese – ou como aquilo “que está
provocando” essa pesquisa, conforme afirmou Marcelo Perine.11
Na sequência, quem nos permitiu avançar foi aquele que os weilianos reputam como o
mais conceituado intérprete do pensador franco-alemão, Gilbert Kirscher, por se referir a uma
partilha de programa filosófico entre Weil e Ricoeur desde os idos dos anos 1950,
especialmente pelas remissões deste último à Lógica da Filosofia, a Hegel e o Estado e à
9
É sugestivo que a fórmula kantiano pós-hegeliano atribuída a Weil jamais apareça em sua obra. No entanto,
segundo depoimento de Marcelo Perine, essa fórmula figura como a maneira pela qual Weil enxergava sua
própria filosofia cf. palestra sobre Éric Weil no espaço cultural da Editora É Realizações por ocasião do
lançamento das traduções de Filosofia Moral e Hegel e o Estado em 03 de junho de 2011. Disponível em:
http://www.erealizacoes.com.br/espaco/janelaVideo.php?video=Palestra_Éric-Weil&posicao=2. A fórmula se
torna ainda mais curiosa uma vez que surge frequentemente em Ricoeur, p. ex., TR 3, 389; TA, 251; CC, 118.
François Dosse, ao escrever a biografia de Ricoeur, também atribui a Weil essa fórmula e acrescenta que a
partilha dela por Ricoeur ocorre, sobretudo, no tratamento das questões relacionadas à filosofia política cf. F.
Dosse. Paul Ricoeur: Le sens d’une vie (1913-2005). Paris: La Découverte, 2008, p. 499.
10
Cf. M. Perine. Éric Weil e a compreensão do nosso tempo: ética, política, filosofia. São Paulo: Loyola, 2004, p. 10.
11
Cf. M. Perine (palestra sobre Éric Weil).
12
Filosofia Política. Para o autorizado intérprete, ambos organizam suas respectivas filosofias
em torno de alguns temas comuns: Ricoeur, por exemplo, reconhece na Lógica da Filosofia o
desenvolvimento de um filosofar próximo ao seu, especialmente por tratar as mesmas aporias
da compreensão da realidade histórica e por confrontar advento e sentido; ele também
considera a oposição categoria-atitude de modo muito similar ao evento e a estrutura.
Ademais admite a exigência da compreensão conduzida pela ideia de supressão (Aufhebung)
da história na filosofia,12 isto é, aquilo que Ricoeur chama de término da história num leitor,
no caso, o leitor filósofo (cf. HV, 36). Uma evidente partilha de inclinação hermenêutica se
deposita nesse resíduo do leitor que, como se verá mais tarde, aparece na obra de Ricoeur sob
o conceito de refiguração.
Enfim, mas não por último, temos a posição de Luís Bernardo, advogada em sua exímia
tese de doutorado Linguagem e Discurso, ao buscar extrair da filosofia weiliana uma
hermenêutica, permitindo ampla compreensão das potencialidades discursivas e linguísticas
da filosofia weiliana no confronto com as posições da análise do discurso filosófico da
modernidade e da ação comunicativa de Habermas. O livro de Bernardo, desse modo, abre
uma excelente perspectiva ao confrontar filosofias que se debruçam no plano da linguagem e,
portanto, para os propósitos desta pesquisa, uma acentuada interface da Lógica da Filosofia
com a hermenêutica ricoeuriana.
Após essa rápida retentiva às três fontes de nossa “provocação” inicial, passemos em
revista a particularidade dessemelhante da obra de cada um dos autores com o intuito de
realçar um traço marcante presente em ambos: o de que o diferente pode ser compreendido
como uma modalidade do mesmo e, nesse sentido, não é descabido o movimento do
pensamento pela continuidade.
Chama atenção, de um lado, que Ricoeur tenha uma obra diversificada, expansiva e
multifacetada, distribuída em quase trinta títulos produzidos, nos quais, o hermeneuta,
saltando de tema em tema, de problema em problema, frequentando autor por autor, confronta
as mais díspares áreas do conhecimento sem nenhum alinhamento sequencial no qual,
necessariamente, os temas se prenderiam. Contudo, não ignora, em absoluto, sua unidade
temática, a ponto de se ver por vezes obrigado a recolher os “fios soltos” de sua vasta
produção – como em Autobiografia Intelectual (Réflexion Faite – 1995), A Crítica e a
12
G. Kirscher. La Philosophie d’Éric Weil: systématicité et ouverture. Paris: PUF; Namur: Press Universitaire de
Namur 1989, p. 10.
13
Convicção (1995) e O meu caminho filosófico.13 De outro lado, nesse particular e sob essa
flagrante diferença de caráter editorial, Weil produziu uma obra muito enxuta: a rigor
escreveu a Lógica da Filosofia (1950), Hegel e o Estado (1950), Filosofia Política (1956),
Filosofia Moral (1961), Problemas Kantianos (1963), e teve reunidos em quatro volumes
artigos, recessões e alocuções radiofônicas: Ensaios e Conferências I e II (1970 e 1971) e
Filosofia e Realidade I e II (1982 e 2006 publicações póstumas).14
Mas são as três primeiras obras, como defendem os argutos intérpretes Bernardo e
Kirscher,15 ou o conjunto das cinco obras temáticas, como atesta o primoroso comentador
Perine,16 que constituem o núcleo do pensamento weiliano. Os demais trabalhos, como
informa Kirscher, simplesmente compõem ensaios propedêuticos ao sistema weiliano e não
dizem nada que não esteja compreendido e devidamente situado no interior do sistema.17
Polêmica à parte, pois sendo três ou cinco o quantitativo de livros que contêm o cerne do
pensamento de Éric Weil, não se poderá dizer que sua obra não seja condensada. Mas
condensação não significa ausência de pluralidade. Muito pelo contrário, quem já teve a
oportunidade de atravessar alguns dos livros de Weil, e mesmo alguns dos seus artigos, sabe
que a diversidade, a multiplicidade dos discursos e a fragmentação é o afrontamento mais
característico do seu pensamento. “Weil nos reconduz sempre a uma mesma ideia: o homem
está inserido num mundo concreto no qual tem tentado dizer o sentido de sua história de
múltiplas maneiras, ao mesmo tempo complementares e antagonistas”.18
A esse propósito, é importante mencionar a famosa anedota contada por Raymond Aron de
que Weil dizia querer colocar um “ponto final na filosofia”,19 ou seja, o pensador franco-alemão
13
O meu caminho filosófico é uma Lectio magistralis proferida na Universidade de Barcelona em 24 de abril de
2001 in. D. Jervolino. Introdução a Ricoeur. São Paulo: Paulus, 2011, p. 120-143.
14
Emparelhada a essa diferença bibliográfica, convém observar certa coincidência biográfica entre os dois
pensadores. A história deles, colocada lado a lado, permite compreender como suas trajetórias pessoais
convergem para escolhas filosóficas muito aproximadas. Sobretudo, no que se refere ao enfrentamento da
violência e o diálogo produtivo com o diferente, no caso a reunião de duas grandes tradições da filosofia: alemã
e francesa. Ora, ambos, alistados nas forças da resistência francesa, lutaram no front contra o nazismo; os dois
foram capturados e viveram por cinco anos cativos dos alemães em campo de prisioneiros de guerra; eles dois
mantiveram-se à margem do modismo filosófico que mobilizou grande parte da intelectualidade francesa na
segunda metade do século XX; um e outro se conservaram trabalhando discretamente para ressurgirem como
figuras de expressão ao fim daquele século. Weil é o alemão que precisou aprender francês como estratagema de
sobrevivência durante o exílio na nova pátria e, assim, pode melhor dialogar com essa outra tradição; Ricoeur é o
francês que aprendeu alemão primeiramente na fronteira, quando morou em Estrasburgo, e depois traduzindo,
quando prisioneiro, o Idem de Husserl.
15
Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 11; G. Kirscher, op. cit. p. 7ss e G. Kirscher, A abertura do discurso filosófico,
ensaio sobre a Lógica da Filosofia, Belo Horizonte, Síntese n. 41 (1987): p. 44-45.
16
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., p. 53.
17
Cf. G. Kircher, art. cit. p. 45 e op. cit. p. 9.
18
J.- M. Buée. Éric Weil, penseur de l’unité plurielle in Critique n. 636, mai (2000): p. 397-397.
19
Raymond Aron. Memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 812.
14
situava-se na linha aberta por Platão, aquele que sempre se considerou o zênite da filosofia do
seu tempo e de quem colhemos a afirmação; “quem é capaz de visão de conjunto está apto para
a dialética [= filósofo], e quem não é capaz, não está”20. Posiciona-se também na perspectiva de
Hegel, que não se propôs pensar uma filosofia, mas pensar a filosofia (cf. EC I, 130). Weil,
autor de sistema e ciente dos riscos, quer dizer, com conhecimento de causa, assumiu a tarefa de
pensar a totalidade sistematicamente num ambiente em que não era mais bem-vinda essa
maneira de encarar o pensamento filosófico. Hoje não é absolutamente estranha a ninguém a
hostilidade dispensada ao pensamento sistemático desde o início do século passado e como essa
perspectiva se tornou completamente démodé na França de 1940 em diante, chegando, por
conseguinte, ao nível do acirramento crescente contra essa modalidade de pensar. A suspeita
quanto a isso é reforçada pelo que nos diz Jean-Michel Buée:
a França dos anos cinquenta, dominada pelas correntes filosóficas para às
quais a Lógica da Filosofia era, em grande parte, estrangeira – dificilmente
poderia despertar outra coisa que desprezo e mal-entendido. Além disso, o
contexto imediatamente posterior, o da filosofia francesa dos anos sessenta e
setenta, não era propício para dissipar esta incompreensão: que poderia
significar, com efeito, uma concepção afirmando que a filosofia, nasce de
uma livre decisão em favor da razão, que é essencialmente busca do
universal e da coerência, num tempo que se dá por tarefa principal
desmistificar, desconstruir, de colocar em questão, de todos as maneiras
possíveis, uma tradição que Weil parecia, ao contrário, querer perpetuar?
Sem dúvida essa é a origem da atitude adotada pela maioria daqueles que
ocuparam o devant de la scène intelectual da época – Paul Ricoeur constitui
a única exceção notável. A qual bom debate se presta um pensamento que
não tinha outra finalidade senão uma espécie de reedição de Hegel ou Kant,
e do qual o estilo, tanto quanto o conteúdo, parecia pertencer ao passado
encerrado?21
Paul Ricoeur não aparece de maneira fortuita nessa citação. A situação dele não era muito
diferente nesse mesmo período. Durante a década de 1960, na qualidade de incômodo
adversário do movimento estruturalista, tentava, também no contra fluxo da onda, o resgate
do sujeito através de novas determinações: fosse por uma reflexão filosófica de Freud em Da
20
República, 537 c.
« la France des années cinquante, dominée par des courants philosophiques auxquels la Logique de la
philosophie était largement étrangère – ne pouvait guère susciter autre chose que méprise et malentendu. Qui
plus est, le contexte immédiatement postérieur, celui de la philosophie française des annés soixante et soixante
dix, était peu propice à dissiper cette incompréhension: que pouvait signifier en effet une conception affirmant
que la philosophie, née d’une libre décison en faveur de la raison, est essentiellement recherche de l’universel et
de la cohérence, en un temps qui se donnait pour tâche principale de démystifier, de déconstruire, de mettre en
question, de toutes les façons possibles, une tradition que Weil semblait au contraire vouloir perpétuer? Sans
doute est-ce là l’origine de l’attitude adoptée par la plupart de ceux qui occupaient le devant de la scène
intellectuelle de l’époque – Paul Ricoeur constitue la seule exception notable. À quoi bon débattre avec une
pensée qui n’était finalement rien d’autre qu’une sorte de redite de Hegel ou de Kant, et dont le style autant que
le contenu semblait appartenir à un passé révolu?» J.-M. Buée. Éric Weil, penseur de l’unité plurielle, art. cit. p.
390.
15
21
Interpretação (1965) em que a psicanálise é apresentada como uma espécie de arqueologia do
sujeito; fosse tomando a direção de uma reflexão hermenêutica sobre a linguagem em O
conflito das Interpretações (1969) onde não concede ao modelo linguístico nenhuma forma de
absolutização. Assim se explica a maneira pela qual opunha à teoria geral das relações de
Levi-Straus, fundador e principal expoente do estruturalismo, uma teoria geral da
interpretação. Sua hermenêutica, então marginalizada pelo triunfalismo do estruturalismo,
buscava assimilar e integrar todas as aquisições das ciências humanas graças a sua posição
intangível de diálogo e de abertura, contrária ao fechamento da linguagem sobre si mesma ou
do encerramento dos diversos sistemas linguísticos.22
Assim como se pode encontrar nessa atmosfera de animosidade a razão para o tardio
reconhecimento de Ricoeur, se poderá também verificar alguns traços e motivações para
aquela ainda não merecida consagração do pensamento de Weil,23 apesar dos notáveis e
avolumados esforços em torno de sua filosofia em vários quadrantes do planeta. 24 Jean Wahl
se refere a Lógica da Filosofia como uma espécie de Fenomenologia do Espírito dos anos
195025, e Merleau-Ponty a coloca na tradição dos grandes livros sagrados e clássicos da
filosofia por ser enigmático e altivo (cf. PR II, 251), para dar apenas dois exemplos
contemporâneos a Weil.
Pesa, amiúde, contra pensadores sistemáticos, como os acima citados Platão e Hegel, a
acusação de serem inconvenientes por sempre dizer tudo, no entanto, se negligencia, com a
mesma frequência, que não é necessária a explicitação de tudo que é dito. Daí porque não se
pode olhar para a ordem dos livros de pensadores desse naipe – da mesma forma que os
títulos por eles escolhidos – e não pensar no significado que possuem. 26 Situando-me ao lado
daqueles que localizam o núcleo do sistema weiliano no composto dos cinco livros (LP, HE,
PP, PM e PK, produzidos nessa ordem cronológica e sistemática), convém observar que, no
próprio movimento sistemático dessa composição, se percebe, duplamente, sempre um Kant
posterior a Hegel.
22
Cf. F. Dosse, História do estruturalismo II: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias. Tradução de Álvaro
Cabral. Bauru, SP: Edusc, 2007, p. 348-349.
23
Cf. L. M. Bernardo, op. cit., p. 12.
24
A filosofia de Éric Weil tem despertado interesse e tem sido estudada por pesquisadores de várias partes do
mundo: além da Alemanha, berço da formação intelectual do pensador, e da França, onde se desenvolve sua
filosofia, há ainda Itália, Bélgica, EUA, Romênia, Portugal, Burkina Faso, Chile e Brasil.
25
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., p. 29.
26
Existe uma organização temática e sistemática presente nos diálogos de Platão cf. V. Goldschmidt. Os
diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo: Loyola, 2002. O mesmo ocorre com Hegel cf. V.
Safatle. Curso sobre a Ciência da Lógica de Hegel: aula 1. São Paulo: USP, 2011, p. 7ss.
16
Com efeito, depois da Lógica da Filosofia, Weil publica apenas dois trabalhos de
envergadura dedicados a autores individuais, respectivamente Hegel e Kant – e curiosamente
Kant depois de Hegel. Filosofia Política e Filosofia Moral, que são desdobramentos da
Lógica da Filosofia, no que concernem às categorias Ação e Consciência, podem, igualmente,
ser encaradas na mesma perspectiva. Em se tratando da Consciência, é o discurso kantiano
que aparece em viva luz, a ponto de Marcelo Perine considerar a Filosofia Moral como o
texto mais kantiano pós-hegeliano de Weil.27 No que diz respeito a Ação, comumente tida
como a categoria na qual é Marx quem aparece, é preciso levar em consideração a presença de
Hegel, sobretudo se se considera que a categoria da Ação é aquela na qual Hegel já se
encontra subsumido. Aliás, a Ação é a categoria que possui, com conhecimento de causa, a
maior clareza de ser pós-hegeliana no sentido de que ela sabe que é (tem consciência), do
ponto de vista histórico, uma tradução de Hegel (cf. HE, p. 135). A própria presença de Marx,
como discurso dominante dessa categoria,28 subscreve nosso entendimento, pois Marx é o
filósofo que se propõe realizar a filosofia que, para ele, é a filosofia de Hegel. E Weil sustenta
que Marx, ao lado de Engels, é o mais genuíno hegeliano (cf. HE, 17ss e 123ss).
De outra maneira: trata-se de uma retomada do Absoluto sob a história e, portanto, filosofia
não mais do ponto de vista de Deus (cf. LF, 105), mas do homem. Além do mais, é ponto
pacífico que quanto a sua estrutura, Filosofia Política guarda total identidade com a Filosofia
do Direito de Hegel sem, contudo, dar o mesmo tratamento aos problemas. Creio poder
afirmar dessa obra o mesmo que Ricoeur afirma da categoria do Absoluto: função hegeliana,
conteúdo não hegeliano.29 Isso para ilustrar que a organização do sistema como um todo
pressupõe um kantismo pós-hegeliano.
Ora, a Introdução da Lógica da Filosofia é um movimento do filosofar que, recriando
retrospectivamente as condições necessárias do sentido do próprio filosofar weiliano, fornece
a chave de acesso ao sistema como lógica do discurso.30 Nesse sentido, o pertencimento da
Introdução e o lugar que ocupa no escopo do sistema, como sugere Bernardo, não é
acontecimento fortuito, uma vez que, para Weil, todo particular precisa justificar seu lugar
27
Cf. M. Perine (Palestra).
Sobre a caracterização da categoria da Ação na Lógica da Filosofia como marxista cf. A. Tosel. Action
reisonnable et science sociale dans la philosophie d’Éric Weil in Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa,
série III, vol. XI/4(1981): p. 1162ss e mais recentemente cf. J. Quillien. La reprise, Kant, Marx. Cultura –
Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, 31 (2014): p. 56.
29
Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 410. G. Kirscher corrobora ao indagar que ao publicar uma Filosofia Política, na
linha de Hegel, Weil, não “subordina as esferas da moralidade individual e da organização econômica e social à
esfera política? E se Weil não chega a qualificar o Estado como divino sobre a terra, não foi ele quem declarou
que não se pode pensar a política senão do ponto de vista do governo?” cf. G. Kirscher, art. cit. p. 43.
30
Cf. L. M. Bernardo, op. cit., p. 65.
17
28
dentro do sistema, e dessa constatação é preciso extrair todas as consequências. Entre as quais
a que advogamos contida na ideia de que a organização sistemática da filosofia é também
compreensão de si mesma e, destarte, comunica uma posição filosófica assumida com
conhecimento de causa, vale dizer, da visada recorrente sobre o todo do discurso (cf. LF, 103).
A história da filosofia é exatamente essa tomada de consciência por parte da filosofia cujo
resultado é a filosofia sistemática – a reflexão da filosofia sobre sua própria história (cf. LF,
104). Ora, é enorme a variedade dos discursos filosóficos desde o surgimento da filosofia no
século VI a.C. De lá para cá, só cresceram e se acentuaram o montante das divergências
filosóficas.
Além do arbítrio no conflito das interpretações que essa problemática suscita, há também,
certamente, o problema da escolha, problema que não é particular de nosso tempo, mas nele
potencializado ao extremo. Uma ideia, ou melhor, uma questão, que sabemos ser problemática
há muito nos estudos de filosofia, é a da escolha de uma filosofia. Sabemos que existe
filosofia para todos os tipos e gostos – muito embora gosto não devesse ser aquilo pelo qual
alguém define sua escolha por determinada filosofia. E todas elas, a despeito de suas
diferenças, muitas vezes extremamente radicais e diametralmente opostas, mantêm a
pretensão de atingir a verdade mesmo que seja negativamente, ou seja, desautorizando aquilo
que se apresenta como verdade sem sê-lo efetivamente ou sê-lo ainda que parcialmente.
Os critérios da escolha de uma filosofia como resposta a essa última problemática são tão
diversificados quanto as próprias filosofias. O mesmo pode ser dito do abandono de uma
filosofia por outra: é o esgotamento de certa filosofia em oferecer respostas satisfatórias que
permite outro tipo de escolha, por vezes considerando o avanço em relação à precedente, ou
mesmo saltando de uma para outra sem aplicar qualquer critério de decisão, inclusive por
ignorar o critério que aplica. Compreendemos, com Weil e Ricoeur, que, sem essa visada, a
história da filosofia não passaria de uma lição de ceticismo, na qual as diversas filosofias
estariam condenadas ao desfile solipsista mediante à contradição e à destruição mútua (cf.
HV, 46) pelo embaraço da abundância das explicações (cf. PR I, 257).
Ocorre propriamente que o filósofo não pode deixar de olhar para sua própria história,
capítulo da história humana que recebe sua elaboração, e deixar de pensar sobre os vestígios
daquilo que o constitui no presente. Assim, a história da filosofia, sem se reduzir a uma
coleção de posições sobrepostas, permite um direcionamento a despeito da irredutibilidade
existente entre as distintas correntes e/ou singularidades filosóficas. Repitamos: refletir
18
sistematicamente acerca da filosofia é compreender a própria história da filosofia. Ora, como
há muitíssimas digressões em direções variadas, é preciso um procedimento para que o
filósofo possa lançar mão a fim de articular o conjunto das filosofias na elaboração desse
monumento que é a história da filosofia. Para Weil e para Ricoeur esse recurso é a retomada,
conceito “que permite a aplicação da lógica à realidade histórica [...] que permite a
compreensão dos discursos concretamente sustentados pelos homens do passado e do
presente” (LF, 123), ou ainda, operação de segundo grau na qual o filósofo compõe a história
(cf. HV, p. 39).
Noutros termos: mediante esse recurso o filósofo tem a possibilidade de retomar tudo que
se encontra estilhaçado. E retomar significa aqui poder reunir, reagrupar, recuperar no
conjunto das digressões múltiplas aquilo que é possível apreender numa mesma modalidade
em que os discursos se formulam. Anuncio minha tese: a hermenêutica de Paul Ricoeur é uma
hermenêutica de retomadas. História e Verdade atesta muito bem essa afirmação: a enérgica
recusa de dissociar elucidação dos conceitos diretores e intervenção na crise civilizatória (cf.
HV, 08) nada mais é do que uma nova maneira de afirmar que a reflexão filosófica está
assentada na articulação atitude-categoria, no melhor estilo da Lógica da Filosofia.
Ora, Ricoeur afirma que existe uma palavra que retoma reflexivamente os temas geradores
de uma civilização em marcha (cf. HV, 09), nesse sentido, é palavra que ouve antes de ser
pronunciada, é palavra que observa as atitudes humanas na história e se permite categorizar
essa experiência, cada uma dessas experiências ou, pelo menos, tantas quantas forem
possíveis devido à situação de estilhaçamento em que se encontram.
Por essa perspectiva, Ricoeur não se propõe o empreendimento das interpretações globais
da história, muito embora tal empreendimento também não esteja interditado. Pensar noutra
via, a via do próximo em próximo, do problema em problema, a via que privilegia o
particular, isto é, aquela que dá proeminência e voz ao singular.
Manifestado esse quadro convém, agora, delinear a problemática de cada um dos três
capítulos desta tese. No primeiro pensamos inicialmente poder situar o nosso lugar de
compreensão a partir da relação poesia e filosofia para em seguida articular uma reflexão
acerca do sentido e da violência tomando por base A Simbólica do Mal como uma espécie de
reflexão que, não podendo confrontar a violência diretamente, esmiúça seus significados
através dos símbolos originários: mancha, culpa e pecado. Esse longo desvio pelos símbolos
que escrutina as sendas da origem do mal, confere à relação profundamente imbricada entre
19
mitos e logos a base sobre a qual é possível ser pensada a violência enquanto constitutiva na
sua relação com o discurso filosófico. Realizada essa apreensão tentamos num segundo
momento situar o lugar da violência tomando como referência o debate de 1967, linguagem e
violência, entre Weil e Ricoeur no qual, pela comparação de ambos, é realçada as estratégias
utilizadas por cada um dos filósofos contra esse adversário comum. Essa reflexão deságua
num levantamento da situação do nosso tempo, tendo como polos balizadores a violência, sob
a faceta do niilismo, e a própria filosofia. Ao fim desse capítulo, ensejamos uma abordagem
de caráter amplo sobre a tarefa do filosofar ligado prioritariamente à reflexão weiliana em que
é revelado o aspecto fundamental da tomada de posição como aspecto irrenunciável da
filosofia que se quer realizada.
Abrimos o segundo capítulo com uma pequena nota sobre o esquematismo em Kant cuja
finalidade, de caráter meramente introdutório, visa situar o leitor quando das várias remissões
feitas a esse conceito. O significado da tradução do termo reprise na sequência cumpre dupla
função: tentar dar corpo a um problema ainda muito incipiente no âmbito dos pesquisadores
weilianos de língua portuguesa e tornar o mais claro possível o significado do conceito quanto
a própria pesquisa em andamento.
No entanto, a temática basilar do capítulo gira em torno da função operatória da retomada,
analisada no contexto da composição da hermenêutica ricoeuriana. Procedendo pela releitura
de sua própria obra, Ricoeur demonstra como uma questão antes marginalizada em seu
percurso é recuperada respondendo na direção do sentido e como essa leitura de si mesmo é
correlata ao conceito de apropriação. Nessa linha é que sugerimos a apreciação que Ricoeur
faz acerca da Lógica da Filosofia leitura que, confrontada com a crítica de Labarrière e
contrastada com a interpretação que Marcelo Perine faz dessa leitura, revela sua apropriação
do discurso filosófico de Weil. A tomada de posição de Ricoeur em defesa da continuidade do
discurso filosófico weiliano nessa confrontação não se diferencia daquilo que a hermenêutica
ricoeuriana realiza na sua relação com os “mestres da suspeita” quanto à análise histórica –
ambas discussões circunscritas mediante o desafio imposto pelas rupturas. Essa orientação da
hermenêutica encontra sua justificação na decisão pelo projeto da não violência – trazido à
tona pela Lógica da Filosofia – visível quando observado na narrativa do processo jurídico.
No terceiro, tratamos da complexa relação de Weil e Ricoeur com a filosofia de Hegel. Eric
Weil mesmo reputando a Hegel como aquele que empreendeu o projeto, em matéria de
filosofia, da mais elevada estatura, compreende que seu intento é projeto inacabado. Paul
Ricoeur, envolvido com Hegel de maneira semelhante, oscila entre reconhecimento e crítica
20
da filosofia hegeliana o que faz dela, para a hermenêutica, imprescindível ao mesmo tempo
em que impossível de ser realizada. Ainda no tocante a relação com Hegel, apresentamos a
leitura de Ricoeur ao Hegel de Weil na Lógica da Filosofia intencionando confirmar como
suas leituras sobre o filósofo do absoluto são convergentes. A última parte desse capítulo
retorna a questão proposta no início acerca da realização do projeto da filosofia pela via política,
agora, respeitante ao poder mediante o paradoxo político e ao exame da Filosofia Política. Essa
articulação temática permite compreender como o projeto filosófico precisa considerar a
travessia pelas particularidades das relações de poder sem abrir mão de uma orientação rumo à
universalidade, ao mesmo tempo em que integra a experiência singular concreta do indivíduo.
Portanto, é uma theoria, uma visão do todo, que é acionada quando do desafio da superação da
violência na história.
Os dois últimos textos que compõe os anexos foram produzidos enquanto tentávamos tornar
mais clara a problemática da presente tese. Nesse sentido, como artigos vinculados a mesma
pesquisa, acreditamos que a presença deles, mesmo que a título suplementar, possa se prestar a
esclarecimentos de passagens que se revelem obscuras durante o percurso no corpus de análise
propriamente.
21
1. Pensar o sentido e a violência
La liberté plonge dans le fonds chaotique de l’être
Paul Ricoeur
1.1. Residual poético e o entretempo da filosofia
Da mesma maneira como os autores pelos quais nos orientamos nessa tese, pretendemos
começar nossa reflexão pela entrada que por si só não se justifica e aguarda de todos aqueles
que tomarão contato com esse trabalho uma generosa dose de benevolência a fim de poder
comprovar o que se propõe. É em termos de uma narrativa da promessa que iniciamos esse
trabalho, ou melhor, como uma aposta de ainda poder dizer algo em favor da reflexão filosófica.
Isso porque mesmo em filosofia (e esse é um dos pressupostos para ambos pensadores aqui
destacados), frequentemente hoje em dia, muito se ignora do que efetivamente está em questão.
Ao longo dos séculos, muito embora problemas tenham sido adequadamente tratados e outros
tantos até mesmo encontrando resolução satisfatória, é provável que questões primordiais
herdadas pela filosofia acabaram por sedimentar-se e, eventualmente, ser esquecidas. Contudo,
a filosofia insiste ainda tratar “de coisas tão antigas, tão profundas que são recobertas por todas
as camadas do esquecimento não pensante” (FM § 21, b).
Do que se trata então quando falamos da filosofia? O que nos impõe a reflexão filosófica
quando o implicado é a própria filosofia? Por quais critérios escolhemos e nos mantemos
diante de determinada filosofia ou a abandonamos para, em seguida adotar outra orientação,
se nos for permitido responder as questões anteriores? Partimos de uma convicção a propósito
dessas indagações: a filosofia tem a ver com o envolvimento de algo que a antecede e a
compreende, mas que só se torna compreensível por meio dela. Sob essa ótica, a filosofia é
um posicionamento diante da realidade, ou se se preferir, diante dos fatos que constituem o
todo da realidade na qual a própria filosofia é um deles.
O agravante é o frequente esquecimento do fato de a filosofia ser apenas mais uma voz em
meio a outras, além da mesma se subdividir nas mais disparatadas vertentes. O chocante, para
falar como Ricoeur, é o fato de que sempre se pode dizer de uma questão que ela não é
filosófica!1 A dificuldade aumenta quando, não podendo falar (não sem ressalvas) da filosofia
no singular, constata-se que há pluralidade de filosofias. No entanto, ainda assim falamos de
filosofia, conscientes ou não de que há outras falas, outros discursos igualmente dispostos a
1
Cf. Ricoeur apud J.-M. Gagnebin. Da dignidade ontológica da literatura in Fernando Nascimento e Walter
Salles (Org. e trad.). Paul Ricoeur; ética, identidade e reconhecimento. Rio de Janeiro: PUC/Rio, São Paulo:
Loyola, 2013, p. 37.
22
tratar dos mesmos temas e problemas, com abordagens muitas vezes concorrentes e contrárias
quanto ao que tomam a analisar. Tudo isso sem se importar que a escolha por esse ou aquele
discurso, essa ou aquela filosofia transcenda a questão de gosto. São poucos aqueles, mesmo
entre os filósofos, que se deixaram apanhar por esse problema, mas esses seguramente
merecem a posição que têm no universo da tradição filosófica.
Não é incomum atualmente, no âmbito da chamada sociedade da informação, cuja
linguagem é definida pela hipertextualidade, não saber exatamente a que problemas certas
respostas foram inicialmente sugeridas. O tempo da convivência de todos os discursos foi
primorosamente identificado como o tempo do conflito das interpretações: quando muito se
fala sobre tudo é preciso temer que nada ou pouquíssima coisa seja dita. De igual modo,
quando todos falam ao mesmo tempo e, assim, se leva muito barulho para as ruas, deve-se
considerar seriamente a possibilidade de uma grande dificuldade de entendimento entre todos
a respeito do que é dito.2
Não sabemos o quanto a situação presente assim descrita exige que se inicie uma reflexão
como esta pela ênfase do sentido e da violência. Entretanto, ao menos para os autores que
tratamos de acompanhar, uma incursão pelo sentido, num ambiente caracterizado como é o
nosso pela primazia da violência, faz todo sentido. Porém, não nos parece que encontraremos
de imediato o sentido se nos dirigirmos ao que poderia ser identificado como o sentido hoje.
Como dissemos, essa questão (ou, se se quiser, noção) está na base da própria filosofia, e a ela
não é possível aceder sem um desvio que procure recuperar, não uma anterioridade, no
sentido de originalidade arcaica, mas, o que importa lá e cá, o percurso.
O maior defeito de todos que estudam filosofia e dela retiram alguma lição é a compreensão
de que não há acesso imediato à realidade. A reflexão filosófica costuma ser um trabalho, se se
tem alguma clareza sobre o significado da palavra trabalho, muito penoso. Mas não por isso
deixa de ser gratificante e, porque não, prazeroso, como qualquer outra atividade que alcança
seu fim e, por assim dizer, atinge sua excelência – obtém aquilo que se propôs realizar.
2
«(...) une époque qui cherche une primière catégorie et qui, de plus, est consciente du fait qu’elle cherche, et
qu’elle cherche une catégorie primière, non pas un fait ou une réalité, une telle époque ne connaît plus la
pauvreté qu’elle cherche. Le malaise que l’envoie á la quête d’une telle catégorie est provoqué par l’embarras
des richesses. Elle sait trop de choses, trop de vérités, elle connaît trop de contenus, trop de situations. Quand
elle trouve ce qu’elle a cherché, elle ne peut le saisir et le garder qu’au prix du plus grand effort : les mots dont
elle dispose sont changés d’histoire, ses concepts sont entrés en relations infinites e indéfinies. Or, elle cherche
un fondement simple et qu’elle devra garder simple. La difficulté appartient à la nature même de la tâche. » (LP,
91). Noutro lugar a mesma observação: «Il semble que nous souffrions d’un embarras dês richesses; de même
l’on a parfois l’impression que notre époque dispose de toutes sortes de réponses mais ne sait pas toujours
précisement à quelles qustions ces réponses pourraient correspondre. » (PR I, 07).
23
A filosofia procede por uma série de mediações com o intuito de se aproximar daquilo de
que aborda. E é somente com esse caráter de aproximação que o filósofo se permite dizer
alguma coisa. De forma alguma isso implica que aquilo que é dito pelo filósofo não tenha
nenhuma consistência por ter se deixado levar por elucubrações, por vezes muito distintas do
que de imediato deveria ser tratado. Muito pelo contrário, é exatamente por não se deixar
permitir um fácil acesso ao real – até porque não há acesso fácil ao real – que a filosofia acredita
dispor de um discurso mais equipado para o tratamento dos diversos temas que compõe o todo
da realidade, especialmente quando seu tema é o Todo. No entanto, nada disso impõe que a
filosofia obtenha a última palavra acerca de tudo, seu discurso é tão somente mais um, tem a
mesma legitimidade de qualquer outro que queira se dirigir aos problemas que a realidade
suscita. Diremos até, como Éric Weil, que a filosofia possui o mais fraco entre todos eles por ser
discurso razoável (cf. LF, 14ss), mas o que aparece como virtude para o filósofo torna-se vício
para os demais. O que toma por sua força é, aos olhos dos outros, sua fraqueza. O filósofo terá,
assim, de aprender a conviver com essa dura lição que o empurra para a solidão.
Mas o filósofo não está absolutamente sozinho, ele partilha a companhia dos que como ele
(outros filósofos, pensadores, poetas, literatos, homens de cultura) são incapazes de aceder ao
real sem adotar um conjunto de desvios que, frequentemente, parece levá-los bem longe das
preocupações momentâneas que costumam dar início ao processo do pensamento. Outros
filósofos (e filosofias) que como ele também operaram e operam levando sempre em
consideração esse de afrontamento de cerco, que não consegue se aproximar senão
empreendendo várias voltas. Por mais paradoxal que pareça é distanciando-se do que de
imediato investiga que a filosofia realmente se torna próxima de seu objeto, isto é, próxima de si
mesma. Um desvio pelos vastos continentes do pensamento parece ser uma exigência para
todos os que querem demarcar suas próprias fronteiras. E essa é, sem dúvida, uma das maiores
lições colhidas do filósofo da Lógica da Filosofia, como aquele da hermenêutica filosófica.
Se pudermos nos valer de uma imagem, podemos dizer que a filosofia é tanto ampla
quanto profunda. Uma amplitude que nos remete ao longínquo e uma profundidade que tem a
ver com a densidade do agora. Em ambos os casos a filosofia se perde numa espécie de
opacidade do real, seja a do tempo remoto, seja a da prospecção do presente. Em cada uma
delas é a mesma modalidade de resistência à reflexão que se impõe. Mas é dessa forma, sem
medo de se perder, que a filosofia deve encetar a superação do que se apresenta como
distâncias invencíveis. Algo longe e profundo, profundo porque longe, longe porque profundo
24
toca a filosofia. É a esse algo que a filosofia sente necessidade de responder. É para essa
alguma coisa que a filosofia se sente impelida a voltar-se sobre si mesma.
É essa interpelação do logos, desde o seu surgimento, que faz o problema do sentido e da
violência assumirem para as filosofias de Eric Weil e de Paul Ricoeur um lugar de destaque.
Para eles, estes são problemas constitutivos da própria filosofia: o logos somente surge muito
tempo depois de os homens terem se organizado em comunidades e, portanto, de terem sido
atravessados por todos os conflitos nascidos no seio destas. Noutros termos: antes do
pensamento, há vida humana e vida orientada. Aliás, a pergunta inicial que funda a filosofia
quer dar conta daquilo que orienta o mundo. O ambiente que antecede o nascimento da filosofia
é compreensível para a própria filosofia. No entanto, é o ambiente em que não havia nenhuma
divergência entre o dito e o vivido como ocorre no tempo da filosofia.
Para Weil, isso ocorre após ter sido rompido o laço que fazia coincidir linguagem e
condição, lugar em que nada precisava ser dito por que o indivíduo tinha exata consciência do
que precisava fazer (cf. LF, 135). O que foi rompido, o que foi perdido é o que dará filiação a
todos os romantismos e seus sonhos de nostalgia. Entretanto, esses “primitivos” que foram
capazes de detectar seu próprio dilaceramento, de forma alguma tomaram isso como
problema, seu problema, a bem da verdade “ser duplo não é, para eles uma doença... é seu
estado natural” (LF, 155). Somente para a consciência refletida do homem moderno, esse
observador de si próprio, que vê o dilaceramento do homem no contexto do pensador
primitivo, essa duplicidade é tomada como um problema – quem sabe até, como o mais grave
entre os problemas que enfrenta.
Não é o que ocorre, por exemplo (mas não somente), com a idealização que se faz sempre
a propósito de um retorno a um tempo historicamente indeterminado, tomado como superior
em tudo, em contraposição à vida contemporânea? Nietzsche foi, certamente, um dos
primeiros entre os modernos a sugerir a parada na época trágica dos gregos, ambiente, para
ele, em que se pôde ter a visão do todo num lugar. Eis porque em Nietzsche o esteta não só
antecipa o filósofo, mas supera-o. Sua crítica a Sócrates, a Eurípedes e a toda ciência moderna
encontram nessa dimensão sua raiz mais profunda.3 Ferdinand Tönnies, fez escola ao acentuar
e assentar sua clássica distinção entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft)
a partir do Nietzsche de O nascimento da tragédia, obra em que viu a representação
3
Nietzsche faz uma imagem idealizada da alta cultura das sociedades pré-capitalistas e, segundo Lukács, sua
crítica romântica da civilização capitalista é centro de sua estética e, por conseguinte, de sua filosofia. Cf. M.
Löwy. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998, p. 37.
25
idealizada de uma comunidade dionisíaca.4 Essa lembrança é muito menos uma crítica com
todos os seus predicados do que uma compreensão do fenômeno. Dizemos isso por
compreender o problema partilhado por todos os romantismos como da mais alta importância.
Ora, essa orientação se caracteriza pela dolorosa convicção de que faltam ao real presente
certos valores humanos essenciais que foram alienados, ou seja, a nostalgia do que foi
perdido é o centro dessa visão. Aquilo que perdura como objeto dessa nostalgia – seja ele
inteiramente mitológico ou lendário, como, por exemplo, o Éden, a Idade de Ouro ou a
Atlântida perdida – é sempre a idealização do passado.5
Éric Weil refere-se a esse período como o tempo do não mais: lugar da coincidência entre
situação e linguagem, fonte de todos os reclamos da volta de uma dignidade outrora
imaginada e vivida em plenitude. Tempos imemoriais, sem datação, mas existente como
sentimento. Lívio Sichirollo chama atenção para o fato de que nossa época “é o que ela é”,
nos cabendo “apenas compreendê-la em função de sua (suas) moral (morais) histórica(s) e
de sua política, nós vivemos sempre num ‘entretempo’”.6 Daí porque, longe qualquer
censura, a perspectiva romântica trazida a lume, nos ensina, ela tem a função de nos instruir
sobre nosso próprio tempo e, portanto, nos informa sobre nós mesmos.
Para Weil, temos “vivido na feiura do ainda não e do nunca mais” (LF, 26). Nós nos
apreendemos nesse entretempo e somente o superaremos observando as duas pontas situadas,
respectivamente, no residual da linguagem e na aposta do discurso. Uma aposta que se deixa
4
Cf. F. Volpi. O niilismo. Tradução de Aldo Vannucchi. São Paulo: Loyola, 1999, p. 67.
M. Löwy e R. Sayre. Romantismo e política. Tradução de Eloísa de Araújo Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1993, p. 21 e 22. Uma expressão disso é, seguramente, o que Ricoeur qualificou de a segunda fonte do
neoconflitos das sociedades avançadas, o mito do simples, ou seja, "a tentação de se construir, ao lado da
sociedade global, por demais complexa, uma sociedade neo-arcaica, artesanal e agreste, francamente
institucionalizada... ou pelo menos instituída no nível de economia de subsistência e de troca" (HI, 165). Essa
tipificação serve como matriz heurística no intuito de contrastar certos posicionamentos esquerdistas, que
mirando sua crítica no sistema capitalista, sentem-se impelidos a resgatar princípios e valores que por si sós são
impotentes sem o crivo resignificador que deve passar pela própria sociedade onde se encontram. O sonho
romântico de uma vida sossegada em meio ao caos urbano; a percepção de um lugar que em nada parece com o
que lhe fora descrito pelos seus antepassados ou mesmo pelo que chegou a ver e viver outrora em vaga
lembrança de infância. O esquerdismo ecológico é o filho desse romantismo que, como sabemos é anticapitalita,
mas que sempre se ignora, é também, em boa medida, reacionário. O mito do simples é perigoso porque me joga
numa inércia que idealiza um passado que não voltará mais, ao mesmo tempo em que me toma o presente
percebido não mais como meu. Toda análise que inicia com a expressão "na minha época..." incorre em grande
medida cair no imobilismo saudosista do mito do simples. Nesse caso é sempre bom dar ouvidos a oportuna
advertência de Éric Weil de que “on n’échappera pas aux problèmes de son temps en alléguant la situation no
problématique d’autres époques” (PM § 16 a). Não nos enganemos quanto ao poder destruidor dessa violência
acumulada, entre estas duas sociedades que dividem o mesmo espaço histórico. A intolerância é o sintoma que
informa a não superação do ciclo vicioso que são os dissidentes e os repressores.
6
« l’époque est ce qu’elle est, nous pouvons seulement la comprendre en fonctions de sa (ses) morale (s) historique
(s) et de sa politique ; nous vivons toujours dans un «entre-temps» » L. Schirollo. Morale et politique, actualité de
Weil (et Kant) in Actualité d’Éric Weil, Actes du collloque International, Chantilly 21-22 mai 1982, p. 268.
26
5
instruir por esses rumores, cujos símbolos são sua codificação, mas que ao se deixarem
interpretar fornecem os passos seguintes.
Dessa feita é que se pode descrever a Lógica da Filosofia como um percurso que vai da
verdade do silêncio ao silêncio da sabedoria. Pois é no entretempo que tudo o que é dito pelo
discurso, a partir da linguagem, é para ser compreendido no intuito de nada mais precisar ser
dito. A tarefa é a superação de todas as formas de violência, e se algo insiste ainda em ser dito,
é porque a violência age na história. O perigo que sempre ronda é a idealização que se pode
fazer desses rumores que sobrevêm em linguagem poética, como adverte Ricoeur:
a parada no trágico, a complacência no trágico, contém em si sutis
perversões; as consciências sem recursos profundos procuram nele um álibi
fácil; o niilismo nele se enfeita de cores estéticas e introduz
fraudulentamente a crueldade, a fruição do sem-sentido, o amargo prazer de
sofrer e fazer sofrer, de destruir. (L3, 136).
De outro lado, essas relações humanas, como todas as demais, não são desprovidas de
sentido porque violentas. Pelo contrário, foram capazes de conduzir os seres humanos durante
séculos dando contorno às suas vidas, permitindo que os humanos daquele tempo fossem
capazes de falar de si mesmos, primeiramente por intermédio da linguagem poética (mythos),
em seguida organizando discursos (logos). O que observamos é que temos numa e noutra
filosofia o esforço para preservar o sentido a despeito da violência inerente às ações humanas.
Sobretudo, por compreender que a filosofia herda palavras plenas de sentido que não somente
a precedem, mas igualmente a interpelam.
Esse nos parece ser o ponto de partida comum a ambos filósofos em questão: a interpelação
que sofre a reflexão filosófica originariamente. A filosofia nasce provocada por uma mensagem
que a antecipa em séculos, contudo, somente pode ser compreendida com ela. Ou, se se preferir,
como diz Ricoeur: “Mithos já é logos mas há que retomar no discurso filosófico” (SM, 28). Para
Weil a filosofia não nasceu, ela apenas esperou pelo filósofo, precisamente esperou pela
pergunta do filósofo (cf. LF, 161). Eis porque um sentido antes plenamente vivido, porque
inseparável da vida e há muito perseguido, informa, mesmo que inconscientemente, o homem:
“o pensamento não surge do pensamento, mas do que não é pensamento” (PM, § 22 e).
Para Weil, “[O] homem é filósofo porque não está na presença, mas a ausência que o
impele a compreender é também o modo no qual ele obtém a presença” (LF, 594); “o homem
é poeta antes de ser filósofo, e depois de tê-lo sido” (LF, 594). Poesia é compreendida num
sentido em que arte e vida estão demasiadamente misturadas. Trata-se, enfim, da poesia
27
fundamental, aquela na qual é criado todo o sentido concreto. A poesia, para dizer de forma
paradoxal, é a compreensão do que “há de mais incompreensível no homem”.7
Recuperar o sentido desses rumores, saber ouvir esses murmúrios é a primeira habilidade
conferida à filosofia, mas ela não é a única nessa tarefa, antes dela é o poeta que ouve ou, para
falar como Ricoeur, são os poetas – sobretudo nesse ambiente que caracteriza a condição
moderna do homem – os primeiros a escutar a pequena voz perdida no tumulto incrível de
todos os sinais trocados (cf. CC, 229). É como hermenêutica, no sentido mais genuíno da
expressão (disposição radical para ouvir a mensagem), que a filosofia opera seu próprio
desenvolvimento. Por um lado, a poesia não compreende bem sua própria expressão: “o poeta
não sabe... se falou de si ou do mundo, e até se foi realmente ele quem falou, tal como ele se
‘conhece’. A poesia compreende, mas não sabe nem o quê, nem como” (LF, 596). 8 Por outro,
se o poeta “não compreende” aquilo que ouve, é por ouvir e dizer honestamente o audito que
ele se revela superior. É aí que a filosofia tem consciência do fascínio que a presença,
revelada pela poesia, exerce sobre ela e que ainda não alcançou.9 Uma presença quase que
enigmática porque se reporta a uma origem não datada. Semelhante às antinomias kantianas,
essa origem “é aquilo que sempre está lá no seio da palavra atual. Trata-se, portanto, de um
anterior que é mais da ordem do fundamental que do cronológico” (CC, 201).
Daí porque a poesia nesse contexto nada tem a ver com a arte das rimas, métricas, escolhas e
posições verbais. Aqui “lidamos com algo incomparavelmente mais antigo que qualquer
distinção entre a arte e a vida, a arte e a verdade e todas as oposições que preenchem as
profissões de fé dos artistas e as acusações de seus críticos... Aqui, o termo poesia designa
aquela espontaneidade na qual a arte tem sua origem” (LF, 594-595). “Os poetas... não pedem
ao discurso o que encontram no sentimento. Mas a filosofia não conflita com eles nem é
depreciada por eles: aceita-os como são, porque neles ela descobre sua origem” (LF, 597). Weil,
tal como Ricoeur, se reporta com vigor e entusiasmo às fontes não filosóficas da filosofia.
Poder-se-ia facilmente deduzir desse ponto, como muitos o fizeram, que há uma disputa
entre poesia e filosofia, entre o poeta e o filósofo. Não se trata disso: admitimos uma dialética,
pois se o poeta é aquele que embaraça o conceito do filósofo, este não se sentirá menos filósofo
por querer apreender novamente num conceito (desembaraçar) aquilo que o poeta dissipa ao
7
M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 199.
Noutra passagem da LP « Xénophane suit Homère et ne peut être pensé sans celui-ci. Mais Homère ne peut
être compris (c’est-à-dire dans le concret : critiqué et repoussé) sans la catégorie élaborée et devenue
saisissable chez Xénophane. » (LP, 109).
9
Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 121.
28
8
anunciar. A filosofia é esse trabalho de recomeçar, atividade sempre disposta a apreender aquilo
que lhe opõe (e apõe) resistência (cf. LF, 551ss). Pois, para Weil, o que a filosofia quer
compreender “é precisamente o que não é coerente, não é discurso unido por uma categoria, não
é atitude impelida à unidade pela reflexão. Para a filosofia... a história tem seu sentido em sua
coerência, mas tem seu conteúdo no incoerente, no contraditório, na violência” (LF, 123).
Nessa perspectiva, “[A] filosofia é sempre a mesma, não porque ela persiste, mas porque
ela sempre recomeça. Assim como a poesia é a eterna juventude da criação, ela é a eterna
renovação do homem que se tornou outro para si mesmo” (cf. LF, 608). Mas ela o faz de
maneira diversificada, uma vez que age sempre com conhecimento de causa, não de sua
própria causa – isso, como dissemos, ela ignora – mas de todas as etapas do processo de seu
desenvolvimento. Nesse sentido, quando ela chega ao mesmo (agora outro) do qual partiu
torna-se consciente do ato próprio do significar assinalado desde o seu começo. Como
Ricoeur, podemos afirmar que, nesse caso, a tarefa da filosofia é acompanhar o trabalho
interno das interpretações sucessivamente divergentes e cumulativas que prosseguem através
dos séculos que chegam até nós (cf. CC, 198).
Chega a ser bastante reveladora a maneira como Weil compreende, em sua Lógica da
Filosofia, a mensagem anunciada por Parmênides e/ou por todos os que buscaram a verdade
absoluta e acabaram por descobrir que a linguagem é mentira, que somente o silêncio é a
coincidência com o outro que é verdade absoluta, isto é, que a verdade não é formulada e sim
vivida, e vivida fora da linguagem (cf. LF, 18). Como podemos observar, embora a verdade
não possa ser exposta, ela permanece acessível pela vivência. Parmênides não tem dúvidas da
precedência do silêncio em relação ao discurso e do acabamento do discurso no silêncio: é
este seu projeto. Em que pese falar, discutir e até mesmo reconhecer (negativamente) a
existência do erro, Parmênides é filho de uma “civilização desenvolvida”, para ele, o
resultado de seu projeto é a verdade do silêncio. Ser e linguagem identificam-se na unidade
eterna, imóvel, imutável, nenhuma pergunta é possível, qualquer resposta, inimaginável (cf.
LF, 134). Toda aparência, e a linguagem é aparência, é enganadora, daí porque se cai
facilmente no que não é e nunca é o que é (cf. LF, 140).
Não há como falar diretamente desse fundo histórico residual ao qual a própria filosofia
permanece vinculada. Qualquer aproximação deve ser indireta, desviante, por vezes até
tergiversativa, a fim de recuperar a mensagem que se faz ouvir como metáfora ou como
símbolo. A linguagem é violência, mas por ser linguagem ela faz sentido ao homem. Aliás, é
por fazer sentido ao homem que este pode chamá-la de violência: a violência jamais seria
29
historicamente anterior ao sentido se não fosse posteriormente compreendida logicamente.
Mesmo quando ainda não havia o logos, a existência no silêncio de todas as vivências, foi o
sentido que impulsionou a história humana, ou seja, aquilo que sempre pode ser transmitido,
não obstante a violência sempre implicada. Na memória de nossa cultura, forjada a partir das
mais distantes e diferentes civilizações, está presente o fascínio pela força e pela astúcia como
componentes indeclináveis do viver divino e humano.10
1.2. O enfrentamento da violência do desvio pelos símbolos: A Simbólica do Mal
É comum a Ricoeur, bem como a alguns dos seus intérpretes, acentuar que o seu projeto
inicial de uma filosofia da vontade ficou pelo caminho. O curioso, nesse âmbito, é a
coincidência com a curvatura à hermenêutica que sofre sua filosofia para não mais sair dela.11 A
Simbólica do Mal, de 1960, é o texto que marca esse momento. Malgrado sua hermenêutica
nessa fase possuir um caráter muito limitado, como o próprio filósofo reconhece12, ela vai
adquirir musculatura ao longo dos anos seguintes. Ela apreende determinações que presidirão
empreendimentos futuros de destaque, tais como os temas da metáfora e da narrativa.13 Mas é
aqui que é esboçada sua primeira definição de hermenêutica, concebida como uma decifração
de símbolos entendidos como expressões de duplos sentidos a partir de uma interpretação literal
que leva a uma segunda interpretação mais rica (cf. RF/AI, 71-72), porém permeada ainda pela
opacidade. Assim, a explicação da linguagem simbólica, originada nesse texto, é a acentuação
10
Assinala Éric Weil; « Le progrès vers un état de paix et d’honnêteté n’est pas un rêve, puisque l’histoire de
l’humanité en montre la réalité : le simple fait que nous avons fini par considérer la violence ouverte ou
camouflée comme un mal en est la preuve, tandis que, pendant des millénaires, l’humanité admirait sincèrement
le fort et le rusé, le violent Archille et l’esprit fertile en inventions d’Ulysse, pour ne citer que des noms qui nous
viennent d’une civilizations hautement développée. » (EC I, philosophie, 170).
11
O projeto inicial que contaria com três volumes Filosofia da vontade I, infinitude e culpabilidade, Filosofia da
vontade II, A Simbólica do Mal e um terceiro prometido, mas nunca escrito, cf. Pellauer. Compreender Ricoeur.
Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 63, cf. também SM, 26, nota e RF/AI, 65.
12
Em TA, 41 Ricoeur afirma que reduzira a hermenêutica à interpretação dos símbolos, isto é, a existência de um
duplo sentido no qual um segundo é sempre encoberto por um primeiro. O mesmo ocorre quanto ao “excesso de
sentido característico das obras literárias” (TI, 93). Um duplo sentido num determinado discurso, verbal e não
verbal, explícito e implícito, definem, para Ricoeur, o que ele entende por obra literária (cf. TI, 94). Razão pela
qual a obra literária não pode ser abordada tão diretamente, justamente por não estar articulada, de imediato, ao
nível lógico (cf. TI, 103).
13
«Le mythe... il présuppose la médiation du récit et celle de la temporalité.» F. Dosse. Paul Ricoeur: le sens
d’une vie, op. cit. p. 282. A Simbólica do Mal dá inicio a uma filosofia da imaginação cujo Tempo e Narrativa
não é senão ainda a passagem dessa filosofia (cf. RF/AI, 120). “La symbolique du mal, La métaphore vive e
Temps et récit aspiram mesmo, sob várias formas, ao título de poéticas, menos no sentido de uma meditação
sobre a criação primordial do que no de uma investigação das múltiplas modalidades daquilo a que chamarei
posteriormente uma criação ordenada, ilustrada não apenas pelos grandes mitos sobre a origem do mal, mas
também por metáforas poéticas e enredos narrativos” (RF/AI, 66). “O conceito de hermenêutica sofre uma
verdadeira dilatação em contato com as ciências linguísticas. A hermenêutica do símbolo vai sendo substituída
por uma hermenêutica da linguagem em geral”. S. de G. Franco. Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul
Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995, p. 53.
30
da dimensão linguística da nossa experiência com o inconsciente (cf. CC, 100).
Segundo Pellauer, Ricoeur sublinhou a maneira como símbolos da falta ou erro prendem-se à
experiência. No caso em voga, em A Simbólica do Mal, considerando essa experiência sob a
mediação da linguagem, notadamente através da linguagem dos mitos referentes à origem e ao
fim do mal.14 Assim, simbolicamente mediatizada, tal experiência humana é trazida à
linguagem e encontra-se já desde sempre antecipada; todo o real se apresenta à maneira de um
texto que pode ser lido.15
Para Ricoeur, ainda segundo Pellauer, três são as atribuições dos mitos: envolvem toda
humanidade numa história ideal; narram um tenso direcionamento dessa humanidade entre um
início e um fim de sua experiência para, finalmente, ensejarem atingir o enigma da existência
humana.16 Numa palavra, “o mito tem uma carga ontológica pelo fato de que aponta para a
conexão entre nossa realidade essencial e nossa existência histórica efetiva, como uma verdade
universal de caráter temporal e concreto cuja forma narrativa não pode ser reduzida a um
conceito”.17 Ricoeur manteve-se muito atento ao fato de as palavras ricas de sentido sempre
precederem o discurso conceitual e, de imperecíveis, continuarem a interpelar o filósofo.18 Nas
palavras do próprio hermeneuta: "É... pelas expressões menos elaboradas, mais balbuciantes...
que a razão filosófica se deve deixar interpelar. Assim, há que proceder de forma regressiva e
retroceder das expressões 'especulativas' às expressões 'espontâneas'" (SM, 21).
A partir dessa compreensão antecessora à reflexão, novas determinações serão acrescidas
ao que designará por mitos. Assim, os mitos, longe de serem uma explicação errônea por
meio de imagens e de fábulas, são, tal como entendidos pela história das religiões, narrativas
de uma tradição antiga sobre acontecimentos que tiveram seu lugar na origem dos tempos,
cuja destinação, de certa forma, funda a ação ritual dos homens hoje e, de maneira geral,
informa ações e pensamentos pelos quais o homem se compreende a si mesmo no seu mundo
(cf. SM, 21).
Justifica-se, assim, para Ricoeur, o porquê de o mito precisar perder suas pretensões de
explicação, deixar excluir qualquer intenção etiológica, uma vez que não podemos mais religálo, quanto ao seu tempo, à nossa história ou mesmo seus lugares à nossa geografia. Tudo isso se
14
Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 59.
Cf. M. D. Costa, Introdução à edição portuguesa de TA, p. 12.
16
Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 59.
17
Idem.
18
Cf. M. da P. Villela-Petit. Perspectiva ética e busca do sentido em Paul Ricoeur. Síntese – Revista de Filosofia,
Belo Horizonte, v. 34, n. 108 (2007): p. 07.
31
15
perdeu. No entanto, privado de explicação, o mito ganha em termos de capacidade de
exploração e compreensão, isto é, cresce a sua função simbólica cujo poder é descobrir o elo
entre o homem e o seu sagrado. Paradoxalmente falando, segundo Ricoeur, é desse modo
desmitologizado que o mito, pelo contato com a história científica, obtém sua dignidade de
símbolo e é içado à dimensão do pensamento moderno (cf. SM, 22).
A Simbólica do Mal é, seguramente, um livro de enfrentamento da violência pelo crivo da
tríade da má vontade: mancha, pecado, culpa. Nele Ricoeur desenvolve uma fina reflexão que
se volta para a violência originária. Não é fortuito que tenha escolhido os símbolos primários
(mancha, pecado, culpabilidade) para promover seu enfrentamento desviante da violência. Ora,
mesmo que para vencer a violência seja preciso descer ao seu terreno, não será possível obter
êxito nessa empreitada sem compreendê-la. Nessa obra Ricoeur empreende uma vigorosa
análise que procura decifrar os símbolos da violência originária. Busca compreender as marcas
deixadas pela violência nas experiências mais longínquas da vivência humana. Para o ser
humano, a violência não é uma experiência muda e saber decifrar essa experiência se torna
decisivo para o seu devido enfrentamento.
Para Ricoeur, tal enfrentamento da violência originária ocorre em ato, na exata passagem da
possibilidade do mal à realização dele, isto é, entre a falibilidade e a falta (cf. SM, 19). Ato
ocorrido pela confissão, quando considerada a consciência religiosa, que como “toda palavra
pode e deve ser ‘retomada’ no discurso filosófico” (SM, 20). Contudo, o hermeneuta previne
sobre a frequente tentação de querer tomar o caminho mais racionalizante das elaborações
tardias, formada na época agostiniana, chamada de “pecado original”. Para ele, um erro no
campo da interpretação, uma vez que desconsidera a dificuldade da própria filosofia para tratar
de marcas nada racionais e que sobrevêm à filosofia apenas como expressões pouco elaboradas
e de maneira balbuciante (cf. SM, 21).
Antes de toda especulação, segundo Ricoeur, situa-se a experiência viva que encontramos
nos mitos, isto é, nas narrativas de uma tradição sobre acontecimentos que tiveram lugar na
remota origem dos tempos e que se destinaram a fundar a própria ação ritual dos homens da
atualidade, por ter instituído as formas de ação pelas quais esse homem ainda se compreende a
si mesmo no seu mundo. É como compreensão e não como explicação que o mito revela todo
seu poder de rearticulação entre o homem e seu sagrado a partir da sua função simbólica (cf.
SM, 22). Por já não haver mais possibilidade de religar etiologicamente o tempo mítico ao
tempo da história, tampouco seus lugares à nossa geografia, o mito é manifestação simbólica, é
manifestação de sentido que o intérprete deve dignificar como o substrato aquém de todo
32
pensamento, que lhe confere seu próprio fundo.
Essa postura Ricoeur chamará paradoxalmente de desmitologização dos mitos – numa clara
referência ao teólogo e filólogo Rudolf Bultmann. Não mais passando pelo crivo da explicação,
o mito está livre em sua dimensão simbólica e, portanto, apto a comunicar o pensamento
moderno. Assim compreendido o mito, o problema do mal assume o aspecto da crise pela qual
o elo entre o homem e seu sagrado é constantemente ameaçado de rompimento: “o mal é por
excelência a experiência crítica do sagrado” (SM, 22), por outro lado, é essa mesma crise – por
considerar o começo e fim das coisas simultaneamente – que reenvia a experiência humana ao
Todo no qual lhe é conferido um sentido (cf. SM, 22).
No entanto, só se obtém esse sentido se se opera por ação retrospectiva: é o pecado original
que reenvia ao mito da queda que, por sua vez, reenvia à confissão dos pecados. Noutros
termos, a linguagem da confissão é linguagem retomada pelo mito e, posteriormente, pela
especulação (racionalização). Eis aqui uma característica muito particular do procedimento
ricoeuriano no que tange a interpretação dos mitos primordiais em sua explicitação da atitude
que lança o mal humano na história e, portanto, da violência anterior a qualquer categorização.
Situada historicamente (cronologicamente) anterior, a violência só recebe seu sentido quando,
posteriormente é compreendida logicamente: “Não há autonomia da especulação e mesmo o
mito é secundário; mas também não há consciência imediata da culpa que possa fazer economia
dessas explicações secundárias e terciárias. É o ciclo da confissão, do mito e da especulação que
há que compreender” (SM, 26).
Ora, para Ricoeur, o que o mito da queda narra é a entrada do pecado no mundo, o que será
posteriormente erigido em doutrina pela especulação sobre o pecado original (cf. SM, 24). Mas
o pecado já é em si uma concepção mais arcaica da falta: a “mancha” compreendida como
nódoa a partir de fora. Contudo, tal experiência (pecado, mancha, culpabilidade) não é só
perdição, alienação de si, mas também, e concomitante, experiência de ser si mesmo. O pecado
é igualmente a experiência que pode me conduzir de volta a mim mesmo. À semelhança do
poder do incondicionado, ao qual é levada a razão pela ilusão transcendental kantiana, aqui,
igualmente, o pecador toma consciência de si mesmo pelo caráter próprio do escandaloso (cf.
SM, 25). Aquilo que é informado pelo labirinto da experiência humana é que não somos
lançados no inefável quando exploramos as profundezas dos mitos do mal, muito pelo
contrário, é na linguagem que desembocamos e, portanto, naquilo que é a totalidade produtora
de sentido da vivência humana.
33
Para Ricoeur, é na tríade especulação, mito e sentido que uma circularidade operante
apreende a experiência do mal originário. Nenhuma consciência do mal, no caso, da culpa, é
imediata. Ela reflete no símbolo dos mitos e, posteriormente, na especulação. O que existe é
reenvio através do qual explicações secundárias (mitos), e terciárias (especulações) são
acionadas para que seja possível compreender (cf. SM, 26).
Na verdade, é esse longo desvio pelos signos e pelas obras corporificadas no mundo da
cultura que fazem de A Simbólica do Mal esse despertar para uma concepção de reflexão
indireta na qual o sujeito é confrontado com os signos depositados na memória e na imaginação
das grandes tradições literárias (cf. RF/AI, 70), buscando basear a confissão da vontade má
sobre um conjunto de símbolos e mitos decifrados no texto público das grandes culturas (cf.
RF/AI, 75). O símbolo é, assim, fundamentalmente, um signo de reconhecimento que os
homens dirigem uns aos outros.19 Enfatizada essa sua característica de reconhecimento não
direto, não imediato, o símbolo quer dizer outra coisa que aquilo que diz, é um signo no qual o
sentido aparente implica um sentido oculto. Portanto, ele situa-se a meio caminho entre a
experiência muda e o discurso teórico.20 Em síntese, talvez seja preciso admitir que nenhuma
criação simbólica não deixa de se enraizar, em última instância, no fundo simbólico comum da
humanidade. (cf. TA, 41).
A consciência se permite interpelar pelo que lhe antecede. Seguramente uma das marcas
decisivas da hermenêutica ricoeuriana é a consciência de que as palavras plenas de sentido
precedem ou se inscrevem paralelamente ao discurso conceitual do filósofo.21 Como afirma
Jervolino, para Ricoeur, há “uma tese geral: a reflexão filosófica nunca começa do zero, mas da
riqueza de sentido da linguagem, que se manifesta nos símbolos e nos mitos”.22
A filosofia assim repete, a cada nova etapa em que se encontra, aquilo que lhe é mais
peculiar: o que a intriga a responder a si mesma a respeito de uma inquietação originária. Mas
originário não substancial, antes murmúrio, eco de uma palavra não mais ouvida em sua
plenitude. E por ouvir insuficientemente o que é dito preliminarmente acerca do que a
constitui propriamente, a filosofia se vê duplamente lançada no seu caminhar pela marca da
incerteza ou da precariedade de todas as respostas. Contudo, nada disso implica o abandono
da verdade sobre o mundo. Aliás, abandono que significaria igualmente renúncia ao que se
põe adiante quando é através de uma pergunta que se permite guiar a reflexão (todo o
19
Cf. Abel-Porée. Le vocabulaire de Paul Ricoeur. Paris: Ellipses, 2007, p. 77.
Idem. p. 75.
21
Cf. Villela-Petit, art. cit. p. 14.
22
D. Jervolino, op. cit. p. 40-41.
20
34
desenvolvimento do pensamento até o presente atesta isso). “O que em filosofia chamamos a
‘finitude’ consiste em distinguir o fim e o limite. Com o limite, olhamos dos dois lados: para
o antes e para o depois; com o fim, estamos apenas no aquém e sem ter com que mobilar o
além” (CC, 220). O ceticismo – tendo ou não clareza disso – ainda é uma busca que
confronta, e por vezes interdita, tudo o que não condiz com o que sabe ser um conteúdo
linguístico deixado para trás. Eis por que:
é preciso renunciar à quimera de uma filosofia sem pressuposições... Primeiro,
há símbolos; encontro-os, acho-os; são como ideias inatas da antiga filosofia...
É a contingência das culturas inseridas no discurso. Para mais, não conheço os
símbolos todos, o meu campo de investigação é orientado, e porque é
orientado também é limitado. (SM, 36).
A linguagem fala que primeiramente só há atitude, e só então depois, muito depois
categoria. O pensamento recupera para a reflexão o que antes existe como vivência. De algum
modo, repitamos com Ricoeur, "o mythos já é logos, mas há que o retomar no discurso
filosófico." (SM, 35).
É por essa maneira particular de retomada, em que mito e símbolo falam do que ainda nos
diz respeito, que construímos nossa incessante memória cultural. Memória ativada, seja
retrospectivamente seja por novas descobertas, pelos retornos às fontes, pelas reformas e
renascimentos que, muito mais que revivalismos do passado, constituem a montante de nós
mesmos e o que se pode chamar de neopassado (cf. SM, 38). Ricoeur enfatiza o alcance
dinâmico de um pensamento sempre voltado para frente. Sua hermenêutica não nutre nenhuma
nostalgia pelo tempo perdido, em vez disso, se situa numa espécie estratégia de ingenuidade
pós-crítica a fim de alcançar à frente, no poder acolhedor da palavra (discurso), o após da
destruição dos ídolos.23
Porém, não cair em saudosismos não significa não querer pensá-los: “a recaída no nosso
arcaísmo é, sem dúvida, o modo desviado mediante o qual mergulhamos no arcaísmo da
humanidade, sendo essa dupla ‘regressão’, por sua vez, o caminho possível de uma descoberta,
de uma prospecção, de uma profecia de nós mesmos” (SM, 29). É por razões como essa que A
Simbólica do Mal é tida como a obra que "realiza a segunda revolução copernicana do filosofar,
na exata medida em que o seu grande intuito é mostrar ao sujeito moderno que ele deixou de ser
o centro de que parte a reflexão filosófica".24 O regresso para as mais distantes memórias da
história humana é indicativo de que esse aquém da reflexão filosófica, algo que só pode ser
23
24
Cf. F. Dosse, op. cit. p. 285.
M. L. Portocarrero, prefácio à edição portuguesa de SM, 2013, p. 7.
35
recuperado parcialmente, e que constitui a própria reflexão, fala de um sujeito que somente é
capaz de falar de si mesmo por vias indiretas. Ricoeur, segundo Dosse, permanece kantiano no
sentido da interiorização da tensão entre o infinito e finitude da condição humana.25 A finitude
do homem se encontra espremida entre duas infinitudes: da mesma forma que é impossível
atingir sua origem humana, também não consegue responder pelo seu término. Noutros termos,
o que o recurso ao símbolo acaba por revelar é uma “tensão entre a exigência infinita e o
mandamento finito” (SM, 79).
Não é acidental que Ricoeur tenha extraído a fórmula que encerra esta obra – o símbolo dá a
pensar – da terceira Crítica kantiana.26 O que revela esse projeto de sua filosofia da vontade é o
aparecimento “do símbolo como mediação essencial para se chegar a um sujeito emancipado
tanto de sua ingenuidade primeira, bem como de seu narcisismo idealista”.27 O pressuposto
ricoeuriano é o de que os símbolos comportam expressões de duplo sentido; um significado
literal, usual, comum que guia o desvelamento de outro de natureza mais oculta, mas que está
verdadeiramente voltado para o símbolo mediante esse primeiro sentido. Essa é a direção da
fórmula o símbolo dá a pensar (cf. RF/AI, 71-72).
Nessa fórmula há uma dupla afirmação, segundo Pellauer: “primeiro, que símbolo nos dá
algo, tem um caráter de dom; segundo, que esse dom exige o pensamento, o que significa que
temos que encontrar uma maneira de começar não do zero, mas a partir dos símbolos e mitos”.28
Por estar comprimido entre duas infinitudes – a do começo que não é grau zero (e sim
imemorial) e a que projeta o pensamento para frente – a finitude do sujeito e, portanto, seu
descentramento, nunca foi tomado por Ricoeur como semelhante às posições que fizeram dessa
constatação a própria dissolução do sujeito.29 Assim informada é que a reflexão se conduz na
direção de uma segunda revolução kantiana.
A simbólica do mal... define uma hermenêutica em que o projeto é decifrar
ambivalência dos símbolos concebidos como expressões de duplo sentido.
Diferente do signo, o símbolo manifesta uma intencionalidade dupla. Ele visa
um sentido primeiro, literal, através do qual se enxerta uma intencionalidade
segunda que só é acessível pelo primeiro sentido. Resultando na sedimentação
de significados ao longo do tempo, a última conservando sempre as
significações precedentes.30
25
Cf. F. Dosse, op. cit. p. 283.
Cf. Abel-Porée, op. cit. p. 76.
27
F. Dosse, op. cit. p. 279.
28
D. Pellauer, op. cit. 2009, p. 61.
29
Cf. F. Dosse, op. cit. p. 283.
30
« La Symbolique du mal... définit une hermenéutique dont le projet est de dechiffer l’ambivalence des
symboles conçues comme expressions à double sens. À la difference du signe, le symbole manifeste une
36
26
O que se adquire é a ampliação da compreensão da finitude a partir do símbolo. Irradiações
multívocas são nuançadas a fim de se obter maior clareza como de uma mesma unidade, no
caso o símbolo, podem ser extraídas múltiplas significações sem, contudo, invalidar seu
encadeamento. É o próprio Ricoeur quem promove o diagnóstico da aproximação entre essa
teoria dos símbolos, a síntese conceitual pela teoria da metáfora e a teoria kantiana do
esquematismo. Conceito e símbolo não estão necessariamente em oposição, não é negando o
primeiro que se conclui pela exegese infindável que o segundo suscita. Ocorre apenas que ao
não poder esgotar a exigência de ulteriores pensamentos produzidos a partir dos símbolos, o
conceito não consegue abarcar todas as possibilidades semânticas dele derivadas. Porém não se
chega a esse “excesso de sentido” senão pelo sôfrego trabalho do conceito (cf. TI, 104). “O
símbolo serve então para romper o encanto pernicioso do estágio narcisista da autoconsciência,
para ferir o cogito em sua autoposição. Ele restaura o homem numa totalidade: o símbolo dá a
pensar que o cogito está no interior do ser e não o inverso”.31
Essa posição retrata bem mais que a problemática específica da entrada do mal no mundo,
trata também do estatuto geral da autocompreensão, objeto dos questionamentos de A Simbólica
do Mal. Ao aceitar a mediação pelos símbolos e mitos, termina por incorporar na reflexão da
autocompreensão um pedaço da própria história da cultura (cf. RF/AI, 72-73). Ricoeur admite
que sua interpretação em A Simbólica do Mal foi criada intencionalmente visando amplificar a
própria interpretação ao dotá-la com a devida atenção para o excesso de significado contido no
símbolo (cf. RF/AI, 77). O símbolo constitui excesso de significação que emerge da tensão
entre duas significações: a literal e a simbólica. Sendo que, é impossível aceder à significação
secundária do símbolo (o sentido excessivo) sem partir da significação primária.32
Trata-se, notadamente, da autoposição do cogito que, recuperada pela autocompreensão das
mediações simbólicas, é saber reflexo. O alargamento do qual o símbolo é dotado permite ver
nele mais que expressões de duplo sentido, mas, igualmente, manifestações que as culturas
tradicionais inseriram para designar seu próprio mundo em seus elementos, dimensões e
aspectos (cf. TA, 41). Enraizado profundamente nas constelações mais duradouras do
sentimento da vida e do universo, os símbolos nunca morrem, apenas sofrem transformações
intentionalité double. Il vise uns sens premier, littéral, à travrs lequel se graffe une intentionnalité second qui
n’est accessible que par le primier sens. Il en résulte une sédimentation des significations à travers le temps, la
derniére conservant toujours les significations précédentes.» F. Dosse, op. cit. p. 280-281.
31
« Le symbole lui sert alors á rompre les charmes pernicieux du stade narcissique de la conscience de soi, à
briser le cogito dans son autoposition. Il réstaure l’homme dans une totalité: «Le symbole donne à penser que le
cogito est à l’intérieur de l’être et non l’inverse» F. Dosse, op. cit. p. 282.
32
Cf. I. Gomes em sua Introdução à edição portuguesa de TI, p. 35.
37
(cf. TI, 110). Por querer justamente compreender e interpretar tudo o que produzem
significativamente os homens no tocante ao que vivem, presenciam e aspiram, Ricoeur é levado
à prática fenomenológica de enxerto hermenêutico (graffe herméneutique).33
Praticando fina descrição fenomenológica aplicada ao tema da confissão, Ricoeur situa em
que circunstâncias a violência originária presente nas comunidades arcaicas é de ordem
existencial inapelável e, portanto, impossível de desenraizar: "... a mancha adere a tudo o que é
insólito, a tudo o que é terrífico neste mundo, a tudo o que é simultaneamente atraente e
repulsivo que ela é, afinal, inesgotável e inextirpável." (SM, 28).
Noutro enraizamento, se refere à disciplina psicanálise em que chega à mesma conclusão,
pois o signo, ao permanecer no limite entre impulsos em conflito e significantes que traduzem
estes impulsos, abre a necessidade de uma exegese, uma vez que o texto, passível de decifração,
constitui enigma. Na psicanálise, o símbolo “está na fronteira entre os impulsos e discursos.
Está ‘ligado’ às forças mais íntimas do homem, às suas vivências”.34 A leitura pelo viés da
psicanálise requer o reconhecimento, por parte da reflexão, de recursos imprescindíveis os quais
precisará acionar e dos quais não dispõe. A consciência, por não ser uma instância automática
do sentido, precisa, no contato com a psicanálise, desapropria-se de si mesma e se permitir
orientar por aquilo obterá como fruto desse contato: as marcas existenciais do homem, isto é, o
processo de decifração, significação das pulsões e desejos que recoloca a vida sob a perspectiva
profundamente existencial (cf. CI, 21).
Daí porque ganha importância o mal. O mal como dimensão inescapável do humano, atado
ao sofrimento, impõe grande desafio à teologia e à filosofia justamente pelo escândalo
revelador do caráter impenetrável da existência e, portanto, revelador igualmente dos limites
inerentes ao pensamento lógico reflexivo, sempre habituado à clareza dos conceitos e à
simplicidade das definições, em seu poder de atingir a verdade nessa dimensão. Desse modo,
é que o mal não pode ser reduzido à simples visão ética do homem e do mundo, a pluralidade
dos mitos acerca da origem do mal indica bem mais que isso: indica um mal vivido, um mal
praticado pelo homem ao mesmo tempo em que dele sofre os efeitos. Somos responsáveis,
mas também vítimas. A profunda abordagem de A Simbólica do Mal faz de Ricoeur um dos
maiores expoentes da fenomenologia da religião, comparável a Rudolf Otto, Gerardus Van
der Leeuw e Micea Eliade.35
33
Cf. M. Villela-Petit, art. cit. p. 09.
I. Gomes, op. cit. p. 36.
35
Cf. D. Jervolino, op. cit. p. 40.
34
38
Essa divisa estabelece bem o campo filosófico de Ricoeur marcado desde sempre pelo
problema do absurdo e pelo inverso da ação, o sofrimento.36 E também por não ser possível
avistar a gênese do mal, mas tão somente sua atestação a partir de uma narrativa mítica que
articula indissociavelmente sentido e acontecimento,37 é que Ricoeur pode situar a origem do
mal na liberdade humana.38 “O poder do homem é misteriosamente ocupado por uma tendência
para o mal que lhe altera a própria origem” (SM, 104). No entanto, a experiência do mal
continua a ser uma experiência singular: “É impossível comparar as formas do mal, totalizá-las,
precisamente porque o mal é por natureza dessemelhante, diabólico, ou seja, dispersão, divisão.
Não há sistemas do mal; o mal é sempre o unicamente único” (CC, 154).
Contudo, para Ricoeur, certas palavras da experiência mítica a respeito do mal como, por
exemplo, a confissão, são pronunciamentos do homem acerca de si mesmo. Ora, como toda
palavra pode e deve ser retomada no discurso filosófico (cf. SM, 20), a experiência do mal, da
violência originária, que se expressa no mito, pode ter seu sentido recuperado pelo discurso
filosófico. Daí porque ao tratar da mancha, do pecado e da culpa A Simbólica do Mal não faz
outra coisa senão compreender o vínculo indissolúvel, a partir do símbolo, entre as dimensões
do sentido e da violência. Pelo fato de sempre partir de algum lugar, e por partir a reflexão
filosófica de um lugar remoto, no caso, a linguagem mítica, é preciso recuperar a experiência
humana escondida por detrás desses grandes símbolos da existência. A pergunta que orienta
toda essa ação é: haveria, para além do mito, outro modo de compreender a falta sem
dissolver o seu aspecto de acontecimento e sem separar o acontecimento do sentido?39
Notadamente a pergunta orientadora não prescinde da articulação possível e necessária entre
sentido e violência.
1.3. Topologia da violência: “linguagem e violência, o debate de 1967”
Num debate elucidativo acerca do problema da relação entre violência e linguagem
ocorrido em 1967, Weil e Ricoeur defendem a ideia de que a violência só se tornou problema
porque ela esbarrou na linguagem.40 Não há outra maneira de reconhecer a problemática da
violência a não ser encontrando seu limite na linguagem. Esse encontro, entre violência e
36
Cf. M. L. Portocarrero, op. cit. p. 7.
Idem, p. 8
38
Cf. Dosse, op. cit. p. 282.
39
Cf. M. L. Portocarrero, op. cit. p. 9.
40
Noutra oportunidade nos referimos de maneira mais didática a respeito das exposições de cada um dos autores
e a ela remetemos. Cf. F. Valdério. Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre
Weil/Ricoeur, Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, ano 6, jan./jun., n. 11 (2014): 159-171.
39
37
linguagem, resultou em consequências para as duas dimensões: por um lado, a violência se
expressa, se diz, como sugere Ricoeur, “a violência fala” (cf. L1, 61), ou ainda, como Weil “é
a linguagem que faz aparecer a violência”.41 A linguagem dá significado ao que em si mesmo
se quer ausência de qualquer significado, ou seja, ela faz com que o absurdo entre no campo
das significações. Com o advento da linguagem até o sem sentido da violência pode ser
compreendido. A linguagem é a modalidade de um ser que ao falar já deu um passo na
discussão e, portanto, avançou ao âmbito da racionalidade: somente o homem, por ser falante
(ou pensante) apreende a violência no mundo. Ora, o único ser capaz de falar é também o que
é capaz de revelar a violência na vida e, por ser o único a se referir à violência, ao sem sentido
e ao que ocorre contra sua vontade e desejo,42 é também o único que pode dizer não ao
insensato e buscar um sentido para seu próprio discurso, para todo discurso: um sentido para a
vida. Em síntese: os indivíduos superaram a sua violência privada quando foram capazes de
subordiná-la a uma regra do direito, para falar como Weil, quando se submeteram ao processo de
discussão diante de um tribunal civil secular (cf. LP, 181).
Entretanto, a linguagem não sai ilesa desse encontro, aliás, a violência não se comporta
nessa relação como mera oposição à linguagem humana, apenas lhe oferecendo resistência,
mas como sua absoluta negação. E, para ser ainda mais exato, trata-se de uma “violência que
habita o próprio discurso”.43 Noutros termos: a linguagem passa a ser instrumentalizada pela
violência. Ela põe-se a serviço da típica violência do discurso: a dominação. Ora, a
humanidade, para sobreviver ao longo da história, precisou se organizar para lutar contra a
violência da natureza exterior. Um tipo de violência completamente estranha e hostil
(furações, inundações, tempestades, avalanches, terremotos, etc.) ao homem. O emprego das
forças humanas – igualmente violência – para domesticar a natureza exterior faz prevalecer,
primeiro, o trabalho, em seguida, um sentido para a vida desse homem que luta para controlar
as forças hostis da natureza. O apossar-se da natureza pelo trabalho, encontra no pensamento
e, portanto, na linguagem sua justificação. A linguagem, assim, se torna instrumento do
homem para o controle da natureza. Eis porque se pode falar, como Éric Weil, de um
“progresso pela dominação”.44 Para Ricoeur, será essa tentativa crescente de domínio absoluto
por um discurso, ou mesmo a intenção de cada vez mais cercear todos os demais, a maneira
como esse fenômeno da dominação se presentifica.
41
E. Weil. Violence et langage in Cahiers Éric Weil I, Lille, PUL, 1987, p. 23.
Idem, p. 23-24.
43
J-P Labarrière. A figura de Sócrates na Lógica da Filosofia de Éric Weil. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte,
46 (1989): 85.
44
E. Weil, art. cit. p. 25.
40
42
É a partir dessa imposição de um discurso que (um povo, classe, grupo) a palavra
pronunciada exprime, ao mesmo tempo, violência e sentido. Desde quando a natureza se
tornou signo e prova de poder, isto é, quando foi reduzida puramente a bens produzidos, a luta
pela posse desses bens e também dos meios de produzi-los tornou-se objeto de ulterior luta,
que não conhece outros objetivos ou regras senão o sucesso. Deste momento em diante não
existe outra “orientação” além do desejo imediato alimentado pelo anseio de dominação e
posse. Nessa análise, como na de Horkheimer, a história da dominação da natureza pelo
homem pode também ser descrita como história da dominação do homem pelo homem.45
A sociedade do trabalho, tal como a conhecemos hoje, “renuncia ao uso individual da
violência e contribui para a luta contra o inimigo comum: a natureza exterior”. 46 A violência
social, a violência da sociedade capitalista exige ser traduzida numa linguagem, no caso,
linguagem instrumental, discurso calculista, lógica da eficácia. Com esse fato é possível que
se confirme a suposição weiliana de que a violência entre os homens será progressivamente
dominada, pois ao desejarem o máximo de riqueza que a produção de bens pode gerar, os
homens não podem contar com a violência que em si mesma não pode ser considerada
produtiva. Pelo contrário, em si mesma a violência só oferece risco para todo processo produtivo.
Se sedutora na aquisição da riqueza, a violência é, ao mesmo tempo, temerária pelo inconveniente
de estar à disposição de todos que dela queiram e possam fazer uso.
Na linguagem da própria sociedade do trabalho e de acordo com sua própria lógica, mesmo
que ela ainda ignore isso – o que é um fato –, só se poderá obter sucesso pleno agindo pelo
progresso da não violência. Eis o paradoxo! A transição da comunidade à sociedade, levada a
efeito pela violência originária, se inscreve no processo da luta contra a natureza exterior e da
apropriação da riqueza produzida pelo trabalho. A exigência fundamental desse
empreendimento para obtenção de êxito total, da maneira como requer sua lógica e
linguagem, é o progressivo desaparecimento da violência. No entanto, é preciso garantias de
que a unidade sensata do mundo na qual outrora o homem depositava suas esperanças tenha
novamente lugar nesse mundo em que os únicos valores reconhecidos são a medida e o cálculo.
A situação intermediária vivida entre sentido e violência não é indecidível como parece. Aliás,
dela é preciso sair e sair em favor do sentido. Ora, as três regras de bom uso da linguagem
sugeridas por Ricoeur, ao fim de sua intervenção, orientam para a consecução dessa tarefa. É
45
Cf. M. Horkheimer. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Editorial Labor
Brasil, 1976.
46
E. Weil, art. cit. p. 26.
41
exatamente para uma aplicação da não violência que elas se prestam. Em síntese, elas dizem que
é preciso primeiramente tomar discurso e violência como a oposição mais fundamental da
existência humana; em seguida, submeter as duas morais weberianas (da convicção e da
responsabilidade) uma à outra dialeticamente e, por fim, ter respeito à pluralidade e a
diversidade da linguagem (cf. L1, 67-68).
Sob a primeira regra identificamos o que pode ser a nuance das abordagens dos dois
autores, ao menos no diz respeito ao presente debate: Ricoeur, diferentemente de Weil nessa
ocasião, distingue linguagem e discurso e faz cair sobre o segundo termo o peso do que
acredita ser a oposição mais concreta em relação à violência. Ao propor essa distinção
Ricoeur sugere um degrau de descida em relação à compreensão formal, 47 no caso, a saída do
formalismo em que se encerra toda oposição entre linguagem e violência para outro
formalismo mais próximo, se podemos nos expressar assim, da concretude histórica: o da
oposição entre discurso e violência. É mediante essa sutil diferenciação que o filósofo
hermeneuta remete ao seu particular debate com as correntes estruturalistas. Não vem ao caso
avançar por esta via, basta por ora, para as intenções da discussão aqui proposta, dizer que, ao
invés de uma “anatomia da linguagem”, a análise deve recorrer à “fisiologia da palavra”,
segundo as expressões do próprio Ricoeur (cf. L1, 61).48
Isso significa que não se trata de tomar as estruturas do texto sem qualquer referência a uma
presumível intenção do autor. Ricoeur censura essa posição por compreender que no âmbito da
anatomia da linguagem não se critica o sujeito como uma abstração objetivante, mas sua
diluição em face de uma redução da linguagem ao funcionamento de um sistema de signos sem
qualquer sustentação num sujeito (cf. RF/AI, 81). Antes, sugere o hermeneuta, é preciso tomar a
palavra assumindo seu valor de usos na frase. E nesse domínio da fisiologia da palavra se abre o
campo propriamente da luta entre violência e discurso que, por sua vez, por ser o campo
operatório do discurso, desdobra-se em três momentos: o político, o poético e o filosófico.
Em cada um desses momentos o que está em questão é a palavra como “o nó da violência
e do sentido” (L1, 62). No político as palavras sínteses que expressam a violência do
47
Ricoeur aqui nuança uma diferença detectada noutra ocasião em relação à filosofia de Weil quando de sua
apreciação da Filosofia Política infra p. 142ss.
48
Em CC Ricoeur utiliza a expressão autonomia semântica do texto para ilustrar uma ideia de dentro do
estruturalismo da qual ele mesmo se diz praticante por entender que o texto significa por si mesmo e, portanto,
sempre escapa ao seu autor. Nisso residiria uma diferença entre uma análise estruturalista e um estudo estrutural
de determinados textos. A ideia de uma autonomia semântica do texto abre o próprio texto às múltiplas
abordagens, mas que levam em conta tão somente sua objetividade enquanto algo dito e escrito independente das
intenções do autor. Essa objetivação do texto Ricoeur a toma num sentido positivo: como passagem obrigatória
através da explicação, visando uma melhor compreensão, não descarta o regresso ao enunciador (cf. CC, 110).
42
discurso assumem duas direções: tirania e revolução; a primeira através do sofista capaz de
mobilizar o ódio cimentado no crime e no sacrifício à morte; enquanto que a segunda ocorre
pela tomada de consciência que opera o sentido pela sublevação. Porém, nenhuma dessas
duas palavras esgotam as possibilidades da violência nesse âmbito, pois é preciso considerar
que o exercício normal da atividade política é tocado sempre pelo jogo turvo do sentido e da
violência (cf. L1, 63). Em se tratando do poético, essa tensão vigora quando o sentido
desvelado pela poesia e a captação do ser (resultante do processo operatório da palavra) são
obtidos por constrição, isto é, pela força com que o poeta obriga as coisas a falar. Por fim, a
manifestação da violência no discurso filosófico ocorre em função da singularidade com que
este sempre se manifesta, seja na sua questão inicial que põe o pensamento em movimento
seja no seu percurso reflexivo, ou mesmo no seu acabamento prematuro dado que, para
Ricoeur, a obra filosófica “sempre termina cedo demais” (cf. L1, 65).
O que observamos nessas três modalidades discursivas é a consciência a propósito do uso da
violência. Essa tomada de consciência deve informar as ações quanto ao uso indeclinável que se
faz da violência. E se essa compreensão não é suficiente para a interdição dessa força
destruidora, ao menos serve para informar a consciência da necessidade de um projeto
progressivo de não-violência. Para Weil, da mesma forma que a renúncia ao uso individual da
violência é o que contribui para que se possa vencer a natureza exterior, também só é possível,
para o homem da sociedade do trabalho e para a própria sociedade, obter plena satisfação se se
deixar orientar pelo progresso da não violência. Somente esse abandono da violência contribui
para que o inimigo comum seja finalmente vencido e o homem, todo homem, satisfeito. Essa foi
a razão para que esse indivíduo ao longo dos séculos empregasse todos os meios de que dispôs
para disciplinar sua natureza interior, uma vez que seus desejos naturais sempre tiveram de ser
controlados para que atingisse não o que historicamente desejou, mas o que lhe foi prometido
de acordo com sua contribuição na produção.
Por outro lado, a tensão entre sentido e violência é demasiada complexa para ser
superada na mera constatação de uma razão educadora das paixões. O efeito desse processo
criou um ser reduzido a simples membro da sociedade do trabalho. Nele não há um Eu, uma
personalidade, mas uma coisa qualquer, pois o indivíduo é aquilo que ele faz, “ele só é
alguém sendo alguma coisa” (FM § 22 e) – uma vez que “a coisificação, na sociedade
moderna, é o preço da personificação” (FP § 24, c). Tal como a sociedade, reduzida à sua
maneira organizacional imposta pela lógica da racionalidade e da eficácia, o organizador, o
indivíduo, também não passará de uma peça importante e indispensável do trabalho social
43
para compor esse mecanismo social.
A linguagem, assim, sofre de um paradoxo irrenunciável: ao mesmo tempo em que
empresta sentido e significado à violência é por ela instrumentalizada. A linguagem que
comanda a moderna sociedade do trabalho é a linguagem que domina todos em vista do
acordo objetivo: eficácia. Seu mandamento é: aceitar os meios que objetivamente estão
aptos para levar ao sucesso ou renunciar os bens antes produzidos. Não existe propriamente
alguém que emita ordens como bem lhe convém, apenas uma única ordem é ditada: aquela
que submete tudo e todos à lógica da eficácia. Nesse sentido, é inevitável e violento o
choque entre duas dimensões históricas: os aceitam as regras da imposição do progresso
técnico e os que não se submetem a esses senhores da natureza e que, portanto, estarão
fadados ao desaparecimento.
Se a linguagem eficaz libertou o homem da servidão natural, criou, por outro lado, uma
segunda natureza tão absurda e violenta quanto a primeira, e até mais tirânica, pois ela não
deixa ao homem seu Eu: o homem “tornou-se um objeto, mas objeto incômodo – e, ao mesmo
tempo, só um objeto vazio e sem sentido”.49 Essa segunda natureza da linguagem da eficácia
apenas instrui, informa, forma, etc., não é seu papel educar no sentido pleno que esta palavra
deve receber. O resultado de tudo isso, segundo Weil, é o aumento progressivo do tédio infinito
e insensato. Tédio de uma linguagem que age, mas que não significa nada para o indivíduo.
Tédio do qual só se pode escapar “pela violência desinteressada, interessada somente pela
possibilidade de se afirmar como indivíduo contra os outros indivíduos, violência a serviço dos
senhores e que não tem outra orientação senão fazer esquecer a insensatez dos interesses que
satisfazem a sociedade”.50 Ao indivíduo resta lamentar sobre o óbvio de que a linguagem da
racionalidade acaba sendo para ele uma grande mentira. Resultado da palavra que, embora
prenhe de significado, quando falsificada a serviço da dominação de tudo e de todos, não
significa nada. Ou quiçá seu significado seja a pilhagem de todo e qualquer sentido mediante a
permanente presença da falsificação da palavra.
A promessa de libertar o homem da natureza e da violência só foi cumprida muito
precariamente pela racionalidade. Contudo, essa dialética entre violência e sentido nos informa
acerca de um caminho ainda por ser percorrido, pois só o ser violento, se ele fala, pode buscar
um sentido para o que faz.51 Ora, foi a vitória sobre uma primeira natureza exterior e hostil que
49
E. Weil, art. cit. p. 29.
Idem.
51
Idem, p. 30.
50
44
trouxe à consciência uma segunda natureza, a do trabalho organizado. E é a existência desta
problemática, por sua vez, que tem o mérito de possibilitar a formulação da questão: “o que
alcançamos e deveremos alcançar é tudo o que queremos alcançar?”.52 Eis, para Weil, onde se
localiza o sentido enobrecedor da história humana. Reconhecer essa questão é, igualmente,
compreender o próprio sentido que a humanidade atribui a si mesma, dado que tal questão não
poderia sequer ser formulada onde a necessidade e a violência pura reinassem absolutamente.
Nosso desafio atual é, para Weil, ser capaz de formular essa questão numa linguagem que
seja acessível a todos, ao mesmo tempo em que possamos oferecer resoluções apropriadas.
O risco é sempre o de sermos incapazes de traduzir adequadamente essa questão e, portanto,
anularmos toda e qualquer resposta satisfatória. Noutros termos, trata-se para o homem de
se exprimir e de se dizer por inteiro e completamente, de se apreender no que nele une
violência e sentido, violência e linguagem; ou ainda violência e discurso, segundo Ricoeur.
Nesta última acepção da dualidade, o significado é que “a linguagem não é apenas sistema
de sinais, mas discurso, capacidade do sujeito de dizer algo a respeito do mundo para outros
interlocutores e para si mesmo”.53 Enfim, visa o compreender, no sentido de tomar junto, o
que se separou dele na sua emancipação da natureza em vista da liberdade. Será, então, a
velha trindade hegeliana reclamada, pois o homem exprime, nega e pensa a violência e, ao
pensá-la, também a ultrapassa, mas por ser a violência o que igualmente o constitui, essa
ultrapassagem é sempre precária, já que a violência é o que nele fala.
1.4. Niilismo e filosofia
A situação contemporânea é curiosa, se considerada do ponto de vista da confrontação
com épocas bem distintas, como as que viveram, no passado remoto, a humanidade em
relação ao sistema de valores e crenças que a orientaram por séculos. Falamos do tempo
que de certa maneira ainda nos modela, pois, tempo paradigmático para tudo que somos e
atingimos: o tempo da tradição oral dos mitos.
É verdade que deuses, divindades, forças estranhas incompreensíveis, sobrenaturais, etc., não
têm mais espaço entre nós (ou pelo menos não nos ocupam da mesma maneira que outrora).
Contudo, nada disso impede que observemos hoje a conduta humana guiada por outras forças
estranhas à sua vontade. Forças nada místicas, diríamos até que totalmente profanadoras por
52
53
Idem.
D. Jervolino, op. cit. p. 46.
45
desencantarem em toda parte e produzirem dissolução de todas as certezas. É no extremo do
território do tangível e da objetividade técnica que impera, paradoxalmente, a incerteza sobre
tudo. Nada parece durável, tudo se tornou fugaz. Reina aquele que compreendeu primeiro que o
obsoleto, como experiência do poder corrosivo do negativo, é mandatário. E essa é sem dúvida
a característica mais evidente do que responde por niilismo.
Já não é negado por ninguém o profundo sentimento de mal-estar vivido pela
humanidade. Paira uma espécie de autocompreensão não consentida de nós mesmos. Na
quadra histórica em que nos encontramos, a sensação é de que caímos num atoleiro para
dele não mais sair. Pelo menos é o indicativo de boa parte da filmografia (pós)apocalíptica –
em colaboração ou não com uma literatura de catástrofe – produzida nos últimos 80 anos e
cujo tratamento oferecido ao futuro é sempre a ruína. 54
Uma das características mais distintivas, para Weil, do homem é que a possibilidade
constitutiva da violência faz com que esse homem não seja absolutamente discurso, embora
seja discurso, ele não o é no fundo do seu ser, pois é um ser que sempre pode se voltar
contra o discurso (cf. LF, 87). Essa lucidez permite que o filósofo não ceda à ilusão de
acreditar que mesmo depois de milênios, após ter deixado as cavernas para, em seguida,
fixar-se em comunidade civilizatória mundial sob a regência da técnica, o homem não seja
capaz de dar um passo que o reconduza à sua situação primitiva. 55 Não é preciso ir longe
para observar que esse passo em falso é muito mais frequente do que se imagina, ocorre que
ele tem sido dado, em pequena escala, pelo indivíduo e não pelo homem. 56
54
Refiro-me aqui a uma série de filmes distópicos começando por Metrópolis (Fritz Lang, 1927), passando, entre
outros, por Fahrenheit 451 (François Truffaut, 1966), Laraja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), Blade Runner
(Ridley Scott, 1982), Matrix (Wachowski, 1999), AI (Steven Spielberg, 2001), As Invasões Bárbaras (Denys
Arcand, 2003), Filhos da Esperança (Alfonso Cuarón, 2006), Ensaio sobre a Cegueira (Fernando Meirelles,
2008), até Elysium (Neill Biomkamp, 2013), nos quais é retratada uma humanidade absolutamente fracassada e
impossibilitada de êxito coletivo, quando não à beira da completa extinção.
55
Segundo J-F. Robinet, Weil descreve uma análise profundamente rigorosa e até mesmo “profética” acerca da
relação do individuo e da sociedade contemporânea marcada pela lógica da eficácia do mecanismo social. Nela o
homem estaria como que coagido em sua individualidade, suscitando nele reações insensatas e violentas, o que
termina por se constituir no próprio círculo vicioso da história contemporânea Cf. Weil et le nihilisme in
Kirscher-Quillien, Sept étudies sur Éric Weil, Lille, PUL, 1982, p. 196.
56
Adverte Éric Weil: « Qu’est-ce qui pourrait alors nous trouber ? Simplement le fait que nous avons obtenu ce
qu’ils avaient promis et ce que nous désirions – et que nousne sommes pas tout à fait satisfaits des résultats...
Peut-être pourrions appeler cela: l’ennui. Or, c’est d’un oeil désapprobateur que d’ordinaire on considère
l’ennui; et si quelqu’un se plaint de s’ennuyer nous ne le prenons pas trop sérieux. Qu’il s’occupe, disons-nous
volontiers, qui’il fasse lui-même quelque chose pour sortir de son ennui. Mais l’ennui pourrait devenir chose
tout à fait sérieuse se une civilization entière venait à en être affligée, car, dans ce cas, il n’y aurait plus
personne pour dire aux autres pourquoi ils s’ennuyaient et ce qu’il fallait faire pour y porter reméde. Si, une fois
qu’ils ont obtenu tout ce qu’ils pouvaient raisonnablement demander, les gens sont toujours insatisfaits, et si
tout le monde partage de même sentiment d’insantisfaction, alors on pourrait avoir recours à des choses
46
Contudo, nada impede que esse passo seja dado também em larga escala, isto é, por uma
comunidade, mesmo que forçada a isso pela sociedade da técnica, dado o nível de acirramento
a que chegaram as potências pelo controle da riqueza global. Éric Weil é muito claro quando
se reporta ao desdobramento possível desse mundo, sempre “ameaçado de se tornar insensato
por força de se fazer racional” (cf. FP, § 40, d). Para Weil,
A perfeita organização racional seria a vitória total do homem sobre a
natureza exterior; seria a libertação total do homem com relação à
natureza, mas criaria, ao mesmo tempo, um vazio no homem que teria à
sua disposição a totalidade do seu tempo. Porém, reduzido a puro ser
social, ele não usaria sensatamente esse tempo. A menos que o homem não
renuncie a todo o sentimento, o que teríamos depois da transformação total
da natureza exterior seria o reino do tédio, único sentimento sobrevivente,
um tédio que não estaria mais insatisfeito com isso ou aquilo, com tal
imperfeição, tal necessidade, tal injustiça social, mas com a própria
existência, o que levaria rapidamente à destruição violenta do estado ideal
alcançado (FP § 27, a).
Esse traço marcante da história presente é notavelmente tratado pelo artigo A era das
distopias da economista Maria da Conceição Tavares. Nele a autora destaca a imobilidade da
história a partir do falecimento de quaisquer projetos coletivos calcados pelos movimentos
utópicos dos séculos XVIII, XIX, e XX, mas que não chegaram até o final deste último: “a
orientação histórica rumo à liberdade e à igualdade, elaborada no Iluminismo, acabou no final
do século XX”.57 Não há mais nenhuma história que ilumine o futuro. O que subsiste é um
sentimento de vazio cujo marco é a derrocada, no plano macroeconômico, do que antes se
tinha por Estado planificador, substituído pela desregulamentação e fragmentação econômica
transnacional erigida no bojo da globalização.
O que ecoa, ainda segundo Tavares, é a mudança no modo de pensar a história; não há mais
um movimento na direção da igualdade. Para ela, nada se move; política, economia, relações
internacionais, nada! Nenhum fato é suficientemente impactante para ser capaz de produzir algo
novo – seria impensável não grassar nenhuma perspectiva transformadora no mundo a eleição
de um “afro-americano” para presidente dos EUA em 1950. Pois bem, entre nós isso se mostrou
completamente irrelevante com a eleição de Barack Obama em 2008. Assim, sem nenhuma
direção, o futuro tornou-se ilegível, completamente amorfo. A clássica querela da esquerda
situada entre os projetos de reforma ou revolução, que por todo o século XX impulsionaram as
déraisonnables. On peut tomber d’accord sur un point et un seul: à savoir que la violence est le seul vrai passetemps. » (PR I, 302-303).
57
Maria da Conceição Tavares. A era das distopias in Insigth-Inteligência, jan./fev./mar. n.º 64, (2014): p. 21ss.
47
transformações no progresso social humano, minguou ante a naturalização das desigualdades
ambientadas nos interesses que se querem puramente fragmentários.58
O que provavelmente temos vivido é o advento de uma história asfixiada porque já não
conta (ou conta muito precariamente) com o oxigênio da tradição para manter aceso o fogo da
utopia.59 É evidente um cansaço cultural assinalado no tempo presente. É isso que Ricoeur
descreve como esgotamento, isto é, a experiência dramática do nosso tempo em que impera a
convicção difusa, invasora, segundo a qual, pela primeira vez, nossa herança cultural já não
parece mais capaz de reinterpretação criadora e de projeção para o futuro (cf. HI, 162). É
como se a história não mais avançasse, mas, de alguma forma, continuasse movimentando-se,
só que em dilatação lateral. Todo o conhecimento produzido em séculos avolumou-se no
tempo presente: a contínua produção derivada da sofisticação dos meios técnicos irrefreáveis
é permanentemente e massivamente despejada sobre nós.
Segundo Franco Volpi, o sociólogo Arnold Gehlen, ao analisar o conceito de posthistoire
nos idos dos anos 1950, concluiu que nossa história sofreria de uma espécie de torpor. O
crescente desenvolvimento da indústria na direção de uma administração universal teria
levado à estagnação do atual estado social por conta das próprias disfunções inerentes ao seu
funcionamento. Paralisada pela dinâmica do desenvolvimento tecnológico industrial – que
impõe um estado de motilidade perpétua, em que tudo se reproduz e se repete sem fim – fica
decretada a “estase da história”. Esse quadro da cristalização da sociedade e da cultura é
marcado, sobretudo, por nele estarem suplantadas as ideias e nas quais invenções, elevadas ao
primeiro plano, estariam fadadas ao rápido envelhecimento e, de igual modo, repentina
substituição. Tudo ocorrendo sem comprometer o crescimento contínuo da humanidade e seu
padrão de vida, o que significaria não mais se tratar de desenvolvimento e sim de movimento
incessante.60
Nesse quadro das sociedades industriais avançadas, adensam-se novos conflitos e Ricoeur
chama atenção para um deles: a ausência de projeto coletivo nos chamados países de primeiro
mundo. É sabido que os países mais atrasados miram os países já consagrados pela chegada
nessa condição, mas aos países tidos por avançados lhes falta qualquer propósito quanto a um
projeto para o conjunto dos homens e para a pessoa singular. Conjuga-se a isso o
58
O problema de base destacado pela autora centra-se no fato da exacerbação do indivíduo, mais que isso, em
sua faceta piorada, diz ela: “individualismo burguês, bem ou mal, tinha uma face progressista. O individualismo
pequeno-burguês não tem face nenhuma! É uma coisa chata! É uma crise que se manifesta pela ausência, pelo
vácuo e não sai daí.” Idem, p. 26.
59
Cf. F. Volpi, op. cit. p. 117.
60
Idem, p. 116-117.
48
aniquilamento das normas (pelo excesso ou pelo abandono) e o esquecimento das heranças
tradicionais, ou seja, é como esgotamento que as sociedades capitalistas avançadas cumprem
seu ciclo de desenvolvimento.
A herança cultural que outrora serviu de propulsão para que essas sociedades chegassem
ao ponto em que se encontram já não as informa mais (pelo menos não como antes). Na
medida em que essa herança deixou de ser reinterpretada criativamente também
interrompeu a produção de novas situações. Eis porque torna-se visível ao filósofo – e a
toda boa compreensão do tempo presente – a irrupção do perigo da nova atitude centrada na
experiência "selvagem" a partir do zero. Sem projeto coletivo, a experiência selvagem bate
à porta da civilização e insinua-se como única alternativa frente ao que denuncia como
falência das instituições. O que se revela urgente para todos é saber formular e responder a
pergunta de orientação weiliana sobre satisfação de todos e cada no âmbito da sociedade.61
Sem a capacidade para visualizar qualquer sentido para a história presente e futura a partir
da história passada (nossa herança cultural), haveremos que coexistir por muito tempo com
atitudes originadas na violência polarizada, que Ricoeur chamou de ilusões da dissidência e
tentação da ordem (cf. HI, 162-163).62
Da mesma forma, no plano cultural, convivemos impassíveis com tudo o que há de bom e
mau gosto, sem qualquer critério para decidir, simplesmente porque todo e qualquer critério é
uma afronta à única decisão que importa: a do indivíduo. Coexistimos, assim, sem assombro,
com o empilhamento do que há entre o pior e melhor dos produtos e serviços, da cultura e dos
subprodutos dela (lixo cultural para utilizarmos uma expressão cunhada por Ariano
61
Cf. Éric Weil, art. cit. p. 29.
No primeiro polo, ilusões da dissidência, “todas as instituições aparecem como um bloco indivisível de poder
e de repressão; todas as autoridades são establishment: dos bancos às igrejas, passando pelas empresas, pelo
meio universitário e pela policia. Assim esquematizada, a sociedade só pode depender de uma estratégia do
confronto e da polarização, destinada a revelar a fisionomia repressiva que se oculta por detrás de toda máscara
liberal. E se a própria palavra, cativa do poder, não é mais ouvida, o que permanece, então, é a ação pontual, a
violência muda. Instala-se, assim, na dissidência, uma das juventudes mais inteligentes e mais honestas.
Doravante, é fora dos aparelhos da democracia formal, à margem da burocracia dos partidos e dos sindicatos,
que ela vai instalar-se. Por sua vez, ela se vê ameaçada pela grupusculização, que introduz a dissidência na
dissidência. De tudo isso, a sociedade vê apenas as exterioridades coloridas: as vestes, os costumes, o
nomadismo e a anticultura, em suma, uma imagem alternadamente terna e agressiva.” O segundo polo, tentações
da ordem, já “nos é bastante conhecido: essencialmente reativo, alimenta-se de medo e de ódio. O que mais
estarrece é que a tentação da ordem parece, hoje em dia, afetar por completo a classe média, colocada em
posição defensiva. Trata-se, à primeira vista, de um curioso paradoxo o fato de o ingresso na abundância se ver
acompanhado de tanta insegurança. É como se aqueles que ultrapassaram a fronteira de abundância sentissem
toda vantagem social como uma aquisição ameaçada pelo menor sinal de retrocesso, devendo ser defendida
contra a camada social imediatamente inferior. Donde a defesa avarenta de todo privilégio e o apetite obsessional
de segurança.”
49
62
Suassuna63). Daí porque nos habituamos ao presente, quer dizer, nos mantemos indiferentes
em nossa atualidade a tudo que deveria prover elevação espiritual.
Não é difícil entender o porquê de o acúmulo de quinquilharias conspirar para o que obsta
o avanço da história. O peso de coisas que não levam mais a lugar algum, porque nenhuma
importância existe em consequência do aglomerado sem sentido e desconexo. O que antes
empurrava a história está, hoje, sem força diante do que podemos chamar de amontoado. Não
mais seguimos em frente porque tudo o que foi produzido (e continua a ser produzido
assimetricamente) é o próprio entrave do avanço da história. Por ignoramos o que é essencial
em todas as áreas, esbarramos e nos acostumados com esse amontoado. Eis aqui o que se
habituou denominar fim da história; e nesse sentido, em lato senso, o fim da história é a
história sem fim, porque história sem sentido. Sem telos não há utopia!
O niilismo, assim, não só é capaz de conduzir ao deserto, mas, igualmente, expandir
infinitamente seus limites – um “deserto que cresce” segundo uma expressão de Franco
Volpi.64 Quanto mais radicalizada é a crítica niilista tanto maior a aridez do lugar no qual
somos mantidos cativos pela incapacidade para tomar decisões. Sem qualquer parâmetro,
nada pode ser decidido. A marca desse tempo é a absoluta incerteza sobre tudo. Ora, ao
sugerir a total inapreensão de tudo, está igualmente interditado o esforço do pensamento para
qualquer tipo de unidade ou, como fala Robinet, a “impossibilidade de elaborar um discurso
coerente sobre o real, impossibilidade do discurso objetivo”.65 Eis porque se pode dizer que a
característica mais profunda do niilismo é a falta de sentido66.
O niilismo é, pois, a “falta de sentido” que desponta quando desaparece o
poder vinculante das respostas tradicionais ao porquê da vida e do ser. É o
que ocorre ao longo do processo histórico no decorrer do qual os supremos
valores tradicionais que ofereciam resposta àquele “para quê?” – Deus, a
Verdade, o Bem – perdem seu valor e perecem, gerando a condição de
“ausência de sentido” em que se encontra a humanidade contemporânea.67
Tal caracterização do niilismo, que incide decisivamente sobre os vários campos (história,
política, arte, religião, economia, etc.), conduz a reflexão a um diagnóstico terrível: a
racionalidade do mundo moderno é portadora dos processos corrosivos de todos os valores e
sentidos. Dessa forma, não é difícil compreender as razões (ou contrarrazões) que fazem
63
A. Suassuna apud L. Guedes. Ariano Suassuna: Dom Quixote contra o imperialismo norte-americano.
Suplemento Correio das Artes, 2014.
64
F. Volpi, op. cit. p. 89.
65
J-F. Robinet, art. cit. p. 189.
66
Cf. F. Volpi, op. cit. p. 16.
67
Idem., p. 56.
50
nossa atual civilização técnico-científica se confundir com o momento da cristalização
cultural.68 Técnica e niilismo seriam, assim, as duas características essenciais da realidade
contemporânea, isto é, de como a organização metódica e universalizante do trabalho impõe a
destruição de todos os valores e sentidos em nome do único valor e sentido que importa: o
próprio trabalho. Esse diagnóstico é o que subjaz no impasse que situa em lados opostos os
que apregoam a continuação do progresso técnico alcançado pela sociedade mundial, a
exemplo do que advogam empresas e governos de diferentes matizes e seus tecnocratas, e
todos os que desejam a renúncia do progresso, de uma vez por todas, como miram os grupos
ecológicos radicais e fundamentalistas.
Eis a armadilha contemporânea em que não caem nem Weil nem Ricoeur. Ambos não se
deixam apanhar pelos discursos que estabelecem a oposição radical entre o entusiasmo pelo
progresso e sua deploração – dicotomia tão comum nos dias atuais. Para os dois pensadores é
essa realidade que precisa ser enfrentada. Weil e Ricoeur permitem à filosofia algo mais que a
resignação diante da constatação do fenômeno do niilismo e seu avanço. Suas filosofias são,
cada uma ao seu modo, uma reflexão que não se rende à violência, muito pelo contrário.
Aliás, se nos for permitido dizer igualmente a respeito de Ricoeur aquilo que Perine escreve
da filosofia weiliana, trataremos as duas como filosofias que descobrem seu segredo e sua
tarefa no confronto com a violência,
69
no enfrentamento do niilismo, qualquer que seja a
forma que ele assuma. Ou como diz outro intérprete do pensamento weiliano:
A todo o momento da história os homens podem destruir o que os outros
construíram de razoável em seus discursos e no seu mundo histórico. É
sempre possível que o demônio do negativo seja mais forte que a vontade de
vida e de civilização. De fato, a história mostra regressões no
desenvolvimento da civilização. A história não é desenvolvimento contínuo
da razão. O tema do niilismo está então presente em toda filosofia, na
medida em que a filosofia é uma tomada de consciência da razão, de seu
valor e de sua precariedade.70
Dissimetria entre a acumulação de todas as coisas e a ausência de sentido de toda essa
acumulação: absolutização da nadificação (insensatez) preenchida por coisas totalizadoras.
Embora pareçam cúmplices, material e formal aqui não informar nenhum real possível por
68
Cf. Idem p. 117.
M. Perine. Violência e niilismo. O segredo e a tarefa da filosofia. Kriterion. Revista de Filosofia, Belo Horizonte,
v. XLIII, n. 105, jul./dez. 2002, p. 106-126. Depois em M. Perine. Éric Weil e a compreensão do nosso tempo, op.
cit. pp. 141-171.
70
« à tout moment de l’histoire les hommes peuvent détruire ce que les autres ont construit de raisonnable dans
leurs discours et dans leurs monde historique. Il est toujours possible que le démon du négatif soit plus fort que
la colonté de vie et de civilisation. Et de fait, l’histoire montre des régressions dans le développement de la
civilisation. Le thème du nihilisme est donc présent dans tout philosophie, dans la mesure où toute philosophie
est une prise de conscience de la raison, de sa valeur, et de sa précarité » cf. J.-F. Robinet, art. cit. p. 191.
51
69
equivalerem todas as possibilidades da realidade: tudo é possível ao mesmo tempo em que
tudo é igualmente inapreensível, portanto, nada é legitimo. O amontoado é tomado por um
nada que o abarca e exige que ele seja cada vez maior. A forma (vazio, nada) não se permite
preencher por nenhum conteúdo significante, porque tudo é completamente sem valor,
obsoleto, insensato. O vazio niilista consome permanentemente tudo. É um nada que se
alastra sem qualquer comiseração.
Do ponto de vista weiliano, razão e violência pura são produtos de uma reflexão radical
que nos conduz às causas e aos princípios últimos. Ora, o mundo no qual o indivíduo vive é
um misto de violência e razão, noutros termos, misto de matéria e forma. Nele não se encontra
nem a forma pura nem a matéria pura. No entanto, são essas possibilidades que, juntas,
permitem compreender o real.71
Nesse ponto, uma digressão pela reflexão de Ricoeur acerca do vazio das categorias do
Sentido e Sabedoria da Lógica da Filosofia72 talvez se revele bastante produtiva. Nela o
hermeneuta conclui, após refletir o sentido da Ação em sua retomada do projeto de coerência
a despeito do Absoluto e para além dele, por uma espécie de coerência extenuada e regressiva.
Para Ricoeur, há uma precedência postulada pela reflexão weiliana, sobretudo pelo que
informa um “texto desconcertante” para todo filósofo que se guia pelo discurso e descobre, a
partir do próprio discurso, que a fonte primária constituidora da própria filosofia e, portanto, a
que pauta a filosofia permanentemente, se esvai num não discurso.
A filosofia lida com outra coisa que não um discurso, mesmo coerente, com
outra coisa que não a razão, mesmo em ação, outra coisa, mas algo de
humano, se ela quer se compreender. O que esse fato significa na filosofia e
para a filosofia, eis o problema que devemos enfrentar. Mas desde já, ficou
claro que a vida fora da razão discursiva não é apenas um fato observável:
ela constitui, e para a própria filosofia, o limite do discurso (LF, 589).
Nessa passagem, segundo Ricoeur, Weil tem presente a grandeza da dificuldade de todo o
empreendimento de sua lógica da filosofia e assinala a desembocadura onde se põe todo o
discurso consciente (ou não) de sua realização. A filosofia que não teme cruzar todas as
fronteiras do pensamento sabe se orientar pelo Sentido. No entanto, a única garantia de
coerência do discurso que o Sentido pode dar num além da Ação é um vazio de conteúdo no
qual ele cai; vazio compatível à utopia da própria Ação que quer realizar o discurso, ou seja, o
fim do discurso mediante sua realização.
71
72
Cf. Idem, p. 190-191.
Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 419ss.
52
O que sobra é um discurso que se enxerga muito mais como atitude do que propriamente
como discurso. O empreendimento da realização do discurso, pela Ação que se sabe
inultrapassável na qualidade de atitude, exige um discurso fraco, murmúrio categorial.73 Esse
“pouco que resta” é o bastante para a filosofia continuar sua trajetória de saber sobre si
mesma, mas agora despida de toda materialidade histórica. Ela mantém seu itinerário
mediante a convicção de que tudo o que adquiriu foi graças aos acidentes históricos com os
quais se misturou, e conclui que tudo aquilo que lhe precede e que ela somente captou
precariamente é também o que encontrará ao fim de um longo percurso. É através dessa fraca
sonoridade discursiva que Ricoeur apresenta outra passagem da Lógica da Filosofia como
resposta ao “texto desconcertante”,74 por explicitar de maneira, sem igual, a concepção da
precedência que ambos filósofos observam em relação à filosofia:
Se, portanto, existe uma categoria para além da categoria da ação – e a ação
o exige, na medida em que ela ainda não se concluiu, na medida em que ela
fala da negatividade, de fim de futuro –, ela só pode ser a categoria da
filosofia, uma categoria que não serve para compreender tudo, mas que
funda a filosofia para ela própria, uma categoria sem atitude, categoria vazia
que sempre se preenche, categoria essencialmente por vir na qualidade de
não atitude, e que é a categoria da presença. Ela não ultrapassará a ação; no
entanto, ela não indicará um fim à filosofia; ela será sua conclusão, assim
como será sua origem. Ela não transcenderá o mundo, mas será a
transcendência no mundo. Ela será, portanto, a fonte de discurso na qual o
discurso se aprenderá. (LF, 591).
O “nada” compreendido depois da Ação (cf. LP, 590), o “vazio” da categoria do Sentido é
o perigo em que incorre toda reflexão filosófica. É através dela que podem adentrar todos os
processos destruidores da reflexão. Ora, por se tratar de forma sempre vazia e, portanto,
sempre aberta a determinações, esse vazio é a porta por onde entram também o nada da
violência e do niilismo.
Contudo, o filosofar só é possível por essa abertura fundamental. Que não se possa deixar de
pensar o vazio e se permitir, assim, abrir possibilidades livres de quaisquer determinações são
conquistas que a própria filosofia trouxe para o âmbito da reflexão. O problema é que o vazio
no qual frequentemente se cai tornou-se impeditivo de qualquer construção e de qualquer
preenchimento de conteúdos, sempre parciais, que sejam superados ulteriormente noutra forma.
No vazio do absurdo não se espera nenhum preenchimento, não há conteúdo para ser
experimentado, toda e qualquer materialidade é repelida pela força da negatividade total que
73
74
Cf. Idem, p. 418.
Idem, p. 419.
53
não quer conhecer nenhuma positividade, isto é, apenas ação de uma liberdade insensata porque
negatividade sem objetivo. É a isso que Robinet identifica como niilismo absoluto.75
É desse modo que o vazio da forma, no qual se situam Sentido e Sabedoria, difere do
absurdo. Podemos dizer que o problema que se revela para própria Ação é a questão do
sentido ou, para traduzir a questão em termos da própria ação (política), a questão do fim da
ação, de toda ação, o fim mesmo do discurso (moral e político, cf. FM § 24 c). Para utilizar os
termos de Marcelo Perine, trata-se de compreender que “o problema do sentido é o sentido do
problema”76, isto é, que o aquém do discurso e, portanto, seu acabamento é o que situa o
problema como decisão pelo sentido: “... se somos levados a buscar um fim – o que significa,
um sentido – ...decorre que a ciência filosófica do fim da existência humana visa a algo que
não se encontra no seu domínio. Para acusar o caráter paradoxal do problema poder-se-ia falar
do sentido da busca do sentido” (FM § 24, d).
Essa é umas das conclusões sustentadas por Ricoeur ao fim de sua comunicação sobre a
Lógica da Filosofia. Ele admite que é através de um grau suplementar de formalismo, após a
ação, no caso, Sentido e Sabedoria, que o projeto de coerência do discurso é salvo. Aliás,
sobre isso temos a dizer que apesar das objeções de Marcelo Perine, a propósito da
interpretação do filósofo hermeneuta, acreditamos que ela reage oportunamente às investidas
contrárias ao empreendimento weiliano.77
1.5. Filosofia e tomada de posição
Vivemos uma época, para falar como Éric Weil, provocada pelo mal-estar do excesso de
riquezas, tempo embaraçoso no qual se sabe sempre coisas em demasia, se conhece
abundantemente verdades e existe farta informação à disposição de todos sobre conteúdos e
situações (cf. LF, 134). No entanto, essa condição que parece dispor de toda sorte de respostas
carece de correspondência entre estas e as questões levantadas (cf. PR I, 07).78
75
Cf. J-F. Robinet, art. cit. p. 200ss.
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 188ss.
77
Infra p. 73ss.
78
Bernheim-Chauí nos fazem um prognóstico desse fenômeno ao dizem que “o conhecimento contemporâneo
apresenta, entre outras características, as do crescimento acelerado, maior complexidade e tendência para a
rápida obsolescência. O que tem sido chamado de explosão do conhecimento é um fenômeno tanto quantitativo
quanto qualitativo, no sentido de que o volume de conhecimento disciplinar aumenta e, ao mesmo tempo,
surgem novas disciplinas e subdisciplinas, algumas das quais transdisciplinares. Por isso falamos também em
explosão epistemológica. De acordo com dados fornecidos por James Appleberry, citados por José Joaquín
Brunner, o conhecimento com base disciplinar registrado internacionalmente levou 1.750 anos para duplicar pela
54
76
Essa superabundância de todas as coisas em todas as áreas convive sem assombro com a
pobreza de espírito que conduz à escassez do pensamento na sociedade, em princípio mundial,
e que, paradoxalmente, busca se definir cada vez mais como sociedade da veloz circulação da
informação e do conhecimento.
Esse quadro não é uma particularidade do nosso tempo, aliás, o que conhecemos é o
agravamento de situações perfeitamente conhecidas já por Platão, que não somente
identificou e conheceu as várias vertentes79 – muitas delas abrigadas no seio de sua própria
academia –, como com elas manteve um produtivo e fecundo “diálogo” a fim de situar, cada
uma destas “sabedorias”, no âmbito de sua própria filosofia. Com efeito, compreender
filosoficamente, para Platão, é um procedimento dialético que reconhece a diversidade em
tensão com a unidade, seja pela divisão segundo as ideias seja pela condução da pluralidade a
uma única ideia.80
Assim, Platão é quem surge como o que primeiro confere à filosofia o caráter da tomada de
posição. É verdade que se pode dizer que Sócrates, antes, já tinha concebido a filosofia nesses
termos e que sua condenação e morte diante da cidade não é senão o emblema maior dessa
tomada de posição pela filosofia. Entretanto, com Sócrates a filosofia ainda não é,
propriamente, para falar uma vez mais como Weil, tomada e tornada objeto e sim a
comunidade que discute, isto é, a discussão.81 O alvo de suas pré-ocupações é a comunidade.
Aprendemos com a Lógica da Filosofia que o pressuposto de toda comunidade é a
linguagem na qual e pela qual se desenvolvem as discussões em vista do acordo. Sendo que o
primeiro acordo é justamente o de que todos podem falar e que ao fazê-lo adotaram a via que
pode leva ao reconhecimento mútuo. Contudo, tal reconhecimento não é gratuito e sem
tensão, pelo contrário, carrega a história da violência criadora da humanidade e, dessa forma,
a discussão ainda é a reprodução subliminar da luta bruta entre os conteúdos das culturas
impermeáveis umas às outras (cf. LF, 180).
Dito de maneira diferente: na origem da polis, o evento que marca toda a política ocidental
primeira vez, contando a partir do princípio da era cristã; depois disso a cada 150 anos e, por fim, a cada 50 anos.
Atualmente, ele é multiplicado por dois a cada cinco anos, e projeta-se que, em 2020, duplicará a cada 73 dias.
Estima-se que a cada quatro anos duplica a quantidade de informação disponível; como os analistas observam,
porém, somos capazes de dar atenção apenas a cerca de 5 a 10% dessa informação.” Ver Bernheim-Chauí,
Desafios da universidade na sociedade do conhecimento: cinco anos depois da conferência mundial sobre
educação superior. Brasília : UNESCO, 2008, p. 08.
79
Cf. M. Perine. Quem são os inimigos de Filebo? (Fil. 44 b 6) in Hypnos, São Paulo, n. 26 (2011): 73-92. Cf.
também J-M. Gagnebin. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 193-194.
80
Cf. M. Perine. Éric Weil e a compreensão do nosso tempo, op. cit. p. 145.
81
Cf. M. Perine. Da Discussão ao Objeto. Platão retoma Sócrates? in Cultura – Revista de História e Teoria das
Ideias, Lisboa (II Série) n. 31 (2013): p. 89-108.
55
é o surgimento da democracia. No entanto, não se pode esquecer que a instituição que não
somente a antecede, mas possibilitou o seu advento foi o “conselho de guerra” no qual reis e
guerreiros, os aristoi, tinham assento para, em condições de igualdade, opinar e deliberar,
como é narrado por Homero.82 A política e, mais tarde, a própria democracia nascentes são
oriundas da violência. Senão diretamente, o são a partir da cessão que a violência permite,
uma pausa no conflito a fim de poder organizar o comando.83 Uma aristocracia guerreira
antecede, assim, tudo o que reconhecemos e chamamos pelo nome de política.
Contemporânea aos primeiros desenvolvimentos da política, a filosofia conheceu no seu
nascedouro um mundo essencialmente político (cf. LF, 188), para o qual, após ser capaz de
formular discursos (o Verdadeiro e o Falso), volta-se quase que integralmente. Isso explica
porque, sem abandonar toda a construção lógica e epistemológica e os problemas daí
decorrentes, a filosofia em dado momento do seu incipiente percurso se desloca do eixo
cosmológico para o eixo ético – desce do céu à terra como diz Cícero.84
Ora, se Sócrates é tido como o que opera esse deslocamento e mais, como o que se constitui,
para toda filosofia posterior, em patrono – mesmo não tendo sido o primeiro filósofo (Tales),
tampouco aquele a quem se atribui a invenção do neologismo filosofia (Pitágoras) ou da
dialética (Heráclito, Parmênides) –, então, de maneira tácita ou explícita se aceita que a filosofia
se compreenda pela linguagem, pelo discurso, pela discussão, pela política no interior da polis.
No mundo do advento da polis o mais forte não é mais o que impõe e se sobrepõe brutalmente
aos demais, mas o que faz o melhor uso da linguagem, isto é, do discurso. Importa agora ter
razão e isso significa que é preciso ser soberano pela linguagem (cf. LF, 181). Onde o centro do
mundo é o discurso demonstrativo da verdade não contraditória, passa a ter razão aquele que
demonstra ser o mais hábil no uso da técnica do discurso.85
É assim que a filosofia tem atrelada a si, como o DNA que define o caráter de uma vida
inteira, o traçado marcante da via política.86 Que política e filosofia não se confundem, que a
82
Cf. J-P. Vernant. Os gregos inventaram tudo (entrevista). Caderno Mais, Folha de São Paulo, domingo, 31 de
outubro de 1999, p. 4.
83
« Là où l’emploi de la violence est exclu les hommes règlent leur vie en commum par le moyen du langage
formellement un : ils discutent. » (LP, 121).
84
Cf. Disputaciones Tusculanas,V 10.
85
« L’emportera celui qui si fera entendre et saura empêcher que son concurrent ne soit entendu, soit qu’il le
rend ridicule et le fasse apparaître comme um homme dont on ne peut rien espérer de sérieux, soit qu’il rend
suspect comme capable de revenir à la violence. » (LP, 126-127).
86
Em Vernant encontramos: “Entre política e logos, há assim, relação estreita, vínculo recíproco. A arte política
é essencialmente exercício da linguagem, e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de
sua eficácia, por intermédio de sua função política.” J.-P. Vernant. As origens do pensamento grego. Tradução
de Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro : Difel, 2002, p. 54.
56
política só se compreende pela ótica da filosofia, que a filosofia submete o projeto da política
ao seu próprio projeto; etc., tudo isso é correto. No entanto, essa aparente influência da
filosofia sobre a política se reverte em dependência da filosofia em relação à política, ou nos
permite ao menos falar de uma dimensão política da atividade filosófica.
Não existe projeto que não queira ser realizado. Não basta falar, é preciso acontecer: como
filha do tempo da cisão entre palavra e ato, a filosofia sabe que só pode ser realizada se
conseguir operar o discurso da ação ou, o que é o mesmo, da ação enquanto discurso. Numa
palavra: que o homem se compreenda como discurso agente.
Se é possível voltar a Sócrates como a figura emblemática da filosofia em que palavra e
ação estão intrinsecamente conjugadas, é porque já se compreendeu que a filosofia carrega
consigo a marca do posicionamento político. Que se afirme uma vez mais: toda a Grécia, todo
o mundo grego é mundo essencialmente político. Ora, a filosofia que nasce nesse mundo não
pode deixar de sê-lo também. O contraste é que a “relatividade” é afirmada por toda parte,
justamente porque, através do conflito entre as partes, só se percebe partes e nunca o todo.
Entretanto, a filosofia ao ser exigida a se posicionar diante do conflito (por ser ela uma das
partes e dado o caráter emergente e perene da sua natureza política) só pode apreciar esse
problema sob o ponto de vista que é propriamente o seu, isto é, o do todo, o ponto de vista da
universalidade. Ela não apenas submete a exame o conflito entre as partes como, igualmente,
é levada a uma tomada de posição. Eis porque Sócrates, para falar como Kirscher,
compreende não esta ou aquela discussão, mas a discussão como um todo ao discutir a
discussão.87 “Sócrates discute e faz exclusivamente isso” (LF, 189).
O que a filosofia procura não se restringe ao entendimento desta ou daquela posição, mas
da compreensão de toda discussão. A filosofia com Sócrates, através do minucioso exame
dialético das partes, toma posição pelo universal. A matriz da qual parte todos os discursos
conflitantes é a linguagem e, nesse ponto, todos os adversários concordam mesmo que sobre
isso se calem (aliás, o silêncio é a contraprova do acordo tácito). O que se verifica é a
natureza de um postulado: se se parte de um mesmo princípio, pode-se chegar, apesar (e por
causa) da discussão, a um mesmo acordo, a uma conclusão da discussão que satisfaça a todos
e a cada um – não apenas uns com os outros como também entre si mesmos – no interior da
comunidade.
87
Cf. G. Kirscher, op. cit. p. 246.
57
Nem por isso, todo o esforço de Sócrates não o impede de fracassar88, quer dizer, não o
conduz necessariamente a ser bem-sucedido (cf. LF, 191). É assim que Platão é impelido,
segundo Weil, a ultrapassar a discussão e, portanto, ir além de seu próprio mestre (cf. LF,
188). Mais que isso: sua filosofia é a primeira que busca a compreensão total (cf. LF, 219). O
fato da morte de Sócrates pela comunidade (cf. LF, 204), fato “que decide a vida inteira de
Platão” (LF, 188)89, o faz tomar consciência90 “de que não basta que o acordo seja alcançado
entre todos os participantes da discussão... é preciso ademais que esse acordo revele a
realidade e o que é em verdade” (EC I, 243), isso que só pode ser atingido, para Platão, pela
dialética. Eis por que com Platão a dialética não será apenas método ou técnica, mas uma
posição filosófica, a única “adequada à compreensão da realidade, concebida como a
identidade do uno e do múltiplo ou, o que é o mesmo, como misto gerado por uma causa
inteligente, que mantém em contínua interação os princípios do limite e do ilimitado”. 91
Ademais, fica manifesto que para empreender um novo projeto filosófico, a partir do que
fracassou, é preciso dissipar os mal-entendidos intencionais (ou não) dos quais o antigo projeto
se torna alvo após sucumbir – sobretudo por parte das correntes adversárias. Não haveria
nenhuma razão para Platão proceder assim, em seu resgate da memória de Sócrates, se sua
filosofia partisse do zero. A defesa da memória do seu mestre, com a qual Platão inicia sua
atividade literária, ocorre não apenas contra a animosidade dos democráticos que condenaram
Sócrates, mas a favor de todos os que estiveram sob a influência do grande mestre.92 A ágora,
antes circunscrita ao espaço físico da polis, ganha com a delimitação operada por Platão
ambientação mais ampla e duradoura; diríamos hoje que o espaço se tornou “virtual”. Ao
contrário do que pensa Hannah Arendt que diz ser Platão o responsável por fazer cindir ética e
política – filosofia e polis – ao se retirar da arena política arrastando a discussão para dentro da
Academia.93 É perfeitamente possível pensar o oposto ao retratar que Platão submete a política
ao projeto de totalidade da filosofia conferindo àquela a visão e o alcance que sozinha jamais
teria. O que na verdade a genialidade de Platão opera é uma inversão.
Digamos que a discussão, outrora restrita aos domínios da polis, recebe com a
sistematização intentada por Platão, no que qualifica e distingue seu discurso e o de Sócrates
88
H. Arendt. A dignidade da política. Tradução de Helena Martins [et al.]. 3 ed. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002, p. 92.
89
Grifos meus.
90
Cf. M. Perine, Da discussão ao Objeto, art. cit. p. 101.
91
Cf. Idem, p. 99.
92
Cf. Idem, p. 105.
93
Cf. H. Arendt, op. cit., p. 91ss.
58
dos demais, a amplitude da história. A discussão – insuficiente, mas necessária –, agora
incorporada ao projeto da filosofia sistemática de Platão, rompe as fronteiras do tempo para se
estabelecer como atividade paradigmática para toda a posteridade. A luta empreendida por
Platão para preservar a memória do grande mestre, bem como situar diante de sua própria
filosofia, cada um dos discursos existentes e vigentes em sua época, exige sofisticados
recursos linguísticos – Jeane Marie Gagnebin chama de sutis estratégias retóricas – cuja
finalidade é o convencimento de que sua narrativa corresponde ao relato fidedigno dos
acontecimentos.94 Não sem levar em consideração que, apesar da verdade enunciada pela
linguagem, existe a cilada em que cai a discussão e à qual é preciso dar resposta: “pode haver
erro sem que a investigação seja capaz de descobrir contradição alguma” (LF, 202).
O que percebemos assim é que a posição assumida por Platão “se vê entrincheirada entre
um discurso mentiroso, mas que parece verdade, e um discurso verdadeiro que não consegue
impor sua verdade”.95 Como podemos observar, não se trata de uma posição confortável, pelo
contrário: sem poder abrir mão das conquistas trazidas pela nova ciência que não é apenas
outra corrente (cf. LF, 188), reconhece igualmente sua insuficiência diante dos demais
discursos que buscam suplantar seu oponente. Marcelo Perine se refere ao Górgias como uma
“verdadeira declaração de guerra à retórica”, no qual Platão reagiu aos discursos que retomam
antigas acusações que faziam de Sócrates o inimigo do povo e traidor da democracia.96
Todo esse linguajar bélico (estratégia, trincheira, declaração de guerra) por parte destes
intérpretes desse momento áureo da filosofia não é absolutamente descabido e sem propósito.
Na guerra, como na política, o que importa para se sagrar vencedor é a tomada de posição no
sentido da conquista do território adversário. Já dissemos que a filosofia não está reduzida à
política, tampouco ela é a guerra. Contudo, não se pode ignorar que a linguagem da qual
inevitavelmente a filosofia faz uso contém a seiva da contra-dicção em que se situam todos os
discursos e, portanto, da competição entre eles.
Talvez ninguém tenha sido mais explícito nesse quesito do que Marx. Sua célebre Décima
primeira tese sobre Feuerbach é uma sonora conclamação a uma tomada de posição: é preciso
94
Cf. J.-M. Gagnebin, Lembrar, Escrever, Esquecer, op. cit. p. 194.
Cf. Idem., p. 188. Na Lógica da Filosofia lemos: « La Vérité est ainsi saisie, mais elle l’est seulement comme
le fond sur lequel tout disparaît, non comme celui sur lequel tout se montre: le discours est le mal. » (LP, 93) e
ainda, « Le langage ne suffit pas pour saisir la Vérité qui le transcende; mais il peut se montrer lui-même dans
sa vraie nature, qui est d’être faux. » (LP, 105).
96
Cf. M. Perine, Da Discussão ao Objeto, art. cit. p. 105.
59
95
não mais interpretar o mundo, mas transformá-lo!97 Em que pese todas as críticas quanto a esse
posicionamento categórico em matéria de filosofia – pois sempre se pode dizer que não há
transformação do mundo sem interpretação do mundo98 ou que a interpretação já é um processo
de transformação99 – Marx não tergiversa sobre o conflito que é a própria filosofia.
No entanto, antes dele podemos ainda encontrar em Kant circunstância parecida: o
criticismo transcendental é, como toda manualística largamente enfatiza, um posicionamento
acerca do conflito entre, ao menos, duas grandes correntes epistemológicas: racionalismo e
empirismo. Mas sua filosofia como um todo não se reduz a esse aspecto da primeira Crítica,
reduzida ao que se consolidou chamar revolução copernicana. Muito mais do que isso, como
aprendemos com Weil, essa filosofia é uma tomada de posição pelo fato, pelo sentido, ou pelo
fato que é o sentido. Em síntese, é uma tomada de posição que assume pensar aquilo que Weil
está convencido de ter encontrado na última Critica kantiana: o sentido como fato da razão.
Tarefa ainda por ser realizada por situar-se nos primórdios de uma segunda revolução
copernicana do pensamento kantiano (cf. PK, 8ss).
Essa é a razão pela qual optamos por não multiplicar os exemplos que pululam ao longo da
história da filosofia. Não se trata de construir uma galeria ilustrativa das correntes filosóficas
e suas perspectivas diferentes e divergentes, empreendimento que seria tanto enfadonho
quanto inútil aos propósitos desta pesquisa. Para nós, basta salientar essa dimensão do
filosofar e enfatizar, como Weil, que o mais fundamental quanto a isso é discutir, não esta ou
aquela posição, mas o fundamento de toda tomada de posição (cf. HE, 11).
Quanto à percepção desse caráter da filosofia, a abordagem de Paul Ricoeur não difere e
sua hermenêutica da “palavra que reflete com eficácia e que age mediante reflexão” (HV, 9) é
a própria atestação disso. Se porventura discorda da posição adotada por Marx – uma vez que
não há oposição radical entre o pensamento que observa e contempla e a práxis
transformadora –, é porque assume outra posição que vê na dialética do trabalho e da palavra
um campo de significações que não distingue dizer e fazer, significar e agir, pois
demasiadamente misturados, não coloca em esferas contrapostas theoria e práxis (cf. HV, 9).
Ademais, Ricoeur declara estar desde muito cedo fascinado pela arte de disputar questões (cf.
RF/AI, 48).
97
Cf. K. Marx. Sobre Feurerbach (1845) in A Ideologia Alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e
Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 537 e 539.
98
Toda reflexão de Ricoeur na dialética entre trabalho e palavra alude a isso cf. HV, 8, 201ss.
99
« l’homme qui a compris ce qu’il fait n’est plus l’homme qui l’a fait, et sa prise de conscience est em même
temps la saisie de son attitude et sa libération de celle-ci » (LP, 70).
60
Essa hermenêutica compreende, à semelhança da Lógica da Filosofia, que uma
diversidade sempre pode ser agrupada em torno de eixos diretores, de natureza metodológica
ou temática. Não se trata de uma tipologia, um arranjo a partir de ideais-tipos, mas isso não
significa que aqui se prescinda de uma orientação do âmbito do pensamento universal (cf. HV,
7). Para Ricoeur, repetimos, não há dissociação entre clarificação dos conceitos orientadores
da investigação filosófica e preocupação interventora de natureza crítica na crise civilizatória
em andamento (cf. HV, 8) – pensar e interferir na realidade efetiva constituem duas
modalidades de uma mesma abordagem.
Um pensamento militante, assim, para lembrar Antonio Candido,100 compreende que a
diversidade das ações históricas permite uma orientação quando submetidas ao crivo
conceitual. A hermenêutica filosófica ricoeuriana faz passar a multiplicidade pela unidade do
conceito. Contudo, longe de querer suprimir a multiplicidade, esse procedimento é sua
atestação: tal como se pode verificar na duplicidade do uno aparente do símbolo (cf. CI, 15),
depois chamada de excesso de significação (cf. TI, 102), quando também se quer colocar em
evidência que a unidade só pode ser conseguida na medida em que organiza, num mesmo
feixe, diversas orientações que a princípio se revelam divergentes. Em síntese: com um e
outro filósofo temos uma tomada de posição pelo todo, visam, ao mesmo tempo, pensar o
todo pelas partes e/ou as partes pelo todo.
100
F. Aguiar (org.) Antonio Candido: pensamento e militância. São Paulo: Humanitas e Fundação Perseu
Abramo, 1999. Ricoeur também se refere ao seu pensamento no trato das questões políticas de igual modo cf.
CC, 158 e RF/AI, 56.
61
2. Rupturas, retomada, releitura
Comprendre c’est prendre ensemble les contradictions dans l’unité d’un sens
Éric Weil
2.1. Nota sobre o esquematismo
Kant, em sua Crítica da Razão Pura, define esquematismo como a conduta intelectual
que, procedendo por esquemas como elementos de mediação, aplica as categorias aos
fenômenos.1 Será através desse intermediário que o puro entendimento (categoria) e os
dados do sensível eliminam toda heterogeneidade e operam a síntese entre o geral da
categoria e o temporal do conteúdo da experiência. Para Kant, os conceitos são diversos e
heterogêneos assim como o sensivelmente dado, no entanto os conceitos podem ser
agrupados possibilitando que se cumpra a agenda do entendimento. “O conceito do
entendimento contém a unidade sintética pura do diverso em geral”.2
Importa para Kant, uma vez que todos os conceitos necessitam de esquemas, que haja
uma representação mediadora entre intuição e conceito. 3 Esse terceiro termo estabelece o
“diálogo” entre a homogeneidade da categoria e a heterogeneidade dos fenômenos, por
possuir um lado intelectual e outro sensível permite a aplicação do primeiro aspecto ao
segundo.4 Isso porque a multiplicidade das impressões sensoriais necessita receber unidade
para que possam ser determinadas, ou seja, é preciso que um material indeterminado
estabeleça relação com sua forma determinada. Mas mesmo sendo um para o outro –
intuição e conceito, o material de uma forma e a forma de um material – não se pode
prescindir do terceiro momento dessa relação, pois é preciso ter mente que o esquematismo
é transcendental e, portanto, do âmbito das condições de possibilidade em que conceitos
“são formas possíveis para o material da intuição”. 5
A certos conceitos devem se ligar determinadas experiências, senão a realidade não
passaria de uma livre divagação da fantasia e nenhum conhecimento dela seria efetivo. O
esquema da categoria como uma determinação transcendental do tempo é um método de
temporalização que faz a mediação entre o conceito e a intuição. Nesse particular, é o tempo
1
Cf. CRP, A 140, B 179.
CRP, A 138, B 177
3
Cf. O. Höffe. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamn e Valério Rohden. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 111.
4
CRP, A 138, B 177
5
Cf. O. Höffe, op. cit. p. 112.
62
2
– “como condição formal do diverso em geral” 6 – que admite a superação da
heterogeneidade existente entre os fenômenos e os conceitos, estes por serem temporais
precisam se conceitualizar e aqueles necessitam ser temporalizados para se fenomenalizar. 7
O esquema é ainda uma espécie de monograma da imaginação pura no qual as imagens
têm a possibilidade de ser geradas. Dessa forma, os esquemas distinguem-se das imagens
por estas serem produtos empíricos da imaginação empírica e poderem servir de exemplos
ilustrativos dos conceitos. 8 Dito de outra maneira: o esquema do conceito é a representação
de um processo geral da imaginação para dar ao conceito a sua imagem. 9 Kant fornece
como exemplo o esquema do triângulo que “só pode existir no pensamento e significa uma
regra da síntese da imaginação com vista a figuras puras no espaço”. 10 Nesse sentido, o
esquema é a condição sob a qual o entendimento legislador faz juízos com os seus
conceitos, juízos que servirão de princípio a todo o conhecimento do diverso.
O múltiplo, o heterogêneo, o variado, e toda gama do dado da sensibilidade é sintetizado
pela imaginação para, pela representação gerada, compreender a própria diversidade sob um
determinado conhecimento. Para Kant, síntese e esquema não são a mesma coisa, isto é, não
cumprem a mesma função na imaginação pura: o esquema pressupõe a síntese. A
imaginação opera a síntese e a partir desta esquematiza.
2.2.
O significado da tradução de reprise
Tem se mostrado bastante atrativa a maneira como os estudiosos da filosofia de Éric
Weil, em especial os de língua portuguesa, se debruçam sobre a o significado da tradução
reprise por retomada. Perine, por exemplo, embora reconheça que a tradução do termo
reprise por reassunção, feita por Bernardo, seja correta, chama atenção para o fato de no
Brasil a tradução mais difundida ser retomada, por esta comportar, além da significação de
“voltar a assumir, tornar a tomar (algo concreto ou abstrato, que se perdeu), recuperar”,
também há o sentido de “dar continuidade a, continuar (o que foi interrompido)”. 11 Por sua
vez, Bernardo, conquanto admita a tradução de reprise por retomada seja pela adoção dos
6
CRP, A 138, B 177
Cf. J.-M. Vaysse. Vocabulário de Immanuel Kant. Tradução de Claudia Berlinder. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012, p. 29.
8
Idem. Cf. CRP, A 142, B 181
9
Cf. CRP, A 140, B 180
10
Idem.
11
Cf. M. Perine, Da Discussão ao Objeto, op. cit. p. 89, nota 1 em que chama atenção para o verbete retomada
no Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009.
63
7
weilianos brasileiros e pelo colóquio monotemático que debateu esse conceito 12, seja pelas
razões indicadas por Perine, não se dá por vencido e adverte que reassunção seria mais
adequado para caracterizar o processo no âmbito da hermenêutica filosófica, por não se
prestar facilmente a aproximações equívocas como ocorre, segundo pensa, a outros termos
congêneres.13
Não pretendemos, ao apontar para essa dimensão que ocupa lateralmente os
pesquisadores, edificar nenhuma posição imbatível quanto a esse quesito. Contudo, uma vez
que também refletimos em língua portuguesa, não é possível negligenciar essa noção chave
e, além do mais, central na presente tese, sobretudo pelo papel que desempenha no âmbito
da Lógica da Filosofia, na qualidade de conceito articulador das categorias-atitudes dos
discursos filosóficos, bem como, o que advogamos nesta tese, na orientação geral do
procedimento adotado pela hermenêutica ricoeuriana.
Assim, instigados pelo que fazem estes intérpretes, convém adotar estratégias similares.
Ensaiamos nossa própria reflexão sobre esse ponto, começando pelo que faz Kirscher, que
embora não trabalhe em língua portuguesa, nos oferece uma reflexão centrada no
esclarecimento do conceito a partir da própria palavra. Sua empreitada é no sentido de
verter o vocábulo, primeiramente, na língua de origem. 14
Devidamente atento à sua advertência quanto a situações usuais muito particulares em
que se deve utilizar a distinção entre termo e conceito, acreditamos que o esforço aqui tenta
se enquadrar naqueles casos das aplicações em que a permuta de significados entre as duas
funções da palavra concorre para a elucidação através do entendimento da multiplicidade de
sentidos. Kirscher possibilita a compreensão, na mútua articulação conceito-palavra, da
retomada como:
o ato de tomar novamente o que tinha sido deixado de lado, de apanhar o que
havia sido perdido, de refazer um escrito abandonado, de voltar a uma
atividade interrompida, de restaurar um trabalho, de corrigir um tecido
rasgado, de replicar no palco ou tomar a palavra novamente, de repetir uma
figura verbal, de revitalizar um pensamento esquecido, de impulsionar uma
12
Colóquio Internacional Éric Weil Le reprise, les reprises Lisboa, 2012 Universidade Nova de Lisboa e Centre
Éric Weil Université de Lille 3. Todos os trabalhos foram organizados e publicados num único volume dirigido
por L. M. Bernardo; P. Canivez; E. Costeski. A Retomada na Filosofia de Éric Weil, Cultura. Revista de
História e Teoria das Ideias (Lisboa), 31(2013).
13
Cf. L. M. Bernardo, Retomar: uma condição narratológica de textualidades comuns, Cultura, op. cit. p. 302,
nota 2.
14
Cf. G. Kirscher. Le début est dans la reprise, Cultura, op. cit. pp. 31-45.
64
nova energia, de recuperar uma propriedade dada, etc.15
Essa polissemia com a qual a palavra retomada em seu uso corrente joga é um traço
comum tanto em relação ao termo quanto ao conceito: no primeiro, uma extensa rede de
significados transmitidos pelas diferentes acepções usuais do termo; no segundo, o de uma
ação sobre o diverso das atitudes humanas que permite apreender na teia dos múltiplos
sentidos aquele que é o essencial de um determinado discurso.
Segundo Kirscher, do ponto de vista conceitual – conceito para e da Lógica da Filosofia
– a retomada (reprise) é, antes, um ato interpretativo, mas não podendo desconsiderar o
significado verbal fundamental nele presente, pois ato e resultado, simultaneamente,
designado pela forma infinitiva retomar (reprendre). “A ‘compreensão’, diz Kirscher,
corresponde ao ato de ‘compreender’ do qual ela resulta, a ‘retomada’ ao ato de ‘retomar’ e
ao discurso no qual resulta”, isto é, a retomada é, ao mesmo tempo, ato e resultado do ato
designado pelo verbo retomar.16 Em uma nota muitíssimo esclarecedora sobre um
desdobramento dessa ideia, segue dizendo que a palavra “repreensão” (repréhension) – do
latim reprehensio, ação de desdizer-se ou retratar-se; correção; repreensão, censura;
refutação17 – poderia ser o mesmo que compreensão, pois “retomar” (reprendre) é
“compreender” (comprendre). Mas o termo se revela, no entanto, inadequado visto que “tem
uma significação reduzida ao domínio do juízo de valor (reprovação)”, inadequação muito
fácil de ser constatada, dado que uma reprimenda ocorre sempre que se deixa de fazer algo
e/ou se faz algo de errado.
Se dirigirmos nosso olhar para o termo prendre, raiz mais próxima da forma básica
prend- da qual partem as demais formas, verificaremos que entre toda a riqueza polifônica
do vocábulo18, há sempre um conjunto de palavras correlatas para onde converge uma
significação comum. No Brasil, habitualmente traduzimos prendre por tomar, expressão
igualmente rica do ponto de vista semântico, convergente de significações múltiplas. Na
Lógica da Filosofia não se trata tanto de tomar (prendre), mas de retomar (reprendre)19 ou,
15
« l’acte de prendre à nouveau ce que l’on avait laissé de côté, de rettraper ce qui avait été perdu, de
retravailler un écrit délaissé, de revenir à une activité interrompue, de restaurer un ouvrage, de repiécer un
tissu déchiré, de répliquer sur scène ou de prendre à nouveau la parole, de répéter une figure verbale, de
revivifier une pensée oubliée, d’impulser une nouvelle énergie, de récuperer un bien donné, etc. »Idem, p. 33.
16
« La « compréhension » correspond à l’acte de « comprendre » dont elle résulte, la « reprise » à l’acte de
« reprendre » et au discours qui en résulte » Idem, p. 31.
17
Houaiss, op. cit.
18
O Houaiss, op. cit. atribui mais de 50 significações a esta expressão.
19
É interessante notar, no tocante a argumentação aqui apresentada, o fato de que das 20 ocorrências da forma
reprendre na Lógica da Filosofia, apenas em duas não foram traduzidas para retomar, mas para “recompor” e
“refazer”. No entanto, o sentido permanece o mesmo diante do (com)texto no qual a palavra fora utilizada.
65
mais precisamente, de retomada (reprise). No entanto, não se retoma senão aquilo que já se
tomou antes. Sob esse ângulo, retomar constitui uma ação sobre ação.
De qualquer maneira, o ponto para o qual Kirscher chama atenção permanece aberto à
reflexão. É impossível desatrelar por completo o conceito de sua significação verbal, por
outro lado, para funcionar como conceito uma palavra não pode se limitar à sua forma
verbal. Existe uma amplitude do conceito que o uso corrente não consegue acompanhar,
entretanto, o conceito é sempre utilizado em circunstâncias muito especiais, o conceito é
sempre daquela filosofia, daquele filósofo, etc.
A dificuldade, no caso específico da retomada, é que a multiplicidade significados do
termo tende para a recolha comum de sentido no conceito, este por sua vez, que atua na
diversidade das significações, exige a captura do sentido subliminar, anunciado tão somente
marginalmente, para depois categorizá-lo.
No fundo, para a Lógica da Filosofia, a questão é a de como interpretar uma maneira de
viver, no que ela é capaz de produzir, por suas próprias atitudes, de novidade. Saber o que se
manifesta de radicalmente novo nessa atitude, ainda que ela não se dê conta disso. Até esse
ponto, não se trata ainda de elevação de uma atitude à uma categoria. Pois o sentido daquilo
que é enunciado pela atitude é captado apenas parcialmente e, assim, não permite que o
sentido manifesto seja compreendido em toda sua extensão como novo, muito embora esse
novo esteja lá, misturado com a antiga forma que acaba de ser retomada. Sem reconhecer a
nova figura do sentido, uma vez que encoberta pelo véu do “já conhecido” e “bem
conhecido”, a retomada ignora o que efetivamente de novo nasceu nesse movimento.
Contudo, em que pese seu desconhecimento da nova figura do sentido no momento da
apreensão, ela deverá se confrontar com essa nova figura de sentido. 20
Pois, algo se comportou diferentemente quando da visada retrospectiva. O que antes era
tomado por permanente passa a nebuloso e eis que nasce o trabalho da interpretação. A
retomada apreende a atitude nova com a ajuda de uma categoria mais antiga que ela retoma
no sentido corrente do termo. No entanto, do ponto de vista da Lógica da Filosofia, “não é a
antiga categoria que é ‘retomada’: é a nova atitude que é ‘retomada sob’ ou ‘retomada pela’
categoria anterior”. 21
“Retomar” uma “forma de vida”, não é apenas retornar a uma forma de
vida antiga, como parece indicar a palavra (“re-tomar”, “tomar
20
21
Cf. G. Kirscher, Le début est dans la reprise, art. cit. p. 31-32.
Idem, p. 31.
66
novamente”), mas interpretar o que esta forma de vida exprime e afirma
dela mesma e de seu mundo, é tentar dar forma de discurso coerente
consciente de si à linguagem que ela fala, é então, tentar compreender a
atitude que se apresenta e que suscita a interpretação na medida em que ela
surpreende, turva, choca, inquieta. A interpretação tenta esclarecer o que
aparece e encontra o sentido essencial dessa atitude. Ela tende para a
explicitação e a formulação desse sentido que ela antecipa totalmente
ligado a uma forma estabelecida, fixada, de compreender. Ela visa a
categoria filosófica na qual a atitude compreenderia seu mundo e se
compreenderia a si mesma. A plena compreensão seria alcançada se o
discurso filosófico conseguisse atingir, em sua unidade e em sua unicidade,
esse sentido essencial da atitude, presente em todas as outras: a categoria
de atitude, categoria única e não misto de categorias, donde categoria
irredutível a todas as outras, determinante a atitude correspondente como
“pura”.22
É na qualidade de um compreender que a retomada eleva uma linguagem de uma
determinada forma de vida a um discurso elaborado e coerente. Porém, essa compreensão é
embaralhada por atingir a verdade dessa linguagem apenas parcialmente. Assim, o que é
atingido pela compreensão também se esquiva dela, isto é, o radicalmente novo essencial e
fundamental da atitude se manifesta e se esconde.
Feitas essas considerações acerca da correspondência, na própria palavra, entre conceito
e termo, passemos a uma pequena observação de Evanildo Costeski sobre a tradução do
termo reprise para a língua portuguesa. Ele argumenta que, não obstante a existência de um
homônimo em nossa língua, sua opção é pela tradução dada por Marcelo Perine, uma vez
que “a reprise weiliana não indica uma simples reprise ou repetição automática de um
conteúdo ou de uma linguagem anterior, mas justamente, uma retomada fundamentada na
própria liberdade do homem da atitude”. 23
Costeski compreende bem a existência de uma primeira camada da compreensão, isto é,
o seu aspecto descritivo da reprise, muito embora não seja este seu único papel, não
podemos ignorá-lo. Ricoeur que, por vezes, faz uso do processo de descrição
22
« Reprendre » une « forme de vie », ce n’est donc pas revenir à une forme de vie ancienne, comme semble
l’indiquer le mot (« re-prendre », « prendre à nouveau »), mais interpréter ce que cette forme de vie exprime et
affirme d’elle-même et de son monde, c’est tenter de donner forme de discours cohérent et conscient de soi au
langage qu’elle parle, c’est donc tenter de comprendre l’attitude qui se présente et qui suscite l’interprétation dans
la mesure où elle étonne, trouble, heurte, inquiète. L’interprétation tente d’éclairer ce qui apparaît et de trouver le
sens essentiel de cette attitude. Elle tend vers l’explicitation et la formulation de ce sens qu’elle anticipe tout en
demeurant attachée à une manière établie, fixée, de comprendre. Elle vise la catégorie philosophique dans laquelle
l’attitude comprendrait son monde et se comprendrait elle-même. La pleine compréhension serait atteinte si le discours philosophique parvenait à saisir, en son unité et en son unicité, ce sens essentiel de l’attitude, présent dans
toutes ses expressions et dans toutes ses actions, qui distingue cette forme-là de la vie de toutes les autres: la
catégorie de l’attitude, catégorie unique et non mixte de catégories, donc catégorie irréductible à toutes les autres,
déterminant l’attitude correspondante comme « pure » Idem, p. 32.
23
E. Costeski. Atitude, Violência e Estado Mundial Democrático: sobre a filosofia de Éric Weil. São Leopoldo:
Unisinos; Fortaleza: UFC, 2009, p. 89, nota 44.
67
fenomenológica que a reprise comporta, tal qual nossa argumentação acima a respeito do
vocábulo apontou. Nesse sentido e a esse respeito as contribuições dos tradutores
portugueses de A Simbólica do Mal são precisas, dizem:
A expressão sui generis que Ricoeur utiliza é «répétition en imagination et
en sympathie», a qual é utilizada para tentar conciliar o método eidético da
fenomenologia com a crença da consciência religiosa... o método
filosófico, de alguma forma, tenha de tentar colocar-se no lugar da
consciência religiosa para poder reconstruir a experiência que pretende
descrever... “répétition” será igualmente utilizado... para designar a
reiteração de determinados atos em contexto ritual.24
O que escapa ou ignoram geralmente os tradutores/comentadores de Ricoeur é o fato de
que ele faz uso da reprise numa direção muito próxima à de Eric Weil. Devidamente
considerado, esse cruzamento permite estabelecer as linhas de convergências entre estes
autores trazidos ao diálogo. Como foi possível perceber acima, não se trata somente de
descrição, mas da capacidade de ouvir atentamente o discurso que se manifesta a fim de
recriar o mesmo ambiente do qual o discurso primeiro partiu. O exemplo vem do próprio
Ricoeur ao explicitar não somente as intenções do método, mas também a predisposição que
se deve ter para ser capaz de se colocar no lugar do outro:
o mythos já é logos, mas há ainda que o retomar no discurso filosófico.
Esta propedêutica mantém-se ao nível de uma fenomenologia puramente
descritiva que deixa falar a alma crente cujas motivações e intenções o
filósofo adota provisoriamente; o filósofo não as “sente” na sua primeira
inocência [naïveté première], “ressente-as” [Il les “ressent”] num modo
neutralizado, no modo do “como se” (SM, 35).
Os tradutores de A Simbólica do Mal têm uma percepção bastante ilustrativa daquilo que
queremos apontar, eles nos alertam para o fato de Ricoeur jogar com os termos “reprise” e
“repetição” ao utilizar a palavra “ressentir” (ressent) – uma referência a Nietzsche, como
observam – cujo prefixo comum a ambas palavras indicaria tanto repetição quanto retomada
do sentimento num plano diferente, no caso, num plano axiologicamente neutro da pura
descrição.25
A esse propósito, nos pareceria igualmente produtiva a confrontação da retomada com a
repetição em Kierkegaard e o eterno retorno nietzschiano, como faz Costeski,26 assim como
com a mimesis de Aristóteles. Ora, nada parece mais radicalmente pobre em sua
significação ordinária que o que se verifica sob o nome de imitação (mimesis). Se apenas
24
Nota dos tradutores portugueses de SM, nota 2, p. 19-20 [Ed. port.].
Cf. Idem, nota 16, p. 35 [Ed. port.].
26
E. Costeski, op. cit. p. 93ss.
25
68
permitíssemos que a palavra imitação traduzisse mimesis sem considerar todas as
determinações que esta palavra comporta e transfere à esta outra que serve como
equivalente, interditaríamos a reflexão filosófica pela impossibilidade da recuperação de
sentido. Compreendemos que mimesis não é apenas o ato e o efeito de imitar algo,
tampouco a mera reprodução (mesmo que seja a tentativa mais fiel) de alguma coisa. Ora,
as palavras em filosofia ganham em espessura ao serem adotadas como conceitos. A mais
ordinária das palavras possui, em filosofia, sedimentos que a constituem e ampliam seu
significado. O significado tido por original não é absolutamente abandonado, mas,
tampouco, a filosofia se contenta com ele.
A palavra mimesis já possuía um significado antes de ser retomada por Aristóteles. O
mais conhecido foi aquele adotado por Platão em que a mimesis aplicada à arte não era mais
do que imitação da imitação. Sabemos que, do ponto de vista da ontologia platônica, a arte,
por ser cópia das coisas tangíveis, que por sua vez são expressões da Ideia, assinalaria o
duplo empobrecimento da realidade.
Entretanto, é com Aristóteles que essa expressão ganha riqueza perene ao passar pela
reflexão poética ressurgindo como uma espécie de criação ou recriação do real segundo as
leis da possibilidade e da verossimilhança. 27 De apenas reprodução, ainda que seja a mais
exata possível de algo (imagem, cópia, plágio, representação, repetição), a mimesis passa a
significar a atividade segundo a qual novas dimensões, antes inimagináveis, são acrescidas
às coisas.
Na tragédia grega, lugar de grande convergência da reflexão de Aristóteles sobre a
poética, o novelo da trama é desfiado não apenas em observância aos versos poéticos, mas,
sobretudo, quanto às ações, uma vez que é sobre estas que o verdadeiro ato criador da
mimesis implica.28 Ao representar, o ator (quem atua, age), desapropria-se de si mesmo para
comunicar uma ação que só a princípio não é sua, mas que dela participa (méthexis)
possibilitando-lhe uma amplitude de caracteres originariamente não atribuídos ou
desvelando-os em si mesmo porque outrora ignorados. Dessa forma a encenação teatral
desenvolve, ela própria, ações sobre ações. Não se trata simplesmente de uma representação
imagética, muito embora isto esteja contemplado durante a encenação, mas o movimento do
desenrolar de uma intriga há muito conhecida sem, no entanto, nunca ter sido visualizada. A
27
Cf. G. Reale. História da Filosofia Antiga v. 2. Tradução de Henrique C. de Lima Vaz e Marcelo Perine. São
Paulo: Loyola, 1996, p. 485ss.
28
Idem, p. 486.
69
tragédia, por ser uma composição do mito, é mimesis da ação. Com Aristóteles, a mimesis
deixa de ser tão somente a condição passiva de mera cópia e assume a condição também de
uma méthexis.
É nesse mesmo sentido que Ricoeur associa seu conceito de refiguração à mimesis.
Dialeticamente falando, só num primeiro nível mimesis é imitação, pois sobre esse nível
desdobram-se dois outros: a mimesis como reconstrução e, por fim, como capacidade
transformadora, a refiguração (cf. CC, 118-119). Para ele, pela sua capacidade de, a partir
da obra, reestruturar o mundo do leitor desarrumando, contestando e remodelando as
expectativas do leitor, esse conceito cumpre uma função muito similar à da mimesis, pois
importa não reproduzir o real, mas reestruturar o mundo do leitor em confronto com o
mundo da obra. Assim, o leitor é arrebatado, a partir do interior, em sua experiência
cotidiana (cf. CC, 236).
Para Ricoeur, a experiência da tradução exige que o sentido das palavras seja, cada vez
mais, adivinhado sem, no entanto, que se possa fundá-lo definitivamente numa estabilidade
adquirida. “Traduzir é inventar uma constelação idêntica em que cada palavra recebe o
apoio de todas as outras e, gradualmente, tira benefício da familiaridade com a língua
inteira” (MV, 126).
Eis porque não veríamos nenhuma dificuldade insuperável no uso do termo reprise, em
português, para traduzir o conceito reprise em francês. Especialmente porque sendo a
tradução uma troca, no caso da reprise, a primeira troca que se impõe é a que ocorre entre
conceito e termo. Se se mantêm as mesmas extensões características do termo weiliano e,
portanto, da inovação que imprime na palavra; se se observa que na espessura da palavra há
sedimentos outros, oriundos de significações de uma longa tradição, e que é na permuta que
se resolvem, então, não há por que temer o uso do homônimo desta palavra.
Tal como mimesis não é só imitação, reprise não é somente repetição. Ambas expressões
guardam o caráter de uma continuidade sem, no entanto, se esgotar naquilo que continuam
ou repetem. Dito de outra maneira; permitem ser a mesma coisa de maneira diferente, e
acentuando essa diferença, acabam por reconhecer no outro do qual se originam e partem
um aspecto de si mesmo. Aliás, quando Kirscher nomeia seu artigo com a afirmação da
Lógica da Filosofia de que “o começo está na retomada” (LF, 608) não (re)afirma outra
coisa senão, rigorosamente falando, que não há originalidade em filosofia, segundos os
70
fortes termos da Filosofia Moral.29 A filosofia, diz Weil, “é sempre a mesma, não porque ela
persiste, mas porque ela sempre começa. Assim como a poesia é a eterna juventude da
criação, ela é a eterna renovação do homem que se tornou outro para si mesmo”. (LF, 608).
2.3.
Aplicação da retomada
2. 3. 1. Filosofia, história e história da filosofia
Tentemos compreender agora, a partir do que ficou dito, o uso desse recurso por meio de
dois dos seus mais entusiasmados seguidores: Éric Weil, para quem a retomada, conceito
operatório de sua Lógica da Filosofia, é o próprio esquema: “a retomada, para empregar um
conceito kantiano, é o esquema que torna a categoria aplicável à realidade e que permite
assim realizar concretamente a unidade da filosofia e da história” (LF, 123); e Paul Ricoeur,
que adota a mesma conduta pelo enfrentamento minucioso da multiplicidade, da diversidade
e singularidade em que opera sua hermenêutica, seja pela simbolização como anteriormente
na sua reflexão em A Simbólica do Mal seja usando a esquematização ou mesmo admitindo
explicitamente o emprego da retomada.
Eric Weil apresenta a retomada na Lógica da Filosofia como um conceito essencial à
verdade, que permite a aplicação da Lógica à realidade histórica ao buscar compreender os
discursos concretamente sustentados pelos homens do passado e do presente. Por ter
escolhido compreender e por compreender somente por meio do que se desenvolveu na
coerência (categoria), a filosofia articula categoria pura e atitude irredutível, ou seja, prende
junto a dinamicidade das livres atitudes humanas com o que permite pensar essa mesma
liberdade no discurso filosófico (cf. LF, 118ss)
A relação liberdade-discurso é o ponto da questão de Costeski sobre a retomada, para a
qual sugere três funções: uma é a que transforma atitude em categoria; a outra é a que cria a
linguagem; e por fim, a que é aplicada à realidade à semelhança do Schema kantiano. O
intérprete sugere ainda que as duas primeiras funções se ligam à dýnamis da
liberdade/espontaneidade das atitudes, enquanto a terceira cumpriria a função mais lógica
29
« La philosophie, em particulier, si elle tient à être vrai, n’est qu’une collection de bana lités et ne peut être
que cela : si elle ne dit pas ce que tout l’homme sait (mais ne sait la plupart du temps, il est vrai, que de manière
inconsciente, ce qui fait que la vérité apparaît dans les actes, et se cache ou est niée dans les paroles), si elle ne
dit pas ce qui permet à tout homme de reconnaître qu’il a’agit de lui-même et de ce qu’il fait, sent, voit, pense, la
philosophie sera originale, c’est-à-dire fausse, et sa fausseté se montrera, soit dans son incohérence, soit dans
son incapacité de retrouver ou de conserver la possibilité de comprendre positivement ce qui, selon les discours
et les actions de tout le monde, importe » (PM § 15 e).
71
propriamente, pois permite “a compreensão da dinamicidade da atitude dentro da
sistematicidade da Lógica da Filosofia”.30
Sem querer estabelecer polêmica desnecessária, somos levados a fazer um pequeno
reparo nessa interpretação, uma vez que isso se revela necessário e fecundo para a
finalidade de nossa exposição. Do ponto de vista de nossa interpretação, as atitudes só
podem se transformar em categoria exatamente na medida em que lhes é conferida, desde
sempre, sua função lógica. Tendo a retomada assumido a mesma função que o esquema, ela
só pode querer enfeixar o conjunto das atitudes históricas do homem empírico para poder
compreender sua dinamicidade. Se, por um lado, a primeira função, como fala Costeski, está
vinculada à liberdade das atitudes humana, por outro, essa mesma liberdade é já liberdade
orientada e, portanto, articuladora e não entregue à dispersão. É ponto pacífico que a
retomada retenha em si os dois aspectos apontados por Costeski, mas por ser conceito
operatório da Lógica e por ser o lógico da filosofia o operador do conceito, só há retomada
se conjugadas, simultaneamente, liberdade e discurso, violência e razão.
É por meio dessa articulação que a filosofia vai se tornando cada vez mais consciente da
insensatez daquilo que ela pretende compreender e, portanto, do que não se presta a fácil
unidade. Trata-se, enfim, para a filosofia, da promoção do seu próprio encontro com a
história. Por um lado, completamente estilhaçada, por ser o ambiente inequívoco da
violência, a história só pode receber algum sentido na coerência do discurso. Por outro lado,
a filosofia, inclinada para a compreensão do discurso e pelo discurso, sabe que o conteúdo
da história é incoerente, é pura contradição. É nesse domínio da abordagem da relação entre
filosofia e história que a partilha de procedimento, entre Weil e Ricoeur, pode ser
amplamente percebida.
Por considerar que a filosofia “é a reflexão da realidade no homem real” (PR I, 13), que
este escolheu livremente a razão e para ela está voltado, Weil postula a identidade da
filosofia e da história (LF, 103ss). Para a filosofia esse homem é homem do discurso
razoável – nem totalmente razão, nem totalmente entregue à violência – que se decide pelo
discurso coerente em vista de sua universalidade. Mas essa tomada de consciência pelo
homem só é possível “depois de haver percorrido o discurso em sua totalidade” (LF, 103).
Isso significa que a filosofia mantém um olhar retrospectivo sobre si mesma para, em
seguida, constituir-se como sistemática, quer dizer, como história filosófica da filosofia: “a
30
Cf. E. Costeski, op. cit. p. 89.
72
filosofia só se compreende em sua história e nada é senão essa tomada de consciência” (LF,
104).
Ora, a história é sempre a história feita por homens, narrada por homens, lida por homens
e, no caso da história da filosofia, esse homem é o filósofo que, como diz Ricoeur, tem
motivos muito particulares para empreender a leitura que finaliza a história na perspectiva
da coincidência entre afloramento da consciência e sua reassunção. Por outro lado, ainda
segundo Ricoeur, esse mesmo trabalho de leitura empregado pelo filósofo, quer dizer de
retomada, é aquilo que reabre a história e lhe dá prosseguimento em duas direções: na
perspectiva de uma “lógica da filosofia”, cuja pesquisa é orientada pela exaltação de um
sentido coerente a ser decifrado na história; e na direção de um diálogo sempre mais
singular e exclusivo com os filósofos e as filosofias individualizadas, cuja meta –
aparentemente menos ambiciosa, mas não por isso menos importante – é a articulação
intersubjetiva da história (cf. HV, 35ss).
Para Ricoeur, a primeira direção é a maneira como Weil, entre outros31, desenvolve sua
interpretação da razão e da história. Compreende que o aflorar da consciência, nesse
pensador, tem claro para si que o que se procura, em si mesmo, coincide com a história da
consciência. O itinerário que leva do eu ao Eu é considerado ao preço de um longo desvio
que a reflexão realiza pela história e nela redescobre seu próprio sentido. Amplitude e
sistematicidade são o que se busca operar nesse tipo de leitura da história. O percurso
escolhido é o que ocorre pela via longa do desvio pela história da consciência.
Compreendamos a modificação. Não é apenas a consciência que dota a história de
sentido ao desenvolver uma história da razão. Ao fazê-lo a consciência permite-se
compreender que é a própria razão a ser historicizada. O desenvolvimento da história da
razão, que leva qualificação à história, é o ponto de sutura entre historicidade da razão e
significação histórica (cf. HV, 37-38). A consciência recobra seu sentido nesse duplo
movimento de maneira reflexiva. Efetivamente, estamos aqui às voltas com uma
modalidade muito particular de aplicação ao fenômeno histórico, pela filosofia, da
fenomenalização do conceito temporalizado e do tempo conceitualizado, extraídos da
filosofia kantiana como acima descrito. Não é absolutamente estranha a apropriação desse
método, uma vez que, segundo Ricoeur, é o filósofo que compõe a história pela aplicação da
retomada, por ele entendida como operação de segundo grau e ato exclusivo de
31
Faz referência, além do próprio Weil, a Comte, Hegel, Brunschvicg e Husserl (cf. HV, 36).
73
responsabilidade filosófica (cf. HV, 39).
Na linguagem de Eric Weil, a história dos historiadores faz surgirem
“atitudes” humanas; o filósofo, pelo seu ato específico de retomada, eleva
as “atitudes” ao nível de “categorias” num “discurso coerente”; mas então
essa história do espírito já é uma “lógica da filosofia” e não mais uma
história de historiador (HV, 39).
Desse modo, em que pese as objeções que o historiador possa vir a fazer, o filósofo segue
compondo a história que não é história de historiador, tampouco é realidade absoluta
(história substancializada), mas possibilidade de leitura em função do sentido. É por esse
ato da retomada, segundo Ricoeur, que a descontinuidade entre o evento e o advento
permanece como experiência da manifestação do sentido (cf. HV, 40). Ou como diz Weil, os
acontecimentos não trazem o sentido da história, estes importam ou não quando vistos do
único ponto que constitui a história como unidade: o sentido formal. Na medida em que a
unidade precede logicamente os acontecimentos, ela não é abstraída deles (cf. FM § 13 c).
Não há necessitarismo que comandaria a história de uma vez por todas. De nenhum
acontecimento (ou mesmo do conjunto deles) se extrai absolutamente a marcha totalizadora
do mundo. O que se tem é apenas um pressuposto assentado nas atitudes humanas que o
filósofo retoma na linha do sentido, sem que isso signifique virar as costas para os perigos
que rondam toda história da consciência. Em síntese, o que o filósofo busca é reencontrar
em sua história, história da filosofia, os objetivos próprios da razão. E ele os re-encontra
“como única consciência humana cujo sentido está a caminhar como uma série contínua de
momentos lógicos” (HV, 42). Contudo, esses objetivos são os de quem escolheu livremente
a razão e sabe plenamente que ela não é a única possibilidade.
A segunda direção indicada – por onde se movimenta a própria prática filosófica
ricoeuriana –, tende a ser algo muito diferente por se concentrar, sobretudo, nas dobraduras
dos sistemas. Aqui a condução da leitura filosófica da história se faz privilegiando a
intimidade e a singularidade: seja das filosofias particulares seja dos problemas específicos
tratados por estas filosofias (cf. HV, 40ss). Importa o voltar-se para essas modalidades, nas
quais campeiam a multiplicidade, para buscar nelas o fio condutor que atravessa toda uma
época, não para colocar as filosofias e/ou seus problemas no movimento da história, mas
para cada vez mais vincular essas dimensões às pessoas e às obras de seu próprio tempo.
Assim, mergulhada no contexto no qual determinada filosofia foi produzida e frequentando
exaustivamente um determinado autor (ou um número restrito deles), essa leitura, tão
chocante para o historiador comum quanto a anterior, busca compreender as relações
74
estreitas dessa espécie de comunicação mais próxima que os filósofos estabelecem na
comunidade em que estão inseridos. A condução da reflexão ocorre pela via curta do
próximo em próximo.
a história da filosofia compreendida como memória das grandes filosofias
singulares: pois nesse caminho, que parte de minha situação em direção à
verdade, não há senão uma via de superação, a comunicação. Não tenho
senão um meio de sair de mim mesmo: é expatriar-me em outrem. A
comunicação é uma estrutura do conhecimento verdadeiro. Graças a ela, a
história da filosofia não se reduz a um desfile irracional de monografias
dispersas, pois ela manifesta o “sentido” para mim desse caos histórico.
Essa história não é mais o “museu imaginário” das obras filosóficas, mas o
caminho do filósofo de si para si mesmo. A história da filosofia é obra de
filosofia como desvio da clarificação do eu (HV, 55).
Compreendida nesse envolvimento intersubjetivo, no qual é pela comunicação total das
consciências que se verifica o próprio conhecimento a partir de vestígios e documentos, a
história só é captada indiretamente como diálogo, dado que não há um outro que responda
em reciprocidade imediata. Do mesmo modo, a vigência dessa leitura não privilegia apenas
os grandes gênios e as generalidades decorrentes da investida global, mas, igualmente, faz
uma opção pela obra na medida em que esta é singularidade irredutível a tipologias.32 Vista
sob esse prisma, e tendo que dividir centro de gravidade entre o gênio criador e a obra
singular, a história surge como uma série descontínua de múltiplas emergências em que o
aflorar da consciência passa pelo tratamento específico de cada uma delas fim de ter o seu
sentido próprio manifesto.
Para Ricoeur, ambas as possibilidades de leitura estão assentadas sobre a retomada. A
história pode ser lida singularmente como história da consciência, quer dizer, como busca
sistemática cujo intuito é encontrar um sentido humano que unifique e torne razoável a
história humana que é única (cf. HV, 277 e L1, 147). Mas há também a leitura que implica
os homens no plural, nela as pessoas são tomadas como centros radicalmente múltiplos que
necessitam ser tratados em sua existência singular – história das consciências. No primeiro
caso, a consideração da história no singular implica a verificação da pluralidade, uma vez
que se trata de unificação de sentido que perpassa a história humana. No segundo caso,
considerada em sua pluralidade, a história tende ao exame singular por querer reorganizar o
cosmo a partir de obras particulares. Os dois caminhos, para Ricoeur, são legítimos e
atestam a continuidade e a descontinuidade da história, pois, ao mesmo tempo em que se
32
Para Ricoeur, “quanto mais se aprofunda uma filosofia, mais se aceita o nos deixarmos expatriar por ela (mais
se compreende, em consequência, a irredutibilidade dessa filosofia a tipos)” (HV, 60).
75
pode verificar nela um único sentido em marcha é possível tomá-la como uma disparatada
constelação de pessoas (cf. HV, 42).
Para Ricoeur, a leitura debruçada sobre os eventos permite que se compreenda que o
problema do sentido não é exaurido pela investida que segue a linha do encadeamento.
Eventos são os nós da história que, como tais, são centros organizadores do pensamento e,
nesse sentido, plenos de significação. Concentrar atenção em tais dobras do sistema é
permitir-se multiplicar, em variadas direções, o problema que ali se localiza, sem, contudo,
comprometer a escolha inicial que conduziu o pensamento até aquele ponto.
Pode pois a história ser lida como desenvolvimento extensivo do sentido e
como irradiação de sentido a partir de uma multiplicidade de centros
organizadores, sem que nenhum homem mergulhado na história possa ordenar
o sentido total desses sentidos irradiados. Toda “narrativa” participa de dois
aspectos do sentido: como unidade de composição, ela aposta na ordem total
em que se unificam os eventos; como narração dramatizada, ela corre de nó
em nó, de rugosidade em rugosidade. (HV, 43).33
Notadamente, nenhum privilégio é advogado para qualquer uma dessas leituras. Não se
pretende estabelecer um julgamento de mérito que poria em relação hierárquica estas
leituras. Na prática, Ricoeur defende que a história se presta a essa dupla leitura: por um
lado, aquela do advento da consciência histórica, desvelador de sentido que leva a um
otimismo da ideia; por outro, a da produção de diversos centros de consciências condutores
à ambiguidade trágica da ação do homem, marcada sempre pelo recomeço e pela
possibilidade de desilusão. Ambas conduzem a reflexão filosófica à compreensão de que o
objeto da história é o próprio sujeito humano (cf. HV, 43ss).
Novamente percebemos que, para Ricoeur, é preciso que haja a coincidência entre as
duas vias – longa e curta – no tratamento da compreensão histórica. Todavia, tanto o ponto
de partida quanto o de chegada atestam esse dilaceramento em que se encontra o homem.
Posição absolutamente semelhante defendida por Weil, pois a identidade entre filosofia e
história situa-se exatamente no homem que, sendo liberdade e linguagem, decide-se por
realizar um discurso voltado para o universal, mas que não possui garantia alguma de que
obterá sucesso, simplesmente porque sabe não ser razão, mas razoável, isto é, ele tem
apenas a possibilidade de realizar sua razão pela liberdade e sua liberdade pela razão.
“História humana e filosofia são, assim, apenas dois aspectos que o homem apresenta a si
33
Noutra passagem a mesma ideia: “Toda história pode ser compreendida como exaltação de um sentido e
emergência de singularidades. Essas singularidades são ou acontecimentos ou obras, ou pessoas. A história
hesita entre um tipo estrutural e um tipo baseado em acontecimentos. Mas é unicamente na clarificação do
discurso filosófico que essas duas possibilidades se separam e se manifestam.” (HV, 77).
76
mesmo de si mesmo” (LF, 105).
Para Éric Weil, atitudes são determinadas vivências que o homem mantém no mundo –
pouco importando se consciente ou não delas. Nesse mundo, o homem faz, isto é, realiza
sua vida em benefício de si mesmo inserido numa comunidade. Nesse mundo do existir, não
importa nenhum discurso, nem mesmo outra atitude além da que ele mesmo pratica. E se a
sua inserção na comunidade passa a considerar outra atitude, será tão somente a título de
negação. As atitudes se bastam a si mesmas, e o homem concreto (ou um conjunto deles),
que vive numa determinada atitude, pode nela permanecer indiferente a todas as outras e ao
que delas vier a ser formulado discursivamente (cf. LF, 106). Esse é, podemos dizer, o
aspecto sincrônico nuançado pela Lógica da Filosofia, no qual as atitudes são captadas num
eixo de coexistência em que a simultaneidade é sua marca indelével. Porém, discursos são
formulados em torno do que constitui o essencial de uma determinada atitude, a despeito de
sua recusa, e são estes discursos que importam para a filosofia.
As categorias, por sua vez, são a tomada de consciência, pelo homem, do que ele faz. As
categorias são os discursos que se forjam a partir das atitudes, mas somente para quem (o
filósofo) fez a opção pelo discurso e quer compreender o discurso que se produz sobre a
materialidade da história, sobre as ações dos homens. Por se compreender numa tomada de
consciência de si mesma, as categorias conduzem a uma compreensão da história pelo
sentido. Não exatamente uma sucessão temporal, histórica, mas lógica: “todas juntas, elas
revelam o sentido da história a quem escolheu o sentido, porque elas se compreendem...
como obra da história”. (LF, 109).
Ora, por ser a Lógica da Filosofia alimentada pela história e por organizar
sistematicamente os discursos filosóficos no âmbito da história, ela se constitui como uma
história da filosofia, ou antes, uma história filosófica da filosofia. Toda a exposição
ordenada da Lógica da Filosofia, que reflete as diversas figuras do discurso filosófico
distribuídas ao longo das sucessivas categorias-atitudes formuladas pela filosofia para si
mesma, visa ao encadeamento – não necessário, mas possível e, portanto, livre – em que a
filosofia e a história, ao se co-responderem, igualmente, se compreendem. A filosofia
olhando para seu longo caminho retoma a história, quer dizer, retoma sua história no tecido
da própria história dos homens.
Dessa forma, a retomada, em articulação com a filosofia e com o sentido, configura-se
77
como “um posicionamento diante da realidade, da história, de si e dos outros”.34 Um
posicionamento que leva em consideração, notadamente, o todo da realidade histórica que
também é o todo da filosofia. Pois, voltada para a história, a filosofia reconhece no seu
próprio percurso o que desde sempre a conduziu, a saber: o que faz sentido. Para Weil, “a
filosofia se define como ciência do sentido” (LF, 593) e, portanto, pode igualmente ser dito
que o que é retomado ao longo de sua trajetória é justamente o próprio sentido: é o sentido
aquilo que perpassa em cada atitude-categoria.
Na Lógica da Filosofia, o sentido é pensado como unidade estrutural (formal), daí não
ser possível confundir seu conteúdo com algo único e absoluto. Na filosofia weiliana a
razão é sabedora, enquanto afirma a estrutura sensata, de que nenhum discurso é suficiente
em si mesmo a ponto de esgotar o sentido concreto. Nela a razão é sempre aberta ao
conjunto das determinações do real. 35
O sentido como a “categoria filosófica da filosofia” é o norte do caminhar na história e
também o critério sob o qual toda decisão é tomada. Engana-se quem acredita que aqui não
se trata de decisão. Sendo a história o campo das múltiplas e diversas decisões, a filosofia,
por se tratar de compreensão, não pode querer compreender esta ou aquela decisão, mas o
seu conjunto: a filosofia decide e se decide em razão do sentido de todas as decisões. “A
tomada de consciência da história humana” (PR I, 35) conduz a filosofia a uma tomada de
posição e, portanto, à ação.
É necessariamente à história que eu me dirijo. Pois é apenas pela totalidade
da existência humana que o sentido pode ser atingido no devenir total. Eu
busco a totalidade da unidade e somente uma atitude fundamental, mantida
através da totalidade temporal, pode me fornecer o sentido. Não se trata
mais primeiro do que eu decido, mas a partir do que e em vista do que eu
me decido. A situação é única, a atitude pode ser retomada. O que me faz
tomar posição são as atitudes humanas concretas que eu reencontro –
mesmo que seja apenas para me opor a todas elas: toda compreensão, toda
justificação se elaboram diante da história (EC I, 221). 36
Para Weil, uma vez efetuada a tomada de consciência, o discurso age: “o homem que
compreendeu o que faz já não é mais o homem que fez” (LF, 106) ou, como diz o intérprete:
34
D. Lins Jr. Filosofia, Filosofia, retomada e sentido in Cultura, op. cit. p. 110.
J.- M. Buée, Eric Weil, penseur de l’unité plurielle, art. cit. p. 394.
36
« C’est nécessairement à l’histoire que je m’adresse. Car la totalité de l’existence humaine qui en est le sens
ne peut être saisie que dans le devenir total. Je cherche la totalité de l’unité, et seule une attitude fondamentale
gardée à travers la totalité temporelle peut me fournir le sens. Il ne s’agit plus d’abord de ce que je décide, mais
de ce en partant de quoi et en vue de quoi je me décide. La situation est unique, l’attitude peut être reprise. Ce
qui me fait prende position, ce sont les attitudes humaines concrètes que je rencontre – même si ce n’est que
pour m’opposer à elles toutes : toute compréhension, toute justifications s’élaborent devant l’histoire ». (EC I,
221).
78
35
“a realidade compreendida já não é a mesma de antes da compreensão”. 37 Assim, a tomada
de consciência é, ao mesmo tempo, a apreensão da atitude e a libertação dela (cf. LF, 106).
O homem “retoma... um discurso que, na sua ação, ele já ultrapassou” (LF, 122-123). Em
síntese: a retomada se revela uma tomada de posição da filosofia que, através de uma
compreensão pela história em razão do sentido, visa à sua realização.
Eis porque se pode dizer que da mesma maneira que o Sentido é a categoria da filosofia
é, também, a categoria da retomada. 38 Por que o sentido como categoria da retomada?
Exatamente porque é o sentido que orienta a decisão da filosofia pelo todo da história que é
sua. O que é retomado pela filosofia é o sentido presente em cada decisão, em cada atitude
humana, em cada discurso constituído na história. A multiplicidade das atitudes recebe uma
ordem na unidade que é a categoria e em presença de uma coerência reclamada por todos os
discursos – até mesmo por aqueles que desejam varrer toda coerência do discurso. Por
conseguinte, o sentido é o fato presente irrenunciável no qual desemboca a particularidade
dos discursos. Para Weil, a terceira Crítica kantiana mostra que o verdadeiro problema é o
da unidade do mundo humano, mundo teórico, prático, mundo do sentido – numa palavra: a
unidade sintética do existir humano. É sob esse ângulo, para o pensador franco-alemão, que
é possível falar da realidade como uma totalidade compreensível (cf. PK, 61).
2.3.2. Retomada na composição da hermenêutica ricoeuriana
É sob essa articulação da dispersão que se torna não somente instigante, mas muito
reveladora a maneira como Ricoeur esquematiza sua atividade filosófica conscientemente,
atuante na dispersão, ou melhor, como aplica o esquema sobre a diversidade de sua própria
obra:
Em cada um de seus livros, Ricoeur esboça vastos afrescos históricos que
tentam reconciliar as abordagens mais diversas. Esse é o traço secretamente
‘hegeliano’ desse pensamento, que, contudo, resiste à ideia de uma síntese
totalizante... O oposto dessa riqueza é que, por vezes, pode parecer difícil
delimitar o núcleo de sua concepção hermenêutica. A unidade é o único
problema suscitado por esse pensamento hermenêutico. Problema relativo
porque ele é o resultado de uma superabundância.39
Trata-se, para nós, de uma aplicação sui generis da retomada. A retomada em Ricoeur
quando adotada em relação ao próprio percurso se caracteriza pela recuperação de uma
37
M. Perine. Política e compreensão da política (editorial), Belo Horizonte, Síntese, 43 (1988): p. 10.
Cf. D. Lins Jr., art. cit. p. 119.
39
J. Grodin. Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionillo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012, p. 95.
38
79
problemática. Nesse sentido, podemos afirmar que a hermenêutica ricoeuriana é uma
hermenêutica aplicada das retomadas aplicadas à sua própria obra. Como filosofia aberta à
multiplicidade, a hermenêutica filosófica ricoeuriana não pode deixar de considerar a
diversidade que representa sua própria obra. Portanto é que vê “muitas vezes nos restos do
tema precedente” a urgência de outro tema. Isso ocorreu, por exemplo, na relação que
estabeleceu com a psicanálise, uma vez que A Simbólica do Mal é o prenúncio do que
desenvolveria em Ensaio sobre Freud (cf. CC, 110).
Não atuando, preferencialmente, pela via longa dos desvios da história da consciência,
Ricoeur procede pela via curta a partir dos problemas, digamos que ele atua de nó em nó. No
entanto, não abre mão dos resultados a que chegaram os que fizeram a opção pelos longos
desvios, tanto os que atuaram pela história da consciência, quanto os que se debruçaram por
outros caminhos como a psicanálise, a linguística, o estruturalismo, etc. É dessa forma que
compreende que o seu próprio percurso não é marcado pela alternativa contínuo-descontínuo,
uma vez que cada livro gravita em torno de um problema fragmentário soçobrado de uma
reflexão precedente (cf. CC, 115). O que era discurso não dominante outrora, mas atuante de
algum modo, passa a ser predominante, depois de recuperado por aquela obra para a qual foi
promovido. O que antes era marginalizado torna-se o centro de toda uma obra. O que ocorre
no âmbito da produção filosófica de Ricoeur é um movimento sempre retrospectivo. Não é
bem progressivo o desenvolvimento de seu pensamento, mas uma volta atrás que recupera
uma problemática quase esquecida.
A inovação semântica é uma das situações em que a extração de uma problemática é
recuperada da condição residual de reflexões anteriores. Cada vez mais consciente de que a
linguagem se tornara, durante as décadas de 1970 e 1980, o palco de todos os confrontos,
Ricoeur, sem se desfazer do lugar de seu pertencimento – movimento fenomenológico e
hermenêutica – volta-se para o aspecto criativo da linguagem e indaga a respeito da formação
de novas significações. Seu problema é o da imaginação semântica constituído a partir da
esquematização de uma regra inteligível à maneira do famoso “esquematismo” do
entendimento, segundo Kant.40 A inovação semântica, retirada da condição de subproduto das
obras anteriores, permite que Ricoeur elabore nesse momento de embate o que toma por obras
gêmeas: Metáfora Viva e Tempo e Narrativa
40
Cf. P. Ricoeur, Lectio Magistralis, op. cit. p. 125. Em TR 1, lemos « C’est cette synthèse de l’hétérogène qui
rapproche le récit de la métaphore...Dans l’un et dans l’autre cas, l’innovation sémantique peut être rapportée à
l’imagination produtrice et, plus précisément, au schématisme qui en est la matrice signifiante » (p. 11).
80
uma funcionando no quadro dos tropos, a outra no quadro dos gêneros
literários. Na realidade, as vias da imaginação criativa ou, se se preferir, os
caminhos da esquematização, são diferentes. Num a produção de uma nova
relevância atributiva fora de uma atribuição abusiva, no outro, a produção de
enredos combinando, de uma forma original, intenções, causas e acaso.
Nesse sentido, Tempo e Narrativa pode ser situado na linha de uma filosofia
da imaginação que teve o seu ponto de partida em A Simbólica do Mal. Este
paralelismo entre Tempo e Narrativa e A Metáfora Viva, considerado na
perspectiva da inovação semântica, é prosseguido numa esfera
complementar: em ambas as instâncias, a tarefa da hermenêutica é trazer à
luz um tipo de inteligibilidade compatível precisamente com este trabalho de
esquematização no plano da imaginação e estabelecer a sua primazia em
relação a simulações resultantes de uma lógica de transformações. (RF/AI,
120).
Ouvimos ainda, do próprio Ricoeur, que se colocadas lado a lado obras como A Simbólica
do Mal, Ensaio sobre Freud, Metáfora Viva, Tempo e Narrativa, por exemplo, permitem
compreender que, embora haja um movimento que gira em torno da inovação semântica, cada
obra, a partir do recurso recapitulativo, descreve sua própria problemática retirada de uma
reflexão precedente. A teoria semântica dos símbolos fornecida por A Simbólica do Mal é
desenvolvida pela Metáfora Viva como figura do estilo que explora os campos semânticos
incongruentes, e por Tempo e Narrativa na qualidade dos gêneros literários da construção de
intrigas (cf. CC, 115-116).
Para ele, exatamente por estar a Metáfora Viva numa relação crítica com A Simbólica do
Mal é que foi capaz de extrair uma teoria semântica do símbolo naquela obra, uma teoria mais
abrangente porque mais equipado que antes para tratar deste problema. Contudo, confessa
Ricoeur, com a Metáfora Viva é um passo atrás que é dado, ela é uma volta a A Simbólica do
Mal depois de ter passado por Freud (cf. CC, 116). O mesmo se passa com o narrativo que
havia encontrado muito antes de Tempo e Narrativa, em 1955, quando publica História e
Verdade, e, até mesmo antes disso já em A Simbólica do Mal, já que mitos além de símbolos
são narrativas (cf. CC, 117).
O percurso de sua obra não se explica pelo binário contínuo-descontínuo e sim por uma
espécie de “repetição” em que operar um passo atrás se torna decisivo. Assim, o
encadeamento de sua reflexão não se registra no âmbito da alternativa continuidade ou
ruptura, mas, notadamente, em termos de retomada. Referindo-se a Memória, História,
Esquecimento diz:
Como todas as minhas obras anteriores, ela se originou da descoberta e do
exame das questões residuais deixadas sem solução numa obra anterior –
nesse caso, Tempo e Narrativa, na qual a experiência temporal era
diretamente confrontada com a atividade narrativa, sem considerar a
81
mediação exercida entre uma e outra pela memória.41
Essa leitura de si mesmo também foi percebida por outro intérprete. David Pellauer, por
exemplo, nos informa igualmente a respeito de Memória, História, Esquecimento que são nos
temas e tópicos anteriores que Ricoeur configura um novo trabalho. Na qualidade de produtos
de um desenvolvimento assentado em afloramentos precedentes algo novo é acrescentado.
Nessa obra, Ricoeur retoma a discussão de Tempo e Narrativa da história como discurso
narrativo e como condição de possibilidade, questões que, na verdade, remontam às primeiras
reflexões de Ricoeur, sobre o lugar da subjetividade e da verdade na história, presente nos
ensaios reunidos sob História e Verdade.42
Não é difícil verificar nessa releitura de si mesmo como o conceito leitura joga um papel
decisivo na composição da hermenêutica filosófica. Contudo, essa evidencia se torna ainda
maior quando o associamos a outro conceito central em Ricoeur, a saber, a apropriação.
Considerada como a contrapartida da autonomia semântica, em razão da separação textoautor, apropriar-se é tornar seu o que é alheio. Esse ato, que exige a incorporação do outro,
sugere também existência de um distanciamento a ser superado. Tal distancia, além de ser um
fato (hiato espacial e temporal efetivo), é igualmente a tensão entre alteridade e a ipseidade (o
outro e o mesmo) pela qual alienação cultural e autocompreensão podem se corresponderem.
Para tanto, o escrever e o ler se elevam como modalidades constituintes fundamentais desse
processo: a leitura enquanto pharmacon resgata uma significação do texto que, a princípio lhe
é estranho, se aproximando, suprimindo e preservando, a distância cultural (cf. TI, 91).
Do ponto de vista histórico, esse problema encontrou suas mais ilustres formulações no
Iluminismo do século XVIII, ao querer tornar presente a cultura da antiguidade não obstante a
intervenção da distância cultural, e no Romantismo alemão que, com seu giro dramático,
indagou pela possibilidade de nos tornarmos contemporâneos dos gênios do passado (cf. TI,
91-92). É desse problema que decorre a dialética, posta em ação pela hermenêutica
ricoeuriana, entre os termos distanciamento e apropriação: um significando, antes de qualquer
coisa, estranhamento, mas num sentido produtivo, quer dizer, metodológico; e outro, por seu
turno, voltado para o resgate das heranças culturais. Para a hermenêutica ricoeuriana, não
existem problemas filosóficos numa dada tradição enquanto nela habitamos na ingenuidade da
primeira certeza. Somente após perdida essa primeira ingenuidade é que a tradição se torna
problemática. É a distância com um discurso, um texto que impõe limites à compreensão. Daí
41
42
P. Ricoeur, Lectio Magistralis, op. cit. p. 138.
Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 147.
82
então, é que se faz necessário recuperar o sentido dessa tradição atravessando a alienação
cultural constituída pela apropriação do passado numa luta sem trégua com o distanciamento.
É esse processo de uma produtiva tensão mantida entre apropriação e distanciamento que
recebe, na hermenêutica filosófica, o nome de interpretação. É nesse ponto que a relação entre
escrita e leitura ganha o seu sentido mais fundamental (cf. TI, 92).
Como bem sabemos, para Ricoeur, o centro de gravidade da hermenêutica é o projeto de
mundo suscitado pela leitura do texto. Para ele, essa seria a problemática decisiva que
justifica o deslocamento do problema do texto para o que chama de mundo da obra (cf. TA,
110). Nas palavras do historiador Roger Chartier trata-se daquilo que inventivamente fazem
os indivíduos com o que recebem dos textos (discursos, obras, monumentos, objetos)
recriando e produzindo algo a partir desse empoderamento.43 Ainda segundo Chartier, a
hermenêutica se esforça por compreender num sentido eminentemente prático, isto é,
impondo-se a possibilidade da aplicação do texto sobre a situação do leitor. Isso significa, nos
termos da hermenêutica filosófica, uma configuração narrativa correspondente a uma
refiguração da própria experiência. Uma teoria da leitura, assim, é exigida como ponto de
articulação entre o mundo do texto e o mundo do leitor (sujeito) querendo, dessa forma,
compreender, pela apropriação dos discursos, a maneira como esses mesmos discursos
atingem o leitor e o impelem para uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo.
Para Ricoeur é duplo o objetivo de uma teoria da leitura: por um lado, pensar a leitura como
condição de possibilidade semântica na qual se opera a refiguração da experiência; de outro,
ter no ato da apropriação o médium da constituição e da compreensão de si mesmo.44 É o
texto, assim, que se torna a mediação necessária entre o escritor e o leitor (cf. TI, 135). O
hermeneuta (leitor, intérprete) ao dizer, reativa o dizer do texto que, por sua vez, é um re-dizer
(cf. TA,162). Diz Ricoeur:
se a leitura é possível, é exatamente porque o texto não está fechado em si
mesmo, mas aberto a outra coisa; ler é, em qualquer hipótese, encadear um
discurso novo no discurso do texto. Este encadeamento de um discurso num
discurso denuncia, na própria constituição do texto, uma capacidade original
de ser retomado, que é o seu caráter aberto. A interpretação é a conclusão
concreta desse encadeamento e deste retomar. (TA, 155).
Retomada e encadeamento não implicam noutra coisa senão na possibilidade da leitura
como recuperação do sentido do texto. Contudo, o sentido não é tanto em relação à intenção
43
Cf. R. Chartier. Cultura escrita, literatura e história Tradução de Ernanai Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2001, p. 67.
Cf. R. Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 24.
83
44
do texto, a menos que seja na acepção em que somos dirigidos para abertura do pensamento
produzida pelo texto, isto é, quando marchamos no caminho voltado para o oriente do texto
(cf. TA, 159). Apoiado nalguns resultados da reflexão logicista (Frege e Husserl), Ricoeur
compreende o sentido não como uma ideia na mente de alguém ou um conteúdo psíquico,
mas como um objeto ideal possível de ser identificado e reidentificado por diferentes
indivíduos em tempos distintos como um só e o mesmo (cf. TI, 134). Assim, o texto,
destituído de seu uso historicista, isto é, quando deixa de estar voltado unicamente para o
âmbito leitores específicos, implica a superação do processo histórico no sentido de que é
também um objeto atemporal que cortou seus laços com todo desenvolvimento histórico (cf.
TI, p. 135).
O que deve ser compreendido e, portanto, o que se deve apropriar num texto, não é a
intenção do autor supostamente ocultada detrás do texto, tampouco a situação histórica do
texto comum ao escritor e aos leitores originais, nem mesmo as expectativas ou
autocompreensão que de si possuíam tais interlocutores, como idealiza o romantismo. Importa
apropriar-se do sentido do próprio texto – compreendido agora como dinamicidade dada à
direção do pensamento aberta pelo texto – de poder desvelar um mundo que constitui a
referência do texto (cf. TI, p. 136). Dessa forma, é que se pode falar da fusão de horizontes,
na qual o mundo do leitor funde-se com o mundo do escritor. Para Ricoeur, “o sentido de um
texto está aberto a quem quer que possa ler... porque o texto se subtraiu ao seu autor e à sua
situação, subtraiu-se igualmente ao seu endereçado original” (TI, 137).
É dessa forma que um texto pode falar, pode ser compreendido além de seu próprio tempo.
Ora, como é verificável, para Ricoeur, com a escrita, é o texto propriamente que se torna
autônomo em relação à intenção do autor, desse modo, significação verbal e significação
psicológica diferem, daí o porquê de o texto não coincidir com aquilo que o autor quis dizer.
O texto, assim, pode descontextualizar-se de suas origens e se recontextualizar em nova
situação pela leitura. É exatamente esse grau de emancipação ocorrido na relação entre o
escrever e o ler que produz, para a hermenêutica, o considerável efeito do distanciamento
alienante (Verfremdung). Fenômeno constitutivo do texto como escrita é condição sob a qual
acontece toda interpretação. O distanciamento alienante é ainda aquilo que condiciona a
própria compreensão, mas também o que deve ser vencido por esta compreensão (cf. TA, 118119). O recurso para vencer o distanciamento é a apropriação – ou aplicação do texto à
situação presente do leitor, o momento em que a aplicação de uma configuração narrativa
particular à situação do sujeito transforma, pela interpretação, a compreensão de si mesmo do
84
sujeito e do mundo45. Como contrapartida da escrita, a apropriação compreende pela
distância, compreende à distância e responde, não ao autor, mas, como vimos, ao sentido (cf.
TA, 123). Através da apropriação, a hermenêutica filosófica, atualiza o texto pela leitura
aberta à relação entre o mundo do texto (ficção e história) e mundo do leitor que recebe,
atualiza e realiza o texto ao ponto de modificar sua concepção individual, sua representação
do tempo, e sua visão enquanto sujeito.46
Para Ricoeur, aquilo que é apropriado é o sentido do texto aberto pela obra. Diante do texto
abrem-se propostas de mundos ao leitor. Não se trata de uma intenção a ser descoberta e que
se põe detrás do texto, mas o que figura à sua frente: o leitor se expõe ao texto e dele recebe
um si mais vasto como experiência existente porque mediado pelo mundo cultural. Um si que,
segundo Ricoeur, é constituído pela “coisa do texto”. O leitor é levado, então, a desapropriarse de si mesmo para se apropriar desse novo mundo que para ele se abre pelo texto. Assim, a
compreensão é tanto desapropriação quanto apropriação. O leitor deve se perder de si mesmo.
Eis por que não se deve mais prescindir da crítica das ilusões à maneira dos mestres da
suspeita e, portanto, opor hermenêutica e critica das ideologias (cf. TA, 124). Em síntese:
apropriação é espelhamento, saber reflexo no qual o acabamento de uma interpretação (de
texto ou discurso) é completada na interpretação de si de um sujeito que passa a se
compreender de outro modo ou até mesmo começa a se compreender melhor (cf. TA, 155),
pelo momento do trabalho de refiguração da experiência, postulada como universal, a partir
de configurações textuais particulares.47
Vencer a distância entre o estranho e o próximo permanece a tarefa mais fundamental da
hermenêutica. É essa luta travada contra o afastamento cultural, a finalidade mais
propriamente hermenêutica, pois luta contra o afastamento em relação ao sistema de valores
sobre o qual se estabelece o texto, o sentido. Desse modo, no âmbito da hermenêutica
ricoeuriana, apropriação é a interpretação que, no seu último estágio, quer aproximar,
igualizar, assimilar, dotar de contemporaneidade e semelhança o que, antes, era diferente.
Realização conseguida mediante a interpretação atualizadora do sentido do texto para o leitor
presente. Numa palavra: quando o estranho se faz próprio (cf. TA, 156; TI, 135).
45
Cf. R. Chartier. Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Tradução de Maria de
Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: Mercado de Letras; ALB, 2003, p. 152.
46
Cf. R. Chartier. Cultura escrita, literatura e história, op. cit. p. 116.
47
R. Chartier. História Cultural, op. cit. p. 26.
85
2.3.3. “Ruptura irreparável” e “aporética leitura” do discurso filosófico weiliano.
Traçado esse percurso em que Ricoeur se debruça retrospectivamente sobre sua própria
atividade hermenêutica, quadro no qual nos oferece uma leitura de si mesmo pelo desvio e
pelos outros e pelo que entende sob a insígnia de apropriação, é hora de submeter a exame a
posição adotada pelo hermeneuta na única vez em que precisou realizar uma apreciação
global do projeto weiliano da coerência categorial do discurso filosófico contido na Lógica da
Filosofia. No já mencionado Colóquio Internacional em Chantilly (1982), encerrado pela
comunicação de Paul Ricoeur De l’Absolu à la Sagesse par l’Action, P.-J. Labarrière tinha
ocupado a mesa de debates do dia anterior com a intervenção Temporalité et procès des
catègories dans la Logique de la Philosophie na qual advogava a ideia – segundo Perine,
igualmente tangente a outro trabalho Le Discours de l’Alterité: une logique de l’expérience –
de que haveria um resto fora do todo configurado pelo abandono do Absoluto e a queda na
Obra. Os termos de Labarrière alhures são:
Ou essa atitude [Obra] se diz efetivamente na categoria que lhe corresponde,
e ela é de certo modo domesticada, ao encontrar lugar em um discurso de
razão que a integra à filosofia; a totalidade, nesse caso, é salva, mas não há
mais resto; ou se trata, realmente, de uma virada no movimento da obra, e a
razão filosófica é despedida para dar lugar a expressões que não respondem
mais aos cânones de coerência; então é a totalidade que é posta em crise, e o
discurso (...) se encontra uma primeira vez rompido ao meio.48
Assim, o projeto de Weil estaria marcado por um caráter profundamente insólito por tentar,
de uma só vez, desenhar o espaço da conjunção e da ruptura. Conjunção que quer a garantia
da continuação da lógica na filosofia cujo traço é o ultrapassamento de uma pela outra nas
diversas disciplinas que as constituem, mas também ruptura, uma vez que por conta disso, se
percebe que lógica e filosofia não são imediatamente idênticas. A presença das duas figuras, o
homem da violência e o filósofo, assinala igualmente a impossibilidade, dado que são figuras
irredutíveis uma à outra: este por ambicionar o recuo da violência e aquele pelo engajamento
do contato direto com a história. Inconciliáveis, só restaria à Weil, segundo Labarrière, a
alternativa:
ou bem ele considera que o homem da obra se estabeleceu fora das regras
elementares da interação humana, e sua posição lhe aparece, na melhor das
hipóteses, como anúncio de uma negatividade “bruta” que teria por tarefa
reduzir pela conversão da razão; ou bem ele parte desta alternativa durável
para o seu próprio projeto de compreensão universal, para melhor dar conta
– como lógico da filosofia – do lugar que mantém a violência no
48
P.-J. Labarrière apud M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 157.
86
desenvolvimento do discurso.49
O pressuposto de Labarrière, segundo Marcelo Perine, seria uma contraposição que
entende existir entre Kant e Hegel, contida na filosofia weiliana, e que amarraria o nó
indesatável desta filosofia, solúvel tão somente ao preço da arrebentação: se há um resto fora
do todo é porque Kant teria cedido espaço a ele; se não há, então, é Hegel quem detém a
última palavra50 – uma interpretação da fórmula kantiano pós-hegeliano, em termos de
alternativa, é apresentada. Nela, Weil é tido como um anti-hegeliano e esse é o ponto com o
qual Perine, nesse momento, rivaliza.51
Em síntese, as rupturas seriam de duas ordens: primeiramente, a inconciliável relação da
violência com o discurso caracterizadas, principalmente, pelas categorias-atitudes Obra,
Finito e Ação em sua oposição à do Absoluto. A opção pela Ação apontaria o momento
kantiano em razão da perfeição relativa onde se reconciliam parcialmente discurso e
violência52. Em seguida (e consequentemente), a intemporalidade essencial do gesto lógico
que deixaria indecidível a situação das duas últimas categorias – a do Sentido e,
especialmente, a da Sabedoria –, que em continuidade e em descontinuidade com a sequência
das categorias permanecem como a marca da suprema ambiguidade. 53 Sobretudo porque as
articulações inerentes ao discurso fundam-se em movimento e repouso (atitudes e categorias)
como momentos de todo processo,54 não obstante a Ação seja definida, por Weil, como a
última categoria do discurso filosófico. Nesse caso, como pode haver prosseguimento se só há
discurso inerte? Situação ainda mais radicalizada aplicada à Sabedoria. É assim, segundo
Labarrière, que ambas as rupturas comprometeriam o projeto de coerência do discurso da
Lógica da Filosofia.
O que Perine não percebeu, na qualidade de bom weiliano assumido, foi a presença de
outro weiliano em Ricoeur – só que um weiliano atípico que, procedendo a uma interpretação
pela interpelação e estranhamento, submete seu interlocutor ao máximo da exigência
conceitual para extrair dele as consequências lógicas de suas próprias escolhas metodológicas.
49
« ...ou bien il considère que l'homme de l’oeuvre s'est mis en dehors des règles élémentaires de l’échange
humain, et sa position lui apparaîtra, au mieux, comme l’énoncée d'une négativité « brute » qu'il aura pour
tâche de réduire en la convertissant en raison; ou bien il part de cette alternative durable à son propre projet de
compréhension universalle, pour mieux rendre compte – en logicien de la philosophie – de la place que tient la
violence dans le déploiement même du discours. » P.-J. Labarrière. Temporalité et procès des catégories dans la
Logique de la Philosophie, Actes du Colloque International, op. cit. p. 48.
50
Cf. M. Perine, op. cit. p. 157.
51
Idem, p. 125ss.
52
Cf. Labarrière, Temporalité et procès... art. cit. p. 50.
53
Idem, p. 51.
54
Idem, p. 49.
87
Ricoeur não é apenas de um kantiano55 que aprecia (nos dois sentidos da palavra) a filosofia
de Éric Weil, mas, igualmente, um kantiano pós-hegeliano, como temos tentado demonstrar
ao longo de toda essa tese, segundo os critérios do próprio Perine, que se vale dessa
formulação como chave interpretativa de toda filosofia weiliana.56
Ora, Ricoeur afirma, em muitos momentos de sua vasta atividade filosófica, preconizar
esse estilo kantiano pós-hegeliano de filosofar (cf. TN 3, 367). O hermeneuta declara tomar
emprestado essa expressão que, segundo diz, Weil aplica a ele próprio. Quanto a si mesmo, o
hermeneuta diz assumir o paradoxo contido na expressão kantiano pós-hegeliano; paradoxo
de um kantismo que “precisa mais ser feito que repetido”, quer dizer, continuado sem,
contudo, deter-se nele. Eis o Hegel que se coloca, cronologicamente falando, depois de Kant.
Mas como somos leitores tardios de um e outro, permutamos entre eles por perceber, em nós,
que algo de Hegel venceu Kant e, igualmente, algo de Kant venceu Hegel. Mais hegelianos
que kantianos quando da superação da moralidade formal pela realização da liberdade; mais
kantianos que hegelianos quando a dialética dos limites da razão (dialética entre razão teórica
e razão prática) não apenas sobrevive à crítica de Hegel, mas se impõe a todo hegelianismo.
Para Ricoeur, é essa mistura que nos faz pensá-los juntos – seja um contra o outro, seja um
pelo outro. Mistura que é ainda a estrutura do nosso discurso filosófico na atualidade. Se outra
coisa resultar dessa tarefa, ainda será um pensar a partir de Kant e Hegel. Sem mais, é dessa
maneira que Ricoeur aplica a si mesmo a fórmula weiliana (cf. CI, 343ss).
Como Weil jamais deixou suficientemente claro o que entedia por kantiano pós-hegeliano
– a não ser para aqueles que acompanham bem de perto sua obra, sobretudo para os que
usufruíram de sua companhia na qualidade de ouvintes57 – coube a Ricoeur, ao recorrer
muitas vezes a essa fórmula, explicitar a ideia contida nessa “relação cruzada com Kant e
Hegel” – para utilizar uma expressão de Villela-Petit.58 E é como tensão em
complementaridade que Ricoeur define o itinerário do projeto daqueles que seguem essa
bizarra categoria dos kantianos pós-hegelianos (cf. TA, 250).
55
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 156.
Idem, p.125ss.
57
Na palestra já mencionada M. Perine narra como colheu a definição coloquial, jamais escrita, com a qual Weil
se definia. Weil instigado num debate a definir sua posição filosófica, numa das vezes que frequentou o
efervescente centro jesuíta de estudos e pesquisas Les Fontaines – centro cultural situado em Chantilly, nos
arredores de Paris, que na altura contava com uma bela biblioteca –, cravou o kantiano pós-hegeliano. Perine,
que frequentou o mesmo ambiente durante seu doutorado, diz ter ouvido o testemunho de outros vultos que ali
partilharam da companhia de Weil, figuras como o hegeliano Marcel Régnier, o próprio Pierre Jean Labarrière, o
teólogo Paul Valadier.
58
Cf. M. da P. Villela-Petit, art. cit. p. 13.
88
56
De certa maneira Perine reconhece isso, simplesmente porque sabe que compreender a
fórmula weiliana significa compreender Weil tal como ele se compreendeu.59 Nesse sentido,
quando aplica a Weil o que Ricoeur aplica a si mesmo (ao tomar de empréstimo a fórmula de
Weil e concluir que Kant e Hegel devem ser dialetizados), Perine não faz outra coisa senão
assumir a interpretação ricoeuriana da expressão de Weil sobre sua filosofia e validá-la como
empreendimento filosófico para todo projeto de pensamento hodierno: “dos discursos
filosóficos verdadeiramente contemporâneos, o de Weil ilustra essa tarefa filosófica à
perfeição”.60 O kantismo revela-se, para Perine, como uma retomada de Kant sob Hegel
admitindo tudo que este trouxe de definitivo para a filosofia.61 E o que isso significa? Para
Perine, que Weil não fez uma escolha entre Kant e Hegel, “mas entre a consciência kantiana e
a pretensão hegeliana”.62 A escolha “é a da autonomia e dos limites da razão, a da
universalidade da razão no ser finito, a consciência do finito a partir do infinito, do finito
imediato ao infinito”, mas também a consciência que “não poderá renunciar à busca do
absoluto, do fundamento de toda realidade humana e mundana”. 63 Em parecença com
Ricoeur, para quem há sempre a tensão entre a finitude de nossa condição e a sua
possibilidade de abrir-se ao infinito,64 Perine define as bases da relação Kant-Hegel na
dialética kantiana do interesse teórico-prático65 como capaz de informar todo hegelianismo.
Mesmo quando descreve o movimento da “aporética do discurso weiliano” em Ricoeur,
Perine acompanhando-o bem próximo, para ao fim chegar à conclusão de que as aporias se
converteram em problemas ao perceber que o próprio Ricoeur salva a coerência do discurso in
extremis, isto é, no esforço regressivo da re-leitura.66 Mas não teria sido esse desfecho a
condução pré-meditada da própria leitura aporética? É o que acreditamos. A rigor, não há
divergências entre Perine e Ricoeur na interpretação da filosofia de Éric Weil, pois ambos a
compreendem na mesma chave: de uma filosofia kantiana pós-hegeliana.
Contudo, Perine não se deu conta de que a tarefa de Ricoeur era responder, com sua
aporética leitura, aos ataques de Labarrière e que, nesse sentido, se prestava à mesma
finalidade que a sua. O texto de Pierre-Jean Labarrière encontrou na comunicação de
encerramento de Paul Ricoeur seu contragolpe oportuno. Poder-se-ia refazer todo o percurso
59
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 125.
Idem, p. 128.
61
Idem, p. 126 e 130.
62
Idem, p. 125.
63
Idem, p. 127.
64
Cf. C. M. Cesar. Ética e Política in Paul Ricoeur: ensaios. São Paulo: Paulus, 1998, p. 39.
65
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 127.
66
Idem, p. 160ss.
60
89
de Ricoeur, mas acreditamos que, além do que já expusemos até aqui, é suficiente chamar
atenção tão somente para algumas outras pistas deixadas no seu texto, que denotam seu
intento de auxílio ao projeto (com o qual partilha) de Weil.
Basta, por exemplo, observar que já na abertura de sua comunicação Ricoeur admite
responder ao que entende ser o desafio partilhado por todos que ali se encontravam, no que
concerne ao texto da Lógica da Filosofia. É esse desafio que o faz justificar seu “tom de
questionamento”. Para nós, trata-se de uma cabal acolhida da situação de enfrentamento pela
qual o texto weiliano era submetido e, portanto, da escolha pelo método da “aporética leitura”.
Uma opção, nos parece, que acontece menos em razão do texto propriamente dito e mais em
função das expectativas.67
Uma atenta observação em torno do seu título e da extração dos questionamentos que dele
faz – especialmente segundo e terceiro questionamentos68 –, permite-nos verificar não haver
condescendência, por parte de Ricoeur, com qualquer interrupção do discurso. O título é a
descrição de um movimento que leva do Absoluto, cuja passagem obrigatória ocorre pela
Ação, à Sabedoria. A interpretação ricoeuriana contém em sua consideração todas as
categorias intercaladas entre estas três, sobretudo o resgate da problemática que conduz ao
Absoluto. Porém são os questionamentos, como mencionamos, que explicitam com maior
clareza a tomada de posição pela coerência do discurso presente na Lógica da Filosofia. Diz a
segunda questão formulada por Ricoeur: “em que sentido a categoria da Ação permite retomar
o projeto de discurso coerente para além da categoria do Absoluto?”.69 Não se inscreveria esse
questionamento na mesma compreensão em que “o problema do sentido é o sentido do
problema”,70 isto é, da intenção e da decisão pelo sentido? É obvio que sim, uma vez que o
sentido da categoria da Ação é perseguir o projeto do discurso coerente, que não é outra coisa
senão o sentido mesmo desse projeto.
A terceira questão torna-se ainda mais reveladora da recusa de Ricoeur em renunciar ao
projeto descrito na Lógica da Filosofia, suas concessões são, quando muito, dificuldades, mas
nunca um impedimento definitivo em seu movimento:
de que maneira as últimas categorias, a do Sentido e a da Sabedoria,
preservam o caráter de discurso coerente que parece ter sido rompido,
ou ao menos profundamente alterado, ao mesmo tempo pela saída da
67
Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 407.
O primeiro questionamento manteremos em suspensão até o próximo capítulo, uma vez que o mesmo se presta
a uma interpretação de Hegel, objeto daquele capítulo.
69
P. Ricoeur, art. cit. p. 413.
70
M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 188.
90
68
categoria do Absoluto, pela promoção da categoria da Ação e pela
permanência de uma irrupção da violência fora do discurso e no
discurso? 71
Todo o indicativo aqui é referente ao sôfrego trabalho das últimas categorias que, no seu
intento de concluir o discurso coerente, herdam a tríplice problemática: o trauma do abandono
do Absoluto, ascese da Ação e o invencível dualismo violência-discurso. Nesse último caso, a
questão repõe os termos do próprio Labarrière ao referir-se à dicotômica relação da violência
fora do (todo) discurso. Mas enfatizamos a sentença de Ricoeur no ato da formulação do seu
questionamento que as categorias mencionadas “preservam o caráter de discurso coerente”.
Declaradamente Ricoeur dirige sua “aporética leitura” às mesmas dobras das “rupturas
irreparáveis” contrapostas à Lógica da Filosofia (Absoluto-Obra-Sentido-Sabedoria), só que
as compreende num movimento ainda maior (Deus-Condição-Consciência-InteligênciaPersonalidade-Absoluto-Obra-Finito-Ação-Sentido-Sabedoria).72 Na sequência, é a conclusão
da interpretação pela recorrência que vem em socorro do projeto da coerência do discurso.
Rigorosamente falando, é o recurso da releitura a réplica às pretensas lacunas que uma
primeira leitura pode suscitar para quem nesta se detém. Para Ricoeur é somente pela releitura que a coerência é salva, e salva in extremis, ou seja, tardiamente num último esforço
da reflexão. É exatamente esse gesto regressivo que mantém a coerência do discurso. Há duas
razões convergentes: primeiro que a entrada no discurso é sempre uma escolha injustificável e
ela é sempre uma escolha presente a cada passagem; em seguida que a ordem progressiva
pode ser recusada, uma vez que cada nova atitude é contingente. A relação entre discurso e
violência é testemunho suficiente, dado que a violência compreendida não é violência
esgotada, mas outra.
No entanto, importa saber que a estrutura do discurso weiliano, ponto de vista formal,
resguarda que nenhuma coerência pode ser preservada seguindo tão somente a progressão das
categorias. Chama atenção Ricoeur para a advertência contida na Lógica do fato da passagem
de uma categoria à outra ser, ao mesmo tempo, livre e “incompreensível” (LF, 487) e que
“toda passagem é escândalo para o ultrapassado” (LF, 488). Daí porque a violência, inscrita
também no discurso, é a própria progressão. Aos olhos do hermeneuta, uma coerência
recorrente é a única coerência possível. Semelhante à produção de uma tela em que é
71
P. Ricoeur, art cit., p. 407.
Cf. « De quelle manière les dernières catégories de Sens, de Sagesse préservent-elles le caractère de discours
cohérent qui paraît avoir été rompu, ou du moins profundément altéré, à la fois par la sortie hors de la catégorie
d’Absolu, par la promotion de la catégorie d’Action er par la permanece ou la résurgence de la violence hors
du discours et dans le discours? » Idem, p. 409.
91
72
imprevisível definir onde será aplicada a próxima pincelada, mas tão logo aplicada e a obra de
arte finalizada, mostra-se necessário que ela tenha sido naquele lugar e daquela maneira. Eis
a imagem que Ricoeur faz da Lógica da Filosofia. Para ele, é preciso que uma segunda leitura
informe ao leitor a convicção de uma coerência somente recorrente, pois é somente in
extremis, dada a constante ameaça que circunda a realização do discurso, que o projeto de
coerência categorial pode ser salvo.
Corrobora para essa releitura, recuperação da coerência do discurso pela recorrência, outra
anedota que cerca a escrita da Lógica da Filosofia. Segundo Perine, Weil teria apresentado ao
seu diretor de tese Jean Wahl o texto começando já na categoria da Verdade, ao que colheu
deste a advertência de que não poderia entregar o texto naquelas condições, sob pena de não
ser entendido, e que deveria então escrever uma Introdução. Weil teria retrucado argumentado
não existir Introdução ao sistema, mas acabou seguindo a recomendação e escreveu o texto
“autônomo” que figura no início de sua principal obra.73 Se tomarmos a direção proposta por
Bernardo, em Linguagem e Discurso e tudo que ali se diz sobre o papel que desempenha a
Introdução na Lógica da Filosofia, haveremos de dar ainda mais razão a Ricoeur. Bernardo
compreende que a Introdução não é apenas um texto propedêutico como aqueles dos Ensaios
e Conferências, mas um olhar retrospectivo sobre o todo do sistema,74 uma retomada do
sistema em que são postas as questões de fundo do discurso weiliano presente na outra parte
subsequente da Lógica da Filosofia.
Nesse caso, convalidamos aqui, num movimento de reciprocidade, a tese de Bernardo
relativa à Introdução bem como a interpretação ricoeuriana da releitura. Sendo a Introdução o
olhar retrospectivo do sistema sobre si mesmo, em última instância é o leitor que está sendo
igualmente comunicado preventivamente quanto à circularidade do processo discursivo e, nesse
caso, aquele que se manteve atento a isso, não atravessou inadvertidamente as densas paredes
da Lógica, podendo concluir, com franco conhecimento de causa, junto com Weil que:
A única introdução ao sistema se encontra, portanto, em seu fim, e consiste
na justificação da escolha que foi feita no início. Ela se confunde com a
prova da circularidade. Isso implica que todo livro filosófico só é
verdadeiramente compreensível na segunda leitura, visto que a primeira
‘ideia’ só é pensada, isto é, completamente desenvolvida e, assim,
apreensível, na última, visto que somente então a aparência de uma primeira
e de uma segunda ideia se dissipa (LF, 620).75
73
Cf. M. Perine (palestra).
Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 36ss.
75
Passagem citada por Ricoeur para fechar sua exposição em ilustração de sua interpretação da coerência de
releitura cf. Ricoeur, art. cit. p. 423.
92
74
Notadamente se, para Ricoeur, o projeto não é interrompido, ainda que ao grande custo de
uma reflexão extenuada cujo resultado é murmúrio categorial,76 então não há razão para ser
tomado como colaborador da existência de quaisquer rupturas do discurso da Lógica. As
ponderações elencadas indicam algo diferente de querer obstaculizar, permanentemente, o
avanço da reflexão weiliana. Antes, no caso de Éric Weil, trata-se muito mais de um
procedimento que, ao se reconhecer pelo outro, se apropria do caminho incursionado com
todas as suas implicações para, ao mesmo tempo, melhor percorrer o seu próprio caminho e,
assim, desbravar novas possibilidades de sentido.77
Ricoeur procede pela reexposição problematizadora. Sua hermenêutica refaz o caminho
repetindo o desenvolvimento do pensamento do seu interlocutor apondo-lhe resistência ao
máximo para, ao mesmo tempo e na justa medida, lhe restituir a palavra. É dessa forma que
atua junto ao texto da Lógica weiliana quando propõe concentrar-se nos trajetos mais
complicados enfrentados pelo texto. Afinal, a chamada “aporética leitura” é o percurso que
Ricoeur (re)faz sobre o texto weiliano com a finalidade de saber se em algum momento o
discurso é rompido. Dessa forma, torna-se bastante esclarecedor observar que em nenhum
momento Ricoeur se refere ao projeto de coerência da Lógica da Filosofia como impossível;
as expressões que utiliza são: “combate dramático”, “complica sua tarefa”, “torna mais
difícil”, “dificuldade de manter o projeto de coerência”, etc. Aliás, na abertura da sua
intervenção declara que apesar das “difíceis transições”, a “a Lógica da Filosofia mantém seu
projeto de coerência para além da categoria do Absoluto”.
Se correta a interpretação de Marcelo Perine do intento de Labarrière (e a nossa em débito
a ela), seguramente não passou despercebida por Ricoeur que, como pensador antidualista
contumaz, jamais se rendeu aos apelos da reflexão que impõe a alternativa. Sendo assim,
também não se renderia ao pressuposto da opção violência-discurso, tampouco a uma escolha
entre Kant e Hegel expressas pela leitura que fez Labarrière da Lógica da Filosofia de Éric
Weil. Texto, aliás, que Ricoeur manteve sempre na mais alta conta (cf. HV, 78-79).
Se Labarrière, por um lado, acusa Weil de ter no Absoluto o seu típico momento hegeliano e
se insiste na ambígua intemporalidade da Lógica da Filosofia, que oscila entre movimento e
repouso, característica da processualidade do movimento da lógica, que “deixaria escapar ao
seu império uma atitude e uma categoria – Sabedoria, realização do Sentido – de onde já não se
76
Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 421.
Na edição brasileira de Introdução a Tempo e Narrativa, Hélio S. Gentil expressa que uma das características
de Paul Ricoeur é o diálogo com “os mais diferentes autores, respeitando-lhes o trabalho e extraindo deles o mais
relevante ao desenvolvimento de sua própria investigação.” (p. XI).
93
77
vê como ela ainda pode, privada dessa estruturação, existir em figura de história”78; Ricoeur, de
outro lado, adverte: já não é mais hegeliano (ou não o é inteiramente) aquele que adentra no
Absoluto79 e repõe as coisas noutros termos, pela recusa de qualquer ponto de repouso, uma vez
que pelo termo mesmo da presença que nós não temos, tampouco somos.80 Sabedoria não é
realização do Sentido, trata-se para Ricoeur de outra coisa, não mais de uma atitude e de uma
categoria, mas de um “nível suplementar de formalismo”, de “um sentido do sentido”.
O que Ricoeur vê na verdade é o mesmo duplo com o qual sua hermenêutica sempre esteve
envolvida: o duplo que encontrou no excesso de significação; o duplo que remete de uma
significação primária a uma secundária; da ideia de que o discurso filosófico é sempre
incompleto, pois, na melhor das hipóteses, o discurso “se situa no caminho de um ideal que
pode especificar, mas nunca propriamente alcançar.”81 Posição em franca simetria com àquela
defendida por Weil de que não existe propriamente um saber absoluto, mas sim a ideia deste
saber (cf. LF, 610 e PR I, 49).
2.3.4. O sentido, a ruptura, os “mestres da suspeita”
Estamos convencidos de que Ricoeur também aposta na aposta de Weil e fez da aposta de
Weil a sua própria aposta, isto é, a aposta de uma permanente decisão pelo sentido.82 É essa
primazia da existência de um sentido mais universal, sob a qual não paira dúvida, o que
incomoda demasiadamente Gagnebin.83 A evidência dessa ausência em Ricoeur é observada a
partir do exame do cogito através dos “mestres da suspeita” – Marx, Nietzsche e Freud –
operada pela obra Da Interpretação: ensaio sobre Freud de 1965. Confrontando com a posição
de eliminação da questão do sentido adotada por Michel Foucault, na conferência de 1964,
“Nietzsche, Freud, Marx”84 (portanto, no mesmo período o recurso às mesmas hermenêuticas
78
P.-J. Labarrière apud M. Perine, op. cit. P. 159.
Cf. P. Ricoeur, art. cit. p. 408.
80
P. Ricoeur, art. cit. 419.
81
D. Pellauer, op. cit. p. 117.
82
Para D. Pellauer, em Ricoeur “uma decisão pode ser entendida tanto como pensamento (do que está para ser
feito) quanto um julgamento (de fazê-lo). Uma decisão, portanto, é como um acontecimento, no sentido de que
se resume a tomar posição” cf. Idem, p. 29.
83
Cf. J.-M. Gagnebin. Da dignidade ontológica da literatura in Nascimento-Salles, op. cit. p. 45, também em J.M. Gagnebin. Interpretação e suspeita in S. T. Muchail; M. A. da Fonseca; A. Veiga-Neto (Org.). O mesmo e o
outro: 50 anos de história da loucura. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 215-222.
84
M. Foucault. Nietzsche, Freud, Marx in Ditos & Escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas
de pensamento. M. B da Motta (Org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000, pp. 40-55.
94
79
da suspeita85), Ricoeur é tido como aquele que, segundo Gagnebin, “não colocará jamais em
questão essa noção de base da hermenêutica”. Ainda para a intérprete, mesmo sem ceder ao
radicalismo de Foucault, talvez fosse preciso querer recolocar de outro modo a questão do
sentido. O que se aprende com Ricoeur é bem diferente, pois, muito embora atravesse
conscientemente todo embaralhamento narrativo, prima sempre pela linearidade.
Será realmente possível... assegurar o “sentido de uma vida” por sua
narração, pela história de um indivíduo ou de um grupo, história resguardada
pela reconstrução rememorativa? Essa hipótese, que me parece sustentar o
conceito de identidade narrativa, não pressuporia uma “coerência da
existência”, como Ricoeur traduz Zusammenhang des Lebens de Dilthey,
algo que não podemos postular?86
O diagnóstico acima é certeiro. Se nos é permitido dizer, Jeanne Marie Gagnebin agarra o
bicho pelos chifres! Contudo, talvez não se trate, como defende a intérprete, apenas de um
pedido exorbitante ao modelo hermenêutico de Ricoeur de dar conta de narrativas terríveis,
ameaçadoras e de desfecho mortal,87 mas, uma vez mais, de tomada de posição. Ricoeur é
categórico quanto à escolha de suas batalhas. Eis a declaração: “daqueles com quem não tenho
relação de conflitualidade produtiva não falo... não estão nem na posição de adjuvantes nem na
de oponentes; estão numa situação neutra; estão onde não passo” (CC, 114). Seria o caso de
Foucault de 1965, devido a As Palavras e as Coisas (1966),88 livro sobre o qual Ricoeur
manteve muitas reservas.89 Porém, o mesmo não se pode dizer do último Foucault de quem,
afastado de si mesmo, por conta de obras como O uso dos prazeres (1984) e O cuidado de si
(1984), Ricoeur se sentiu mais próximo (cf. CC, 113). Isso explica porque esse importante
pensador somente aparecer ulteriormente na reflexão de Ricoeur, precisamente da década de
85
Éric Weil, num texto de 1955 Pensée dialectique et politque, ao analisar o uso político do conceito de
ideologia em Marx, aborda o papel do interesse inconsciente e da falsa racionalização a que chegaram, por vias
distintas, outros pensadores. Weil, como Foucault, não utiliza a expressão “mestres da suspeita”, mas põe lado a
lado Marx, Freud e Nietzsche sob o mesmo aspecto que os promoveram ao merecimento ulterior deste título: a
falsa consciência. Sobre essa ainda afirma: « Ce qu'on appelle souvent « fausse conscience » est, du point de vue
historique, un concept prócedent à la fois de l'enquête socratique, qui tâche de libérer l'homme de ses opinions,
et de l'anthropologie judéo-chrétienne, pour laquelle le coeur de l'homme est menteur et sa raison, obnubilée. »
(EC I, 261).
86
J.-M. Gagnebin, Da dignidade ontológica da literatura, op. cit., p. 53.
87
Cf. Idem, p. 54.
88
M. Foucault. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9 ed. Tradução de Salma T.
Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
89
“A ideia das episteme que se substituem umas às outras com transições aleatórias, não só me parecia
ininteligível como, sobretudo eu considerava que ela não se apoiava numa riqueza de conteúdo suficientemente
grande para cada uma das episteme. Como pode se falar, no século XVII, da episteme da representação, sem ter
em conta a matemática, o direito, já para não falar da teologia?” (CC, 113). E. Chaves alicerça a interpretação
foucaultiana dos mestres da suspeita à teoria do signo e a episteme da semelhança, esta última objeto de As
Palavras e as Coisas livro no qual Foucault se encontrava trabalhando à época. Cf. E. Chaves. Nietzsche, Freud
e Marx: Ricoeur, Foucault e a questão da hermenêutica in Asas da Palavra (UNAMA), v. 12 (2009): p. 294.
95
1980 em diante.90
Rigorosamente falando, o que está posto em questão é o mesmo de antes em relação ao que
se pode considerar a antinomia continuidade/descontinuidade do processo histórico
compreendido pelo discurso filosófico. A história, tal como no discurso filosófico weiliano,
pode ser pensada em sua continuidade apesar das rupturas que lhe são constitutivas. A
retomada do Foucault daquele primeiro período pode ser bastante elucidativa. Ricoeur
dedicou à Arqueologia do Saber (1969)91 uma generosa passagem de Tempo e Narrativa em
que discute o conceito de “formação discursiva” pelo qual atravessa a ideia de que a
continuidade da memória e, portanto, a história do sujeito, seria uma ilusão idealista (cf. CC,
113). Muito embora Ricoeur reconheça que A Arqueologia do Saber recoloque sob outro viés
a questão de uma coerência global e de uma substituição total deixada a cabo por As Palavras
e as Coisas (cf. TN 3, 372 n. 28), nela ainda persiste não apenas a rigorosa formulação como
igualmente a resolução em favor do segundo termo da antinomia, em que a revolução
documentária é o probatório da descontinuidade.
Ricoeur diz não ter nenhuma objeção de cunho epistemológico quanto ao privilégio dado
aos cortes, às rupturas, às crises, no que tange a reconstrução do passado histórico, pela
arqueologia do saber (cf. TN 3, 370). No máximo lembraria a essa nova disciplina, por conta
da opção receptiva da história das ideias praticada por sua própria hermenêutica, que ela não
pode se emancipar completamente do contexto geral em que a continuidade temporal
readquire seu direito e, assim, se permite articular com a história das ideias. Noutro registro,
as rupturas epistemológicas não evitam que as sociedades existam seguindo outras vias,
institucionais, por exemplo, e não apenas as dos saberes (cf. TN 3, 372). O que é passível de
verificação é que Ricoeur acolhe de bom grado a tese dos cortes epistemológicos, apenas lhe
oferecendo a possibilidade de uma leitura mais receptiva.
O dissenso se concentra mesmo na argumentação de que essa nova disciplina contesta a
continuidade pela associação “à ambição de uma consciência constituinte e dona do sentido”
90
Referências a M. Foucault aparecem em TR 3, SMO, MHO escritos em 1985, 1990 e 2000 respectivamente.
No que diz respeito a esse quesito, F. Dosse esclarece que uma inflexão é produzida na perspectiva de Foucault a
partir de 1978, na qual o sujeito, antes tomado unicamente como receptáculo das transformações impostas do
exterior pelas diversas modalidades de poder, passa a ser problematizado em si mesmo, quer dizer, o horizonte
foucaultiano sofre um deslocamento que vai do desenvolvimento da norma, passando pela relação saber/poder até a
problematização da autoconstituição do sujeito. Pela investigação do governo dos outros, Foucault chega à
problemática do governo de si mesmo. E uma evolução dessas não poderia passar despercebida pela hermenêutica
ricoueriana. Cf. F. Dosse, Paul Ricoeur: le sens d’une vie, op.cit. p. 634ss.
91
M. Foucault. Arqueologia do Saber. 7 ed. Tradução de Luiz F. B. Neves. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.
96
(TN 3, 370). E aqui talvez se torne ainda mais clara a tomada de posição de Ricoeur acerca do
sentido. Valendo-se dos termos e expressões utilizadas por Foucault para qualificar e criticar a
história contínua, Ricoeur contra-argumenta;
nada obriga a ligar a sorte do ponto de vista continuísta da memória às
pretensões de uma consciência constituinte... Parece-me perfeitamente
admissível invocar uma “cronologia contínua da razão”, ou até “o modelo
geral de uma consciência que adquire, progride e se lembra” (p. 16), sem por
isso eludir o descentramento do sujeito pensante operado por Marx, Freud e
Nietzsche. Nada exige que a história se torne “para soberania da consciência
um abrigo privilegiado” (p. 23), um expediente ideológico destinado a
“restituir ao homem tudo o que, há mais de um século, vem lhe escapando
sem cessar” (p. 24). Ao contrário, a noção de uma memória histórica às
voltas com o trabalho da história exige a meu ver o mesmo descentramento
invocado por Michel Foucault. Mais ainda, “o tema de uma história viva,
contínua e aberta” (p. 23) parece-me ser o único capaz de apoiar uma ação
política vigorosa na memorização das potencialidades abafadas ou
recalcadas do passado. (TN 3, 373-374).92
A posição de Ricoeur não poderia ser mais esclarecedora: fazer passar a tese da
continuidade pelo rigoroso crivo dos “mestres da suspeita” e, além disso, querer, igualmente,
dar ouvidos a todas as vozes submersas, só demonstra a envergadura dos desafios com os
quais a hermenêutica quer permanecer envolvida. Porém, devemos notar que quando Ricoeur
chega aos mestres da suspeita, outra confrontação já havia ocorrido e seu resultado, se não
estava totalmente concluído, estava devidamente claro para o hermeneuta: o descentramento
do sujeito que A Simbólica do Mal pôs às claras. Essa obra opera o que Ricoeur nomeia de a
segunda revolução copernicana do pensamento (SM, 374). Texto profundamente vincado pela
conclusiva fórmula do inconcluso projeto da filosofia da vontade: “o símbolo dá a pensar”.
Ricoeur não põe em dúvida o sentido porque conclui que o sentido não coincide com a
consciência, conclui pela impossibilidade de acesso imediato da consciência ao sentido que
não é único, mas múltiplo.
Dessa forma, não deve estranhar que a aguda crítica dos “mestres da suspeita”, convocada
92
« rien n’oblige à lier le sort du point de vue continuiste de la mémoire aux prétentions d’une conscience
constituante... Il me paraît parfeitement admissible d’invoquer une « chronologie continue de la raison », voire
« le modèle général d’une conscience qui acquiert, progresse et se souvient » (p. 16), sans pour autant éluder le
décentrement du sujet pensant opéré par Marx, Freud, et Nietzsche. Rien n’exige que l’histoire devienne « pour
la souveraineté de la conscience un abri privilégié » (p. 23), un expédient idéologique destiné à « restituer à
l’homme tout ce qui depuis un siècle n’a cessé de lui échapper » (p. 24). Au contraire, la notion d’une mémoire
historique en proie au travail de l’histoire me paraît requérir le même décentrement que celui invoqué par
Michel Foucault. Bien plus, « le thème d’une histoire vivante, continue et ouverte » (p. 23) me paraît seul
capable d’adosser une action politique vigoureuse à la mémorisation des potentialités étouffées ou refoulées du
passé. » (TR 3, 317-318). Fizemos um pequeno reparo na tradução da terceira citação de M. Foucault a partir da
tradução brasileira da Arqueologia do Saber, sem a qual a sentença permanece ininteligível. As passagens
citadas por Ricoeur estão localizadas aqui respectivamente em pp. 9, 14, 16.
97
por Ricoeur, difira da de Foucault, pois embora tenha tido nesses pensadores o adverso com o
qual teve que se explicar (cf. CC, 110), os três, para Ricoeur, têm a relação simuladomanifestado como a categoria fundamental da consciência. O hermeneuta acredita mesmo
que, apesar de serem destruidores, não se trata de mestres do ceticismo, mas antes, daqueles
que “pela invenção de uma arte de interpretar [...] vencem a dúvida sobre a consciência por
uma exegese do sentido”. Embaraços e impasses com os quais suas críticas estão envolvidas
não constituem o essencial delas, mas o ato através do qual limpam o horizonte para a uma
ciência mediata do sentido irredutível à consciência imediata (cf. CI, 127-128). O resultado da
travessia pelos mestres da suspeita é a ratificação da extensão da consciência do duplo ocultoaparente.
Particularmente no caso de Freud, segundo Dosse, uma dupla confrontação; o encontro
com outra dialética, consciente/inconsciente, que buscava e encontrava uma minoração do
tema perpassado por toda A Simbólica do Mal, a culpabilidade; e da psicanálise como
hermenêutica rival à sua interpretação amplificante dos símbolos.93 Ainda assim, Ricoeur,
“atribui a Freud uma posição análoga àquela de Nietzsche e de Marx, a de um pensamento da
suspeita capaz de revelar, de desmascarar, de descobrir as verdades ocultas para a
consciência”.94
Não é isso que temos com Foucault, para quem Marx, Nietzsche e Freud não só não
multiplicaram os signos, como também não os dotaram com novos sentidos. Para ele, o que
ocorreu foi que ao modificarem a natureza dos signos pela adoção de novas técnicas
interpretativas mudaram também a maneira como podiam ser interpretados, o que termina por
implicar não apenas no processo de interpretação, mas também no próprio intérprete.95 A
descentralização que operam (pela análise histórica das relações de produção, pela genealogia,
pela psicanálise) não assegura salvaguarda alguma que vise a reconstituição de projeto do
trabalho do sentido, muito pelo contrário, determina uma empresa em que se tenta desfazer as
últimas sujeições antropológicas.96 Aprofundada nessa perspectiva, essa aposta é a da
dissolução do sujeito pelo interminável processo interpretativo advogado, segundo Foucault,
pelos três pensadores.
quanto mais longe vamos na interpretação, ao mesmo tempo nos
aproximamos de uma região absolutamente perigosa, na qual a interpretação
vai encontrar não só seu ponto de retrocesso, mas onde ela própria vai
93
Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 293.
Idem, p. 291.
95
Cf. M. Foucault, Marx, Nietzsche, Freud, op. cit. p. 43
96
Cf. M. Foucault, Arqueologia do Saber, op. cit. p. 13ss.
94
98
desaparecer como interpretação, ocasionando talvez o desaparecimento do
próprio intérprete. A existência sempre aproximativa do ponto absoluto da
interpretação seria, simultaneamente, a aproximação de um ponto de
ruptura.97
O que se torna evidente, para nós, a partir do confronto entre Ricoeur e Foucault a
propósito da convocação dos “mestres da suspeita”, é que, uma vez mais, se trata de decisão.
Nada disso deve absolutamente surpreender, uma vez que no tópico em que Foucault é
chamado ao debate, o do Ser-afetado-pelo-passado, Ricoeur contextualiza e reitera sua
posição: “É o próprio propósito de ‘fazer a história’ que pede o passo atrás do futuro para o
passado” (TN 3, 368). Ora, sejamos ainda mais generosos e compreendamos num plano ainda
mais abrangente o que põe às claras todo o capítulo que encerra o percurso traçado por Tempo
e Narrativa ao longo dos três volumes. O que se tem ali é a tarefa da realização de um projeto.
Senão por que Ricoeur conclamaria Para uma hermenêutica da consciência histórica?
Com efeito, Ricoeur compreende que Foucault, como crítico radical da historiografia,
realiza enfática defesa da arqueologia do saber enquanto ciência que se quer sem precedentes.
O deslocamento que opera essa nova ciência é aquele em que a teoria do arquivo (registro das
formas discursivas) cede lugar à arqueologia (descrição das transformações interdiscursivas),
isto é, inverte o procedimento guiado pela análise regressiva condutora das formas discursivas
aos enunciados nus operando o retorno aos possíveis campos de aplicação, sem que se trate
absolutamente de uma repetição do ponto de partida. Assim, a arqueologia não busca a
reconstrução das continuidades, quer dizer, não reconstitui o passado repetindo o que foi, seu
interesse é diverso disso, é de reescrever o já escrito.
Segundo Ricoeur, esse procedimento atua em quatro frentes: novidade como intermédio
entre ponto de ruptura e acúmulo com o já-dito; contradição enquanto lugar do descompasso,
dissensão e asperezas do discurso; comparação em que arqueologia se faz interdiscursiva,
sem com isso descambar numa hermenêutica das intenções e motivações; por fim,
transformação onde, propriamente, a arqueologia joga seu destino ao, não incorrendo nem no
imobilismo eleático nem na sucessão linear historicista, irrompe o tema da descontinuidade
voltando seu olhar para os cortes, brechas, aberturas, redistribuições súbitas opostas ao hábito
historiográfico demasiado preocupado com continuidades. Seu paradoxo, prossegue Ricoeur,
não está no fato da arqueologia multiplicar as diferenças, mas em recusar-se a diminuí-las.
Isso porque essa disciplina não tem por finalidade de seu projeto superar as diferenças e sim
analisá-las ao ponto de diferenciá-las ainda mais (cf. MHE, 210ss).
97
M. Foucault, Marx, Nietzsche, Freud, op. cit. p. 45.
99
Ao rejeitar o vínculo necessário entre a continuidade de uma memória comum e as
pretensões de uma consciência constituinte, Ricoeur não se porta como arauto do regresso
triunfante da continuidade histórica que desconsideraria toda crítica que aponta para as
fissuras, mas ao contrário, como aquele que sabe que apesar das rupturas (e também graças a
elas) a história é a livre decisão de alguém que aposta na compreensão pelo sentido. Eis
porque, para Ricoeur, entre memória e história não cabe mais a posição intransigente de
Foucault situando em lados opostos a descontinuidade ostentada pelo discurso histórico e a
continuidade presumida do discurso da memória (cf. MHE, 214). Ricoeur está ciente de que
empreendimentos globais da história são arriscados, no entanto, jamais os interditou (cf., HV,
9). Como alguém que se pauta contra a violência, ou melhor, pelo desenvolvimento do projeto
da não-violência (cf. HV, 225-250), não pode abdicar do sentido. Para ele, tanto a ideia de
uma continuidade incessante da história, se não se permite informar pelas rupturas, corrobora
com a violência. Da mesma forma, as infindáveis mutilações da descontinuidade, se, de igual
modo, desconsidera, de uma vez por todas, sedimentações que implicam sobre todo processo
de inovação, deixariam a história à mercê da violência muda. O resultado disso é a imposição
da incomunicabilidade entre os diversos discursos, porque incapazes de falar a não ser com
sigo mesmo.
A bem da verdade, essa é uma antiga advertência que Ricoeur aplica sobre os dois
caminhos de leitura da história. Sem enaltecer nenhum deles, lembra que ambos podem
conduzir à morte da história: um porque ao efetuar compreensão histórica o faz suprimindo a
história no sistema das categorias, como em Eric Weil, em que “atitudes ainda estão na
história, as categorias não compõem mais uma história, e sim uma Lógica da Filosofia” (HV,
78-79); no outro, conduzido pela sua hermenêutica, a história é igualmente destruída pela
prática que conduz à esquizofrenia, uma vez que aqui o que se verifica é o salto de filósofo
em filósofo sem que se esclareça a passagem. Os filósofos, tomados assim, deixam de
pertencer a qualquer época e, ao flutuarem como singularidades fora da história, são reduzidos
a essências singulares anacrônicas, intemporais. Suas obras são vertidas numa espécie de
absoluto portador de seu próprio passado, mas essencializado (cf. HV, 79). Conquanto essas
direções não descambem nem para o discurso absoluto nem para a singularidade absoluta elas
são capazes de conduzir a reflexão filosófica à compreensão de que o objeto da história é o
próprio sujeito humano (cf. HV, 43ss).
Em síntese: o ponto decisivo relativo ao projeto da hermenêutica ricoeuriana concebe que a
“a crítica da finalidade, entendida como termo final imposto de fora a um funcionamento
100
mecânico, não esgota a questão do sentido, pois a verdadeira finalidade não é um alvo
proposto do exterior; é a plena manifestação da orientação de um dinamismo” (L1, 65). É
preciso enfrentar toda crítica, pois é pelo cruel aprendizado da ruptura, essa dura escola da
decepção, que se constitui a única oportunidade de sutura. Para Ricoeur, esse rude processus
de dilaceramento ainda está em fase de desenvolvimento para todas as ciências humanas (cf.
HV, 185).
É interessante que Gagnebin exalte tão entusiasticamente o sujeito dilacerado98 e não tenha
a mesma complacência com a questão do sentido sustentada por Ricoeur, mesmo
considerando que ele o conserva ao preço dos desvios e pela opacidade indeclinável que
encontra suas raízes naquilo que, simultaneamente, nos precede e nos ultrapassa. 99 É verdade
que nada está finalizado, e é exatamente por não haver finalização que tudo pode ser
retomado. Mas em se tratando de Weil e Ricoeur a retomada exige ser posta no âmbito de
uma orientação. Ora, uma vez que há, em última instância, para Ricoeur, um tênue vínculo
entre o sujeito e o sentido100 – tanto pela fragilidade do primeiro quanto pelo caráter errático
do segundo – desfazer-se do sentido, ainda que a título de suspensão, seria o mesmo que cair
no polo oposto ao triunfalismo do cogito, isto é, seria colaborar decisivamente para sua
humilhação, dado que nessas circunstâncias o sujeito estaria absolutamente desamparado, sem
qualquer possibilidade de orientação: “a compreensão do texto não é o seu próprio fim, ela
mediatiza a relação consigo de um sujeito que não encontra, no curto circuito da reflexão
imediata, o sentido da sua própria vida” (TA, 155). Então, como não esperar que Ricoeur
mantenha, quanto a isso, sua posição, com bem sabemos reiteradas vezes, de recusa?
Ademais, vincular sujeito e sentido não é subordinar o segundo ao poder interpretativo do
primeiro termo. É, efetivamente, a apropriação de um projeto de mundo que é desvelado
diante do sujeito, nele, o sujeito é levado, antes de querer arvorar-se senhor de si mesmo, a
novas formas de conhecer a si mesmo mediante a interpretação. Diante do sentido, na
qualidade de leitor, o sujeito não se projeta a si mesmo, mas é alargado na sua capacidade de
autoprojeção pela multiplicidade de sentidos (de mundos) abertos pelo ato da interpretação
(cf. TI,137). Contrária à tradição do cogito, o sujeito não se conhece a si mesmo de maneira
imediata, mas pelas digressões do sentido depositado nas grandes obras da cultura. (cf. TA,
123).
98
Cf. J.-M. Gagnebin. Lembrar, Escrever, Esquecer, op. cit. especificamente capítulo 11 Uma filosofia do cogito
ferido: Paul Ricoeur, p. 163-178.
99
Cf. Idem, p. 177.
100
« la constitution du soi et celle du sens sont contemporaines » (TA, 152).
101
2.3.5. Decisão pela não violência na narrativa do processo jurídico
Quiçá por uma rápida demonstração da posição ricoeuriana, mediante outro tipo de
narrativa, a da incursão pelo direito, seja, a esse título, uma boa ilustração. Para Ricoeur, o rito
processual, como modalidade da narrativa da promessa, ocorre a partir de três círculos
concêntricos: direito penal, direito civil e direito distributivo.
Se é no último que se concretiza a promessa da pacificação da sociedade pelo
envolvimento da sociedade como um todo num sistema de distribuição de papéis, de tarefas e
de obrigações que no limite assume – sua tarefa mais difícil – a distribuição de poder pela
distribuição de posições de autoridade e comando; se no segundo círculo temos o empenho da
palavra levada a cabo pelo reconhecimento de que é preciso reparar um dano e, portanto, a
instituição da confiança que revela “os laços de uma promessa que tocam qualquer coisa de
fundamental”; é no primeiro círculo que toda promessa é possível, pois é ele que constitui a
região de racionalidade intermédia (entre racionalidade moral e racionalidade do Estado
misturadas com a violência), onde o pressuposto é justamente a ruptura entre o discurso e a
violência, para retomar a célebre oposição de Éric Weil no início de Lógica da Filosofia, o
processo é o lugar privilegiado de uma discussão ordenada e ritualizada (cf. CC, 162ss).
Para Ricoeur, a narrativa do processo jurídico é a forma codificada do conflito – fenômeno
muito mais amplo sob o qual se desenvolvem outros fenômenos sociais consideráveis,
inerentes ao funcionamento da sociedade, e situado na origem da discussão pública. Detrás do
processo há o conflito, a pendência, a demanda, o litígio; e no plano de fundo do conflito há a
violência. A justiça é, nesse sentido, o espaço do confronto com essa potência negativa como
esforço da sociedade somada a outras alternativas opostas à violência como, por exemplo, o
Estado de direito. Segundo Ricoeur, a longa meditação de Weil sobre a relação entre discurso
e violência introduzida pela Lógica da Filosofia é, decerto, elucidativa, pois todas as fases do
processo jurídico (deliberação, tomada de decisão e sentença) manifestam a escolha do
discurso contra a violência. “Só se mede plenamente o alcance dessa opção contra a violência
e a favor do discurso, quando se toma consciência da amplitude do fenômeno da violência”
(cf. J1, 178-179).
Em contraste com a posição de Ricoeur – visando realçá-la ainda mais –, temos as
reflexões de outro pensador que na atualidade tem recebido ampla aceitação de suas teses nos
meios acadêmicos e jurídicos. Trata-se do ensaísta e jurista italiano Giorgio Agamben. Não é
102
que o pensador italiano se faça apologista da violência, longe disso! Mas, para ele, instituição
e violência, estão, a tal ponto, cada vez mais, misturadas na contemporaneidade que a norma
jurídica se constitui na expressão do próprio Estado de Exceção.
Agamben afirma que nosso tempo está estruturado de tal forma que o enigma das relações
entre normas jurídicas e a própria vivência das pessoas celebra a insolvência destas últimas
sem que elas sejam capazes de se dar conta. O Estado de Exceção é a "terra de ninguém" onde
vigora o puro arbítrio da suposta ordem jurídica sobre a vida do indivíduo reduzido a puro
ente administrado no qual o campo de concentração se tornou o paradigma político do
moderno. Segundo Agamben, a forma legal assume as feições daquilo que não pode ter forma
alguma, isto é, aquilo que deveria ser tão somente exceção é transformado em normalidade.101
Crucial, para o pensador italiano, é a permanente tendência de a política contemporânea
balizar sua conduta obedecendo cegamente um conjunto de dispositivos legais que deveria
servir tão somente para situações especiais, mas que cada vez mais se consolida como
paradigma de governo. A aguda observação da crescente redução da política ao jurídico em
nossos dias é o que torna essa reflexão algo ímpar, pois problematização que revela, nessa
tendente indistinção político-jurídico, como o jurídico vem se ocupando com todos os
aspectos da vida humana.
Com a dissolução da política é, segundo Agamben, a própria noção tradicionalmente
estabelecida do homem como animal político que se vê em xeque. Noção essa que permitiu
olharmos para a linguagem como aquilo que constitui a própria comunidade da discussão por
ser o homem dotado de fala, logon. Ocorre que agora, esse participante da comunidade
discursiva se encontra diante da falência desse princípio sem que ao menos se dê conta das
implicações que isso acarreta. Para Agamben, é na passagem da voz à linguagem (Aristóteles,
Política e Metafísica) que encontramos a estrutura do problema por ele identificado: uma
indistinguível fronteira entre zoé e bios – vida nua e espaço político, vivente e cidadão – em
que a dissolução de uma na outra constitui a maneira mais exacerbada dos atos de violência
praticados pelo Estado. O jurídico tornou-se sagrado e o homem, homo sacer.
No seu livro Sacramento da Linguagem, Agamben pratica uma espécie de arqueologia do
juramento e põe em relevo a maneira pela qual todas as formas de associação política
dependentes da linguagem entraram em colapso. Ele nos mostra que, em nosso tempo, há um
declínio irreversível do juramento: somos a geração que, predominantemente, vive sem se
101
Cf. G. Agamben, Estado de exceção. 2 ed. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.
103
importar com o vínculo fundante que é o juramento para o corpo político. Entretanto, segue
dizendo, que o fato de vivermos o ocaso desse tipo de vida coletiva implica o limiar de novas
formas de associação política que por essa razão ainda não foram apreendidas.102
Assim, o juramento, como exemplo emblemático do atual uso da linguagem, é o instituto
no qual nenhuma garantia pode ser depositada. Desde a sua constituição nas culturas mais
remotas, como as escavações arqueológicas de Agamben permitem encontrar, o juramento é
tomado como um flagelo no qual “a infidelidade à palavra dada, a mentira ou o erro nas
fórmulas rituais”103 são o que melhor o caracteriza. O juramento contém intrinsecamente
sempre a possibilidade outra, inversa, daquilo que propõe garantir. Daí porque juramento e
perjúrio são faces do mesmo ato.104 As escavações de Agamben terminam por atestar a relação
entre antropogênese e o próprio presente alojado numa arché. Nesse sentido, a hipótese
colocada é que o juramento ao se constituir como
enigmática instituição ao mesmo tempo jurídica e religiosa... se tornará
inteligível unicamente se a situarmos numa perspectiva na qual ela põe em
questão a própria natureza do homem como ser falante e como animal
político. É disso que provém a atualidade de arqueologia do juramento.105
A face do problema político atingido é o da redução do ser vivo a uma realidade puramente
biológica e, portanto, redução do homem à vida nua.106 Voz sem língua ou linguagem vazia é,
no âmbito da política, cidadania restringida à dimensão do homem como puro vivente, homo
sacer. Em síntese; imersos numa absolutização da opacidade jurídica, o Estado de Exceção
pretende plena dominação de todos aqueles que foram igualmente reduzidos a suas funções
meramente biológicas.
Em que pese essa lúcida caracterização da banalização do mal feita por Agamben e seu
prognóstico, é necessário, para sair do impasse, avançar na direção de uma relação cada vez
mais constitutiva entre liberdade e instituição. Ricoeur está convicto de há uma destinação
comunitária do animal humano que se realiza quando o homem ingressa, através da
cidadania, na humanidade (cf. HV, 255). Essa tomada de posição pela não violência não se
confunde com nenhuma ilusão meramente pacifista inspirada nalguma ingenuidade que
menosprezaria a violência contida na própria linguagem. Aquilo que Ricoeur não abre mão é
o estabelecimento de procedimentos jurídicos capazes de efetivar a vida dos indivíduos em
102
G. Agamben, O sacramento da linguagem: arqueologia do juramento. Tradução de Selvino J. Assmann. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 09.
103
Idem. p. 14
104
Cf. Idem. p. 16
105
Idem. p. 19.
106
Cf. Idem. p. 81
104
instituições justas. Pensando a identidade narrativa Ricoeur afirma:
identidade narrativa se distingue da identidade biológica – marcada pelo
código genético de cada um, imutável desde o momento da concepção ao da
morte, e por outros traços individuais (impressões digitais, assinatura, traços
do rosto etc.) – e não tem outra continuidade a não ser uma história de vida;
a narrativa, por seu turno, expressa o “quem” da ação e a única forma de
permanência que convém à identidade narrativa não pode ser senão a de uma
promessa, graças à qual eu me mantenho na constância de uma palavra dada
e mantida. Contudo, a identidade narrativa tem, ela própria, suas armadilhas,
seus usos e abusos, suas caricaturas, como se vê no que tange aos povos e às
nações, em que ela oferece uma cobertura ao medo, ao ódio, à violência, à
autodestruição.107
Ricoeur não desconhece a mentira, o perjúrio, e todo poder destrutivo da violência
embutido na palavra, mas a narrativa só pode firma-se pela promessa. É verdade que o
vínculo é fraco, especialmente se considerarmos que, do ponto de vista político, o
esgotamento da democracia representativa surge na atualidade como uma das evidências do
fracasso da palavra: o slogan eleição traição é ecoado sem cessar. A fonte desse descrédito,
segundo Ricoeur, é que os conceitos maioria e minoria, que outrora embalaram, com certo
êxito as democracias modernas, em especial aquelas de modelo anglo-saxão, já não
correspondem mais à conjunção entre os explorados e a parte esclarecida da opinião pública
que exigia mudança, liberdade e justiça. Hoje, tudo indica, que pela ampliação da classe
média, a ideia de maioria vincula-se à defesa das aquisições próprias dessa classe, avessa
também ela à mudança.
A liberdade de expressão, âmago dessa instituição, acabou por se converter em mera
escusa por não ter enfrentamento todas as formas de injustiça que denunciou durante todo o
tempo em que esse princípio se manteve salvaguardado. O que aparece com o declínio da
democracia representativa é a traição dos liberais que ao promoverem as guerras coloniais
(entre outras) expuseram aí também o fracasso da palavra, impotente, agora, diante das
injustiças. O que se tinha por tolerância mútua entre pessoas de palavra é visto tão somente
como o selo da cegueira em relação às injustiças. A palavra transformou-se no álibi da
violência (cf. HI, 165ss).
O drama contemporâneo se situa entre a polarização crescente da liberdade e instituições.
Da liberdade que irredutível à razão, mas que também não se realiza na violência. Razão e
violência continuam a jogar decididamente no tabuleiro da história os destinos de todos. Toda
violência contida na sociedade insere-se, sub-repticiamente, na dificuldade de se conjugar,
107
Ricoeur, Lectio Magistralis, op. cit., p. 127.
105
num mesmo movimento, os progressos da liberdade e das instituições. Essa determinação
diante da violência é uma decisão de princípio para a própria filosofia, pois
retrospectivamente, até onde nos encontramos na história, não é possível conceber vida
humana além das instituições. Nossa situação é paradoxal porque o esgotamento – nossa
incapacidade de reinterpretação criadora das heranças culturais – nos conduz a um fascínio de
uma liberdade sem instituições. Semelhante a pomba de Kant, iludida por acreditar que voaria
mais alto e melhor se não fosse, aquilo que propriamente lhe permite voar, a resistência do
ar.108
O problema de fundo é ainda o do Contrato Social no qual vigora a ideia de uma recíproca
desistência entre todos os membros da sociedade em favor da promoção da liberdade
selvagem à liberdade civil. Ocorre que com as novas determinações introduzidas pela atual
etapa de desenvolvimento (entre elas o próprio solapamento das instituições) é prudente
buscar o alargamento desse pacto inicial (político e soberania) no sentido de um acordo mais
abrangente. Pacto que ao envolver todas as instituições, órgãos governamentais ou não, seja
capaz de dotá-las de amplos dispositivos de participação popular visando desperta a cidadania
ativa. Devemos repensar hoje, mais do que antes, todas as instituições como realizadoras da
liberdade, pois é somente pelo crivo das instituições que a liberdade pode tornar-se liberdade
sensata.
Não obstante esta digressão, bem como as demais, todas as considerações, acerca da
aplicação da retomada, nos permitem indagar se não estaríamos aqui diante daquela situação
em que somos surpreendidos pela descoberta de novas possibilidades de leitura? Com
Ricoeur, a resposta é seguramente sim. Pois nele “frequentemente é no fim do percurso, com
o intuito de retomar retrospectivamente os momentos reflexivos precedentes, que o leitor deve
esperar um esboço de prazer intelectual”.109 Ademais sua compreensão da própria filosofia
requer, além da reabertura permanente das questões, a devida atenção a recursos antes
despercebidos tanto em relação à sua própria obra quanto à dos autores lidos por ele. 110 Ora,
Ricoeur concebe sua hermenêutica filosófica, em geral situada no interior da tensão que
impõe a alternativa entre explicação e compreensão, proporcionando uma moldura altamente
fecunda de problematização para as ciências humanas. Desta postura dialógica adotada diante
dos conflitos, ele extrai as potencialidades das posições em disputa buscando superar a
108
CRP, A 5, B 8
J. Michel. A questão do sujeito em Ricoeur e Deleuze in Nascimento-Salles, op. cit. p. 11-12.
110
Cf. D. Pellauer, op. cit. p. 18.
109
106
dicotomia em que se encontram.111 É a essa atitude presentemente na hermenêutica
ricoeuriana uma das suas marcas registradas a qual podemos chamar de arbitragem.
A hermenêutica filosófica de Ricoeur compreende que jamais o mundo do texto é fechado
e, portanto, sempre apto a receber toda consciência que nele se dispuser a habitar. Essa troca
entre uma consciência e o texto é que remete ao ato de leitura propriamente pelo qual o
mundo do texto se vê apropriado pelo leitor que, dessa maneira, passa à compreensão de si
mesmo. O ato de leitura se torna a realização da hermenêutica amplificadora do sentido.112 A
tarefa de compreender é o fazer ou refazer a operação discursiva portadora da inovação
semântica (cf. TA, 34).
A hermenêutica de Ricoeur permanece tanto como uma tarefa quanto como uma aposta de
uma retomada possível da força no sentido.113 É nessa perspectiva que indagamos se a
“aporética leitura” não corresponderia à exigência da “elaboração de uma filosofia crítica do
sentido”,114 uma vez que a trajetória traçada se situa na linha do sentido do sentido que ao
apontar para o futuro não ignora o acúmulo do passado, mas não dota o porvir com nenhum
conteúdo pré-estabelecido, permanecendo aberto o futuro pelo vazio da possibilidade de
orientação em razão do sentido.
O sentido de um texto não está detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo
de oculto, mas algo de descoberto. O que importa compreender não é a
situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível... o
texto fala de um mundo possível e de um modo possível de alguém nele se
orientar (TI, 132).
Ao que parece, a coerência do discurso se torna aqui em Ricoeur a própria retomada, mas
retomada, agora num novo sentido, diferente daquele exposto por Weil em sua Lógica, mas
igualmente em débito com ela. Contudo, ainda se trata de uma retomada e nessa qualidade
aquilo que é retomado tornou-se algo novo. Diríamos então que com Ricoeur ela sofreu novas
determinações, foi alargada pelo próprio movimento da retrospecção. O que temos é uma
“leitura como atividade específica de recepção e de reapropriação transformadora”.115
Retomada que é re-leitura, refiguração, transformada pelo próprio movimento sobre si
mesmo, por sua própria recorrência – uma retomada da retomada é operada.
A Lógica da Filosofia, nessa perspectiva, teria sido lida à semelhança de qualquer outra
111
Cf. F. Dosse, História do estruturalismo I: o campo do signo – 1945/1966. Tradução de Álvaro Cabral. Bauru,
SP: Edusc, 2007, p. 19.
112
Cf. J. Grodin, op. cit. p. 104.
113
Cf. J. Michel, op. cit. p. 26.
114
M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. 128.
115
J.M. Gagnebin, Lembrar, Escrever, Esquecer, op. cit. p. 174.
107
narrativa que em Ricoeur pressupõe que algo de idêntico aconteça a despeito de toda intriga e,
nesse sentido, implica em integrar os acontecimentos múltiplos e dispersos numa história
única cujo sentido é percebido como um todo envolvente (cf. TI, 156). Quem já atravessou a
Lógica da Filosofia sabe que essa obra não apenas se presta a essa leitura como oferece a
mesma perspectiva através das várias figuras do discurso que nela se efetuam numa narrativa
autossuficiente, circunscrita pela mediação analógica da prosopopeia.116
116
Cf. L. M. Bernardo, op. cit. p. 11. Em Marcelo Perine a prosopopeia é a prova de que não há ruptura
irreparável no discurso weiliano, pois ela é o artifício pelo qual o discurso filosófico elabora o discurso
incoerente da coerência cf. Filosofia e Violência, op. cit. p. 214.
108
3. Pós hegelianos
A prática teórica é a prática de uma ação que se compreende a si mesma na procura de uma inteligibilidade
Paul Ricoeur
3.1. Éric Weil: Hegel e a escritura de um projeto inacabado
É muito comum entre os leitores, estudiosos e críticos de Éric Weil ter Hegel como um dos
seus principais interlocutores. De fato, Éric Weil dedicou a Hegel um expressivo conjunto de
trabalhos monográficos no interior de sua produção intelectual,1 bem como seu livro Hegel e
o Estado,2 tese complementar de doutoramento de Estado, ao lado de sua famosa Lógica da
Filosofia, tese principal, em que figura a categoria do Absoluto, categoria filosófica da
filosofia ou ainda categoria na qual a filosofia se pensa, cuja tematização Weil reputa a Hegel.
É conhecida a intensa participação de Éric Weil nos congressos internacionais sobre Hegel,
bem como os prêmios e homenagens que ali recebeu, entre os quais por “ter feito frutificar os
motivos hegelianos no presente”3. Além do já citado Hegel e o Estado que encarna muito de
sua polêmica e divergente interpretação em relação a Alexandre Kojève, ambos considerados
os responsáveis pela renovação dos estudos hegelianos na França.4
Esperamos que essa breve caracterização acima seja suficiente para demonstrar como o
próprio Weil jamais renunciou à sua influência hegeliana. Ademais, segundo pensa, a filosofia
1
No período de vinte cinco nos, Weil escreveu sobre Hegel: “La morale de Hegel” in Deucalion, 5(1955): 101116, depois in EC I, 142-158; “Hegel” in Les philosophes célèbres, Paris, 1956, pp. 258-265, depois in EC I,
125-141; “Hegel et nous” in Hegel-Studien, Beiheft, 4(1969):7-15, depois in PR I, 95-106; “De la dialectique
objective” in Les études philosophiques, 1970, pp. 339-346, depois in PR I, 59-68; “The hegelian dialectic” in
The legacy of Hegel, Haia, 1973, pp. 49-64, depois in PR I, 107-125 (em tradução francesa); “Hegel et le
concept de révolution”, in Archives de philosophie, 39(1976): 3-19, depois in PR I, 127-145; “La philosophie du
droit et la philosophie de l’histoire hégélienne” in Hegel et la Philosophie du droit, Paris, 1979, pp. 5-33, depois
in PR I, 146-166. Acrescenta-se ainda o texto “Rousseau et Hegel”: “Rousseau und Hegel” in trad. Par G.
Kirscher et J. Quillien, p. 150-162 depois in PR II, 150-162.
2
Sobre Hegel et l’État Marcelo Perine destaca: “escrito como tese complementar... o livro provocou uma
reviravolta na interpretação da Filosofia do Direito de Hegel, em cuja linha inserem-se os já clássicos trabalhos
de Ritter (Hegel e la rivoluzione francese. Nápoles: Guida, 1977), de Avineri (La teoria hegelina dello stato.
Bari: Laterza, 1973), bem como os estudos de Löwith e Riedel, elaborados entre 1962 e 1968, e publicados num
volume de 1969 com o título Studien zu Hegels Rechtsphilosophie. Também o grande pesquisador de Hegel, K.
H. Ilting (Hegel diverso. Le filosofie del diritto dal 1818 al 1831. Bari: Laterza, 1977), destacou a importância da
obra de Weil e da controvérsia por ela suscitada... A leitura weiliana, sem dúvida controvertida, fez escola nos
estudos hegelianos. Também sob a influência weiliana situam-se os trabalhos de Fleischman, E. La philosophie
politique de Hegel. Paris: Plon, 1964, e de D’Hondt, J. Hegel, philosophie de l’histoire vivante. Paris: PUF,
1966; Hegel secret. Paris: PUF, 1968, e Hegel e son temps. Paris: Ed. Sociales, 1968. Cf. M. Perine. Éric Weil e
a compreensão do nosso tempo, op. cit. p. 89.
3
A. Deligne, Action et reception d’Éric Weil en Allemagne in Critique n. 636, mai (2000): p. 408.
4
Cf., Gilbert Kirscher em sua apresentação de PR II, p. X. Conta-se que Kojève e Weil passavam noites inteiras
em Clamart a discutir Hegel.
109
de Hegel é, por um lado, a última das grandes filosofias e, por outro, a primeira filosofia
contemporânea. E a contemporaneidade de Hegel reside no fato de que “sua filosofia fala
ainda de nosso mundo e não fala tanto para nós quanto de nós” (EC I, 127).5
Mas Hegel não é considerado por Weil senão ao preço de ser repensado (Nachdenken) (cf.,
PR I, 103). Ou para falar como um grande intérprete do pensamento weiliano, Gilbert
Kirscher: compreender a filosofia de Weil é também compreender sua compreensão e a sua
crítica a Hegel.6 Para Weil, muitos podem se acreditar hegelianos por subscreverem cada
palavra do mestre, mas não serão no sentido mesmo de Hegel, pois “ninguém mais do que
Hegel tomou a sério a história, e aquele que, querendo permanecer fiel a Hegel, nega cento e
vinte e cinco anos de história renega aquele que ele pensa adorar” (EC I, 141). Noutros
termos, se se deve interrogar Hegel é porque interrogamos a nós mesmos. Inversamente,
somente porque devemos confrontar a nossa história é que Hegel deverá ser (re)considerado isso demonstra, para Weil, quão profundamente o autor da Fenomenologia do Espírito
informou nosso tempo. Ocupamo-nos de Hegel “porque é contra ele e o que representa que
nós nos definimos: ele permanece o ponto de referência ao qual nós nos orientamos” (PR I,
100).
Contudo, engana-se quem imagina encontrar respostas fáceis na filosofia de Hegel. Iludese aquele que acredita que o contato com esta filosofia lhe indique – sem um grande esforço
de compreensão – clareza quanto ao embaraço que se tornou o nosso tempo. O texto de
Hegel, segundo Weil, não é convidativo, não seduz pelo charme de seu estilo, pelo contrário,
Hegel é não só difícil por ser um filósofo, mas é o mais difícil entre todos filósofos (cf. EC I,
126). E a dificuldade própria de sua escrita não tem outra função senão a de ajudar o leitor
(uma ajuda negativa é verdade), a de protegê-lo quanto a um problema suplementar, isto é,
impedi-lo de tomar por simples o que é demasiadamente complexo (cf. EC I, 125).
E o complexo, aquilo que precisa ser desembaraçado, é a nossa realidade efetiva
(Wirklichkeit). Aliás, a forma do embaraçamento é a maneira pela qual essa realidade se
presentifica e se constitui. Tal embaraço, esse bloqueio que de imediato impõe limites ao
5
Hegel, dirá ainda Weil, « est avec nous, parce qu’il est présent dans la pensée de notre époque, parce qu’il a
exercé – et excerce par leur intermédiaire sur nous – l’influence la plus grande sur ses successeurs – même, et
peut-être surtout, sur ceux qui se sont révoltés contre lui: l’un Kierkegaard de la façon la plus consciente, un
Jacob Burckhard; encore un Ranke, Nietzsche lui-même, sans parle disciples fidèles-infidèles du type de
Feuerbach ou de Marx, tous sont proprement incompréhensibles sans lui, quand bien même ils ne se
comprendraient pas par lui seul. La théologie, l’histoire, la pensée politique et sociale, l’esthétique: en chacun
de ces domaines, Hegel est avec nous, notre bonne ou mauvaise conscience, mais toujours présent. En
comprenant Hegel, dirions-nous, nous espérons mieux nous comprendre nous-mêmes. » (PR I, 95-96).
6
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p. 116.
110
pensamento, não é senão as contradições que afligem o entendimento. Assim, se a filosofia
quer ser outra coisa que a afirmação de sua própria falha, de sua própria impossibilidade, ela
precisa se tornar saber, saber absoluto, deve querer ultrapassar a contradição do entendimento
estático e, antes de tudo, superar a dicotomia entre a subjetividade e a objetividade, entre o
finito e o infinito, entre a realidade e o pensamento (cf. PR I, 110). Não por outra razão Hegel
se impôs a tarefa de pensar a realidade em todas as suas contradições. Noutros termos:
Hegel quis compreender e compreender a realidade total em sua unidade: o
homem normal aceita (mesmo se ele as observa) as contradições dos
discursos e das ações... e aos olhos de Hegel, é precisamente a
multiplicidade dessas posições que constitui o grande problema, o problema
filosófico. Hegel quer ser filósofo e ser filósofo, para ele, é não construir um
discurso coerente a mais entre tantos outros discursos coerentes,
explicativos, redutores, mas compreender a realidade una na unidade da
verdade (EC I, p. 130).7
Em resumo, para Hegel trata-se de querer compreender a razão em razão, mas da maneira
como ela existe concretamente, a saber, na unidade das contradições.8 Esse pensar a realidade
é deduzido das preocupações de Kant em descobrir as possibilidades da compreensão total.
Ora,
é sob solo kantiano que Hegel, assim como Fichte e Schelling, malgrado
todas as suas diferenças, tentaram levar a cabo a empresa de construir um
discurso único que capte o todo da realidade natural e intelectual. Essa
empresa, segundo Hegel, Kant não concluiu porque não superou, mas
radicalizou os dualismos entre entendimento e sensibilidade, entre razão
teórica e entendimento, razão teórica e razão prática, conhecimento dos
fenômenos e pensamento de um absoluto não-empírico, mundo da
experiência e mundo da lei da razão, numa palavra: finitude do homem e
infinitude da liberdade.9
Na perspectiva weiliana, “o infinito só é verdadeiro se nada se lhe opõe ou limita: ele não
pode ser senão a totalidade estruturada do finito”.10 Para Weil, a estrutura só tem sentido se
ela quer dar conta do estruturado. Sobre isso o próprio Hegel diz:
A recondução do ser particular finito ao ser como tal em sua universalidade
inteiramente abstrata tem de ser vista como a primeira exigência teórica e,
inclusive, também prática... o homem deve elevar-se a essa universalidade
abstrata em seu modo de pensar, no qual lhe é de fato indiferente se os cem
táleres são ou não são, independentemente de qual relação quantitativa eles
7
« Hegel ait voulu comprendre, et comprendre la réalité totale en son unité: l’homme normal accepte (même si
il les remarque) les contradictions des discours et des actions ... et aux yeux de Hegel, c’est précisément la
multiplicité de ces positions qui constitue le grand problème, le problème philosophique. Hegel veut être
philosophe, et être philosophe, pour lui, ce n’est pas construire un discours cohérent de plus, explicatifs,
réducteurs, mais comprendre la réalité une dans l’unité de la vérité. » (EC I, 130).
8
Cf., M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., p. 119.
9
Idem, p. 118.
10
Idem, p. 118.
111
possam ter com seu estado patrimonial, bem como lhe é indiferente se o
estado patrimonial é ou não é, isto é, se na vida finita ele é ou não é (pois é
intencionado um estado, um ser determinado).11
Para Hegel, a filosofia só se compreende como saber absoluto e se quer assim; mas a que
custo? Hegel é categórico: é necessário nos livrarmos do acidental, do fortuito, do que cai.
Isso explica por que Hegel reprovou a Kant a sua ternura pelas coisas finitas (cf. PR I, 123).
Vivemos aliás uma época em que a universalidade do espírito está
fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto
mais insignificante; em que a universalidade se aferra a toda sua extensão e
riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do
indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima. Assim ele deve
esquecer-se, como já o implica a natureza da ciência. Na verdade, o
indivíduo deve vir-a-ser, e também deve fazer, o que lhe for possível, mas
não se deve exigir muito dele, já que muito pouco pode esperar de si e
reclamar para si mesmo.12
Contudo, lembra Weil, antes de tudo, vivemos, finitos, no finito e tudo isso se torna para
nós uma renúncia, um fardo, sob certos aspectos, pesadíssimo. Para Weil, essa é a razão pela
qual a dialética hegeliana deve responder a questões do tipo: a que preço deve-se querer
constituir a filosofia em saber absoluto? Para todos nós, indivíduos que se sabem indivíduos
no finito, este sacrifício não é demasiado e pode sempre ser recusado. Weil chama atenção
sempre a esse finito que pode protestar – e frequentemente protesta – com conhecimento de
causa contra as pretensões do saber absoluto. Kierkegaard, por exemplo, é lembrado por Weil
justamente por essa razão.
O finito, o individual, ao elevar-se ao universal não retém em si esse universal ou é
somente sorvido por ele? A crítica de Weil torna-se mais precisa e, ao mesmo tempo, mais
intensa:
Poder-se notar de início que o percurso que conduz ao saber absoluto
começa na certeza imediata e com a constatação das contradições às quais
ela chega a partir do momento em que se quer dizer essa experiência.
Noutros termos, a filosofia inicia-se na linguagem. Ora, Hegel, que celebra
em textos magníficos, sobretudo na Fenomenologia (e, numa visão mais
estreita, na Enciclopédia, § 459), a grandeza da linguagem, não trata dela
explicitamente, não a tematiza. Poder-se-á responder que a Fenomenologia é
inteiramente uma história do discurso. Mas, por sustentável que pareça
apoiar essa tese, ela parece conduzir a uma outra dificuldade não menos
inquietante: é necessário então que o sistema, para conservar a circularidade
que o prova, volte ao ponto de partida no finito que é a Fenomenologia, a
qual, como Hegel tinha afirmado inicialmente, seria necessariamente a
primeira parte do sistema - enquanto que a Enciclopédia, que tem muita
11
12
Cien. Log., 79.
Fenomenologia, Prefácio, § 72, p. 70.
112
dificuldade de situar Fenomenologia, volta ao início da Lógica, ao Ser, e
termina com um texto de Aristóteles que afirma o Nous como substânciasujeito e como vida, como objeto-sujeito da visão, da théoria, na qual
desaparece a linguagem ao mesmo tempo em que o indivíduo (PR I, 124).13
Essa crítica weiliana, uma apreciação de caráter sistemático da filosofia hegeliana
segundo Paul Ricoeur, é compreendida como uma falha de Hegel em seu projeto da
passagem do ser em si ao para si.14 Para Weil, Hegel tomou o saber absoluto pela prova da
circularidade. Em muitas passagens da exposição do método-conteúdo Hegel diz isso
muito claramente: “O método é, dessa maneira, não uma forma exterior, mas a alma e o
conceito do conteúdo, do qual só difere enquanto os momentos do conceito vêm também
neles mesmos, em sua determinidade, a aparecer como a totalidade do conceito” 15, ou
ainda:
Porém, examinando mais de perto esse desenvolvimento, salta à vista que
não ocorreu porque uma só e a mesma coisa se tenha modelado em
diferentes figuras; ao contrário, é a repetição informe do idêntico, apenas
aplicado de fora a materiais diversos, obtendo assim uma aparência tediosa
de diversidade. Se o desenvolvimento não passa da repetição da mesma
fórmula, a ideia, embora para si bem verdadeira, de fato fica sempre em seu
16
começo.
Para Weil, essas passagens indicam, satisfatoriamente, como a Fenomenologia passa ao
sistema, mas não o movimento contrário, isto é, da Enciclopédia à Fenomenologia. Esse
retorno o próprio Hegel renunciou a dizer, e essa é uma das razões apontadas por Weil para
caracterizar seu descrédito quanto ao fato de Hegel ter alcançado o saber absoluto (Cf. PR I,
52).
13
« On pourra noter ensuite que la démanche qui conduit au savoir absolu commence dans la certitude
immédiate et avec la constatation des contraditions auxquelles celle-ci aboutit dès q’on veut dire cette
expérience. En d’autres termes, la philosophie débute das langage. Or Hegel, qui célèbre dans des textes
magnifiques, sourtout dans la Phénoménologie (et, dans une vue plus étroite, dans l’Encyclopédie, § 459), la
grandeur du langage, n’en traite pas explicitement, ne le thématise pas. On pourrait répondre que la
Phénoménologie tout entière est une histoire du discours. Mais, pour soutenable que nous paraise pereille thèse,
elle semble conduire à une autre dificulté non moins inquétante: il faudrait alors que le système, pour conserver
la circularité qui seule le prouve, remène à ce départ dans le fini qu’est la Phénoménologie, laquelle, comme
Hegel l’avait affirmé à l’origine, serait donc nécessairement la première partie du système – tandis que
l’Encyclopédie, revient au début de la Lógique, à l’Être, et se termine par un texte d’Aristote qui affirme le Noûs
comme substance-sujet et comme vie, comme objet-sujet de la vue, de la théoria, dans laquelle disparaît le
langage en même temps que l’individu. » (PR I, 124).
14
P. Ricoeur, art. cit. p. 414.
15
Enciclopédia § 243.
16
Fenomenologia, Prefácio, § 15, p. 33. Exemplos poderiam se multiplicar ainda na Ciência da Lógica “a
exposição do que unicamente pode ser o método verídico da ciência filosófica recai no interior do tratado da
própria lógica; pois o método é a consciência sobre a forma do interior movimento de si de seu conteúdo” (p. 33)
e também na Filosofia do Direito “dialética não é um atuar externo de um pensamento subjetivo, ao contrário, é
a alma própria do conteúdo, a qual organicamente faz crescer seus ramos e seus frutos. Para esse
desenvolvimento da ideia como atividade própria da razão, o pensamento enquanto subjetivo observa-o somente
sem nele acrescentar de sua parte um só ingrediente” (§ 31).
113
O pensamento deve se realizar para se saber absoluto, e aqui reside a razão, apontada por
Weil, pela qual Hegel não ultrapassou sua pretensão. Weil está convencido dos limites do
grande livro que é a Fenomenologia, ao qual se refere como “esse tesouro de ideias” (PR I,
97) – livro que torna possível uma lógica da filosofia, mas não a realiza (cf. LF, 457). A
pretensão hegeliana é, pois, a de constituir a filosofia em saber absoluto, unidade que se funda
a si mesma, que não tem necessidade de fundamento exterior. Para Hegel, o finito se conhece
desde agora no infinito, e a ontologia é verdadeiramente “o pensamento de Deus antes da
criação do mundo, antes da queda do conceito na realidade empírica, nesse Dasein que é uma
das categorias mais primitivas, mais pobres, e por isso a de um pensamento que ainda não se
compreendeu na sua onipotência” (PR I, 104).
Esse projeto de pensamento inacabado tem desdobramentos inclusive na história, quer
dizer, na política. Para Weil, a solução para o problema crucial do nosso presente, o problema
da alienação do homem diante do acúmulo do capital foi visto e descrito tanto por Hegel
como por Marx. Entretanto, “ainda não foram dados sequer os primeiros passos de uma teoria
da política que leve em conta as novas formas de Estado que se produziram nesse entretempo”
(HE, 128/129).17
Para Weil, embora Hegel e Marx delineiem o que se pode chamar o Estado presente, sua
forma futura não é (e não poderia como ainda não pode ser) descrita, pois ambos sabem que o
que conta é a tomada de consciência completa de uma situação histórica e esta não indica
outra coisa que seu ultrapassamento, da mesma forma como ambos veem a impossibilidade de
traçar uma imagem precisa do Estado por realizar, porque só o sentido da oposição ao
existente está determinada, mas não a forma nova que resultará da ação (cf. HE, 125). Noutros
termos: o que se designa pelo nome de dialética do finito e do infinito não desaparece e o
discurso universal ou saber absoluto, a cada um de seus passos, só atinge o finito, e o Todo
não pode ser enunciado (cf. PR I, 66ss). Assim se pode dizer que o Estado, a política, bem
como a história e a filosofia, permanecem por se realizar e a reconciliação universal
concebida corretamente, segundo Weil, pela filosofia hegeliana não existe ainda no mundo
das necessidades e dos sofrimentos injustos (cf. PR I, 99).
A dimensão história dessa crítica é percebida e formulada assim por Weil:
Esquece-se muito facilmente que a Fenomenologia foi terminada no
momento da batalha de Jena. A “alma do mundo” que em Jena Hegel vê
17
É preciso dizer que essa afirmação de Éric Weil se situa nos anos de 1950 e deve ser considerada nesse
contexto para que seja melhor compreendida.
114
passar debaixo de sua janela não é ainda o Napoleão de Tilsitt, o Napoleão
da Espanha, o de Moscou - não é, sobretudo, o Napoleão de Santa Helena.
Os fatos seguiram o curso que se sabe: seria inimaginável que o homem para
o qual a leitura dos jornais era a prece matutina do honesto homem moderno
não tivesse tomado nota. Napoleão cai, o mais alto ponto da história não é
atingido, o Império Mundial do Espírito que termina o desenvolvimento da
Fenomenologia não se realizou (HE, 86).
Seguindo o preceito hegeliano de que o adversário deve ser atacado em seu ponto forte,
Weil questiona o projeto filosófico de Hegel, não para invalidá-lo ou replicá-lo em seus
pormenores, mas para considerá-lo em seu conjunto e saber até que ponto o Espírito
completou sua tarefa.18 É a partir da sua pretensão que Hegel deve ser compreendido e
julgado. É preciso perguntar se Hegel realizou aquilo que pensou ter realizado; se o sistema,
tal como ele se apresenta, cumpre aquilo que afirma ter cumprido.19 Pretensão que pode ser
atestada em passagens como essa:
Graças à natureza demonstrada do método, a ciência se apresenta como um
círculo em si mesmo enredado, em cujo início, no fundamento simples, a
mediação abarca de volta [zurückschlingt] o fim; deste modo, esse círculo é
um círculo de círculos; pois cada elo isolado, como animado pelo método, é
a reflexão-em-si que, ao retornar ao início, ao mesmo tempo é o início de um
novo elo... O método é o conceito puro, que apenas se relaciona consigo
mesmo; ela é, por conseguinte, a relação simples consigo, a qual é ser. Mas
também ser preenchido, o conceito que se apreende a si, o ser como a
totalidade concreta, igualmente pura e simplesmente intensiva.20
Para Weil, atingir o Absoluto não é ainda terminar o processo do filosofar. A sua Lógica da
Filosofia mantém seu projeto de discurso coerente para além da categoria do Absoluto.21 Para
ele, o que há é “uma ideia do saber absoluto, mas não há saber absoluto, quer dizer, a filosofia
permanece sempre filosofar” (PR I, 49). Está convencido de que “em uma análise categorial,
não é a elaboração que importa, o sistema desenvolvido, mas a categoria filosófica que torna
esse sistema possível para nós e necessário para si mesmo” (LF, 478).
18
Éric Weil nos lembra que os críticos contemporâneos de Hegel não estavam alheios às dificuldades do sistema:
« Déjà, les disciples directs de Hegel ont cru découvrir des lacunes à l’intérieur du système, ses adversaires
contemporains ont affirmé que la cohérence déductive était due à un vice de subreption à peine caché. J. E.
Erdmann, disciple direct et fidèle, un des l’esprits philosophiques parmi les auditeurs de Hegel, discernait des
incohérences, dans la philosophie nature, dans la logique, dont il avait bien vu la profunde évolution depuis la
Logique de Nuremberg aux éditions berlinoises de l’Encyclopédie. Rosenkrantz, qui, est vrai, n’avait pas suivi
les cours de Hegel, mais à qui la famille avait confié les papiers du maître, se demandait quel était le vrai
rapport entre la Phénoménologie et le Système, rapport qui, d’ailleurs, faisait problème pour Hegel lui-même
dès l’époque de Heidelberg. Schelling, ennemi acharné, et son seul grand disciple Julius Stahl, compréhensif
celui-là et qui ne voulait rien perdre de l’acquis hégélien, objectaient très tôt que Hegel n’avait déduit que ce
qu’il avait obtenu par analyse positive de la réalité historique et naturelle » (PR I, 104-105).
19
Cf. M. Perine, op. cit., p. 121.
20
Cien. Lóg., 283-284.
21
Cf., P. Ricoeur art. cit., p. 407.
115
Safatle também chama atenção para as dificuldades da Enciclopédia em situar a
Fenomenologia ao tentar reduzi-la a mero “momento interno à filosofia do espírito”.22 Ainda
segundo Safatle, Hegel tinha a intenção de realizar uma nova edição da Fenomenologia,
projeto interrompido devido à sua morte. Essa intenção do autor demonstra ao intérprete que
esta obra continuava como peça fundamental do projeto filosófico hegeliano.23 Ora, se se
considera isso, então é preciso dar razão a Weil, pois o projeto de um saber absoluto é
inconcluso, a passagem do em si ao para si é falha. O que há na verdade é somente a
pretensão hegeliana do acabamento do sistema, mas não propriamente um projeto concluído.
Hegel insiste que “o método surgiu deste modo como o conceito que se sabe a si mesmo,
que tem por objeto a si como o absoluto, tanto o subjetivo como o objetivo, ou seja, como o
corresponder puro do conceito e de sua realidade, como uma existência que é ele mesmo”.24
Sendo assim, não nos parece problemático compreender a Fenomenologia como uma entrada
no sistema se se considera que é pela experiência que aparece a explicitação dos pressupostos
filosóficos e das reconfigurações dos mesmos. Sendo a Fenomenologia a primeira parte do
sistema é ela que gera o que vem a seguir.25
Entretanto, para Weil, o problema se coloca de outra maneira: “Se a Fenomenologia era
tudo, porque Hegel escreveu a Enciclopédia?” (LF, 457). A história editorial da
Fenomenologia revela que seu Prefácio é um acerto de contas com o todo dessa obra: “Esse
começo é o todo, que retornou a si mesmo de sua sucessão [no tempo] e de sua extensão [no
espaço]”.26
Mas pode-se dizer o mesmo desta obra em relação ao todo do sistema? O sistema
desenvolvido tem um olhar retrospectivo de si mesmo? A Fenomenologia está qualificada
nesse sentido? Há quem diga que a Fenomenologia, após ser considerada a justificação da
Ciência da Lógica, é também seu paulatino abandono.27 Posição que seria referendada pela
Enciclopédia:
o ato livre do pensar é isto: colocar-se no ponto de vista em que é para si
mesmo, e por isso se engendra e se dá seu objeto mesmo... na verdade o
resultado último da ciência, no qual ela alcança de novo seu começo e
22
V. Safatle. Curso Ciência da Lógica. Aula 1. de 09.08.2011, p. 9.
Idem.
24
Cien. Lóg., p. 265.
25
Cf. V. Safatle. op. cit. p. 10.
26
Fenomenologia, Prefácio, § 12, p. 31.
27
Cf. L. B. Puntel. A “Ciência da Lógica” de Hegel e a dialética materialista: uma nova visão de um antigo
problema in Síntese v, II, n. 05 (1975): p. 05.
116
23
retorna sobre si mesma. Dessa maneira a filosofia se mostra como círculo
que retorna sobre si, que não tem começo.28
O que chama atenção é o fato de que a Fenomenologia ao chegar à Lógica seja apartada da
tríade Lógica, Enciclopédia e Filosofia do Direito. Considerando que o estatuto da
Enciclopédia seja “o mais problemático”, como explicar esse envolvimento sistemático com a
Lógica e a Filosofia do Direito, a primeira de onde ela parte e a segunda que faz remissão à
sua estrutura em seu último parágrafo, como nos lembra Weil?
Certo que se pode dizer que há uma “dupla figura do sistema”, sendo que a versão
fenomenológica não se deixaria sorver completamente pela enciclopédica uma vez que realiza
uma experiência filosófica autônoma.29 Todavia, há uma reivindicação da Introdução em
relação ao sistema: “o resultado é somente o mesmo que o começo, porque o começo é fim”.30
A Introdução ao sistema, a Fenomenologia do Espírito, é uma retomada do sistema em
segunda leitura? Ela consegue pôr as questões de fundo de todo desenvolvimento ulterior?
Weil acredita que não. Como um pressuposto da Lógica a Fenomenologia estaria plenamente
justificada como introdução ao sistema já que
o conceito da ciência pura e a sua dedução são dessa maneira pressupostos
no presente tratado, tendo em vista que a Fenomenologia do espírito nada
mais é do que a dedução do mesmo. O saber absoluto é a verdade de todos
os modos da consciência, pois, assim como aquele percurso do mesmo o
produziu, apenas no saber absoluto se dissolveu perfeitamente a separação
entre a certeza de si mesmo e se tornaram idênticas a verdade dessa certeza
bem como essa certeza da verdade. A pura ciência pressupõe, com isso, a
libertação da oposição da consciência.31
Ora, o que não está demonstrado, pelo menos satisfatoriamente aos olhos de Weil, é o olhar
retrospectivo do sistema ou a volta do sistema à sua introdução. Num exame da análise
hegeliana do Estado, Weil apresenta as razões que podem ser redirecionadas para o conjunto
da filosofia de Hegel e que servem como síntese de sua crítica a esse gigante do pensamento
ocidental:
Pode ser que Hegel não tenha tido razão; pode ser (e isto parece mais
provável ao autor) que sua tese não possa ser refutada, conquanto possa ser
ultrapassada, ou seja, mantida em toda a sua extensão, mas alargada e levada
mais longe: 130 anos de uma história bastante movimentada terminaram por
apresentar problemas que era impossível formular antecipadamente, ao
menos de forma concreta (HE, 10-11).
28
Enciclopédia § 17.
Cf. V. Safatle. Curso Ciência da Lógica. Aula 1 de 08.2011, p. 09.
30
Fenomenologia, Prefácio, § 22, p. 37.
31
Cien. Lóg., 28.
29
117
Para Weil, Hegel viu que o mundo é estruturado e, portanto, sensato. E tanto o estruturado
quanto o sentido se revelam no discurso da filosofia, discurso que é saber e que revela ao fim
de seu percurso-discurso seu próprio começo, antes não pensado explicitamente (cf. PR I,
103). Entretanto, essa é uma tarefa que ainda está por ser realizada pelo filosofar.
3.2. Ricoeur: entre tentação e renúncia a Hegel.
Ricoeur não dispensou uma quantidade expressiva de estudos específicos ao filósofo
alemão.32 Não obstante, Hegel sempre exerceu um fascínio sobre Ricoeur pelo caráter
surpreendentemente enigmático com que o filósofo alemão se apresenta ainda nos dias atuais,
sobretudo pelo dualismo suscitado nas mais diversas tendências. Hegel se presta a todo tipo
de usurpação e gosto: na política é tido como pensador da ordem racional pela direita e como
pensador da liberdade entre as esquerdas; no âmbito teológico é, para uns, tomado como
pensador do cristianismo por ter levado a sério a Trindade e tentado fazer dela um sistema;
para outros, exatamente por querer transformar em sistema filosófico “a boa nova” é que se
coloca fora do cristianismo. Contrária a estas posições teológicas se situam os racionalistas
afirmando que em Hegel encontramos um humanista, um pensador ateu, pois quem fala pelo
o espírito é próprio humano (cf. TT, 9-10).
Toda essa controvérsia em torno do pensador alemão assegura não apenas a riqueza desse
pensamento que frutifica sem cessar, mas também a sua atualidade. “A situação na qual se
encontra Hegel... pode ser caracterizada pelas heranças que são honradas e que ainda são, de
muitos pontos de vista, as nossas” (PR, 190). A atualidade de Hegel se legitima pela
compreensão de que há acúmulo suficiente, entre nós hoje, da experiência humana, podendo
assim ser decifrado seu sentido enquanto objeto do mundo na sua relação com tudo que
atenda sua efetuação (cf. TN 3, 343).
Mas então porque Ricoeur propõe renunciar Hegel? Podemos dizer, com Dosse, que o
texto com o título “Renunciar a Hegel”, capítulo que ocupa páginas fundamentais do terceiro
volume de Tempo e Narrativa, é, particularmente, a tentativa refletida de Ricoeur de
32
Um inventário dos estudos de Ricoeur sobre Hegel é dificílimo aja vista que o encontramos, de forma
pulverizada, em grande parte dos textos de Ricoeur. Contudo, há certos textos que concentram, o que podemos
chamar, o essencial da reflexão hegeliana aos propósitos da hermenêutica filosófica. Tais trabalhos encontramos
em: TT, 9-29 Hegel aujourd’hui; TA 251-260 e 281-302 o capítulo La raison pratique, precisamente o item 4,
La tentation hégélienne e o capítulo Hegel et Husserl sur l’intersubjetivité; TR 3, 280-299, o capítulo Renunciar
a Hegel; L3, 41-62 O estatuto da Vorstellung na filosofia hegeliana da religião; PR, 187-200 e 201-232 o
terceiro estudo O reconhecimento mútuo, precisamente, item 3 Hegel em Iena: Anerkennung e item 4
Reatualizações do argumento de Hegel em Iena.
118
compreender sua confrontação, sua apropriação e sua própria resistência a Hegel, percorrida
no conjunto dos três volumes daquela obra33. E mais! É também, ainda segundo Dosse, a
renúncia da leitura que Kojève fez de Hegel, leitura amplamente dominante quanto ao
ingresso e a receptividade de Hegel na França.34 Com efeito, Ricoeur dedicou ao filósofo
alemão páginas significativas em outros textos: antes em seu artigo Hegel aujourd’hui, de
1974, e em Do Texto à Ação de 1986. No primeiro, confessa mais que sua dialética relação de
fascínio-refração para com Hegel (cf. TT, 20), admite, igualmente, que a hermenêutica
filosófica é uma espécie de filosofia hegeliana infeliz (cf. TT, 28). No segundo texto,
consolida o que anteriormente tinha esquematizado diante da filosofia hegeliana,
especialmente no que tange a tomá-la como tentação e seu combate constante ao que não
consegue desviar. No conjunto de sua abordagem, Ricoeur localiza sua aproximação e adesão
a Hegel a partir de três pontos.
Primeiro é a resultante de sua própria relação com a psicanálise de Freud ao perceber que
existe tanto um núcleo comum entre a psicanálise e a Fenomenologia do Espírito como uma
orientação invertida a propósito dessa partilha. Para Ricoeur, Hegel, como Freud, acentua o
papel do sentimento no homem, que não é apenas pensamento, mas também enraizamento
numa força vital. Passagens na Enciclopédia e, em particular, na Fenomenologia do Espírito
descrevem com precisão, não o desejo animal, mas o que se origina de outro desejo, o desejo
humano.35 É esse desejo do desejo que conduz a reflexão hegeliana ao tema do
reconhecimento, tema central para a psicanálise: o desejo de reconhecimento. No fundo, a
dialética senhor-escravo e a interpretação freudiana do Édipo se inscrevem na mesma
problemática situada na sutil batalha de cada homem com a figura parental, quer dizer, trata33
Cf., F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit., p. 494.
Cf. F. Dosse, A história. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Ed. Unesp, 2012, p. 243ss. Ver
também F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 498, 502. O próprio Ricoeur declara, ao tratar da relação dialética
entre negatividade e instituição, que “era preciso, como os pesquisadores na linha em que eu próprio me situo,
retroceder até os fragmentos da época de Iena em vez de dar uma sequência aos trabalhos de Alexandre Kojève,
autor da famosa Introdução à leitura de Hegel (aulas dadas de 1922 a 1930), trabalhos que tomavam como
referência a Fenomenologia do Espírito e atribuíam assim à luta entre o senhor e o escravo o lugar que
conhecemos; a aposta era ao se confrontar com o tema do reconhecimento em seu estágio incoativo o leitor
poderia esperar ver trazidos à luz do dia recursos de sentido que não teriam sido esgotados pelas obras acabadas
mais tardiamente, até a última, Princípios da filosofia do direito, na qual o tema do reconhecimento e do ser
reconhecido perdeu não apenas sua densidade de presença, mas também sua virulência subversiva. Em
compensação, o preço a ser pago é uma leitura trabalhosa que torna os não-especialistas tributários da
reconstrução feita pelos especialistas.” (PR, 189).
35
Fenomenologia § 69, “Enquanto o senso comum recorre ao sentimento – seu oráculo interior – descarta quem
não está de acordo com ele. Deve deixar claro que não tem mais nada a dizer a quem não encontra e não sente
em si o mesmo; em outras palavras, calca aos pés a raiz da humanidade. Pois a natureza da humanidade é tender
ao consenso com outros, e sua existência reside apenas na comunidade instituídas das consciências. O antihumano, o animalesco, consiste em ficar no estágio do sentimento, e em só poder comunicar-se através do
sentimento.”
119
34
se, para Ricoeur, de saber como é possível transformar uma situação desigual em
reciprocidade (cf. TT, 20-21).
Embora as duas perspectivas cheguem ao mesmo diagnóstico, é nesse ponto que elas se
dividem em suas orientações. Freud, olhando sempre para trás, opera uma espécie de
arqueologia que escava camadas cada vez mais profundas na infância. A psicanálise assim
busca, num processo de regressão na linguagem orientado pelas pulsões e pelos instintos, os
nós fundamentais dos distúrbios humanos. Hegel, por sua vez, observando um sentido na
direção do fim, uma teleologia, propõe ver como o homem percorre a experiência sempre que,
a partir do desejo e do conflito, adentra no mundo da cultura que, progressivamente
complexo, exige o desenraizamento biológico. O que é ressaltado pela hermenêutica
ricoeuriana é como uma teoria da cultura serve de contrapeso à teoria das pulsões (cf. TT, 21).
Ademais, se no primeiro caso, o sentido é deslocado para trás do sujeito, porque a psicanálise
propõe uma regressão ao arcaico; agora, na Fenomenologia do Espírito, o sentido está situado à
frente dele, pois é somente na etapa seguinte, diante de si, num outro, que uma figura encontra
seu sentido. Arqueologia do sujeito e teleologia do sujeito deslocam, de maneira
diametralmente opostas, o que tomam por origem do sentido (cf. CI, 22). Numa orientação, o
recuo ao nosso arcaísmo, noutra, a progressão que nos desarraiga. A filosofia hegeliana é então
acolhida pela hermenêutica ricoeuriana nessa articulação dialética profunda com Freud.
O segundo ponto da admissão se estabelece em torno da teoria hegeliana do espírito objetivo.
Nela Ricoeur encontra o tema (que na via política jamais abandonou) da relação da liberdade
com as instituições. Ricoeur está convicto da necessidade de pensar o trauma profundo
produzido no seio da sociedade na atualidade: por um lado, o agressivo processo de
burocratização predominante sobre as instituições; por outro, a concepção crescentemente
unitária das liberdades como puro protesto e, portanto, anti-institucional. É Hegel, uma vez
mais, que torna presente a questão: como é possível ao homem encontrar liberdade nas
instituições? (Cf. TT, 22). No fundo, Hegel, segundo Ricoeur, tenta responder à teoria do
“estado de natureza” de Hobbes indagando se existe, na base do viver junto, uma motivação
originariamente moral que possa ser identificada como desejo de ser reconhecido (cf. PR, 178).
Notadamente, é enquanto Anerkennung (reconhecimento) que Hegel visa superar o desafio
posto pela filosofia política hobbesiana. Ricoeur destaca três aspectos desse conceito: garantia
do vínculo entre auto-reflexão e orientação para o outro, fonte da determinação da interação
de um si em sua reciprocidade intersubjetiva com os outros; o dinamismo da negatividade
120
condutora à positividade, e, a institucionalização progressiva visando a estabilização da
violência. Assim considerada, a Anerkennung – que também supõe uma vida ética concreta
(Sittlichkeit) no lugar das relações artificiais indutoras do grande artifício que é o Leviatã –,
permite, após suas sucessivas elaborações, que a luta pelo reconhecimento prospere ainda em
nossos dias. Contudo, a institucionalização precisa se manter vinculada ao dinamismo do
negativo, fazendo com que cada avanço institucional seja uma resposta concreta a ameaças
específicas no seio da comunidade. É na correlação entre o nível de injustiça e o nível de
reconhecimento que o conceito Anerkennung nos permite aprender mais a respeito do injusto
e do justo, remetendo-nos assim à sua própria correspondência originária, a relação de um si
com o outro (cf. PR, 187ss). Noutros termos: é o sofrimento da injustiça que leva à
consciência da justiça e clama pela sua realização. Esse processo da confrontação de uma
vontade com outras é que faz o homem adentrar propriamente na estrutura institucional a que
damos o nome de direito.
Que lição colhemos aqui com Hegel? Não se trata da interdição da liberdade pelo direito,
mas o contrário disso, temos a situação do direito como caminho da liberdade. A liberdade
quando oposta às determinações materiais exteriores permanece abstrata (cf. TN 3, 333-334).
Eis, para Ricoeur, a ideia genial e inultrapassável de Hegel: “o direito não é um sistema
autônomo e suficiente em si mesmo, mas cujo sentido filosófico é a passagem de uma
liberdade abstrata a uma liberdade real” (TT, 23). Tese que, segundo Ricoeur, demonstra por
que é o espírito objetivo e não o espírito absoluto o coração do pensamento de Hegel. O
hermeneuta observa ainda que a atuação da dialética ocorre a propósito da situação de
embaralhamento profundamente vivida pela humanidade, na qual um sentido se desenha por
meio das contradições superadas. É ao humano que Hegel visa responder: “a lógica interna é
uma espécie de estrutura dialética da produção do sentido do humano por si mesmo” (TT, 23).
A relação do um com os outros – do indivíduo com a comunidade – aparece a Ricoeur como o
verdadeiro desenlace dialético da trama posta em movimento pelo estranhamento da
consciência do ser-outro, alienação (Entfremdung):
Para nós, modernos, a entrada na cultura é inseparável de uma libertação que
nos torna estranhos às nossas próprias origens. Nesse sentido, a alienação da
tradição tornou-se uma componente inelutável de toda a nossa relação com o
passado transmitido. Doravante, existe um fator de distanciação no âmago de
toda a pertença a uma herança cultural, qualquer que ela seja (TA, 251).
O que seduz fortemente Ricoeur é essa vivência num determinado estado de costumes, isto
é, aquilo Hegel nomeou Sittlichkeit. Intrigante é o caráter enigmático da Sittlichkeit que,
121
sedimentada nas tradições fundadoras, nos chega como fonte da ação sensata (cf. TA, 250).
Hegel é sedutor por dotar a lei esvaziada, oriunda do formalismo de Kant, de estrutura viva da
ordem progressiva na família, na economia e na política (ou família, sociedade civil e Estado),
empreendendo várias mediações entre liberdade e norma. Mediações que, aos olhos de
Ricoeur, fazem da Sittlichkeit, alçada ao nível institucional, o verdadeiro conceito de razão
prática pelo seu poder de conferir às leis a concretude histórica. Ora, um direito somente pode
ser reconhecido por estar sob o abrigo da lei, assim, esta se converte na própria arquitetônica a
partir da qual uma instituição política permite que o indivíduo encontre sentido e satisfação
em sua vida (cf. TA, 253).
Dizer que a política é saber arquitetônico é compreender que é “um saber que coordena o
bem do indivíduo com o da comunidade e que integra as competências particulares numa
sabedoria relativa ao todo da cidade”. Sob esse aspecto, o homem é tomado como indiviso
entre o querer bem de si mesmo e a sua função no interior da cidade (cf. TA, 253). A via
institucional, cujo núcleo é o Estado de direito, é o chão onde cada um passa a reconhecer a si
mesmo e os outros na vontade do todo, uma vez que a “autoridade das leis éticas é
infinitamente mais elevada”.36 A liberdade então é nomos; lugar da edificação da polis e onde
o conjunto dos cidadãos encontra proteção.
No tocante a esse ponto, há um posicionamento forte de Hegel contra Kant, pois ele
compreende o homem não apenas como consciência individual, mas como aquele que, pela
relação dialética estabelecida entre essa consciência individual com as outras consciências
individuais, produz as instituições (cf. TT, 18). Portanto, é um Estado de direito que encontra
sua justificação ao facultar a todas das vontades individuais o reconhecimento entre si pela
liberdade. Para Ricoeur, é através dessa ação sensata na e pela vida política que Hegel se
revela inultrapassável, uma vez que essa ideia ainda não se realizou. O que Hegel fez foi
descrever para onde tendia o Estado moderno que, por estar no seu começo, carecia de
desenvolvimento suficiente para que fossem apresentadas, consequentemente, as razões de
sua complexa efetivação (cf. TA, 253).
Nenhum Estado real atingiu em sua plenitude o sentido que Hegel só decifra
em germe e em suas formas incoativas... Sejam quais forem os
desenvolvimentos por vir do direito, é certo que ainda resta ao Estado tornarse, internamente, o Estado de todos, e, externamente, o Estado Mundial. A
história pensante não fecha o passado: só compreende o que já está findo: o
passado ultrapassado (Princípios da filosofia do direito, § 343). Nesse
sentido, o acabamento pronunciado pelo famoso texto do prefácio dos
36
Fil. Dir. § 146.
122
Princípios da filosofia do direito não significa mais do que aquilo que Éric
Weil leu nele: “uma forma de vida envelheceu” (Hegel et l’État, p. 104).
Outra forma pode, portanto, elevar-se no horizonte. O presente em que todo
passado ultrapassado é depositado tem eficácia suficiente para nunca
terminar de se estender em memória e antecipação (TN 3, 345).37
Vemos, portanto, que “renúncia” implica, como antecipamos acima, apropriação de uma
parte considerável do pensamento hegeliano. Apropriação que visa salvar, por exemplo, a
reflexão hegeliana sobre as instituições calcada na eticidade (Sittlichkeit). Para Ricoeur,
segundo Dosse, a mediação institucional permanece constitutiva da ética do sujeito e “da
passagem da liberdade selvagem à liberdade sensata”, problema maior, uma vez que resta
sempre por saber como a liberdade ao adentrar nas instituições permanece liberdade para todos.
Ricoeur sustenta, com Hegel, que a vontade coletiva e o exercício efetivo das instituições
constituem a base de um acordo no qual a mutualidade das mediações é a salvaguarda da
liberdade.38
A terceira motivação da adesão ocorre pela reflexão de Hegel sobre a relação entre religião
e filosofia. Dinâmica promotora, segundo Ricoeur, do problema propriamente hermenêutico:
a interpretação. Problema fortemente observado por Hegel, segundo o hermeneuta, na
Fenomenologia do Espírito, no capítulo sobre a religião, bem como no fim da Enciclopédia.
O que Ricoeur ressalta nessa relação entre religião e filosofia, independentemente de quais
sejam as interdições postas à concepção de Hegel e os resultados por ele alcançados, é que
com os mitos algo de irredutível à linguagem utilitária e à dominação da natureza pelos
homens é dito. No dizer abre-se o mundo propriamente humano pelo qual uma representação
significa o dito constituinte da relação dos homens entre si, com as coisas que os circundam e
com próprio ser. É enquanto Vorstellung (representação/figuração) que a significação se
manifesta em determinadas relações do mundo humano, mas que só é capaz de se efetivar
pela figuração (cf. TT, 24). Com Hegel a Vorstellung sublinha não apenas narrativas e
símbolos, mas expressões tão elaboradas e até mesmo conceitualizadas tais como: Trindade,
Criação, Queda, Encarnação, Salvação, etc. (cf. L3, 41). Tal figurativo, Ricoeur põe em
simetria com sua conclusiva fórmula do seu inconcluso projeto da filosofia da vontade: o
figurativo dá a pensar da mesma forma que o “símbolo dá a pensar”. Pois foi Hegel quem
tentou antes uma recapitulação da simbólica universal mediante todas as religiões buscando
37
Além dessa passagem, há outra que se refere simultaneamente a Hegel e a Marx: « savent... que la prise de
conscience complète d’une situation historique indique que cette situation doit être et será dépassée, comme les
deux voient l’impossibilité d’élaborer une image precise de l’état à réaliser, parce que seul le sens de
l’opposition à l’existant est déterminé, mais non la forme nouvelle qui sera le résultat de l’action » (HE, 107).
38
Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 499.
123
compreender o sentido daquilo que chamou Begriff (conceito, cf. TT, 24). Por conta do seu
caráter potencialmente especulativo, o pensamento figurativo se justifica como o mais
próximo da filosofia (cf. L3, 42).
Para Hegel, embora a religião permaneça figurativa, ela de alguma forma prefigura pelo
caráter especulativo que engendra. É esse estatuto ambíguo da Vorstellung que faz dela, no
sistema hegeliano, estar próximo do fim, mas inadequada para ser o fim (cf. L3, 43). A tese de
Hegel é a de que por mais racionalizada que seja a Vorstellung, ela permanece figuração e,
portanto, não alcança a condição de Begriff (cf. L3, 41). Qual a razão dessa dubiedade?
Segundo Ricoeur, Hegel, por um lado, reconheceu o poder recapitulativo da Vorstellung
quando esta repete o movimento do próprio espírito ao refletir, na estrutura do pensamento
figurativo religioso, a experiência realizada nas particularidades históricas; por outro, este
último aspecto fez com que Hegel mantivesse demasiadamente presa a Vorstellung às
determinações culturais. Sem discutir no momento o mérito dessa tese, Ricoeur compreende
que se trata de uma dialética da Vorstellung possível apenas pela retomada, interna ao
pensamento figurativo, da auto-estruturação do espírito no seu processo de manifestação cujo
traço fundamental é o reconhecimento que faz de si mesmo ao percorrer as diferentes etapas
do seu desenvolvimento (cf. L3, 43-44).
Não obstante o fascínio que o pensamento de Hegel exerce sobre Ricoeur, o hermeneuta
aponta algumas resistências invencíveis existentes na filosofia do espírito. Verificamos que,
para Ricoeur, a posição que conduz à convergência entre liberdade e instituições, embora
confessadamente tentadora, não satisfaz, exatamente por legar ao abandono o papel que
desempenha o finito na mediação do mundo. Em Hegel, como lembra o hermeneuta, a
tentativa se torna tentação ao cindir ontologicamente espírito subjetivo e espírito objetivo, ou
antes, a mutação que sofre a consciência, deixada para trás, para dar lugar ao espírito: “o
percurso dialético resultante pressupõe uma visão unitária do Espírito através de suas
múltiplas realizações”.39 Sabemos que em Hegel a Sittlichkeit é “a rede das crenças
axiológicas que regulam a divisão do permitido e do proibido numa dada comunidade” (TA,
250), ou seja, é o espírito objetivo, anteriormente subjetivo, que compreende as instituições
fundamentais do mundo humano e é nessa qualidade de realidade histórica que tende a
assumir autoconsciência, revelada a si mesma nas produções superiores, sob a forma do
absoluto.
39
Cf. Idem p. 494.
124
Eis o ponto: o absoluto! É aqui que se acende a luz amarela do alerta sobre o perigo da
força sedutora da concepção hegeliana. Mas só pode chegar a essa tomada de consciência
quem não se deteve diante da reflexão hegeliana e se atreveu a segui-la até onde é possível
avistar, com segurança, sua desembocadura. Somente quem cumpriu esse itinerário pode
incorporar Hegel ao seu próprio modo de filosofar sem temor e prevenir os incautos e
receosos de que:
Nunca se deve perder de vista, para não sermos tentados a considerar melhores
as nossas soluções, que devem ser respostas num espaço cosmopolítico em
que existem outras. É preciso lembrar-nos sempre de que nossa intenção
universalizante é em parte uma pretensão, e que ela exige reconhecimento
pelas outras para ser confirmada na sua intenção. (CC, 176).40
Feita essa advertência, sigamos com a observação crítica de Ricoeur acerca da tentativa de
Hegel tornada tentação ao hipostasiar o espírito objetivo a título de uma síntese definitiva. O
resultado nevrálgico disso é a supressão de toda relação intersubjetiva que, segundo Ricoeur,
deve permanecer como horizonte para toda dialética entre liberdade e instituição. Essa
implicação do erigir-se em pretensão de saber é duplamente preocupante: primeiramente
porque ruinosa na teoria ao manter-se na dicotomia que buscava transpor o fosso entre
intenção e realização do Estado; em seguida, perigosa na prática por servir de álibi aos
fanatismos políticos, frequentemente responsáveis pelas tiranias, que se arrogam como as
detentoras da verdade histórica (cf. TA, 254ss).
Num desvio pela mediação ideológica, Ricoeur recusa a intenção totalizadora do espírito
objetivo. Situando-se no campo da crítica das ideologias compreende que a realidade empírica
do Estado – lugar indeclinável das legítimas objetivações e alienação das relações
intersubjetivas – precisa salvaguardar a ideia de uma constituição política correspondente à
satisfação e reconhecimento por parte do indivíduo. Tarefa, segundo pensa, a cargo da crítica
por operar o desmascaramento dos mecanismos dissimuladores e, consequentemente, elevar o
laço comunitário muito além das distorções ideológicas. A crítica das ideologias, na qualidade
de momento crítico da razão prática, ocupar-se-ia, assim, das relações dissimuladas ocorridas
ao nível do trabalho, do poder e da linguagem. Mas ao operar nesse nível, a crítica também se
liberta dos limites do discurso e descobre que a ideologia desempenha outro papel, agora,
mais positivo, porque legitimador do poder uma vez que cumpre a função de integração do
tecido social (cf., TA, 257). Para Ricoeur, haveria aqui uma espécie de reconversão do saber
em crítica. Ao se submeter a exame, o saber reconhece que não há lugar não ideológico, isto
40
Grifos meus.
125
é, que não é exterior à ideologia, permitindo assim que do próprio centro irradiador da
ideologia, o pretenso saber do todo, se converta, pela crítica, à sabedoria prática.
Ricoeur é incisivo quanto à impossibilidade de se totalizar a experiência humana. Para ele,
algo de insular permanece irredutível nessa experiência (cf. TT, 25). Não se pode querer
totalizar os espíritos dos povos em um único espírito do mundo (cf. TR 3, 348). Esse projeto
fracassou, pois
vimos desfazer-se, no século XX, a pretensão da Europa a totalizar a história
do mundo; assistimos até à decomposição dos legados que ela tentara
integrar sob uma única ideia diretora. O europocentrismo morreu com o
suicídio político da Europa durante a Primeira Guerra Mundial, com a
divisão ideológica provocada pela Revolução de Outubro e com o recuo da
Europa no cenário mundial, devido à descolonização e ao desenvolvimento
desigual – e provavelmente antagonista – que opõe as nações
industrializadas ao resto do mundo (TN 3, 348).
Notadamente, Hegel deve ser renunciado na sua pretensão de mediação total. A tentativa
hegeliana se torna tentação quando o saber pretensiosamente acredita numa inevitável
mediação total. Acontece que o conhecimento (atingido no albor do século XX) das
pluralidades das partições sobre as quais a humanidade joga não torna mais possível a
totalização dos espíritos dos povos num único Espírito do mundo em cuja história encontraria
sua realização.41 “O que se desfez foi a própria substância do que Hegel tentara alçar à
categoria de conceito” (TN 3, 349).
Considerando essa intenção da conceitualização, é particularmente exemplar as conclusões
do exame crítico de Ricoeur a respeito do estatuto da Vorstellung na filosofia da religião de
Hegel. Triangulando entre a Fenomenologia do Espírito, Enciclopédia e as Lições de Berlim,
sobretudo na primeira e na última, Ricoeur submete à análise a ideia hegeliana de que a
Vorstellung, pensamento figurativo, embora potencialmente especulativo, não se confunde
com este, devendo, portanto, desaparecer em benefício da realização da tarefa especulativa,
papel exclusivo do conceito (Begriff). Lembremos que, para Hegel, há uma “resistência à
transposição do pensamento figurativo para o pensamento conceitual, em razão de seus
vínculos com os acontecimentos históricos, dos conteúdos imagéticos e das tradições
sedimentadas” (L3, 48-49).
Contudo, Ricoeur percebe uma sutil e sofisticada imposição da alternativa realizada por
Hegel no tocante ao uso da linguagem religiosa que o faz oscilar: ora pelo reconhecimento
desta ora pela sua dissolução (cf. L3, 52). A Fenomenologia, por exemplo, é o texto da
41
Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 495.
126
hostilidade e da impaciência com o pensamento figurativo que, capaz apenas de mediações
imperfeitas, aborta a Aufhebung; enquanto Lições de Berlim assume a perspectiva mais
integradora da Vorstellung pela mutualidade entre as funções figuração e conceituação (cf. L3,
52ss). Ricoeur, muito mais sensível a esta segunda perspectiva, levanta a questão de saber se o
conceito esgota o sentido que a representação, nas suas múltiplas manifestações imagéticas,
faz emergir (cf. TT, 24). Para ele, a dinâmica interna, que dirige o pensamento figurativo para
o pensamento especulativo, sem declinar dos seus traços narrativos e simbólicos, é processo
interpretativo sem fim (cf. L3, 61). O deslocamento operado por Ricoeur concede centralidade
à linguagem que, na qualidade de objeto simbólico, se manifesta inesgotável e, portanto,
irredutível à conceitualização.42
A história mostra a mesma irredutibilidade ao colocar em movimento forças incontroláveis.
Assim, entra em decomposição o que Hegel tomou como efetuação do Espírito e, nesse
sentido, se torna impossível uma totalização. Hoje o que nos mobiliza, nos arrebata e nos
intriga não é mais o destino dos grandes vultos, mas as forças anônimas da história.
Abandonamos pensar a história como totalidade efetuada, tanto faz se incoativa ou germinal,
em nome dos mais diversificados anseios de liberdade dos povos. Importa agora é perceber
como o papel crescente da diferença tem prevalecido sobre a identidade. Para Ricoeur, há
eventos que escapam à pretensão totalizadora do discurso. Eventos que, quaisquer que sejam
suas razões, demonstram a finitude do ato filosófico. Ora, ao se deparar com tais
pressuposições incontroláveis é preciso abandonar o hegelianismo e admitir que esse projeto
estava, ele próprio, submetido ao regime da finitude (cf. TN 3, 350-351).
A posição de Ricoeur atinge na relação entre Hegel a e finitude um brilho solar: uma vez
mais é Kant quem se impõe, ou melhor, o projeto do seu kantismo pós-hegeliano. É no
problema gerado pela relação evento-discurso que Ricoeur retrocede de Hegel para Kant – ou
para certos aspectos do kantismo em face de Hegel –, tomando o gigante de Königsberg como
o filósofo que pensa os limites. A obstinação de Kant, ensina Ricoeur, é a de nos lembrar que a
experiência humana não se eleva ao ponto de vista do todo, pois é sempre de alguma
perspectiva que refletimos as coisas. Portanto, a filosofia tem por tarefa tomar consciência dos
limites do saber. Com Hegel temos o oposto, pois os limites caem em mediações nas quais são
sempre ultrapassados. Sendo assim, como, então, responder à incessante experiência humana
fugidia do real rebelde, do mal, do evento? Não se trata de uma escolha entre limite ou
mediação, mas da consciência da liberdade como responsabilidade dos limites da existência e
42
Cf. F. Dosse, A história, op.cit. p. 245.
127
do saber. A consciência revela que há pontos intransponíveis, não para a liberdade,
permanentemente potência negativa e criadora, mas para o saber. A liberdade não é sabedora
de si mesma, ela é e se quer sempre um risco. A liberdade não tende para a segurança do saber
que encontramos em Hegel, aproxima-se, antes, da aposta da espera em Kant. O curso da
história humana não se baseia sobre o saber, mas inclina-se para seus limites (cf. TT, 26).
A suspeita que incide sobre a distinção ontológica imposta por Hegel conduz a reflexão
ricoeuriana à rejeição da hipóstase do espírito que, elevado acima das intersubjetividades,
erige a hipóstase do Estado. Noutro registro, o ponto de chegada dessa renúncia torna-se
ponto de partida porque a alternativa proposta, em substituição à hipóstase do espírito
objetivo, são as relações intersubjetivas. Existe um mundo cultural comum por onde passam
as relações de uns com outros, nele eus (moi) são confrontados com outrens (autrui), todos
em nível superior de relações comunitárias e societárias. Lembremos que em jogo se encontra
a dialética da liberdade e da instituição, agora traduzida em observância ao que Ricoeur
chama de individualismo epistemológico, isto é, no âmbito da compreensão que fazem os
sujeitos, uns em relação aos outros, buscando regular sua própria ação com base nessa mesma
compreensão em relação com os demais (cf. TA, 254-255). Daí porque não se pode
acompanhar Hegel no seu postulado segundo o qual o espírito do mundo é obra em
desenvolvimento na história que escapa aos seus atores.43
Não seria essa posição de renúncia análoga àquela que advoga o inacabamento do discurso
que Hegel pretensiosamente alega ter dado fim? Para Ricoeur, Hegel permanece em sua
intenção tornada pretensão e, no caso, tentação a ser cuidadosamente observada porque
totalizadora de toda história. Uma filosofia que se pauta pelo arbítrio do conflito das
interpretações, como é a hermenêutica filosófica, jamais pode deixar-se sucumbir ao apelo da
mediação total. Para Ricoeur, o questionamento dos conflitos entranhados na realidade produz
múltiplas e alargadas mediações. E a ambição de totalizá-las num sistema como o de Hegel é
empreendimento suspeito e fantasioso. Torna-se evidente, além do aspecto indireto e
mediador da reflexão, o aspecto fragmentário e, portanto, a impossível mediação total (cf.
RF/AI, 83).
Contudo, a hermenêutica ricoeuriana precisa manter sua relação com Hegel na base da
tensão entre tentação e renúncia. Por um lado, porque não concebe uma filosofia da
interpretação sem que esteja em constante debate com Hegel, uma vez que, nele temos a
43
Cf. F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 494.
128
convicção de que a experiência humana é sensata e que não estamos lançados no absurdo.
Mediante um sentido que nos atravessa e nos constitui acabamos por constituir esse mesmo
sentido. Em síntese, é essa reciprocidade que faz Ricoeur se manter próximo de Hegel: “a
substância é sujeito, por consequência o progresso do sentido é um progresso do sujeito”. De
outro lado, a irredutível diferença que responde pela função da finitude correspondente à
interpretação: toda orientação interpretativa, situada no ponto de vista do finito e não do todo
ocorre através dos discursos. Para Ricoeur, a pretensão hegeliana é irrealizável porque um
círculo insuperável se forma entre o intérprete e a coisa interpretada: o intérprete ao mesmo
tempo em que compreende, a partir de si mesmo, a coisa interpretada é por ela informado
acerca de seu próprio si. Ao acreditar ter tragado o ponto de vista do intérprete em benefício
do sistema, Hegel julga ter apaziguado a situação conflitiva inerente ao discurso (cf. TT, 27).
É deste modo que Ricoeur justifica sua renúncia progressiva da ideia de um sistema
totalizante. Buscando situar-se numa modesta posição dialógica, em que as diversas esferas
do saber são respeitadas em sua particularidade, Ricoeur não pode sustentar a menor
pretensão de englobar tais esferas do saber num mesmo movimento – o que, seguramente,
resultaria na redução de toda riqueza e, portanto, de toda pluralidade dos “jogos de
linguagem”. Se, por um lado, a tentativa de Hegel não pode deixar de ser compreendida, por
outro, ela permanece tentativa-tentação impugnada na passagem ao ato tentação-pretensão.
Por ser a hermenêutica filosófica um diálogo com toda singularidade, Hegel, pela sua
grandeza e como filósofo particular, não pode ser, à semelhança do que ocorre com todos os
outros filósofos singulares, negligenciado. Aliás, quanto a isso o título que apresentamos
acima é revelador da ideia que aqui advogamos. Sempre que nos deparamos com a
confrontação que Ricoeur se impõe em relação à filosofia de Hegel consolida-se em nós a
ideia de que Ricoeur quer se manter atado a Hegel, mesmo que seja por uma tênue linha. Dito
de outro modo, se, por um lado, por ser sua hermenêutica um movimento de diálogo,
sobretudo com as singularidades filosóficas, não pode sucumbir à ideia de uma totalidade
invencível, por outro lado, ao se permitir escrutinar as sendas mais distintas do pensamento
filosófico aufere destas um fio de Ariadne sempre possível de refazer caminho percorrido:
“penso que uma das tarefas da filosofia é proceder sempre a uma recapitulação crítica de sua
própria herança” (TA, /237).
A questão peculiar que envolve a leitura de Hegel é a de que essa singularidade filosófica
tem a estranha pretensão de ser o todo da história. Talvez a apreensão de Hegel pela
hermenêutica filosófica seja um caso atípico, pois ao invés de proceder superando o
129
estranhamento para fazer-se próximo, queira tornar-se próximo para fazer-se distante, fundada
na convicção de que quanto mais conhecemos Hegel, tanto mais somos capazes de resistir à
força de suas investidas. Ricoeur manterá, por todo percurso da sua obra, a mesma atitude
diante de pensamentos com o mesmo grau de complexidade. Na mesma linha se pronuncia
Labarrière ao afirmar que ser hegeliano é antes de tudo renunciar à imediaticidade do saber.
Quem se aferra no interior do sistema de Hegel não compreende coisa alguma, tampouco as
ruínas que se tornaram o próprio hegelianismo. Ricoeur, ao contrário desse primeiro
conhecimento que se definha deixando os restos de Hegel à beira da estrada, relaciona-se com
Hegel de forma muito mais problematizante.44
A relação de Ricoeur e Hegel permanece nesse processo dialético em que não podendo
afastar-se por completo, exatamente como na navegação espacial, permanece cônscio de
empreender uma órbita elíptica em torno do autor da Fenomenologia do Espírito, mas alerta
quando da aproximação do perigeu para não ser sorvido pelo maior campo de tração.
Acreditando-se devidamente equipado, Ricoeur não se permite nem ser tragado pela tentação
da totalidade, tampouco abdica da orientação que ela permite, não deixando, assim, entregarse aos confins das singularidades estilhaçadas. Ele entende que não se deve ceder nem sobre a
existência do horizonte do Uno, tampouco sobre a irredutibilidade da diversidade.45A postura
de Ricoeur é da adoção de um procedimento que trança discursos aparentemente opostos,
semelhante à confrontação operada entre a expressão da arqueologia do sujeito no modelo
psicanalítico com a teleologia do sujeito da Fenomenologia do Espírito.46 Não se verifica no
âmbito do acolhimento da hermenêutica filosófica nenhuma exclusão mútua – a despeito das
direções antagônicas assumidas por cada perspectiva –, mas a convergência quanto a uma
melhor explicitação do sentido e do próprio sujeito.
Diante de Hegel, Ricoeur permanece entre tentação e renúncia e, portanto, se inscreve na
mesma problemática que vê o sistema do absoluto incontornável, mas inconcluso e, ademais,
impossível de se concluir. A tentativa hegeliana não é renunciada como tentativa
propriamente, mas em seu aspecto tentador. A tentativa deve continuar tentativa e não
acabamento. Para a hermenêutica ricoeuriana o trabalho filosófico não é nunca conclusivo, ele
sempre prossegue.
44
Cf. P-J. Labarrière apud F. Dosse, idem. p. 497.
F. Dosse, Le sens d’une vie, op. cit. p. 498.
46
Idem. p. 496.
45
130
Eis por que ser pós-hegeliano não significa ser anti-hegeliano: não se trata de argumentar
contra Hegel e sim afirmar que não é mais possível pensar em conformidade com ele, mas
depois dele. Entretanto, é preciso considerar, segundo Ricoeur, que o abandono de Hegel não
deixa de produzir, naquele seduzido pela potência criadora do seu pensamento, o preço da
ferida incurável. E malgrado as legítimas lamúrias que sempre acompanham o trabalho de
luto, este não se concretiza sem o empreendimento da coragem (cf. TN 3, 351). A esse
conselho se soma o qualificativo de significação hegeliana, portanto, paradoxal, que Dosse
atribui a Labarrière, para o qual o “Renunciar a Hegel” não é bem uma despedida, mas
expressão do permanente desaparecer.47
Se a emenda é válida, então, neste caso, a coragem deve ser redobrada, pois, saibamos
todos, conscientes ou não de sermos herdeiros de Hegel, que o velório é demasiadamente
custoso porque é o próprio morto que resiste ao sepultamento.
3.3. Ricoeur e a sua leitura do Hegel de Weil
Retomemos a questão anteriormente deixada em suspenso quando da apreciação de
Ricoeur sobre a categoria do Absoluto na Lógica da Filosofia. Trata-se da primeira questão de
sua aporética leitura: “qual é a significação da categoria do Absoluto?”.
Em sua apreciação a essa questão, Ricoeur salienta que é preciso ter claro que a categoria
do Absoluto no texto weiliano não é o término do discurso, dessa forma, querer falar de um
momento hegeliano é mais desvio que esclarecimento. Ricoeur indica a passagem na Lógica
em que Weil nos adverte acerca das diferenças entre seu sistema e o sistema de Hegel:
a exposição (uma exposição) do sistema está diante dos olhos de todos na
Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel. Remetemos – pura e
simplesmente – o leitor a ela, sem medo de confusão: as diferenças entre seu
sistema e a presente análise categorial são demasiado claras no que tange ao
fim e também ao início, e à sequência do presente trabalho irá torná-las
ainda mais visíveis: o Absoluto não é aqui a última categoria (LF, 478).
Para Ricoeur, o significado desta declaração realça a virada antropológica sofrida pela
categoria do Absoluto e, assim, não é mais nenhum hegeliano que adentra nela. Destaca a
epígrafe de abertura da categoria:
O homem que não se contenta em expressar-se no conflito como imagem,
mas volta-se para o conflito para aprendê-lo em sua universalidade concreta,
chega ao discurso único e absolutamente coerente no qual ele desaparece
47
Idem. p. 497.
131
enquanto personalidade: é o pensamento que existe pensando-se a si mesmo:
o Absoluto (LF, 449).
Constata que o homem se tornou o centro da reflexão, não em sua particularidade, mas na
sua humanidade, ou seja, o que qualifica sua particularidade humana.48 Segundo Ricoeur, tal
característica deliberadamente antropológica da categoria do Absoluto se explica bem antes,
quando a categoria Deus é abandonada. Weil descreve ali, aos olhos do hermeneuta, a atitude
do crente em face da conjunção religião-filosofia, que em termos da Vorstellung e Begriff
hegeliana, perdeu todo o significado, pois não há mais coincidência de conteúdo entre religião
e filosofia. O que ocorre é a atitude do crente, homem que perdeu a fé e se lança para o
Absoluto.
Eis porque é um homem humano, já humanizado, que chega ao Absoluto. Não há filosofia
do ponto de vista de Deus, mas do ponto de vista do homem. Weil pode ser lido como aquele
que, depois da categoria Deus, deu “adeus à Deus”, um adeus dilacerante constatado pelas
admiráveis páginas dedicadas ao crente, em especial o imenso respeito e a profunda
compreensão demonstrada, ainda que a fé, nessa análise, se mantenha confinada no
sentimento e privada de determinações, o que seria para Hegel, segundo Ricoeur, uma
religião. As categorias que intercalam o pico Deus e o ápice Absoluto – são elas, Condição,
Consciência, Inteligência, Personalidade –, contribuem para a definição do caráter
deliberadamente antropológico da categoria do Absoluto ao humanizarem todo o processo na
direção desta: a Condição, por exemplo, “rejeita a profanação integral do homem da perda da
fé, porque é ela que, em retrospectiva, revela a fé como fuga diante da realidade da vida”.49
Diz a epígrafe dessa categoria: “A fé deixa o homem na liberdade sem um conteúdo
determinado por sua liberdade. Ela aparece então ao homem na vida como uma fuga diante a
realidade desta vida – que é a condição” (LF, 287).50
Para Ricoeur, ao abandonar a fé e entrar no mundo para transformá-lo pelo trabalho, para
observá-lo, conhecê-lo cientificamente e implantar uma história, o homem se esforça por
interpretar toda essa condição em termos de progresso. As demais categorias sucessoras, cada
uma a seu modo, acompanham e agravam esse processo de humanização até a chegada ao
Absoluto: interiorização manifesta pela consciência, livre flutuação da inteligência em querer
compreender tudo e não se compreender, interpretação de si em termos de crise e de conflito
da personalidade. Sobre essa última, Ricoeur destaca no texto weiliano: “A personalidade está
48
P. Ricoeur, art. cit. p. 408.
Idem p. 409.
50
LP, 203.
49
132
sempre na crise; sempre, isto é, a cada instante, ela se cria ao criar sua imagem, que é seu por
vir. Sempre ela está em conflito com os outros, com o passado, com o inautêntico” (LF,
428).51
Ricoeur chama atenção para o fato de a palavra Absoluto ser pronunciada no momento da
formulação da categoria da Personalidade, que é a antecessora imediata da categoria do
Absoluto. Cita a epígrafe da categoria da Personalidade: “O homem que não se contenta com
o jogo da inteligência, mas se interpreta a si mesmo – sem renunciar, no entanto, à
inteligência –, se constitui como centro de um mundo que é o de sua liberdade. Ele é valor
absoluto, fonte de valores: personalidade” (LF, 399).52 Eis a razão de a categoria da
Personalidade ser já pós-cristã, com força de ser secularizada.
Para Ricoeur o Absoluto se traduz em termos inteiramente humanos em virtude de sua
relação com a crise e o conflito que marcam a categoria da Personalidade. O Absoluto é,
como lembra no texto weiliano, o pensamento pensando a si mesmo (LP, 319 []), isto é, um
“salto da atitude para fora do conflito a fim de colocá-lo sob o título da particularidade
compreendida”.53 Em que sentido ainda é possível falar de um hegelianismo desse Absoluto?
Indecidível é a resposta de Ricoeur,54 pois se não há um conteúdo hegeliano, persiste uma
função hegeliana, no sentido de que, “o discurso no qual o Absoluto se compreende tem um
caráter total que parece excluir que haja um depois, um além do Absoluto”.55
Assim, por uma diretriz totalizante da categoria do Absoluto, Weil, segundo Ricoeur,
“repetiria o discurso hegeliano sem reproduzi-lo”. Para tanto, chama atenção para as
ressonantes e abundantes fórmulas hegelianas utilizadas na Lógica da Filosofia na categoria
do Absoluto:
Não existe discurso coerente do indivíduo: existe discurso coerente... O
homem compreende, contanto que seja esse discurso em sua totalidade... O
que agora se exige do homem – o que ele exige de si mesmo – é mais que
isso, e distinto: já não basta se conformar ou se subordinar a um outro para
se ver transformado ou refletido: trata-se do Absoluto no qual o indivíduo
51
LP, 303.
LP, 283.
53
P. Ricoeur, art. cit. p. 410.
54
Essa indecisão sobre Hegel se aplica muito mais a Ricoeur. Não se verifica uma indecisão de Weil quanto a
Hegel, aliás, Weil resolve-se com Hegel na categoria do Absoluto e, depois, se houver um Hegel, ele estará,
como todos os outros, repensado, integrado ao sistema da Lógica. Para falar como Perine, Weil reteve do sistema
hegeliano além de seu resultado o problema da unidade dessa obra cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit. p.
171. Ricoeur oscila sempre entre tentação hegeliana (TA, 251ss) e renúncia de Hegel (TR 3, 280ss) e essa
leitura pendular de um suposto hegelianismo de Weil me parece muito mais um prélio intimo que o hermeneuta
trava sempre que se defronta com pensamentos que se situam na órbita de Hegel, mesmo aqueles que estão entre
seus mais severos críticos.
55
P. Ricoeur, art. cit. p. 410.
133
52
desaparece... O homem compreende (contém) a personalidade, e o homem é
o pensamento, e o pensamento é o ser. A nova atitude é alcançada. Já não é
necessário buscar como o homem e o Ser se encontram: eles são um no
discurso. O que precisa ser não explicado, mas explicitado, é essa unidade
como unidade dos conflitos em sua totalidade... Para o Todo, não existe outro
(LF, 452 ss.).
Estariam nesse ponto identificadas as raízes de todas as dificuldades de leitura das últimas
categorias, entre as quais a de “explicitar a unidade dos conflitos na sua totalidade”. 56 O que
parece problemático para Ricoeur é a identificação do discurso coerente, projeto levado
adiante por Weil, com o discurso totalizante do Absoluto, aqui abandonado.57 Ricoeur diz
compreender bem os motivos pelos quais se deixa o Absoluto, aliás, estes são até fáceis, uma
vez que não se trata mais aqui do Espírito e sim do próprio homem, da humanidade nele.
Contudo, a mesma compreensão não se aplica à manutenção do projeto de discurso coerente
além do discurso do Absoluto, tomado como “discurso único e absolutamente coerente”.
Pergunta Ricoeur: permanecerá esse discurso coerente apenas deixando cair o epíteto único e
o advérbio absolutamente?58 Situada dessa maneira, a Lógica da Filosofia será encarada, a
partir de suas últimas categorias, como um combate dramático para preservar a coerência
para além do discurso absoluto, que é também o discurso do Absoluto.
O que intriga o hermeneuta é o fato de o alvo da crítica weiliana dirigida a Hegel ser
exatamente e igualmente o que ela conserva posteriormente: a pretensão do discurso
absolutamente coerente. Ricoeur desnuda aquilo que o anti-hegelianismo de Weil critica de
maneira mais ferina: “Hegel deu somente o em si do Absoluto não seu para si”. Por que razão
então atravessar apenas uma pretensão se ela sequer é uma atitude a ser elevada ao status de
categoria? No entanto, segundo Ricoeur, Éric Weil parece nos advertir acerca da necessidade
de se passar pelo modelo de coerência introduzido por Hegel, em especial o da Enciclopédia,
para termos o direito ao título de pós-hegelianos, pois o caminho é muito mais árduo para
quem nunca pensou em ser pós-hegeliano. Aquele que não passou pela empreitada da
Enciclopédia não sabe o que ali se fala e nem o que significa o falar.59
Para Ricoeur, “só o abandono da Personalidade, no horizonte do discurso único e
absolutamente coerente, dá o direito de levar ao discurso as atitudes que nascem da recusa do
56
Idem p. 411.
Com Hegel, segundo Weil, a filosofia pensa-se a si mesma, o Absoluto é a categoria na qual a filosofia se
compreende e, por se compreender, ela sabe que nenhuma totalização deve deixar de fora o que lhe recusa em
conhecimento de causa, isto é, depois que a própria filosofia se compreendeu. Ora, não é apenas possível, como
o é efetivamente, a recusa filosofia, no entanto, a filosofia deve buscar compreender mesmo isso (sua recusa)
num discurso coerente, essa é sua intenção, não uma totalização, é discurso coerente.
58
P. Ricoeur, art. cit. p. 411.
59
Idem.
134
57
Absoluto e do seu discurso”.60 Cita a passagem da Lógica da Filosofia:
Se a forma que esse sistema assumiu em Hegel é uma forma definitiva, a
forma do sistema, se essa forma concreta cumpre o que promete, eis uma
pergunta que é uma das mais importantes para o filósofo e o historiador da
filosofia. Mas seja qual for a maneira que se responda a ela, e mesmo
supondo que a resposta seja negativa, nem por isso é menos verdadeiro que
Hegel foi o último na breve série dos grandes filósofos: ele descobriu a
categoria filosófica da própria filosofia. É possível que ele tenha descoberto
em si, isto é, para nós, que nos compreendemos, num mundo transformado
por sua descoberta, o que ele descobriu, sem talvez o compreender
completamente. Mas esta crítica – se é que se trata de uma –, tornou-se
possível graças a ele (LF, 480-481).
Questiona o filósofo hermeneuta se essa severa advertência dirigida aos fenomenólogos,
hermeneutas, pensadores políticos e pensadores da política, não se aplica ao próprio Éric
Weil, isto é, contra sua própria tentativa de perseguir e de preservar para além do Absoluto o
projeto do discurso coerente, ao preço de atravessar as “fissuras irreparáveis” –, segundo a
expressão de Pierre-Jean Labarrière.
Para Ricoeur, as duas categorias posteriores ao Absoluto e antecessoras da Ação, a Obra e
o Finito, constituem a revolta não somente contra a coerência hegeliana, mas contra toda
coerência. Éric Weil, ao descrever tais atitudes derivadas do escândalo da razão pergunta-se
pelo resto que vem depois do pensamento – pensamento, razão, e não somente discurso
absoluto, sublinha Ricoeur. Uma vez mais a Lógica da Filosofia é citada:
Resta o escândalo da razão. O homem não pode pensar mais longe que o
Absoluto, visto que pensar é buscar a coerência e que a coerência é tudo, em
si e para si. Mas o homem pode haver pensado, pode haver concordado com
tudo o que a ciência ensina, e pode não pensar, não querer pensar, se recusar
ao Pensamento (LF, 488).
Ricoeur acredita tratar-se aqui ainda de uma fala típica do homem do Absoluto
escandalizado pelo fato de ser ultrapassado por uma atitude que lhe escapa (cf. LF, 488). 61 O
pensamento se escandaliza com a instauração do “contra-pensamento” pela a Obra e pelo
Finito. Eis porque Ricoeur fala da dramaticidade vivida ao fim da Lógica da Filosofia. Tanto
o abandono da categoria Deus quanto o abandono da categoria Absoluto são aqui simétricas
por produzirem o mesmo efeito: perda da fé na primeira e escândalo da razão na segunda.
Ambas marcadas pela dor, pelo desamparo, pelo dilaceramento do sujeito. O que difere uma
ultrapassagem da outra é que a segunda é com conhecimento de causa, isto é, ela se sabe póshegeliana.
60
61
Idem.
(LP, 346).
135
A leitura de Hegel por Weil não nos parece distante da leitura que faz o próprio Ricoeur.
Daí porque sua conduta quanto ao filósofo alemão não se assemelha a tantas outras, tanto na
filosofia como fora dela. Além do mais, no quesito Absoluto, é sempre mais fácil rejeitar a
concepção de Hegel de uma vez por todas, como fazem muitos dos pensadores
contemporâneos, do que proceder como Ricoeur que, não obstante seus senões, tece
considerações positivas, ao mesmo tempo em que, mantendo equidistância dela, não se deixa
seduzir por completo a ponto de não conseguir se desvencilhar.
3.4. Os enredos do poder e a theoria
Em maio de 1957 surge, na revista Esprit, o famoso artigo O paradoxo político, refletindo
sobre os dois grandes eventos do século – As chamas de Budapeste e o Relatório de
Khrushtchev ao XX Congresso do PCUS. Eventos que explicitam a dupla natureza do poder, a
saber, que o político é atravessado por uma tensão entre a racionalidade e o mal. Dois anos
antes Ricoeur tinha publicado uma coletânea de textos de “ocasião” aos quais nomeou
História e verdade, organizados em dois movimentos articulados de idas e vindas em relação
à estrutura interna desta obra: um primeiro dedicado à elucidação dos conceitos diretores, isto
é, de cunho epistemológico e metodológico e, em seguida, textos de intervenção na crise
civilizatória em curso ou de orientação de pedagogia política (cf. HV, 07). A segunda edição
desta obra em 1964 trazia o artigo mencionado e o inseria, após meditada deliberação, em seu
segundo movimento.
Essa última observação, que poderia parecer mera curiosidade editorial, é, na verdade, uma
constatação de que uma apreciação desse artigo já não pode, a nosso ver, prescindir do lugar
escolhido pelo próprio autor para situá-lo. Noutros termos, o artigo O paradoxo político
insere-se no contexto da investigação sobre os enigmas do poder político que desafiam a
reflexão filosófica e a ação desta reflexão no que interessa ao mundo da cultura (cf., HV,
20).62 Como já tínhamos afirmado, para Ricoeur, pensar e intervir constituem duas facetas de
uma mesma abordagem filosófica.
O artigo O paradoxo político é, assim, um texto cujo movimento é também retrospectivo
em relação à pesquisa das significações conceituais, pois a interpretação dos eventos dos
quais quer dar conta pressupõe uma theoria ou, nas palavras do autor, um certo orgulho de ser
62
Bastaria lembrar que a filosofia ricoeuriana está sempre às voltas com o que toma como pressuposto
fundamental, o não filosófico, nesse caso a violência e o mal como o que precede toda filosofia cf. D. Pellauer,
op. cit. p. 18.
136
“intelectual” (cf., HV, 08). Contudo, não nos propomos agora desenvolver uma reflexão capaz
de articular o artigo em questão com o todo dessa fascinante obra – o foco desse estudo nos
impõe uma abordagem mais restritiva. Importa tão somente explicitar a circunscrição desse
texto no conjunto e no coração dessa obra como um ensaio que, ao pertencer a um todo maior
que o envolve, contém em si o germe glorificador “da palavra que reflete com eficácia e que
age mediante reflexão” (HV, 09).
Será esse o núcleo de compreensão decisivo para o curso desta investigação. Antes, porém,
é preciso retomar a diretriz da tese advogada no texto, bem como alguns aspectos da
interpretação de Ricoeur acerca dos eventos a que ela se refere.
3.4.1. O paradoxo do político
A análise ricoeuriana se inicia, após breve preâmbulo sobre a Revolução da Hungria e a
sua violenta interdição pelas tropas do Exército Vermelho, advertindo que aqueles –
sobretudo, os marxistas – que não creem na autonomia relativa do político diante da história
econômico-social, são incapazes de perceber que o problema do poder em regime socialista
não difere fundamentalmente de qualquer outro regime e que, ademais, é agravado por
possibilidades superiores de tirania. O que exigiria, nesse caso, controles democráticos mais
eficazes e rigorosos a fim de conter essa sanha da racionalidade de impor-se a qualquer custo
(cf. HV, 252).
Todo o texto gira em torno da tese da autonomia do político e esta é, por sua vez, definida
pela dupla natureza do poder, portanto, do paradoxo segundo o qual as possibilidades de
perversão são concomitantes e proporcionais ao aumento da racionalidade (cf. HV, 252). Por
ser dotado de uma racionalidade específica, o político é também portador de males
específicos irredutíveis a qualquer base econômica. Senão o Estado Soviético, alvo prioritário
das reflexões de Ricoeur naquele momento, teria sido a consagração da libertação do homem
de toda alienação política, uma vez que se propunha colocar termo à exploração econômica.
Mas não foi nada disso que se viu.
O artigo de maio de 1957, como texto que se volta plenamente para a história, tenta captar
seu tempo no conceito ao mesmo tempo em que submete a escrutínio os acontecimentos – ou
se se prefere, reler o poder à luz da theoria. Assim, a tese da dupla natureza do poder é
também sua mais dura crítica ao monstrengo que se tornara então o Estado Soviético. Um
Estado planificador que, por ser tal, era mais racional e, igualmente, passional. Suas mazelas
137
(os expurgos stalinistas nos gulags, as perseguições, prisões e assassinatos da polícia secreta,
etc.), denunciadas pelo Relatório de Khrushchev, são também a prova irrefutável dessa dupla
natureza da política, pois foi querendo eliminar a exploração econômica que o político
mostrou sua faceta mais cruel à claridade do dia, instituindo todos os expedientes típicos do
abuso de poder. Essa será a tônica de todo o ensaio: “É mister sustentar esse paradoxo, de que
o maior mal adere à maior racionalidade, que existe alienação política, porque o político é
relativamente autônomo” (HV, 253).
Tal autonomia se compreende quando a política é tomada como uma preocupação com o
todo da vida humana. Desde os pensadores antigos, a política embora portadora de fortes
elementos irracionais, pertence ao campo do racional, caso contrário, seria ela, a própria
razão, a sucumbir. A filosofia, assim, ao integrar a política ao seu corpus, lhe confere
movimento e a coloca a serviço de seu projeto. Eis porque a política para os antigos, segundo
Ricoeur, detém seu telos na “coisa pública” ou no “bem comum” (cf. HV, 253). É exatamente
nisso que reside a autonomia do político: a procura da realização da meta humana de
humanizar o homem elevando-o à condição de cidadão. Esquece-se, frequentemente, que essa
é também a razão pela qual ética e política são correlatas. A razão é o todo do qual a política
parte e para a qual está voltada. E é esse universal da razão que define a natureza específica
do político, que define, portanto, sua autonomia e irredutibilidade diante da esfera econômica.
Para Ricoeur, toda e qualquer crítica à especificidade do político deve pressupor essa
distinção cuja equação básica em filosofia política encontra-se formulada no Contrato Social,
ou seja, no pacto de todos e de cada um com os outros que constitui o povo propriamente e,
nesse sentido, o Estado (cf. HV, 256). Protestos, por mais fundamentados que sejam, contra
essa ideia, alegando, seja sua abstração e idealidade seja sua hipocrisia e enganação, não
suprimem a força intrínseca deste ato virtual que é ato fundador da nação, antes o pressupõe.
É “esse ato, dirá Ricoeur, que constitui a política como tal” (HV, 256). Por outro lado, é
justamente através da idealidade deste ato fundador – ato inaugural no qual se reconhece a
existência de uma universalidade responsável pela marcha da política – que facilmente a
mentira é inserida na política:
o político está inclinado à mentira, porque o vínculo político tem a realidade
da idealidade: – essa idealidade é a da igualdade de cada um diante de
todos... mas, antes de ser hipocrisia atrás da qual se esconde a exploração do
homem pelo homem, a igualdade perante a lei, a igualdade ideal de cada um
diante de todos, é a verdade do político. É ela que faz a realidade do Estado.
(HV, 256-257).
138
O Estado, assim, se revela como a maior expressão da idealidade que também é sua
realidade. Noutros termos, a enganação na política só é possível porque essa idealidade de
uma universalidade lhe serve como álibi. Uma classe dominante só pode valer-se desse trunfo
para aparelhar determinado Estado (ou todo e qualquer Estado empírico) porque esse Estado
possui em sua estrutura jurídica essa universalidade como realidade anterior a toda
exploração. “Para tornar-se Estado uma classe deve fazer penetrar seus interesses na esfera da
universalidade do direito” (HV, 257), diz Ricoeur numa formulação curiosamente muito
próxima ao que Gramsci entende por hegemonia.63 É assim que uma idealidade do direito
acaba legitimando a realidade da força. A realidade da política, destarte, se configura
profundamente labiríntica, uma vez que é pela legitimidade desta abstração que os
oportunistas de plantão mobilizam o discurso enganador que ludibria em nome da liberdade.
O escândalo é que a palavra, única garantia da fundação política e de sua realização, sempre
pode ser falsificada. A grande dificuldade da política, segundo Ricoeur, é que ela se inscreve
nesta dubiedade do acordo fundante: “fazer surgir a coincidência de uma vontade individual e
passional com a vontade objetiva e política, em suma, fazer passar a humanidade do homem
pela legalidade e sujeição civis” (HV, 258).
Ora, é no plano das paixões, do empírico, do particular, etc. que se revela o jogo bruto da
política. Mas, por outro lado, é também nesse mesmo plano que qualquer transformação pode
ser produzida e receber seu sentido. É na relação com o econômico, mas não a ele
subordinado, que essa situação é atingida e desnudada. A crítica fulminante de Marx alcança a
alienação política nesta dimensão ao revelar a falsa consciência do homo oeconomicus. De
outra maneira, a mentira que se engendra no político pela abertura da legitimidade da
idealidade (também legitimidade da força) é desmascarada quando vista a partir do mundo do
plano econômico sem se deixar reduzir a esta dimensão.
A alienação política é a contraface da autonomia política e não subproduto das relações
econômicas. Lembremos que o labirinto do político se caracteriza, por um lado, pela
idealidade que ao fundamentar uma comunidade real – porque legítima comunidade do direito
– funda a própria liberdade dos cidadãos universalmente, pois iguala todos nesse princípio
formal; e, por outro lado, o mesmo princípio torna-se ficção apta a vestir a hipocrisia de uma
63
Gramsci considera dois grandes planos superestruturais que perpassam todo o tecido social: a sociedade civil e
a sociedade política (o Estado). Esses correspondem, no âmbito da cultura, à função de hegemonia exercida pelo
grupo dominante em toda sociedade e outra, do âmbito do direito, a expressão hegemônica do comando jurídico
do governo. Cf. A. Gramsci. Cadernos do cárcere. v. 2. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2 ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 12.
139
classe dominante. O mal em política ocorre nesta passagem à existência civil pela lei
consentida por todos (cf. HV, 256). O fosso abissal na passagem do político à política, da
reflexão à ação, da theoria à práxis, é que possibilita as distorções no discurso, uma vez que o
específico do político se encarna na especificidade dos meios da política. São os meios que
determinam a política, não existe política que não se depare e não tenha que escolher entre os
meios tecnicamente mais adequados no cumprimento de seu propósito. É dessa forma que se
pode definir a política como exercício do poder, seja na aquisição ou conservação, seja na
administração das coisas ou no governo das pessoas. Esse costuma ser o temerário de certas
análises do político que, situadas fora do seu tablado e das coxias (ou mesmo quando lá
inseridas), ignoram o funcionamento das molas do poder.
Ocorre que para evitar esse discurso moralista, a política deve ser confrontada
primeiramente com o econômico-social – a fim de tornar evidente sua autonomia diante dessa
esfera –, e somente depois com a ética (cf. TA, 387ss). Do político à política é que se
compreende que o “idealismo do direito não se mantém na história senão pelo realismo
arbitrário do príncipe”, que “a esfera política se divisa entre o ideal da soberania e a realidade
do poder, entre a soberania e o soberano, entre a constituição e o governo” (HV, 264). Ricoeur
lembra que é essencialmente para essa contradição que a crítica de Marx ao Estado chama
atenção: a denúncia de uma ilusão que pretende fazer do Estado o verdadeiro mundo do
homem, substituindo o mundo real pelo irreal sem resolver as contradições reais nascidas pela
aplicação do direito fictício nas relações entre os homens (cf. HV, 263).
O grande problema é que “Sonhamos com um Estado em que estivesse resolvida a
contradição radical que existe entre a universalidade visada pelo Estado e a particularidade e o
arbitrário que a afeta na realidade; o mal é que esse sonho está fora de alcance” (HV, 264). A
alienação política é, assim, algo constitutivo da existência humana, existência que comporta
em si mesma a cisão da vida abstrata do cidadão e a vida concreta do mundo do trabalho (cf.,
HV, 265). No entanto, para Ricoeur, o marxismo não deixou espaço para uma problemática
autônoma do poder na medida em que reduz toda e qualquer alienação à alienação econômica
e social (cf. HV, 265). A questão é que o mal político só se torna grave porque supõe, ao invés
de negar, uma totalidade diretora das ações humanas na qual se realizaria o Estado, caso
contrário, o mal político não teria a menor importância.
Ricoeur concluirá seu artigo O paradoxo do político no sentido da impossibilidade de o
Estado deperecer, como quer a proposição “desastrosa” do marxismo. Assumida essa posição,
ela lançaria para um futuro indeterminado o fim do mal do Estado, do mal político, quando na
140
verdade esse problema prático exige ser confrontado hic et nunc (cf. HV, 267). Ricoeur elenca
um conjunto de dispositivos de caráter universal irrenunciáveis para todo e qualquer Estado,
sobretudo para o Estado de regime socialista. Dado que esse Estado é diagnosticado como
mais passional porque mais racional, por estender o cálculo e a previsão a setores da
existência humana que outrora se encontravam entregues ao acaso e ao improviso, é ele que
precisa de efetivos controles democráticos a fim de estabelecer limites ao seu poder. O Estado
não podendo desaparecer também não pode existir demasiadamente.64
Pois bem, é nesse ponto que o diálogo entre Paul Ricoeur e Éric Weil pode ser retomado.
Ora, as diretrizes acima evocadas para impor limites ao Estado, por conta da natureza
paradoxal do poder estão, curiosamente, em franca harmonia com o pensador franco-alemão.
Porém, é preciso, antes, verificar algumas considerações de Ricoeur à Filosofia Política.
3.4.2. Filosofia Política e o problema do indivíduo
No intervalo de 5 meses, o número de outubro de 1957 da revista Esprit traz uma
instigante resenha de Ricoeur à Filosofia Política de Éric Weil. Crônica capaz de perceber que
nem tudo de importância criadora no universo filosófico se passava no devant de la scène
daquele momento da filosofia francesa.65 O que nos parece central nesse segundo artigo é que,
à primeira vista, Ricoeur orienta-se por uma leitura do texto weiliano, preferencialmente,
singularizada, destacando o indivíduo em prejuízo de uma abordagem quanto à forma
especulativa de Éric Weil. As questões lançadas logo no início de sua crônica tentam
apreender em que dimensão está encerrado o indivíduo no discurso da Filosofia Política.
Indaga seu interlocutor sempre no sentido da insistência em apresentar teses nas quais o
indivíduo aparenta ser sacrificado em razão de uma suposta universalidade que, aliada,
primeiro, a uma comunidade histórica e, em seguida, ao Estado (cf. L1, 42), levaria o
indivíduo a uma identificação, rápida e sólida, com a paixão e a violência (cf. L1, 43).
64
Não se trata aqui da defesa do Estado mínimo como é a proposição do chamado neoliberalismo. Na tese do
ultraliberalismo, o Estado é visto como um mal necessário por sua natureza intervencionista e, nesse sentido,
como algo que no fundo obsta o desenvolvimento da sociedade. Para o estabelecimento de uma sociedade
totalmente livre, segundo a perspectiva do liberalismo econômico, seria melhor que o Estado desaparecesse.
Rigorosamente falando, socialistas e anarquistas – malgrado as amplas diferenças que mantém entre si e com o
liberais –, acabam, no limite, convergindo para tese do desaparecimento do Estado. Para uma melhor
caracterização destas semelhanças remetemos ao livro de P. Canivez. Educar o cidadão? Tradução de Estrela dos
Santos Abreu e Cláudia Santoro. Campinas, SP: Papirus, 1991, p. 15ss.
65
Cf. M. Perine, Apresentação da tradução brasileira de FP, p. 05. A mesma observação em J.-M. Buée, art. cit.
p. 390.
141
Essas questões conduzem Joel Roman a dizer que há um protesto de Ricoeur a Weil, por
considerar que o hermeneuta herda de Weil o problema antropológico, a saber, a
irredutibilidade do homem como, ao mesmo tempo, razão e violência. A percepção desse
intérprete é que Weil por vezes insinuaria, aos olhos de Ricoeur, querer separar esses dois
polos, cujo resultado seria a dicotomia na abordagem política: de um lado, um formalismo
político (idealismo político) que garantiria ao Estado seu papel normativo porque racional
contra a violência do indivíduo; de outro lado, o esquecimento de que o próprio Estado tem
origem na violência assim como todo indivíduo partilha da razão. Protesto agudo que faria
Ricoeur convocar outros textos de Weil para opor ao próprio Weil.66
Pois bem, essa posição é difícil de ser sustentada por duas razões: primeiramente, essa
atitude faria Ricoeur parecer alinhado a uma corrente filosófica que rejeitaria um maior acento
sobre a racionalidade do político para, em contraposição, inscrever neste a pegada mais forte
da singularidade do mal do poder. Entretanto, o próprio Ricoeur sugere resistir à tentação de
se contrapor a abordagens conduzidas pela forma e pela força (cf. HV, 253). Para ele, como
dissemos acima, é necessário manter a tensão sobre estas duas investidas.
Em segundo lugar, observando a própria advertência logo no início da Filosofia Política
quanto a qualquer concessão à parcialidade da análise, Weil chama atenção para o que toda
abordagem filosófica (se se pretende tal) dever observar: “só a totalidade estruturada pode ser
verdadeira” (FP, 11), pois o particular não é senão uma abstração que, ao ver um aspecto do
todo, efetua um recorte mecânico tentando isolar um essencial, o que toma por fundo dos
fenômenos e, assim, podendo ser levado ao equívoco de se refutar a moral pela política e vice
versa, submetendo ao mesmo destino lei e liberdade, sociedade e Estado, as ideias e as
realidades (cf. FP, 13).
Para Éric Weil, o indivíduo não está ausente da reflexão política, mas também não é ele
que constitui o fundamento da política. O indivíduo que importa é aquele que acede ao
universal. O universal não desconsidera o indivíduo, antes, passa por ele (FP § 6 e 7). Ricoeur
é bem consciente disso quando afirma:
(...) no termo do movimento que vai da moral formal ao Estado mundial, a
política reencontra seu sentido moral; mas a reflexão passa agora pela
história dos homens: o que era problema para o indivíduo voltado sobre si
mesmo revela-se como problema posto realmente pela ação política, cujas
condições reais de solução são criadas pela ação política – a última palavra
pertence, contudo, à prudência dos governantes, que são indivíduos. Só a
filosofia política permite dizer que, finalmente, “o indivíduo razoável está
66
Cf. J. Roman, Ricoeur entre Hanna Arendt et Éric Weil, Esprit n. 140-141, jui./aût (1988): p. 42.
142
acima do Estado” (p. 254), porque inicialmente “o sentido do Estado está na
existência livre e razoável” (p. 237). Mas essa verdade final do indivíduo
passa pela mediação do Estado... Quem aceita esse longo desvio, esse
aprendizado dos intermediários indispensáveis, descobre o princípio de uma
ação sensata e, acima do mercado, a possibilidade de um além da ação, a
possibilidade da “teoria”, da “visão do sentido”, em poucas palavras, da
filosofia como discurso. (L1, 56-57).
A partir dessa robusta declaração, podemos dizer que não é propriamente a análise que se
desdobra pela anterioridade da forma que é censurada por Ricoeur. Aliás, na confrontação
com a história humana ela é requerida, dado que o que nela se aprecia é o outro irredutível do
discurso: a violência. Sendo assim, constata-se que é uma investigação conduzida pelas
formas que atinge com maior precisão a realidade da violência. Lembremos que toda
discussão indicada pelo O paradoxo político procura, a partir das formas do poder, explicitar
as práticas assumidas pelo mal político. A tese segundo a qual a crescente racionalidade que
termina por produzir distorções políticas perigosíssimas é resultante da tensão entre theoria e
poder, entre razão e violência. Ora, não seria essa uma investigação que se propõe cada vez
mais singularizada porque toma como ponto de partida o plano da universalidade? O mal
político não é aqui desnudado em sua particularidade porque debitado da totalidade
envolvente da comunidade a que se chega pela análise reflexiva?
A resposta é positiva, sobretudo, se se leva em consideração a enfática recusa de Ricoeur
em opor theoria (que procede a análise do “tipo” ou formalista) e práxis (cf., HV, 8ss). O
paradoxo político situa-se no entrecruzamento das análises que se dirigem preferencialmente
aos conceitos e que se desenvolvem em choque com os fatos históricos: “Não hesitaria em
dizer que o paradoxo político consiste precisamente nesta confrontação entre a forma e a força
na definição do Estado” (TA, 394).67
Ora, é, precisamente, nessa direção que Éric Weil problematiza a ação em sua Filosofia
Política. É muito significativo que Weil compreenda o termo política no sentido aristotélico
como consta nas primeiras linhas da Filosofia Política.68 Sabemos que para Aristóteles a
política pertence ao campo das ciências práticas e não à atividade puramente teorética que,
por sua vez, se sobrepõe ao prático e o integra. A essa indicação a Filosofia Política dá o seu
próprio tom. Dito de outro modo, embora sob o domínio do contemplativo, sua análise do
67
Uma outra formulação que remete a mesma duplicidade originária do poder: “Fui sempre muito impressionado
pelo caráter de dupla face do poder político, por isso o chamei de paradoxo político. (...) Por um lado, a sua
racionalidade. (...), mas o Estado tem outra face, a racionalidade tem um avesso: o resíduo da violência
fundadora (...), que se deve, em parte, a uma herança, mas a uma herança singular, cuja natureza é, para mim,
cada vez mais enigmática.” (CC, 138).
68
« Le terme politique sera pris dans ce livre em son acception antique, aristotélicienne, de politiké
pragmatéia,considération de la vie em commun des hommes selon les strutures essentielles de cette vie. » (PP § 1).
143
fenômeno político não está absolutamente determinada a ele. A definição da política na
sequência é, sob esse aspecto, rigorosa, pois ao mesmo tempo em que realça a dimensão da
ação razoável universal não deixa de destacar sua origem empírica: “A política, ciência
filosófica da ação razoável, refere-se à ação universal. Por sua origem empírica, esta ação não
visa ao indivíduo ou ao grupo enquanto tal, mas à totalidade do gênero humano, mesmo sendo
a ação de um indivíduo ou de um grupo.” (FP 15-16).
Toda argumentação posterior de Weil, mesmo conduzida, preferencialmente, pela forma,
não deixa de advertir para possibilidades de o Estado se desencaminhar, sobretudo, pelas
céleres vantagens oferecidas pela violência na execução de determinada política. Sobre esse
ponto convém destacar a percepção do grave problema de quem possa ser o juiz, entre os
indivíduos e grupos, para representar e encarnar o interesse universal (cf. FP, 175). O que se
torna evidente nessa questão, assim como é perceptível em Ricoeur, são os dois supostos: a
forma da totalidade do bem do corpo político e a força da violência empírica da
individualidade sempre aberta ao estabelecimento de uma classe dominante. Não há assim
nenhum descuido da Filosofia Política no tocante aos perigos que rondam o Estado.
Mas Ricoeur insiste em Weil tender sempre eludir o paradoxo político, permanecendo num
formalismo político e moral (cf., L1, p. 50). No tocante a esta objeção Weil responde
diretamente ao seu interlocutor:
O Estado é forma, mas a forma real e agente, e no qual a violência e seus
conflitos tomam consciência de si mesmos, uma forma aristotélica, não uma
forma abstrata. Talvez a nossa diferença (o termo é bastante forte) venha
também em parte do fato de você aproximar mais Estado e Governo do que
eu tenderia a fazê-lo: eu falaria mais facilmente de um governo violento que
de um Estado violento.69
A réplica de Weil não deixa de ser surpreendente. Os vínculos do Estado com o governo
sugerem que Weil visualiza um duplo formalismo que, no caso da Filosofia Política, situaria o
Estado num nível mais elevado, enquanto o governo num degrau abaixo, portanto, mais
próximo e suscetível dos enredos do poder. A resposta, talvez surpreendente ao próprio
Ricoeur, uma vez que doravante seguirá, em ao menos outras duas oportunidades, essa
orientação, que enfatiza sua proximidade e diferença em relação a Éric Weil; seja no
tratamento de sua própria filosofia seja em relação à filosofia weiliana. A primeira ocorre dez
69
« L'Etat est forme, mais forme réelle et agissant, et dans laquelle la violence et ses conflits prennent conscience
'eux-mêmes, une forme aristotélicienne, non une forme abstraite. Peut-être notre différend (le terme est trop fort)
vient-il aussi en partie du fait rapprochez davantage Etat et Governement que je n'aurais tendence à le faire: je
parlerais plus volontiers d'un gouvernement violent que d'un Etat violent » Éric Weil, 15 de outubro de 1957, carta
a Paul Ricoeur.
144
anos depois desta sua crônica, quando ambos dividem o tema Violência e linguagem numa
mesa de debates em 1967. Nessa ocasião dirá o hermeneuta:
A oposição formal de linguagem e violência deve ser previamente aceita por
qualquer um que fale. Mas, tão logo dizemos isso, impõe-se o sentimento de
que essa oposição formal não esgota o problema, mas apenas o cerne com
um grande traço que encerra o vazio. E por quê? Porque a oposição que
compreendemos, e da qual partimos, não é exatamente a de linguagem e
violência, mas – segundo os termos de Éric Weil na Lógica da filosofia, da
qual se pode reconhecer o eco na minha introdução – é a oposição do
discurso e da violência, mais exatamente do discurso coerente e da violência.
(L1, p. 60-61).
Para Ricoeur, linguagem situar-se-ia num nível superior de formalismo ao discurso. Isso
explicaria, por exemplo, sua opção pela palavra no confronto aberto com as correntes
estruturalistas. A ênfase na palavra, e não propriamente na língua como a maioria dos
linguistas, liga-se à compreensão de que é nesse reino do meio da violência e do discurso que
toda batalha deve ser decidida.
A outra ocasião é ocorre nas homenagens prestadas a Éric Weil na conferência de
encerramento do Colóquio de Chantilly em que sustenta, em contraste com os golpes
desferidos por Labarrière à Lógica da Filosofia, haver um nível suplementar de formalismo na
Lógica da Filosofia. Duplo formalismo que manteria o projeto weiliano plenamente intacto.
Ricoeur argumenta que as razões que explicam e explicitam a existência da categoria formal
da Sabedoria após a categoria formal do Sentido são as mesmas que permitem a integridade
do projeto de coerência retomado pela Ação. Para Ricoeur, somente esse duplo formalismo ou
formalismo duplicado é capaz de salvar a realização do projeto weiliano no constante
processo da ameaça da ruptura.
Não obstante essa rápida digressão, voltemos à crônica de Ricoeur dedicada a Filosofia
Política e notemos como é curioso seu empenho em manter-se próximo de Weil ao selecionar
uma passagem identificada com seu paradoxo político (cf. L1, 50, nota):
O problema é elevar-se à razão subsistindo, subsistir para elevar-se à razão, e
este problema deve ser resolvido no plano do empírico, da violência, das
paixões dos grupos e dos extratos, da competição e da luta entre os Estados,
no plano também do trabalho e do poder que ele oferece, da organização e,
portanto, da riqueza. (FP, 261-262).
Essa passagem de Weil é muito clara quanto ao que concerne ao Estado moderno superar,
isto é, ela capta o problema crucial da contemporaneidade cuja justa formulação foi
encontrada pelo romantismo e da qual o paradoxo político não é outra coisa senão uma forte
alusão. Noutros termos, Ricoeur reconhece, assim como Weil, na dolorosa convicção do nosso
145
tempo que nos faltam certos valores humanos essenciais, valores há tempos alienados pela
nova ordem social guiada pelo racionalismo econômico ocidental, o capitalismo.70 Contudo,
não se corteja por este reconhecimento nenhuma passividade: seja a da recusa da denúncia
romântica; seja a da resignação diante do avanço do progresso técnico. Como se pode notar, O
paradoxo político se dirige à mesma necessidade apontada pela Filosofia Política, a saber, a
busca da conciliação do justo com o eficaz.
Eis porque não se pode dizer que a Filosofia Política esteja encerrada num formalismo. Aliás,
formalismo é tudo que o texto weiliano procura superar. Uma filosofia política orientada pela tese
segundo a qual o progresso para não violência é o que define para a política o sentido da história
(cf. FP, 311) não pode ser acusada de negligenciar o problema do poder e do mal político.
Especialmente por situar a política ao nível em que ela realmente conta: no plano do econômico,
do mecanismo social. É só aqui, nesse plano dos conflitos – onde os atores políticos desenvolvem
suas reflexões e tomam suas decisões – que política obtém seu significado (cf. FP, 301).
Ricoeur sabe que a reflexão weiliana não compreende a razão como já pronta. Não ignora o
ponto de partida dessa filosofia na equivalência entre razão na história e ação razoável (cf. L1,
39). Da mesma forma que identifica a articulação entre o sistema da filosofia e seu capítulo a
Ação, capaz de desenvolver seus próprios conceitos e estruturas essenciais. Com se verifica
desde o início de sua leitura, Ricoeur se dá conta da necessidade de a Filosofia Política romper
a barreira do formalismo no concreto histórico. Assim, compreende que a moral abstrata é
somente um ponto de partida, necessário, mas que precisa ser envolvida e superada numa teoria
da comunidade e do Estado (cf. L1, 40). Percebe que a moral formal, se quiser se realizar, terá
que abandonar o ponto de vista negativo do indivíduo (que somente julga, condena, limita, etc.)
permitindo-se integrar à racionalidade do Estado integrando comunidade e sociedade.
Eis o audacioso projeto de uma Filosofia Política. Mas nesse particular compete muito
pouco à filosofia. No máximo, ela é capaz de orientar a ação pela tomada de consciência,
informando ao homem de ação sobre aquilo que se tornou indispensável para o sucesso de sua
tarefa. Mas engana-se quem acredita existir por conta disso alguma garantia de êxito da
empreitada. Esse projeto não possui nenhuma ilusão acerca de um triunfalismo da razão,
tampouco se perfila entre os que ultimam o total desamparo da comunidade diante do
vigoroso e vertiginoso progresso técnico.
70
Cf., M. Löwy e R. Sayre. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 22.
146
Ricoeur e Weil convergem suas respectivas análises para a ideia de controles democráticos
buscando o estabelecimento de um Estado saudável, que não se deixe manusear pela
racionalidade dominadora disposta sempre a impor, a tudo e a todos, seu progresso sem freios.
Esses controles são necessários para impor limites institucionais ao próprio Estado, tais como: a
independência do judiciário que garanta inclusive o direito do cidadão contra o próprio Estado;
a opinião pública livre fundada no conhecimento (ciência) independente do Estado e do
mercado; sindicatos livres que em sua tensão contra o Estado protejam o interesse dos
trabalhadores ao mesmo em que inserem as aspirações destes no debate público; e a discussão
dos partidos (o parlamento) capaz de elaborar os interesses na perspectiva da totalidade.
Vemos em ambos filósofos que a satisfação de todos e de cada um no interior do Estado
somente é possível pela mediação das instituições e que estas precisam ser saudáveis. Todas
as proposições se conduzem no sentido de salvaguardar o cidadão diante do Estado; de
proteger o indivíduo em relação às pretensões absolutistas e totalitárias; de preservar o
singular em presença do universal. Dito de outra maneira, não há prejuízo do indivíduo desde
que este não seja fim em si mesmo. É o universal que não é a superação do individual
(singularidade), mas, antes, tem nele o meio de sua própria realização, ou de maneira
invertida, o indivíduo só é indivíduo enquanto atestação de outros indivíduos, portanto, da
individualidade que é a universalidade dos indivíduos.71
Mas após todos esses cruzamentos resta indagar sobre as razões dos admiráveis
questionamentos ao texto weiliano. Cabe saber o porquê das críticas de Ricoeur a Weil em sua
crônica. A hipótese que apresentamos não é a de uma “correção” desta filosofia política
cruzando-a com o pensamento político de outro pensador, Hannah Arendt, por exemplo, tal
como Ricoeur procedeu em relação a Habermas e Gadamer – como é a proposição de
Roman.72 Nos parece que Ricoeur ao imiscuir-se sobre as questões da individualidade e do
formalismo busca situar sua própria filosofia. É sua postura filosófica, não necessariamente
71
Na Filosofia Moral lemos: « individualité – terme surprenant et, par là même, significatif, puisqu’il contient, à la
fois, l’universalité du concepte et la non-universalité de ce qu’il désigne de façon universalisante » (PM, § 9 f).
72
Essa é a posição de J. Roman art. cit. p. 48. Entretanto, o debate entre a hermenêutica das tradições e critica
das ideologias, que caracterizou o cisma entre Gadamer e Habermas por ocasião da publicação do memorável
livro do primeiro Verdade e método, fora um acontecimento público de grande repercussão no contexto da
filosofia do século passado ao qual Paul Ricoeur se viu obrigado a um posicionamento – uma moldura desse
debate consta em F. Valdério A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Éric Weil, Cultura, op. cit. pp.
227-246. O mesmo já não se verifica em relação a Weil e Hannah Arendt. Sem dúvidas, suas filosofias guardam
diferenças essenciais como observa Roman, ou mesmo Ricoeur em sua retomada de ambos no artigo Ethique et
politique, mas tais diferenças estão longe de constituírem uma polêmica. Para uma apreciação do estado da
questão que envolve o debate Gadamer-Habermas ver TA, 329-371 e também J. Grondin, op. cit. p. 81-91, E.
Stein. Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre o método em filosofia in Síntese 29 (1983): 21-48.
147
sua posição em relação à filosofia weiliana, que ele confronta. Não se trata de querer reprovar
ou “corrigir” a posição adversária, mas aprofundar sua própria perspectiva de leitura.
As questões lançadas à Filosofia Política nesta sua crônica são para, no seu melhor estilo,
fazer coincidir a “via curta” do conhecimento de si mesmo com a “via longa” da interrogação
pela história da consciência (cf. HV, 37). No caso, o desejo de justificação no indivíduo,
enquanto fonte da liberdade razoável, com a ordenação propriamente dita da liberdade para a
qual o Estado está vocacionado (cf. L1, 58). Roman compreende bem isso quando diz que a
filosofia hermenêutica de Ricoeur é a explicitação de seu próprio trabalho de pensamento. No
entanto, não deduz daqui que o procedimento utilizado por Ricoeur exige, quase sempre, uma
leitura cerrada dos autores a quem se dedica, uma “leitura aporética”, a fim de tirar deles as
consequências lógicas de suas próprias escolhas metodológicas ao mesmo tempo em que
avivar as linhas de sua própria filosofia. Essa parece ser a tônica da leitura da Filosofia
Política.
Sabemos que esse procedimento de Ricoeur, por vezes demasiado crítico, implica sempre
em querer reabrir questões aparentemente já consolidadas e/ou despercebidas em obras de
determinados filósofos73 tanto quanto de seus intérpretes. No caso particular de Weil, os
senões apontados por Ricoeur, não significam protesto, mas, antes, a clareza de que o diálogo
deva ser cada vez mais fecundo com essa filosofia. Orientação hermenêutica que exige um
diálogo sempre mais singular e exclusivo com cada autor e sua filosofia.74 Nesse caso, as
críticas são sempre no sentido de fazer aflorar a violência, para si próprio, uma vez que
conduz uma investigação mais singularizada, quando esta parece querer se dissimular na
disposição universal do Estado.
Se a violência é colocada no início em franca relação com o indivíduo é porque, deduzirá
Ricoeur, será exigido, pela razão, do Estado individual (esse indivíduo histórico) se
reconciliar com seus pares numa comunidade mundial. Ora, o indivíduo jamais poderia ser
concebido como o princípio privilegiado da política já que as relações imediatas (soberanas)
entre indivíduos empíricos são, por sua natureza, relações violentas (cf., FP, 301). Mas alguma
promessa fundadora permite resgatar esse indivíduo, pelo menos é o que nos indica sua carta
resposta à Ricoeur:
73
Pellauer, op. cit. p. 18.
“Esse término da história dos historiadores no ato filosófico pode ter prosseguimento em duas direções: na
direção de uma ‘lógica da filosofia’ mediante a pesquisa de um sentido coerente através da história; na direção de
um ‘diálogo’, de cada vez singular e cada vez exclusivo, com os filósofos e as filosofias individualizadas” (HV,
p. 36).
148
74
Completamente em acordo com sua questão de que o indivíduo não seja
caracterizado apenas pela violência, eu acrescentaria somente que se trata
aqui, não do indivíduo em sua totalidade, em toda a sua plenitude, se me
perdoa a expressão, mas do indivíduo tal como ele se mostra sob o ângulo da
política: a este nível, o indivíduo é só indivíduo (e não “papel”), na medida
em que ele não coincide com o seu “papel” e se mostra assim arbitrário – um
arbitrário que a política pode e deve reconhecer, com a única condição de
não contradizer sua ocupação (os governos que se interessam pela vida
pessoal dos seus cidadãos me preocupam muito – eles deveriam se limitar a
criar as condições necessárias para essa vida). A moral do indivíduo não se
esgota na do cidadão: talvez não é ela mesma uma moral da decisão e da
ação, ou não o é exclusivamente.75
Mais uma vez é manifesto o degrau que nuança a orientação das filosofias de Weil e
Ricoeur. Portanto, longe de ser uma correção de rota, a postura ricoeuriana sobre o texto de
Weil é a leitura ou releitura refiguradora, aquela que busca a compreensão de si mesmo pela
compreensão do outro. Essa é razão pela qual sua confrontação com a Filosofia Política,
conduzida por uma análise prospectiva do mal e do poder, termina por reforçar em Ricoeur a
convicção de que esse livro ganha robustez (cf., L1, 57). A prova de força desse texto lhe
advém da constatação e confissão de sua aproximação com a filosofia weiliana, uma vez que
o pensamento é também conduzido, pela ação, à theoria (cf., L1, 58 e PP, 349). A confissão de
Ricoeur é emblemática, pois o situa no mesmo projeto filosófico que busca, através da ação, a
satisfação verdadeira no além da própria ação.
75
« Tout à fait d'accord si vous demandez que l'individu ne soit pas caractérisé par la seule violence; j'ajouterais
seulement qu'il s'agit ici, non de l'individu en sa totalité, dans toute sa rondeur, si vous me passez cette
expression, mais de l'individu tel q'il se montre sous l'angle de la politique: a ce niveau, l'individu n'est individu
(et non "rôle") que dans la mesure où il ne coïncide pas avec son "rôle" et se montre ainsi arbitraire – d'un
arbitraire que la politique peut et doit reconnaître, à la seule condition qu'il ne contredit pas à s'occuper (les
governements qui s'intéressent à la vie personnelle de leurs citoyens m'inquiètent beaucoup – ils devraient se
contenter de créer les conditions nécessaires d'une telle vie). La morale de l'individu ne s'épuise pas dans celle
du citoyen: peut-être n'est-elle même pas une morale du faire et de l'action, ou ne l'est-elle pas exclusivement. »
Éric Weil, 15 de outubro de 1957, carta a Paul Ricoeur.
149
Conclusão
La vraie éternité, qui n’est pas la durée infinie de ce qui ne dure pas, mais la
vue qui saisit le tout em son unité
Éric Weil
Com a apropriação do conceito operatório da retomada pela hermenêutica não é apenas um
procedimento que é herdado, mas um mesmo propósito face ao desafio de pensar, através da
filosofia, o diverso. Ora, por ser a retomada um conceito pertencente ao quadro geral da
Lógica da Filosofia o qual atua sobre a multiplicidade dos discursos, acreditamos que essa
herança implica também uma cumplicidade entre Éric Weil e Paul Ricoeur em relação a
consecução do projeto da filosofia. Todos os cruzamentos demonstrados nessa tese entre os
dois filósofos buscaram destacar essa dimensão. A Lógica da Filosofia toma como desígnio
verter todos os discursos em razão do sentido que se forma através de cada um deles. A
hermenêutica filosófica ricoeuriana segue abrindo caminho por entre as particularidades
discursivas procurando situar, em cada uma delas, o sentido que lhes constitui.
Nos debates públicos que em vida os dois filósofos travaram é reveladora e fecunda a
análise que empreendem contra o adversário comum: a violência. Se suas análises divergem é
somente enquanto nuance e mal-entendidos que elas se apresentam. Se não podemos
responder precisamente que o conceito de retomada é o objeto da dívida de Ricoeur para com
Weil, diremos, então, que esse conceito, ocupa, pelo menos, uma posição central no escopo da
hermenêutica filosófica de Ricoeur. Além do mais, o programa filosófico que ambos
procuram cumprir a partir dos anos 1950, ou mesmo em relação ao contexto de “resistência”
ao pensamento da moda que domina o panorama intelectual da França no mesmo período, não
são fatos passíveis de serem reduzidos à mera coincidência.
A Lógica da Filosofia é um texto que abriga o contínuo da linguagem fatiada pelas
interrupções discursivas. A hermenêutica filosófica ricoeuriana é uma militância na e pela
diversidade, enquanto que a Lógica da Filosofia não permite que a unidade se encerre em si
mesma, sem deixar-se atravessar pela diversidade. O exame que ambos realizam sobre a
relação filosofia e história, história da filosofia, é emblemático a esse respeito, pois acreditam
que somente na linha da recomposição da história pelo discurso filosófico é que a primeira se
torna compreensível. Observamos então, que se trata de uma troca: uma que olha o discurso
filosófico seria completamente vazio de conteúdo (matéria) sem as ações que se desenrolam
na história; a outra seria totalmente ininteligível sem que fosse possível ser apreendida numa
150
estrutura (formal) de sentido.
Se o discurso filosófico persegue o sentido na história humana, é porque a filosofia, desde
sempre, se encontra interpelada por aquilo que lhe precede e lhe constitui. Ela sabe que é
somente pelas mediações no mundo da cultura – dos tempos mais remotos ao entretempo
fatiado por todos os discursos – que é capaz de compreender sobre si mesma. A poesia, sob as
vestes dos mitos, recobre toda essa dimensão do humano e se oferece como fonte primária de
sentido da história humana.
Para Ricoeur, o símbolo é a unidade produtora de sentidos múltiplos da jornada
comunitária empreendida pelo homem. É ele que conduz ao fundo histórico comum da
humanidade no qual se depositam as raízes do próprio mal, portanto, da violência. Violência
que advém à reflexão na sua condição de irredutível diante do discurso filosófico. Assim,
enquanto experiência humana impenetrável e inextirpável, a violência se impõe como o maior
desafio para a filosofia uma vez que tudo que ela produz é desorientação, insensatez, absurdo.
Nem por isso, a filosofia se dará por vencida, exigindo-se, em proporcionalidade simétrica,
encontrar estratégias para confrontar todo o poderio desse adversário. A filosofia então
percebe que a violência está profundamente imbricada na linguagem – pois expressão humana
por excelência –, sabe que a violência divide com ela o mesmo território e que, portanto, é
capaz de ser compreendida.
Na cultura de nossa época, os rastros da violência se fazem presente com grande fervor sob a
face do niilismo que se avoluma incessante e absolutamente sobre o todo da realidade histórica.
Há todo um panorama – desregulamentação da economia, despolitização da política, imperativo
da técnica, etc. – que parece obstar qualquer resposta satisfatória na perspectiva utópica, porque
antes, turva os discursos como agentes capazes de formular qualquer pergunta sobre o sentido
da história humana. Para Weil, os atuais caminhos da mundialização efetiva da sociedade
decidirão o futuro da humanidade contemporânea, nele nos deparamos diante de uma
bifurcação: podemos trilhar pela orientação razoável no decurso dessa história em que pese
todos os percalços; mas podemos também engendrar pela pura técnica, onde a violência se
tornaria
o
único
remédio
para
o
tédio
de
uma
existência
sem
sentido.
1
Nesse ponto extremo, o triunfo da cultura de consumo, universalmente
idêntica e integralmente anônima, representaria o grau zero da cultura de
criação; isso seria o ceticismo em escala planetária, o niilismo absoluto no
1
Cf. J. M. Buée, Éric Weil penseur de l’unité plurielle, art. cit. p. 391.
151
triunfo do bem-estar. É preciso reconhecer que tal perigo é pelo menos igual
e talvez mais provável que o da destruição atômica (HV, 285).
Nessa perspectiva, resta à filosofia, que se compreende pela busca do sentido, indagar
sobre o sentido daquilo que não oferece sentido algum: a violência que em si mesma é
absurdo. Por um lado, o discurso filosófico sabe que a violência é irredutível à razão; por
outro lado, nenhuma possibilidade de sentido verdadeiro será legítima se evitar a
compreensão desse seu outro, isto é, se se abdicar confrontar esse inimigo com a única arma
da qual é possível dispor: a compreensão analítica da realidade.
Ora, por ser a experiência do mal impossível de ser totalizada, ela é essencialmente
dissipadora. A total adesão ao império da fragmentação não conduz com a tarefa fundante da
própria filosofia que exige dela a compreensão: tomar junto, numa unidade de sentido, tudo o
que se dissipa. É em torno dessa articulação uno-múltiplo que as filosofias de Weil e Ricoeur
talvez apresentam seu aspecto mais curioso. Weil e Ricoeur, conforme sublinhamos desde o
começo desta tese, são partícipes de um mesmo projeto de pensamento, cooperam, a partir de
uma tomada de posição pela filosofia, no domínio da compreensão do diferente na perspectiva
busca da unidade do múltiplo. Eles dois são filósofos percorreram vias distintas no tratamento
de um mesmo propósito no âmbito da filosofia.
Eis o momento em que talvez sejamos intimados a fazer um deslocamento do acento da
conjunção para a disjunção. Notificação justificada sobre o que, frequentemente, se faz
quando a reflexão filosófica é produzida perante as sendas abertas da continuidade. O ímpeto
do tempo do império da diferença decreta que toda comparação entre filosofias deve,
necessariamente, apresentar caracteres dessemelhantes. Uma vez que, o inscrito na direção da
continuidade é acontecimento inválido, aos olhos daqueles que se acreditam no comando do
desenvolvimento epistemológico contemporâneo.
Depois de ter percorrido as reflexões acerca do cruzamento entre Lógica da Filosofia e
hermenêutica filosófica, e apontado repetidamente suas semelhanças, devemos atender as
expectativas acima em mediação a elas para não os desapontar. Contudo, o comparativo
proposto nesta tese recorreu a outras reflexões além de Weil e Ricoeur para, em colaboração
ou em confronto com elas, melhor ilustrar e evidenciar a partilha de projeto de pensamento
residentes em suas filosofias.
Ora, se realmente temos que manifestar suas diferenças, quer dizer, explicitar em que se
afastam os dois filósofos, haveremos de afirmar que ela acontece no campo da estratégia.
Característica que, de alguma forma, acreditamos já ter sugerido por vezes ao longo desta
152
tese. Estrategicamente falando, Ricoeur busca aproximação maior com o acidental, por se
situar mais próximo da singularidade, com o fatídico, o errático, etc. sem que com isso perca a
referência capaz de articular toda a dispersão em proveito de uma visão que tende para o
universal. Não é por acaso que Ricoeur, apesar de toda a variedade temática e diversidade de
pesquisa de sua obra atingindo áreas muito distintas do conhecimento, como atestam os mais
diversos intérpretes, jamais deixou de buscar uma orientação geral para o conjunto do seu
trabalho informando seus leitores quanto ao itinerário, ainda que errante, norteado por uma
theoria.
Assim, muito mais afeito à singularidade, Ricoeur pode ser compreendido como o filosofo
que pensa o uno no múltiplo. Sua conduta se pauta por uma espécie de orientação em que o
encontro com o singular não apaga a perspectiva que se permite pensar na direção de uma
visão do todo. Enquanto essa é a conduta de Ricoeur, Weil organiza o pensamento numa
perspectiva global, quer dizer, ele envolve toda a pluralidade numa unidade. Weil pensa o
múltiplo no uno. Busca realizar uma compreensão da multiplicidade a partir de uma visão
global na qual a multiplicidade não é reduzida à totalidade, mas tampouco abdica pensar o
todo cedendo à atestação das diversas falas, dos múltiplos discursos que constituem esse todo.
Ao contrário, o todo se compreende nessa multiplicidade e é nessa multiplicidade que o todo
deve se encontrar e se pensado. Como diz Buée, Éric Weil é o “pensador da unidade plural”. 2
Estas seriam, por assim dizer, as duas grandes estratégias que distinguem as abordagens de
um e outro filósofo no tratamento da realidade histórica. Em síntese: a aposta de Weil é o
pensar o múltiplo no Uno e a aposta de Ricoeur é o pensar o Uno no múltiplo.
A posição de Weil é de que “o Uno só é no tempo e no discurso e no múltiplo, o eterno só
se mostra hoje e nada é se não se mostra. É igualmente verdadeiro... que o múltiplo só aparece
visto do Uno, que o tempo só se revela quando olhado do ponto de vista do presente eterno”
(LF, 104). A posição de Ricoeur não parece diferir: “Contra esta fragmentação sem fim eu
ponho a hipótese da existência de uma unidade funcional entre os múltiplos modos e gêneros
narrativos... o caráter comum da experiência humana que é marcado, articulado, clarificado
pelo ato de narrar em todas as suas formas, é o seu caráter temporal” (TA, 24). Depois de
Hegel ambos se encontram em Kant: “não é o tempo que passa, mas nele passa a existência
do mutável”.3
A diferença entre um e outro tende muito mais para uma espécie de modulação na maneira
2
3
Idem p. 389.
CRP A 144, B 183
153
de abordar os problemas da filosofia. Esse traço do diálogo entre Weil e Ricoeur, proposto ao
longo de toda essa tese, pode ser verificado no debate na Société Française de Philosophie o
qual deixamos em suspenso, deliberadamente, até o momento visando salientar essa
peculiaridade a qual temos nos referido desde o início. Nesse encontro acentuamos que o
percebido a princípio como diferença entre os dois autores é, reduzido pelo próprio Weil a
apenas mal-entendido a serem dissipados, uma vez que Ricoeur, segundo Weil, repete,
implicitamente, nos seus questionamentos a sua compreensão (cf. PR I, 47, 48).
Após Éric Weil fazer a exposição de sua filosofia – especificamente de sua Lógica da
Filosofia, com a comunicação Philosophie et realité –, Ricoeur o interpela solicitando-lhe um
esclarecimento quanto ao que tomou por oscilação entre os extremos presentes no discurso
filosófico: o necessário, como aquilo que se espera quando todo conteúdo do pensamento se
desenvolveu plenamente; e o possível, que comportaria o retorno do ato do filosofar
propriamente, sempre por se realizar. Ricoeur questiona se essa oscilação não exigiria uma
modalidade intermediária que se projetaria, em duplicata, tanto para o lado dos conteúdos (o
necessário) quanto para o lado do ato do filosofar (o possível), isto é, o que nomeia de
provável-plausível. Explica que, nesse nível, se colocado do ponto de vista dos conteúdos,
apenas alguns discursos (míticos, não míticos, científicos), já iniciados por outros, podem ser
retomados em coerência. Sendo assim, a retomada ocorreria tentando organizar “certa massa
imperfeita de discurso”, que não é nem necessário nem possível, mas localizado entre os dois,
isto é, no provável. Porém, no outro nível, situado entre o seu ato singular e um outro ato de
filosofar, é o plausível o tênue elo da comunicação entre os interlocutores. Por estar o sujeito
do discurso sempre condicionado, é o provável (do lado dos conteúdos) ou o plausível (do
lado do ato) que se coloca entre o necessário e o possível. Para Ricoeur, este seria o elemento
de ligação dos discursos que se oferecem à conversação (cf. PR I, 46).
A essa interpelação Éric Weil responde com a observação de que talvez não se encontre no
mesmo nível que seu inquiridor, pois, diferentemente do hermeneuta, o lógico da filosofia,
não se volta prioritariamente para o necessário e o possível, tampouco para o que se situa
entre eles, o plausível, mas para o que está abaixo destas camadas, o real. O que interessa a
Weil é o real do discurso do homem, quer dizer, se o homem possui realmente um discurso.
Importa, para ele, é que possibilidade e necessidade são fundadas na realidade. Weil diz ser
esse o seu brado contra o construtivismo em filosofia que, como bem sabemos, com ele, não
ultrapassou a primeira Crítica kantiana ao fazer do real um objeto do constructum à maneira
da teoria do conhecimento. Ora, para Weil, reconhecer a necessidade dedutiva (a dedução das
154
pressuposições formalmente necessárias de um dado discurso) não significa a reconstrução
real desse discurso hipoteticamente necessário – pressuposição na qual reside o erro
fundamental de boa parte da metafísica tradicional (cf. PR I, 47).
Ricoeur acata que o real do discurso efetivamente dado vem em primeiro. Contudo, indaga
que um discurso, para ser compreendido, deve ser aceito pela sua plausibilidade. A coerência,
insiste o hermeneuta, exige o plausível como uma espécie de chave de acesso capaz de
adentrar no discurso a partir de algum ponto e, portanto, se faz participante do debate. Do
contrário, os discursos tornam-se completamente estranhos e, desse modo, bloqueados pelas
limitações culturais na retomada do que já avançou na linguagem. Weil, lembrando (não sem
ressalvas) Jaspers, assinala que até mesmo o discurso do louco é accessível, já que
compreender ou não um tal discurso é responsabilidade nossa, não do louco. Recorda com
isso – uma ideia já mencionada nessa tese oriunda do próprio Ricoeur –, de que há duas
tentações em filosofia: a esquizofrenia, na qual o pensamento se fende, a um só tempo, em
várias linhas divergentes; e a monomania, em que o caráter é o da obsessão por uma e única
ideia. Para Weil, como para Ricoeur (conforme já observamos anteriormente), o exercício da
filosofia é equilibrar-se entre essas tentações. Conquanto, no caso de Weil, a decisão é
orientada para num mesmo movimento, reconhecer a existência de todo discurso, não apenas
os discursos plausíveis, e ainda compreendê-los numa unidade estrutural (cf. PR I, 47-48).
Ricoeur reitera que nem a pura necessidade nem a possibilidade – uma sempre fora de
alcance e a outra completamente inacessível –, por não constituir a ninguém, também não
constituem a filosofia. Esta por sua vez é somente existente na qualidade de obras finitas do
espírito, obras literárias com começo e fim. Com efeito, Weil observa que a própria sentença
de Ricoeur assegura que essas obras pertencem à realidade, elas existem. Nesse sentido,
relevante não é se são ou não plausíveis, mas o fato de existirem. Ora, só se pode responder ao
dito (a resposta pode não agradar e se pode recorrer ao ineditismo acreditando ingenuamente
que o mundo não é suficientemente velho para algum desmentido), pois o plausível é de outra
ordem, quer dizer, está voltado para a adesão pessoal. É inegável o poder do juízo de valor em
relação ao que foi dito e sob o qual se desenha a adesão. Independente de poder acessar um
dado discurso, esse discurso permanecerá discurso, ou seja, é algo dito e, portanto, passível de
resposta. Mas em se tratando de reflexão filosófica, e não da vida pessoal de quem quer que
seja, esta reflexão lida com o real, e é uma questão muito fácil em relação àquela da
plausibilidade, da verdade, da credibilidade, da necessidade hipotético-dedutiva de tal
discurso (cf. PR I, 48).
155
Ricoeur, como de costume, mais afeito às transições (multiplicidade), enquanto Weil, sem
ignorar as transições, se volta para o que confere unidade e constitui o fundamento das
transições. Para Ricoeur, há um aspecto vinculante em toda multiplicidade; para Weil, uma
unidade estruturante da multiplicidade. A diferença entre os filósofos – quer na mesa redonda
em 1957, quer aqui neste debate em 1963, ou mesmo em 1967, bem como em 1982 – se situa
ao plano da nuance: seja desnivelando “Estado e governo”; seja dissipando mal-entendidos na
relação necessidade-possibilidade-realidade; quer atribuindo um caráter gradual entre
“linguagem e discurso”; quer em relação à compreensão da retomada de forma menos
extrínseca e regressiva em sua função interpretativa.4
A presente tese, tratando da retomada como conceito operatório tanto na filosofia de Éric
Weil quanto na hermenêutica de Paul Ricoeur, procurou, igualmente aditivar a reflexão acerca
do projeto da filosofia como uma espécie de outra face. Tentamos inscrever nessa primeira
reflexão uma segunda camada para a qual não está interditado o pensamento que continua
numa dialética do mesmo e do outro. Dito de outro modo, um sentido retomado para um novo
projeto que, no entanto, continua, de alguma forma pela retomada do antigo. Talvez não tenha
sido possível visualizar essa intenção até o presente momento sem que seja fornecida a uma
espécie de senha inserida em surdina. Semelhante uma marca d'água na qual uma imagem é
formada por diferenças na espessura de uma folha de papel, podendo ser vista apenas quando
o papel é colocado contra a luz, sem qualquer interferência no já escrito.
Através dessa dupla configuração da tese, retomada-projeto, acreditamos poder apontar
melhor as razões do pensamento conduzido pela possibilidade do sentido. Estudar filosofia é
hoje, mais do que qualquer outra época – pelo acúmulo de saberes que se querem monológicos
e do barulho produzido por todas as vozes –, buscar clareza dos projetos de pensamento que se
defrontam em nosso mundo e a necessidade de tomar posição diante desse quadro. É assim que
as obras de Weil e Ricoeur, como reflexões que se impõem a tarefa de compreender o sentido da
história humana, confrontam a multiplicidade. Em ambos, a leitura da história tem no conflito
entre as filosofias sua marca indelével. Neles encontramos essa capacidade de refletir
filosoficamente sobre a filosofia, numa lógica ou numa hermenêutica, considerando os vários
discursos presentes, irredutíveis, mas envolvendo-os pelo viés da comunicação.
Ambas as filosofias se caracterizam, sobretudo, por serem filosofias dialéticas e, nesse
sentido, não se limitam as contradições, embora tenham nelas sua raiz. E como qualquer
4
P. Ricoeur, art. cit., p. 414.
156
outra filosofia dialética a contradição não se esgota em si mesma, mas precisa ser
compreendida em seu movimento. Importa, então, é voltar-se para os discursos e
compreendê-los como unidade de sentido, é crucial atravessar suas incoerências conflitivas
em nome da coerência postulada e reivindicada por cada um desses discursos. Nessa
perspectiva, a tarefa da filosofia é superar essa violência pelo arbítrio, recuperando o sentido
da discussão propriamente que nasce antes de cada filosofo particular e de cada filosofia
específica.
O tratamento dispensado a Hegel visou considerar também esse aspecto ao demonstrar
como os dois pensadores apreciam (nos dois sentidos da expressão) o projeto filosófico
hegeliano. Além do mais, foi igualmente a oportunidade para confrontar uma questão que nos
foi apresentada desde o início desta pesquisa, a qual postulava uma divergência entre Weil e
Ricoeur em relação à aproximação ao filósofo alemão. O autor da Lógica da Filosofia estaria
mais próximo de Hegel enquanto o hermeneuta dele se afastava. Essa hipótese – que nos
parece bastante centrada numa primeira leitura do “Renunciar a Hegel” em Tempo e
Narrativa – foi considerada de maneira assaz. Entretanto, os estudos nos permitiram
compreender noutra direção. Weil demonstra a aporia de fundo da filosofia hegeliana,
inacabamento do seu projeto mediante a pretensão, e não realização, do saber absoluto de
acordo com a prova pela circularidade exigência estabelecida pelo próprio Hegel quanto ao
pensamento sistemático. A consequência dessa compreensão é a do Absoluto não figurar, na
Lógica da Filosofia, como última categoria e ademais, a de ser acareada com as categorias da
revolta (Obra, Finito, Ação). Weil, digamos assim, se resolve com Hegel na passagem pelo
seu projeto. Ricoeur atesta a mesma pretensão e trata de impugná-la tão logo ela se arvore em
totalização. Hegel é, assim, firmemente revisitado por Ricoeur que encontra nessa filosofia
eixos diretores imprescindíveis para o tratamento das questões com as quais sua própria
reflexão está envolvida. A hermenêutica filosófica ricoeuriana permanece numa constante
tensão com o filósofo alemão.
A filosofia sendo articulada pelo projeto do sentido contra a violência não se conclui, pois
a violência, enquanto irredutível à razão, permanece o desafio mais urgente para a realização
desse projeto. Elucidar a relação entre filosofia e violência é o que torna possível superar as
dificuldades postas pelos ceticismos epistemológicos e relativismos ético-político. Por ser
inconclusa a filosofia sempre continua, e continua tanto a partir da interrupção do discurso
filosófico quanto da restituição do sentido que se faz presente em todo e cada discurso.
Vimos que o sentido é apenas uma categoria formal para a qual os discursos estão voltados
157
(conscientes ou não) e dela recebem sua orientação interna de coerência. Não sendo conceito
preenchido de uma vez por todas, o sentido é presença que não se esgota num conteúdo
definido. Não existe sentido pré-determinado porque a filosofia se pauta pelo projeto que é o
próprio homem e como tal é o pro-jetar-se da finitude aberta à totalidade da história. O
projeto da filosofia é possibilidade para quem fez a escolha pela razão, quem tomou posição
pelo sentido e quem é, assim, capaz de pensar a pluralidade dos discursos e suas respectivas
respostas a esse mundo.
Abertura impositiva da dissimetria, na qual todas as respostas são equivalentes (e,
igualmente, equidistantes) cuja significação não ultrapassa a desvalorização mútua em que
caem todas as respostas e, portanto, da destruição da possibilidade da verdade mediante a
prevalência da interdição da conduta diligente do diálogo, não é abertura, é fechamento. O
posicionamento das filosofias de Weil e Ricoeur difere completamente desse quadro sem, no
entanto, negligenciá-lo. Weil porque vê nas épocas de crise o predomínio amplo da
ambiguidade de perguntas e respostas, o que põe em xeque a própria tradição filosófica e todo
sentido concreto da vida, mas que como tal são épocas propícias para filosofia, pois é nesse
ambiente que a lógica se faz necessária e compreensível (cf. LF, 608). Ricoeur por
compreender que a história humana é crivada por acontecimentos que, na condição de nós,
são centro organizadores de significação (cf. HV, 42-43).
Ao atuar na fragmentação, Ricoeur se permite amplos desvios na própria pesquisa que
desenvolve. No entanto recompõe sua obra mediante uma retomada do seu trabalho que,
numa re-leitura de si mesmo, redescobre vestígios que antes, se não estavam completamente
ignorados, habitaram apenas lateralmente sua reflexão. Leitura de si em profunda sintonia
com a leitura procedida junto a todos os demais autores com que a hermenêutica filosófica se
ocupa, pois leitura que implica vencer uma distância pela apropriação cujo resultado dessa
confrontação com o texto é a possibilidade de uma nova maneira de ser e existir do próprio
leitor.
A leitura ou “aporética leitura” da Lógica da Filosofia pela hermenêutica filosófica não
está isenta dos mesmos efeitos, pois aditivada também ela pela apropriação. Sendo
duplamente confrontado – pelo texto de Weil e pela interpretação de Labarrière – Ricoeur
promove a interpretação que, sem ferir de morte a Lógica da Filosofia, lhe restitui à palavra
servindo, igualmente, à sua hermenêutica: o embate que ali ocorre é o do projeto da
continuidade do discurso pelo sentido, malgrado toda ruptura incontornável. A discussão em
relação aos mestres da suspeita não se presta senão à mesma finalidade, uma vez que no plano
158
propriamente da história, Ricoeur está constantemente envolvido com a problemática: como
conferir uma memória comum da humanidade em face a multiplicidade de sua experiência
histórica?
O hermeneuta está convicto de que a memória continua nas grandes obras da cultura que
funcionam como profundas marcações diretoras da história humana. No território político são
as instituições que, salvaguardando toda possibilidade de se fazer frente ao absurdo da
violência, cumprem função similar. Aqui a convergência entre Weil e Ricoeur salta aos olhos,
pois ambos, sem se descuidarem do papel que joga a violência imiscuída nas instituições,
fazem a aposta de que esse primeiro acordo contra a violência entre os homens é a via capaz
de conduzir a história humana na perspectiva da satisfação de todos e cada um.
159
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Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério
Revista de Filosofia
A
Francisco Valdério*
Linguagem, violência e sentido:
a propósito de um debate entre
Eric Weil e Paul Ricoeur
Resumo
A civilização da técnica instituiu o progresso pela dominação. Essa violência teve (e
ainda tem) seu limite na linguagem, isto é, a violência tanto se denuncia quanto se
compreende pela linguagem. Eric Weil e Paul Ricoeur concordam quanto a esse aspecto
e é esse primeiro acordo que possibilita pensar que ambos os filósofos estão envolvidos
num mesmo projeto de pensamento. Basicamente por entender que o sistema dialógico
weiliano é uma fecunda fonte a serviço da hermenêutica ricoueriana, especialmente, por
ser o texto da Logique de la Philosophie um discurso sobre a discursividade total. Tal
projeto de discursividade está apoiado numa tensão entre sentido e violência. Conceitos
centrais, como se sabe, também para a hermenêutica de Ricoeur. A exploração de muitas
temáticas por parte da hermenêutica ricoueriana demonstra que esse seu procedimento
desenvolve-se, a nosso ver, em flagrante contato com o conceito de retomada de Weil.
Dito de outra maneira: metodologicamente a filosofia ricoueriana caracteriza-se pela
releitura das filosofias o que também é a característica do movimento das categorias que
se encontram e se enfrentam na Logique de la Philosophie.
Palavras-chaves: Linguagem; iolência; sentido.
Abstract
The civilization of the technique has instituted the progress by domination. This violence
had (and still has) its limit in the language, that is, the violence denounces itself so as it
is understood by language. Eric Weil and Paul Ricoeur agree in this regard and this is the
first agreement that makes it possible to think that both philosophers are involved in the
same project of thought. Basically by understanding that the Weilian Dialogic System is
a fruitful source of ricouerian hermeneutics, especially, for being the text of Logique de la
Philosophie a discourse of the discourses. Such discourses project is supported in a tension
between sense and violence. Central concepts, as we all know, also to the hermeneutics of
Paul Ricoeur. The exploration of many themes from ricoeurian hermeneutics demonstrates
that this develops your procedure, in our view, in contact with the concept of resumption of
Weil. Said in another way: methodologically, ricoeurian philosophy is characterised by the
re-reading of the philosophies, which is also the characteristic of the categories movement
that meet and face off in the Logique de la Philosophie.
Keywords: Language; violence; sense.
* Doutorando da PUC/SP e professor da Universidade Estadual do Maranhão. Email: [email protected]
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Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério
Introdução
Discutir a presença de uma hermenêutica na filosofia weiliana é um empreendimento ainda controverso.1 No entanto, este trabalho se propõe tão somente a delinear algumas aproximações ou pontos de contatos, que também
podem ser de desacordos, entre Eric Weil e Paul Ricoeur naquilo que faz desta
temática, senão o plenamente admitido de sua filosofia, pelo menos o plausível. Dizemos isso por estarmos, parcialmente, mobilizados pela leitura da tese
de Bernardo que vê na obra de Éric Weil, pelo seu poder de potencializar leituras renovadas, a capacidade também da antecipação hermenêutica
(BERNARDO, 2003, p. 23). Essa tese, que procura ver na filosofia weiliana mais
que uma filosofia dialética de gosto metafísico, encontra no centro dela linguagem e discurso. Não é recente a tentativa de estabelecer entre a obra de Weil
e a hermenêutica uma ligação estreita. Há que citar, por exemplo, os artigos de
Jean-Michel Buée e Jean-Marie Breuvart publicados no final dos anos 1980
(BREUVART, 1987, p. 143-163; BUÉE, 1987, p. 165-195).
Não nos propomos aqui, como também estes outros trabalhos, discutir as
diferenças entre os pensadores. Não que as negligenciemos ou intentemos
reduzi-las, tratando essas filosofias como mera repetição uma da outra. No
entanto, destacamos simplesmente – o que não é pouco para nossas forças –
certas convergências e alguns cruzamentos, esperando assim mostrar que a
filosofia weiliana é, senão ela mesma uma hermenêutica tal como entende
Bernardo, ao menos, uma fecunda fonte a serviço desta.
É possível dizer, ainda a título de introdução, que a inspiração inicial deste
trabalho toma por base o que diz o próprio Paul Ricoeur, testemunhado por
Marcelo Perine em seu livro comemorativo ao centenário de nascimento de Éric
Weil, quando se apresenta como devedor da figura de Éric Weil (2004, p. 10).
Podemos também reivindicar aquela manifestação acerca de sua própria filosofia referindo-se a ela como seguidora do estilo kantiano pós-hegeliano, fórmula,
como se sabe, tão cara a Éric Weil (RICOEUR, 1991, p. 389; 2010, p. 367).
Um dos mais conceituados intérpretes do pensamento de weiliano,
Gilbert Kirscher, nos diz que: “Desde 1952, P. Ricoeur se refere à Lógica da
Filosofia (e a Hegel e o Estado), reconhecendo um filosofar próximo do seu,
confrontando as mesmas aporias da compreensão da realidade histórica e do
advento do sentido”. Pergunta ainda o intérprete, se “a oposição weiliana da
atitude e da categoria não é ela análoga àquela do evento e da estrutura, e a
exigência da compreensão não conduz ela, por uma necessidade de essência,
Em 2003 o português Luís Manuel Bernardo publicou sua tese de doutoramento sobre Eric Weil. Texto com
o qual polemiza com o que chama de interpretação tradicional deste pensador. Defende, então, uma leitura
centrada no par linguagem/discurso tal como o titulo de sua tese enfoca em contraposição ao par razão/
violência. Seu trabalho visa converter a filosofia weiliana como um todo numa teoria linguística, leitura que para
muitos interpretes não está em questão.
1
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Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério
à supressão (no sentido da Aufhebung) da história na filosofia?” (KIRSCHER,
1989, p. 10). Em Ricoeur, tal questão pode ser entendida como a do término da
história num determinado leitor que completaria a obra do historiador, o leitor
filósofo (RICOEUR, 1968, p. 36). Uma inclinação à hermenêutica está assim,
nos parece, no mínimo indicada.
Em todo caso, pressupomos haver um quadro comum de análise entre a
filosofia sistemática de Weil e a hermenêutica de Ricoeur. Ambos têm na linguagem a fonte primeva do filosofar; não é estranho para nenhum deles que o
problema do conflito entre as filosofias seja um desafio à própria filosofia, no
caso de Weil pela articulação de uma lógica que as compreenda num mesmo
movimento, enquanto em Ricoeur por uma hermenêutica que possa arbitrar o
conflito das interpretações.
Para o curso de nossa argumentação tomaremos a relação entre os pensadores em dois momentos: inicialmente o debate sobre o tema Violência e
linguagem por ocasião da Semana de Intelectuais Católicos ocorrida em 1967
em Paris.2A comunicação de Ricoeur, logo após a de Weil sob o mesmo tema,
não esconde o ponto de partida de sua intervenção, como ele mesmo explicita
ao dizer que o eco de suas palavras podem ser encontrados na Lógica da
Filosofia (RICOUER, 1995, p. 61). Em seguida, tentaremos estabelecer uma
relação entre o conceito de retomada em Weil e a atitude filosófica da releitura,
para onde parece convergir os esforços de Ricoeur em seu debate com a tradição e a cultura moderna.
“Violência e linguagem”: o debate de 1967
A intervenção de Éric Weil
A contribuição weiliana ao debate começa indagando sobre os critérios
para decidir uma escolha entre violência e linguagem. Não haveria certa ingenuidade neste tipo de questão, visto que ela apenas leva em conta situações
extremas em que a violência se oferece como possibilidade muda, brutal e
renúncia a toda comunicação com os homens? Será simples assim uma escolha entre violência e linguagem?
Na verdade, linguagem e violência estão mais implicadas do que podem
indicar num primeiro momento, pois “é a linguagem que faz aparecer a violência.” (WEIL, 1987, p. 23). É somente o homem que se caracteriza propriamente
2
Em 1967, a Semaine dês Intellectuels Catholiques, dedicada ao tema La Violence, ocorreu de 1º. à 7
de fevereiro. Foi posteriormente publicada em Recherches et Débats n.º 59 (1967). A mesa Violence et
langage – objeto do debate entre Weil e Ricoeur e que contou ainda com a participação de Etienne Borne
–, nas páginas 78-86 e 86-94, respectivamente. O texto de E. Wel foi republicado em Cahiers Eric Weil
I(1987, p. 23-31) e o de Ricoeur em Leituras 1: em torno ao político (1995, p. 59-68). A referência aqui é
retirada dessas republicações.
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pela violência, justamente por ser ele um ser falante (ou pensante), é também
o único a revelar a violência na vida, no mundo. Se os animais são chamados
de violentos, é o homem que os chama, se possuem uma história, é [ainda] o
homem que a escreve. Assim, “só o homem conhece e se refere à violência, ao
absurdo, ao sem sentido e ao que acontece contra sua vontade e desejo” (id.
ibid., p. 23-24). Por esta razão, é também o único que pode dizer não ao insensato e buscar um conteúdo para sua vida.
A humanidade ao longo da história sempre precisou lidar com a violência. Ela se organizou para lutar contra a violência da natureza exterior e, assim,
também deu um sentido para sua vida. Trabalho e poesia3 são suas grandes
conquistas. Para Weil, a situação ideal para a humanidade seria uma perfeita
adequação de ambas. Acontece que a humanidade não é composta de um
único grupo e, nesse sentido, se um grupo conseguiu, por obra de suas forças,
banir a violência de seu interior, nada impediu que outros fizessem uso dela
com legitimidade por considerá-la suficientemente sagrada, exatamente por
empregar, na possessão da natureza (trabalho), seu pensamento. Noutras palavras, a luta contra a natureza exterior encontrou sua justificação na linguagem. Eis por que esta luta introduz uma novidade radical: “a do progresso pela
dominação.” (WEIL, 1987, p. 25).
Paradoxalmente é também neste contexto que o homem pela primeira
vez experimenta a violência de forma translúcida, quer dizer, ele a vê como tal,
pois é quando ela é nomeada, pensada, tratada, que se mostra inteiramente
despida. O que passa a existir é “violência do senhor com o escravo, revolta do
escravo, violência do escravo com a natureza, da natureza com todos e dos
senhores entre eles” (op. cit.). Desde que bens produzidos a partir da natureza
se tornaram signo e prova de poder – e o poder, a honra e a glória é tudo que
distingue o senhor –, a luta pela posse desses bens, e dos meios de produzi-los, tornou-se o objeto de uma luta que não conhece outros objetivos ou regras
senão o sucesso. Não há outra motivação além do desejo imediato alimentado
pelo anseio de dominação e posse.
Essa luta contra a natureza exterior e a apropriação da riqueza produzida
pelo trabalho caracterizam a transição da comunidade à sociedade. Nesta nova
configuração o mundo perdeu sua unidade sensata na qual o homem tinha seu
lugar. Em seu lugar surge uma natureza que pode ser conhecida, mensurável,
decomposta e analisável, numa palavra, dominada. Contudo, para Weil, isso
supõe que a violência entre os homens seja também ela progressivamente
dominada, pois os homens ao desejarem o máximo de riqueza que a produção
de bens pode gerar, não podem contar com a violência que em si mesma não
pode ser considerada produtiva. Pelo contrário, em si mesma a violência é pe3
Para Weil, aqui nesse texto, poesia é entendida em sua acepção mais abrangente, como “invenção de
mundos possíveis”, sublinha. Ora, essa conotação será a mesma que Ricoeur desenvolve quando trata da
narrativa ficcional.
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rigosa, porque põe em risco todo processo produtivo. Se, por um lado, a violência aparece como sedutora na aquisição da riqueza, por outro, certamente, terá
o inconveniente de estar à disposição de todos que dela querem e podem fazer
uso. Daí porque a linguagem da sociedade do trabalho, embora violenta, é
também a linguagem da eficácia.
Rendido a esta condição, o homem da sociedade do trabalho “renuncia
ao uso individual da violência e contribui para a luta contra o inimigo comum: a natureza exterior.” (WEIL, 1987, p. 26). Também será por essa razão
que esse indivíduo empregará todos os meios de que dispõe para disciplinar
sua natureza interior, uma vez que seus desejos naturais devem ser controlados para que atinjam não o que ele deseja, mas o que lhe é devido de acordo
com sua contribuição na produção. É reduzido a simples membro da sociedade do trabalho que ele ocupa o mundo. Aqui não há um Eu, uma personalidade, mas uma coisa qualquer, pois o indivíduo é aquilo que ele faz. Tal
como a sociedade, reduzida à sua maneira organizacional imposta pela lógica da racionalidade e da eficácia, o organizador também não passará de
uma peça importante e indispensável do trabalho social para compor esse
mecanismo social.
A linguagem que comanda a sociedade é a linguagem que domina a todos em vista do acordo objetivo: eficácia. Ou se aceita os meios que objetivamente estão aptos para levar ao sucesso ou se renuncia os bens antes produzidos. Não existe ninguém que dê ordens como bem lhe convém, apenas uma
única ordem é ditada: a da linguagem da eficácia que comanda a todos. Nesse
sentido, o choque entre duas tradições históricas, ou melhor, duas linguagens,
é inevitável e violento: aqueles que não se submeterem aos senhores da natureza estarão fadados ao desaparecimento. Weil chama aqui esta nova linguagem de discurso sério, isto é, que só conhece a constatação da objetividade.
Qualificações privadas, tais como crenças, convicções, desejos, etc., só contam se oferecerem algum benefício para ordem produtiva.
Curioso é que essa linguagem, esplendidamente eficaz, que libertou o
homem da servidão natural, criou, por outro lado, uma segunda natureza tão
absurda e violenta quanto a primeira, e até mais tirânica, pois ela não deixa ao
homem ser Eu: o homem “tornou-se um objeto, mas objeto incômodo – e, ao
mesmo tempo, só um objeto vazio e sem sentido.” (WEIL, 1987, p. 29). Esta
segunda natureza da linguagem da eficácia apenas instrui, informa, forma,
etc., não é seu papel educar. O resultado de tudo isso, segundo Weil, é o aumento progressivo do tédio infinito e insensato. Tédio de uma linguagem que
age, mas que não significa nada para o indivíduo. Tédio do qual só se pode
escapar “pela violência desinteressada, interessada somente pela possibilidade de se afirmar como indivíduo contra os outros indivíduos, violência a
serviço dos senhores e que não tem outra orientação senão fazer esquecer a
insensatez dos interesses que satisfazem a sociedade”(loc, cit.). Ao indivíduo
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resta lamentar sobre o óbvio de que a linguagem da racionalidade acaba sendo
para ele uma grande mentira, só que uma mentira por omissão.
A promessa de libertar o homem da natureza e da violência não foi cumprida pela racionalidade. No entanto, subsiste a tensão entre “a repressão da
violência e, ao mesmo tempo, o desejo de sentido [...], porque só o ser violento,
se ele fala, pode buscar um sentido.” (WEIL, 1987, p. 30). Se por um lado a vitória sobre uma primeira natureza exterior e hostil inaugurou uma segunda
natureza, a do trabalho organizado, esta por sua vez tem o mérito de por a
questão “se o que alcançamos e deveremos alcançar é tudo o que queremos
alcançar” (loc. cit). Para Weil, é essa questão que enobrece a história humana,
pois é nela que o sentido se aloja. Questão que não poderia ser posta onde a
necessidade e a violência pura pesam sobre o ser humano. Hoje, adverte-nos,tal questão é possível, muito embora a linguagem na qual ela se formula
não seja acessível a todos.
Para Weil, esta questão nos põe frente a frente com nosso desafio na atualidade, seja na sua formulação, seja na sua resolução – lembrando que a segunda condição depende fatalmente da primeira. Trata-se para o homem de se
exprimir e de se dizer por inteiro e completamente, de se apreender no que
nele une violência e sentido, violência e linguagem. Noutros termos, trata-se
de se compreender, no sentido de tomar junto o que se separou dele na sua
emancipação da natureza em vista da liberdade. Será, então, a velha trindade
hegeliana reclamada, pois o homem exprime, nega e pensa a violência e, ao
pensá-la, também a ultrapassa, mas por ser a violência o que igualmente o
constitui, essa ultrapassagem é sempre precária, já que a violência é o que
nele fala.
A intervenção de Paul Ricoeur
Logo após Weil é Ricoeur quem abre sua intervenção dizendo que “violência e linguagem ocupam, cada uma, a totalidade do campo humano.”
(RICOEUR, 1995, p. 59). Tal como seu antecessor, está convencido de que a
violência em suas formas extremas, quer dizer, interior (o crime) e exterior
(furacão, inundação, avalanche etc.), ditam a conduta do homem. Compreender
estas faces da violência é, para Ricoeur, a tarefa do filósofo, uma vez que o que
confere unidade ao problema da violência é que ela encontra seu limite na
linguagem. Somente “para um ser que fala, e falando, busca o sentido, para
um ser que já deu um passo na discussão e sabe alguma coisa da racionalidade, que a violência constitui problema, que a violência se apresenta como
problema” (RICOEUR, 1995, p. 60).
Mas Ricoeur percebe que a oposição entre linguagem e violência é apenas oposição formal, assim é preciso estender a reflexão até onde esta posição
se realiza, isto é, na concretude da oposição do discurso e da violência. É aqui
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Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério
que o fenômeno da dominação se faz presente, por que é neste ambiente que
um discurso particular tenta prevalecer sobre os demais como totalidade filosófica. É dessa “impostura” que nasce a falsificação da palavra, aquilo que faz
da linguagem o verbo da violência. “A violência fala”! É falando também que
deixou de ser pura violência para entrar num campo em que a exigência de
sentido é presente.
Não se poderia sugerir esse problema da dialética do sentido e da violência – bem como sua resposta – se se permanecesse numa abordagem estruturalista, o que Ricoeur chamou na ocasião de “anatomia da linguagem”. É preciso, então, recorrer a uma “fisiologia da palavra”. É no discurso, na palavra
emitida, na fala – de um povo, classe ou grupo – que a expressão da violência
e vontade de sentido se juntam e se enfrentam.
Enfrentamento que só ocorre quando a palavra assume seu valor de uso
na “frase”. É só então que se entra propriamente no campo da luta entre violência e discurso. O falar (frase) desdobra-se em três momentos: o político, o
poético e o filosófico. Em todos eles a palavra é tida como “o nó da violência e
do sentido” (RICOEUR, 1995, p. 62). A palavra no político se diz tirania (a violência que através do sofista mobiliza o ódio cimentando o crime no sacrifício
à morte) e revolução (tomada de consciência). No entanto, estas duas palavras
(tirania e revolução) não esgotam as possibilidades da violência política, haja
vista que ela é presente também no seu exercício normal, em que “o político,
progressivamente, é tocado por este jogo turvo do sentido e da violência”
(RICOEUR, 1995, p. 63). Os indivíduos superaram a sua violência privada
quando foram capazes de subordiná-la a uma regra do direito. Na palavra
poética a dupla tração do sentido e da particularidade violenta surge por constrição, quer dizer, pela força que o poeta infringe às coisas ao falar. O sentido
se dá pelo advento do desvelamento e da abertura pela captura do ser que a
palavra opera. Já na palavra da linguagem filosófica Ricoeur é mais explícito
em sua proximidade com Weil: “Estou perfeitamente de acordo com Éric Weil
sobre o fato de a filosofia se definir integralmente pela vontade de sentido,
pela escolha do discurso coerente. O que é abertura para o poeta é ordem e
coerência para o filosofo” (RICOEUR, 1995, p. 64). Destaca então que três são
as formas com que no discurso filosófico a violência se manifesta: primeiramente pelo viés da singularidade da questão que inicia o filosofar, em seguida pelo próprio percurso, também singular, trilhado pelo filósofo e, por
fim, a violência do acabamento prematuro do discurso, dado que uma filosofia está sempre encerrada de alguma forma num livro e como tal, não deixa
de ser uma obra finita do espírito; “o livro, diz Ricoeur, sempre termina cedo
demais” (RICOEUR, 1995, p. 65).
Ricoeur conclui sua comunicação elencando três observações: 1) refere-se a uma destinação da linguagem, a despeito da critica às causas finais lançadas a este tipo de ideia que segundo ele não podem impedir que uma orienArgumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014
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tação em meio ao dinamismo assinala a vivacidade da questão do sentido; 2)
de que toda redução da razão ao entendimento torna-se profundamente violência, porque somente razão instrumental; 3) por fim, o problema da linguagem não está reduzido ao problema da estrutura, especialmente, porque o
sentido escapa a esta abordagem. Sugere, para tanto, três regras de bom uso
da linguagem; que discurso e violência sejam tomados como os contrários
mais fundamentais do existir humano; que uma dialética entre moral da convicção e da responsabilidade seja a mediação necessária (mas não suficiente)
em que campeia o discurso e violência; e que a não-violência do discurso caracterize-se pelo respeito à pluralidade e a diversidade das linguagens.
Retomada, releitura e sentido
É curioso que Ricoeur fale logo em seguida a Weil, curioso porque esta
sequência é também o que acreditamos fazer, recorrentemente, sua filosofia
hermenêutica. Pois bem, o pensamento ricoeuriano caracteriza-se, sobretudo,
como uma filosofia especializada na leitura, na re-leitura e, portanto, hermenêutica. É uma filosofia que retoma as possibilidades da conversação, que
busca continuamente reabrir e refinar questões filosóficas, de modo a nunca
deixar exaurir a filosofia (PELLAUER, 2009, p. 12), seja a partir dos filósofos e
dos seus sistemas seja da narrativa histórica ou ficcional com o intuito de sempre retroalimentar o pensamento. Sobre isso, Ricoeur nos diz que filosofar é
antes de tudo perturbar uma problemática anterior retalhando as questões
principais para, assim, abrir novas perspectivas (RICOEUR, 1968, p. 52).
Nesse sentido, o modo do proceder filosófico de Paul Ricoeur será a reexposição. O que significa que ele avança cuidadosamente refazendo cada etapa
do pensamento daqueles com quem dialoga. Retém, ao máximo seu leitor,
pela “reprise” dos supostos filosóficos de seus interlocutores, para enfim apontar seu ultrapassamento. Esta nova apresentação do pensamento alheio – o
que para muitos faz parecer que Ricoeur não tenha um pensamento próprio
(GAGNEBIN, 2009, p.163), não é somente um método que utiliza para atravessar com segurança uma filosofia (ou um pensamento de modo geral) ao mesmo
tempo em que o critica, mas a face de uma filosofia convencida de que o dialogo cerrado com as filosofias é o caminho mais apropriado num contexto histórico em que o conflito entre as filosofias é sua marca indelével. Ou, se se
preferir, de uma interpretação cuja característica é a pluralidade inultrapassável (RICOUER, 1995a, p. 104).
Jeanne-Marie Gagnebin lembra, por exemplo, que os títulos que Ricoeur
escolhe para seus três livros Leituras toma por base seu conceito de leitura,
compreendido “como atividade específica de recepção e de reapropriação
transformadora.” (GAGNEBIN, 2009, p. 174), obras que testemunham a leitura
que o próprio filósofo faz de si mesmo pela leitura de outros pensadores filóso166
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fos e não filósofos (GAGNEBIN, 2009, p. 174-175). Parece que essa atitude de
reexposição conserva muito do que Weil chama de retomada:
[...] fenômeno fundamental na história do pensamento e da história pura e simples, isto é, a apreensão do novo numa linguagem
antiga, a única à disposição do inovador (que, no entanto, a transforma), a única, sobretudo, na qual pode se fazer entender pelos
seus contemporâneos, com o risco, quase uma certeza, de não ser
compreendido sem um esforço considerável pela posteridade
que aproveita do que ele trouxe para desenvolver uma nova linguagem (um novo sistema conceitual): Hegel, por vezes, assume
esse sentimento quando declara, em meio a suas mais severas
críticas dirigidas a Kant, que a filosofia começa com Kant (WEIL,
1982, p.18-19).4
Marcelo Perine, por sua vez, nos diz que a fórmula kantiano pós-hegeliano, com a qual exerce sua hermenêutica da filosofia de Éric Weil (1987), é
uma retomada de Kant ao mesmo tempo em que assume tudo o que Hegel
trouxe de definitivo para a filosofia e tudo o que Hegel significa para a filosofia
(PERINE, 1987, 120 et seq). Ou, como diz outro interprete, “da vontade de superar Hegel sem dele abdicar.” (BERNARDO, 2003, p. 19). Podemos dizer ainda
que “a retomada é a compreensão de uma atitude (ou categoria) nova sob uma
categoria precedente, compreensão realizada na e por esta atitude anterior.”
(WEIL, 1996, p. 98).
Para Weil, a filosofia compreende que a história, tomada pela perspectiva
do homem agente, tem seu sentido na sua coerência, no entanto, seu conteúdo
é incoerência, pura contradição e violência, porque exposto às condições do
mundo. Hegelianamente falando, será a tentativa de querer sempre compreender de maneira não-contraditória as contradições da realidade. Assim, o conceito de retomada, confessamente extraído das reflexões kantianas, é o esquema
que torna a categoria aplicável à realidade e que permite dessa forma uma conversão concreta da unidade da filosofia e da história (WEIL, 1996, p. 98).
Ricoeur refere-se algumas vezes a esta atitude/conceito. Em História e
verdade, por exemplo, nos diz que o término da história do historiador como
obra escrita no leitor filósofo é uma retomada do filósofo e que pode seguir em
duas direções: no sentido de uma “lógica da filosofia” mediante a pesquisa de
um sentido coerente através da história, e também na direção de um “diálogo”,
cada vez singular e exclusivo, com os filósofos e as filosofias individualizadas.
(RICOEUR, 1968, p. 35-36). Essa passagem nos sugere que Ricoeur apoia-se
neste conceito para caracterizar o que viria a ser sua própria maneira de abor4
Sublinhamos a palavra sentimento nessa passagem indicando o que chama a atenção de E. Costeski
(2009, p. 100), quando afirma que o específico da retomada é a apreensão tanto da coerência do discurso
da categoria como da violência da liberdade poiética da atitude, da unidade do pensamento (coerência
da categoria) e do não pensamento (violência da atitude).
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dagem filosófica. Senão, vejamos o que ele diz também, sobre a retomada, em
sua conferência no colóquio de 1982 em homenagem a Éric Weil:
poder-se-á dizer aqui que Weil privou-se de recursos discursivos importantes colocando o acento principal sobre “o finito e o naufrágio” (échec).
Os leitores de Gadamer, mais ainda os de Heidegger e Jaspers, não se
deixarão encerrar na proclamação de incoerência e tirarão partido do
que Éric Weil chama retomada num sentido menos extrínseco e menos
regressivo que o admitido por Weil, e encontrarão no texto mesmo de
Éric Weil a sugestão de outra concepção de coerência, ao invés de uma
reivindicação de incoerência. Penso na seguinte passagem: “A categoria
(do Finito) olha assim todas as categorias anteriores como interpretações do ser-no-mundo (o projeto) que permanecem determinadas pela
concreção do mundo. A tarefa da filosofia segundo a categoria é assim
libertar o homem pela possibilidade, pela destruição das formas fixadas
do pensamento, pela redução das questões tradicionais à sua origem na
possibilidade do discurso aberto.” (RICOEUR, 1984, p. 414-415).5
Penso que Ricoeur situa-se entre os leitores a quem se refere acima.
Sabemos o quanto os filósofos citados exerceram influência no pensamento
dele. Isso explica, talvez, seu grande esforço para preservar a crítica dirigida a
Gadamer, Heidegger e Jaspers, lançada pela filosofia weiliana, ao mesmo
tempo em que busca também ultrapassar esta crítica por dentro da própria
formulação, trazendo junto os filósofos da finitude, devolvendo-lhes a palavra.
Noutra passagem, no mesmo colóquio, diz:
Mas, da mesma forma que um crente deve dialogar com um Weil que
parte da perda da fé, que um hegeliano deve dialogar com um Weil que
vê em Hegel uma filosofia que falhou na passagem do em si ao para si, da
mesma forma o hermeneuta deve dialogar com um Weil que não acredita
nos recursos discursivos dos filósofos da finitude. O sentido que ele dá às
retomadas o impede de tirar [desse] lado uma filosofia da interpretação”
(WEIL, 1996, p. 413-414).
O que Ricoeur critica em Weil é o aspecto limitante das retomadas imposto às filosofias do finito com as quais sua hermenêutica ininterruptamente
dialoga. Ora, para ele, as retomadas definem muito bem a atitude filosófica
em seu percurso singular, quer dizer, definem toda a articulação sequenciada
pelo filósofo “no horizonte de uma tradição, que é sempre tradição particular,
libertando palavras já sedimentadas; nenhum filósofo pode praticar a retomada total dos seus pressupostos. Não existe filósofo sem pressupostos.”
(RICOEUR, 1995, p. 65).
Em resumo, segundo Roman, Ricoeur retém de Weil inicialmente a colocação do problema antropológico, segundo o qual o homem é discurso e vio-
5
Ricouer cita Weil (1996, p. 391).
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lência ao mesmo tempo e permanentemente. Entretanto, protesta em relação
à filosofia weiliana sempre que percebe esta tentando, de algum modo, restringir ou confinar a singularidade no campo da violência para situar a razão
numa totalidade (o Estado). (ROMAN, 1988, p. 42). Para Ricoeur, abertura é sinônimo da tensão entre singularidade e totalidade.
Conclusão
Essa tentativa de aproximação entre estes pensadores não pretende indicar mais que pistas direcionadas a uma hipótese. Pistas que podemos encontrar nas declarações do próprio Paul Ricoeur referidas acima e no que deixou ao
longo de sua produção intelectual. A aproximação entre esses pensadores
pressupõe, entre outras coisas, o entendimento de que no panorama atual de
grande apelo do discurso técnico o diálogo travado outrora por estas filosofias
não se interrompeu, uma vez que as questões levantadas permanecem, em boa
medida, ainda as nossas. Diálogo possível, enfim, pelo volume de questões
semelhantes tratadas por suas obras com destaque para as que circundam e
confrontam a violência. A hipótese que sugerimos é que ambos participam de
um mesmo quadro de análise na medida em que partilham do mesmo projeto
de pensamento. Tal moldura pode ser apreendida a partir dos conceitos que o
próprio Ricoeur desenvolve, ligando-os à filosofia de Weil, tais como o paradoxo político e o mal, ou ainda na fórmula weiliana do kantiano pós-hegeliano,
bem como aqueles que pinçam do próprio Weil; ação e decisão, conceitos sempre referidos quando e sobretudo ̶sua análise entra no campo ético-político.
Ademais, há o conceito de retomada cuja presença em sua filosofia hermenêutica é visível, especialmente quando passamos a considerar o jogo da alteridade que nela ocorre. É contornando estes conceitos que pensamos a aproximação entre hermenêutica ricoeuriana e a filosofia sistemática weiliana.
No debate acima reproduzido em suas linhas mestras é nítido o duplo
esforço de Ricoeur: para situar seu confronto com o estruturalismo e também
se manter vinculado à filosofia weiliana. Não é difícil sustentar que os dois
filósofos estão, apesar de suas diferenças, engajados num mesmo projeto de
pensamento. Projeto de pensamento definido pela finitude do homem e sua
abertura ao sentido da história. Não um sentido pré-estabelecido, pré-determinado, mas sentido que se apoia na variedade dos discursos e na pluralidade das respostas desse mundo e a esse mundo. O que podemos perguntar
é até que ponto Ricoeur é mais radical do que Weil ao chacoalhar a glória do
sujeito e lhe lembrar, simultaneamente, sua inscrição na história e sua finitude (GAGNEBIN, 2009, p. 178).
A ideia central desta pesquisa quer desdobrar-se na compreensão de que
ambos participam de um mesmo quadro de análise, na medida em que partilham do mesmo projeto de pensamento: o que busca confrontar a violência em
Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014
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Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério
seu próprio domínio. O fundo comum do debate acima é que a linguagem se
traduz como discurso com e contra a violência. A ação em ambos é ação que
não tergiversa em relação a seu encontro com o mal.
Mas de todos os elementos fornecidos por Eric Weil à filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur, destacamos a presença marcante da retomada. Eis por
que, para nós, a hipótese que sugerimos pode se sustentar, uma vez que ambos acreditam na filosofia como busca incessante do sentido. A história, diz
Ricoeur, pode
ser lida como desenvolvimento extensivo do sentido e como irradiação
de sentido a partir de uma multiplicidade de centros organizadores, sem
que nenhum homem mergulhado na história possa ordenar o sentido total
desses sentidos irradiados. Toda ‘narrativa’ participa de dois aspectos do
sentido: como unidade de composição, ela aposta na ordem total em que
se unificam os eventos; como narração dramatizada, ela corre de nó em
nó, de rugosidade em rugosidade. (RICOEUR, 1968. p. 43).
Dois caminhos, duas filosofias, um mesmo projeto: o sentido.
Um projeto de pensamento, assim, nunca é completamente concluso, é
preciso (ou possível) sempre continuar de onde foi interrompido, especialmente porque o sentido não é uma categoria ou conceito preenchido, pelo
contrário, o sentido é presença sem, no entanto, se esgotar num conteúdo definido. As duas filosofias se propõem percorrer os caminhos da libertação do
sentido de todas as amarras políticas, históricas e filosóficas. Por isso, creio
que a hermenêutica ricoeuriana pode ser considerada um prolongamento, em
muitos aspectos, da lógica do discurso que Weil tomou como sua tarefa e que
nunca escondeu ter nascido antes dele. Sabemos da ojeriza que Weil guarda
em relação à ideia de originalidade em filosofia (PERINE, 2004, p. 28-29).
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. 2. ed. São Paulo:
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Argumentos, ano 6, n. 11 - Fortaleza, jan./jun. 2014
Linguagem, violência e sentido: a propósito de um debate entre Eric Weil e Paul Ricoeur – Francisco Valdério
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WEIL, Éric. Logique de la philosophie. 2. ed. Paris: Vrin, 1996.
_____. Problèmes kantiens. 2. ed. Paris: Vrin, 1982.
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Cultura
Vol. 31 (2013)
A Retomada na Filosofia de Eric Weil
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Francisco Valdério
A hermenêutica de Paul Ricoeur e a
retomada de Eric Weil
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Referência eletrônica
Francisco Valdério, « A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil », Cultura [Online], Vol. 31 | 2013,
posto online no dia 12 Dezembro 2014, consultado a 21 Fevereiro 2015. URL : http://cultura.revues.org/1872 ; DOI :
10.4000/cultura.1872
Editor: Centro de História da Cultura
http://cultura.revues.org
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Documento acessível online em:
http://cultura.revues.org/1872
Documento gerado automaticamente no dia 21 Fevereiro 2015. A paginação não corresponde à paginação da edição
em papel.
© Centro de História da Cultura
A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
Francisco Valdério
A hermenêutica de Paul Ricoeur e a
retomada de Eric Weil
Paginação da edição em papel : p. 227-246
Introdução
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Tornou-se lugar comum adotar certos cuidados ao estabelecer comparações entre filosofias,
entre os quais o de nem sempre indicar as semelhanças. Ou indicando-as é preciso, logo em
seguida, informar suas rupturas e diferenças. Quase como se uma investigação dessa natureza
fosse desprovida de fecundidade por lançar sobre as filosofias comparadas a desconfiança de
que não passariam de má tradução ou repetição de uma em relação à outra ou qualquer outra
coisa do gênero. Isso para não falar de um temor ainda maior: o que acompanha toda suspeição
pela continuidade como se nela se inscrevesse, necessariamente, o que se repudia sob o nome
metafísica.
Lembramos a essas amplas condutas, imbuídas desse espírito persecutório e que dominam os
ambientes acadêmicos, que aquilo que Aristóteles chama de mímesis criadora é o norte do que
se tenta visualizar, seguindo preceitos de dois grandes filósofos do século XX: Eric Weil e
Paul Ricoeur – eles próprios protagonistas desta investigação. Do primeiro a assertiva segundo
a qual não há filosofia original e do segundo a ideia de que o investigador da filosofia assume
responsabilidade pelos problemas que suscita a partir do que já fora consolidado.
Entretanto, se esquece com frequência que o estabelecido em filosofia, as fontes que abastecem
sua reflexão (sejam elas filosóficas ou não) não são pacíficas, pelo contrário, o que serve à
filosofia é quase sempre o que lhe oferece resistência, o que foge à sua reflexão e se recusa à
unidade. O que se trata de compreender em filosofia, diz Eric Weil:
é precisamente o que não é coerente, não é discurso unido por uma categoria, não é atitude impelida
à unidade pela reflexão. Para a filosofia... a história tem seu sentido em sua coerência, mas tem
seu conteúdo no incoerente, no contraditório, na violência: a retomada, para empregar um termo
kantiano, é o esquema que torna a categoria aplicável à realidade e que permite assim realizar
concretamente a unidade da filosofia e da história. (LP, 82).
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Permitimo-nos visualizar um projeto da filosofia postulado, porque já iniciado e em pleno
exercício. Nesse caso, tal projeto exige que se submeta toda riqueza da multiplicidade das
atitudes na história à filosofia. Não se trata de qualquer continuidade que se insere subrepticiamente, muito pelo contrário, trata-se de uma posição filosófica (o que certamente é um
truísmo) assumida com conhecimento de causa. Pois é sobre a problemática da multiplicidade
da verdade em história, da variedade dos discursos e das interpretações, mais precisamente,
sobre o conflito das interpretações que Ricoeur enseja a filosofia hermenêutica.
História e verdade em retomada
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É conhecida a boa impressão que a obra de Eric Weil, muito especialmente o conceito
retomada, causou em Paul Ricoeur.1 Razão pela qual o hermenêuta não ignora esse conceito
quando o aprecia sob uma refinada observação crítica (cf. AEW, p. 413 ss.). Não nos competirá
discutir aqui a procedência e as consequências dessa crítica, mas tão somente tentar alinhar a
aplicabilidade da retomada tal qual ela se apresenta na Logique de la Philosophie e seu rastro
na hermenêutica de Ricoeur.
Para tanto nos valeremos inicialmente de um texto no mínimo curioso sob esse aspecto:
História e Verdade. Surgido em 1955 em primeira edição, essa obra, por se tratar de uma
coletânea de escritos dispersos ao longo dos anos 1949 a 1954 e, portanto, contemporânea
à publicação da Logique de la Philosophie (1950), talvez nos sirva, ao receber essa unidade
sistemática na forma de um livro, como pista reveladora de uma possível cumplicidade de
princípio à qual aludimos acima e que, doravante, intentaremos deixar sugerida.
Cultura, Vol. 31 | 2013
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A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
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São muitas as vozes que se ouvem em História e Verdade. O seu tom é o do diálogo e
sua justificativa permanentemente com as mais díspares posições históricas e filosóficas,
uma característica que se estenderá por toda produção intelectual de Paul Ricoeur. Mas,
apesar de (ou graças a) toda essa diversidade, obra que não abre mão do que o filósofo
chama de a elucidação dos conceitos diretores, isto é, segue a investigação dos procedimentos
epistemológicos rumo a uma theoría, mas que também é, ao mesmo tempo, o percurso da
própria crise civilizatória em andamento mediante a intervenção teórica. É assim, olhando
para um todo maior que o envolve, uma theoría, é que se sente mais capaz de se misturar aos
acidentes históricos com todos os enigmas que neles se enredam.
Os textos reunidos nesse livro apenas mantêm certo parentesco de ritmo cuja regra de
sua consonância involuntária é ainda, em parte, estranha ao autor (cf. HV, 07). Mas essa
diversidade tem uma ordem na economia da obra, como enfatizado acima, e é a ela que o autor
remete, sem cessar, com o intuito peremptório da indissociabilidade entre aquilo que orienta
e aquilo desvia:
a maneira filosófica de me achar presente à minha época parece-me vinculada a uma capacidade
de reinterpretação das intenções remotas e dos pressupostos radicais de ordem cultural subjacentes
(...) Assim a reflexão sobre o acontecimento me recambia a essa pesquisa das significações e
encadeamentos nocionais. (HV, 08).
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É evidente, a partir de uma fala como essa, que a organização metodológica presente nessa
obra já é, ela própria, em retomada. Para ser mais explícito: “creio na eficácia da palavra
que retoma de modo reflexivo os temas geradores de uma civilização em marcha” (HV, 09),
ou ainda: “a história do historiador é obra escrita ou ensinada, que, como toda obra escrita
e ensinada, só tem seu termo no leitor, no aluno, no público. É essa retomada, pelo leitor
filósofo, da história tal qual é escrita pelo historiador que da origem aos problemas”. (HV,
35). O leitor filósofo é tido como aquele que se reconhece num outro e só se reconhece porque
esse outro lhe faz problema.
A leitura da história aparece assim como segunda leitura, uma re-leitura do filósofo que, em
Ricoeur, prima menos pela singularidade dos discursos filosóficos do que pelos problemas ali
suscitados e que reivindica, para cada um desses problemas, o mesmo estatuto que se atribui
ao movimento de conjunto da razão operante (cf. HV, 40). A tensão entre Uno e Múltiplo em
Ricoeur não ocorre somente entre o pensamento que caminha rumo ao discurso absolutamente
coerente como em Weil, mas se defronta, se perde, se desapossa, se desvia a cada nova
encruzilhada, ou se se permitir a cada fronteira, cuja abertura e ramificações são tão dignas de
incursões quanto a escolha pela compreensão global.
Dirá então que a história “é una pelo progresso dos instrumentos, tem muitas maneiras de ser
múltipla; divide-se não somente em civilizações e períodos, no espaço e no tempo, ainda em
correntes que desenvolvem cada qual seus próprios problemas, suas crises e suas invenções
próprias” (HV, 90). O espírito dessa nova empreitada da história deverá ser receptivo, de total
“disponibilidade”, de franca “submissão ao inesperado”, de aplicada “abertura a outrem” (HV,
35). Ricoeur está convencido que uma filosofia sistemática encerra a história, encerra uma
história. (cf. HV, p. 78 ss.). Mas seu termo por um leitor, o filósofo, é abertura, prosseguimento.
É esse duplo movimento que chamará de via curta e via longa: o entrelaçamento no qual
a subjetividade privada está envolta de imediato, mas que também participa do itinerário
desenvolvido, preferencialmente, pela investigação da história da consciência. Ambas devem
se corresponder para uma maior consciência de si mesmo. Passemos então a esse exercício.
A via curta e a via longa do “enxerto hermenêutico sobre a
fenomenologia”
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Serão também as irradiações multívocas que participam da preocupação de Ricoeur quando ele
se propõe fundar, em O conflito das interpretações, a hermenêutica na fenomenologia ou seu
célebre “enxerto hermenêutico sobre a fenomenologia” (cf. CI, 09). Sua inquietação mestra é
a relação que se pode estabelecer entre a vida das múltiplas significações e seu encadeamento
coerente capaz de facultar toda e qualquer compreensão da vida (cf. CI, 09). Nesse caso, a
via curta assumirá a face da ontologia da compreensão, à maneira heideggeriana, que põe o
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A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
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problema da compreensão ao nível da finitude do ser desvencilhando-se dos enrijecimentos
metodológicos epistemológicos e assumindo a compreensão como um modo do próprio ser –
o Dasein só existe compreendendo.
Para Ricoeur, a Analítica do Dasein leva ao encontro do último Husserl. Aquele que pôs
o acento crítico da fenomenologia no objetivismo. Acento que, levado às suas últimas
consequências, é a contestação da importação compulsória do modelo metodológico das
ciências naturais pelas ciências humanas. Afasta-se, consequentemente, com isso também
do projeto diltheyniano conduzindo essa reflexão à Lebenswelt, ou seja, à anterioridade da
relação sujeito-objeto ditada pelo “mundo da vida” que não é outra coisa senão a plenitude
das significações. O último Husserl, assim, segundo Ricoeur, subverte ao substituir uma
epistemologia da interpretação por uma ontologia da compreensão (cf. CI, 10). Destarte,
muito esquematicamente falando, estariam delineadas as contribuições dessa ontologia da
compreensão à hermenêutica.
Entretanto, a Ricoeur, a constatação da ontologia indica tão somente uma orientação, mas não
finaliza o processo. Isso porque põe em dúvida se essa ontologia direta que prescinde, logo
de saída, da exigência metodológica – e do círculo da interpretação por ela próprio deduzido
(cf. CI, 10, TA, 337ss.) –, é capaz de manter o horizonte problemático de partida e superar a
parcialidade na qual lança toda interpretação. A Analítica do Dasein ignora deliberadamente
tais problemas uma vez que seu desígnio não é resolvê-los, mas dissolvê-los (cf. CI, 13).
Ricoeur, assim, se põe de pleno acordo com Eric Weil quanto a essa insuficiência da ontologia.
Para Weil, a ontologia é incapacitada para fundar um discurso único sobre o qual todos
estariam de acordo, um discurso que perpasse todas as comunidades (cf. LP, 36) e que faça
sentido para cada uma delas a despeito dos sentidos multívocos que lhes constituem. Um
problema se torna evidente: a atestação da multiplicidade e a necessidade de sua superação.
Essa é a razão pela qual, nos parece, é preciso empreender a segunda marcha, a via longa
que também determina o “enxerto”. Essa outra via assume, “ambiciosamente”, no dizer do
hermeneuta, a tarefa de alcançar – mas ao preço de uma modificação estrutural do seu percurso
– o nível da ontologia em duplo plano: semântico e reflexivo. Ricoeur parte da ideia de que
se devemos buscar a compreensão como modo de ser será na linguagem mesma que se deve
buscar. De tal modo que a análise da linguagem se revela necessária e com ela o contato
constante com as práticas metódicas de interpretação oriundas de certas disciplinas.
Mas não se deve perder de vista que a linguagem expressa toda compreensão ôntica: o texto
é, por excelência, o campo da existência polissêmica. Essa observação, longe de interditar o
concurso metodológico o pressupõe. Reza aqui o motivo pelo qual se deve, nesse primeiro
trecho da via longa, o plano semântico, encontrar “um eixo de referência” que sirva para
o conjunto da hermenêutica (cf. CI, 14). Para Ricoeur, um caminho que vai da exegese à
psicanálise, atravessado por diferentes autores, tais como Santo Agostinho, Schleiermacher,
Dilthey, Nietzsche e Freud, concebe que a pluralidade de sentidos presentes, seja no texto,
na escrita, ou na cultura, além de se imbricarem mutuamente, expressam – a despeito (mas
também por causa) da objetivação que a submete –, a própria vida. Em todos é possível
verificar certo dispositivo de transferência que permite a compreensão do sentido sempre
errático da vida no sentido fixado da obra acabada (e/ou reciprocamente). O “nó semântico”
ou o “elemento comum” que orienta a investigação hermenêutica aparecerá assim sob a figura
do duplo ou múltiplo sentido, cuja função será, a cada momento e de modo diferente, mostrarse ocultando-se (cf. CI, 14).
A semântica, aos olhos de Ricoeur, se torna simbólica, isto é, movimento na linguagem que
expressa a multiplicidade de sentidos. Ora, o que essa multiplicidade comporta, em si mesma,
é a tensão entre um sentido oculto e um outro sentido aparente: o símbolo. Este, por sua vez, é
incapaz de deixar vir à tona seu aspecto oculto senão por uma decifração, que embora parcial,
porque indireta, é somente captada de maneira figurada. Mas é, exatamente, nesse processo
que ocorre um estreitamento, no qual uma pluralidade é interpretada como um duplo. Decorre,
dessa duplicidade que caracteriza o símbolo, um renovado conceito de interpretação: “há
interpretação onde houver sentido múltiplo; e é na interpretação que a pluralidade dos sentidos
torna-se manifesta” (CI,15). É o próprio campo hermenêutico que sofre alargamento por
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A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
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esta nova determinação da interpretação. O que fica claro nesse processo é que a pluralidade
dos sentidos passa (no melhor estilo hegeliano) pela interpretação e que, por sua vez, dá-se
a compreensão nesse estreitamento que é a apreensão do duplo oculto-aparente, no qual o
segundo é desdobrado no primeiro.
A análise linguística demonstra que, ao tabular as diversas modalidades da expressão
simbólica, chega-se a uma estrutura comum, mas não sem o complemento do recurso da
fixação das formas aparentadas que se pode perceber no conjunto de certas disciplinas díspares,
tais como a fenomenologia e a psicanálise. Concluirá nesse primeiro trecho um projeto da
hermenêutica:
Ela começa por uma investigação, em extensão, das formas simbólicas e por uma análise
compreensiva das estruturas simbólicas. Prossegue por um confronto dos estilos hermenêuticos e
por uma crítica dos sistemas de interpretação, referindo a diversidade dos métodos hermenêuticos
à estrutura das teorias correspondentes. Prepara-se, assim, para exercer sua mais alta tarefa, que
seria uma verdadeira arbitragem entre as pretensões totalitárias de cada uma das interpretações.
Ao mostrar de que maneira cada método exprime a forma de uma teoria, ela justifica cada uma
nos limites de sua própria circunscrição teórica. Eis a função crítica dessa hermenêutica tomada
em seu nível simplesmente semântico. (CI, 16 e 17).
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Projeto que clama em sua constituição, como podemos observar, pelo problema da unidade
do falar humano. É praticamente impossível não sentir aqui as reverberações da Logique de la
Philosophie, mas deixemos essas comparações para em seguida. Sigamos por ora a reflexão
ricoeuriana.
Pois bem, o enfoque semântico tem duplo êxito: não rejeita, não obstante suas ressalvas,
nenhuma das metodologias no campo da análise linguística, além de fundir a hermenêutica na
fenomenologia, dado que certos cruzamentos no campo linguístico são inevitáveis. Mas esse
percurso necessário, para Ricoeur, não é suficiente. A ele deve se acrescentar o plano reflexivo
se um projeto de uma hermenêutica filosófica deve ser levado adiante.
Ao observar que a própria linguagem exige ser referida à existência, como se verificou
anteriormente, conclui-se desse ponto uma espécie de caminho de volta. Ora, não se tinha antes
partido da ontologia e se chegado à linguagem? Parece que agora é exatamente o contrário:
um caminho de regresso que reintegra a semântica na ontologia é propiciado pela reflexão: “o
elo entre a compreensão dos signos e a compreensão de si”, um si revelado como um existente,
mas recuperado como um resultado, captado reflexivamente. Assim, diz:
Toda interpretação se propõe a vencer um afastamento, uma distância, entre a época cultural
revoluta, à qual pertence o texto, e o próprio intérprete. Ao superar essa distância, ao tornar-se
contemporâneo do texto, o exegeta pode apropriar-se do sentido: de estranho, pretende torná-lo
próprio; quer dizer, fazê-lo seu. Portanto, o que ele persegue, através da compreensão do outro,
é a ampliação da própria compreensão de si mesmo. Assim toda hermenêutica é, explícita ou
implicitamente, compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro. (CI, 18).
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O cogito só é capaz de prosseguir informando qualquer conhecimento de si mesmo se obtiver
mediações de tudo o que lhe envolve, se a ele aplica-se às objetivações nas quais a vida se
reflete. É somente assim, na posse de um outro, que o cogito é para si mesmo.
Mas esse outro do cogito não é somente esta circunscrição inapelável do mundo da vida para
onde é inelutavelmente tragado. Há outro cogito que igualmente impõe sua verdade (que no
caso é não-verdade ou ainda verdade difusa): o abismo em que se esgueira, nas suas múltiplas
artimanhas, a falsa consciência. Esse domínio secreto do e no humano no qual a todo momento
podemos sempre cair – muito embora não inadvertidamente desde que os mestres da suspeita
nos armaram para vigília. Para Ricoeur, essa ultima razão é o que qualifica uma filosofia da
reflexão num registro oposto ao de uma filosofia da consciência. De maneira diferente; eis por
que uma história da consciência deve abrir espaço para uma filosofia da reflexão.
A conclusão pelo paradoxo é inevitável: a compreensão se dá apenas quando consideramos
as objetivações da vida que por sua vez só se oferece em interpretações precárias oriundas
da falsa consciência. Pode-se assim justificar porque uma hermenêutica filosófica, aos olhos
de Ricoeur, deva também ser uma hermenêutica crítica. O hermeneuta deve conduzir a má
interpretação à compreensão. Sobretudo porque se no plano semântico o sentido por acréscimo
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tornou-se perceptível, escapa-lhe, no entanto, o sentido difuso, operado pelo ardil da falsa
consciência, somente explicitado e atingido no plano reflexivo.
Com efeito, a última palavra ainda não será dada neste plano. Deduzir a existência pela reflexão
sem percorrer essa etapa (existencial) é o mesmo que ter corrido em círculo sem chegar a lugar
algum. A via curta, da ontologia do ser como um dado, e a via longa, do processo gradativo que
alcança indiretamente o mesmo ser, devem agora se encontrar na esfera da própria existência.
Se uma via informou que o ser é pressuposto, a outra só pode aceitar, após sua meditação,
concebendo esse ser como ser interpretado no próprio movimento da interpretação (cf. CI,
20). Esse regresso à problemática do ser demanda, por parte da filosofia, recursos dos quais
ela não dispõe de imediato e só os terá acessando outra disciplina, a psicanálise. Noutros
termos, Ricoeur propõe uma leitura filosófica da psicanálise: ora, se o ser revelado é revelado
na linguagem e se a consciência é incapacitada para perceber o que a aflige, então é preciso
descer desse aparente chão da consciência ao movediço território do inconsciente e receber,
de bom grado, as contribuições fundamentais que a psicanálise tem a oferecer à filosofia.
Para Ricoeur, é exatamente na crítica das pretensões da consciência de erigir-se como fonte e
instância de sentido que a psicanálise se volta para a ontologia. Descobrir fundamentalmente
que o homem se orienta em sua vida por suas pulsões, pelo seu desejo, é encontrar igualmente
sua raiz existencial. O inconsciente é a zona na qual as significações fundamentais da vida se
distinguem radicalmente daquilo que a consciência imediata registra. Essa hermenêutica das
profundezas que é a psicanálise, para falar como Habermas, acentua a mesma questão desde
sempre: a relação entre linguagem e vida, significação e desejo, sentido e energia (cf. CI, 21).
A reflexão é ultrapassada na direção da existência quando se opera a decifração do sentido
posto pelo desejo, mas o acesso a esse sentido no desejo ocorre sempre como interpretação.
O ser, para Ricoeur, permanece ser interpretado. Daí que muito mais importante que o
deslocamento do sujeito para detrás de si mesmo é o fato do deslocamento ou o movimento
da interpretação. A comparação com outra hermenêutica, a da Fenomenologia do espírito, é
indicativa dessa tese: enquanto o primeiro tipo de hermenêutica opera por regressão ao arcaico
em direção ao que ele chama de uma arqueologia do sujeito, esse segundo tipo procede pelo
movimento do sentido em marcha, em que uma teleologia do sujeito define, na etapa seguinte,
a superação de uma figura anterior por outra mais atual porque retém, para si mesma, todo
sentido que a precedeu.
O intuito de Ricoeur é o de destacar como no próprio movimento da interpretação uma
alteridade fundamental é necessária para a compreensão do sentido. Somente na dialética
das figuras do oculto no aparente é que a existência se torna significativa. Uma tomada de
consciência de um si existencial ocorre pela apropriação do que se põe fora desse si, mas que,
igualmente, lhe diz respeito. Tudo o que se estabeleceu como cultura (obras, instituições, etc.)
fala desse si. A imersão num si do sujeito passa pela exegese da objetivação do mundo da
cultura (cf. CI, 22ss).
O mesmo se aplica ainda a uma fenomenologia da religião que dirige a compreensão não
pela arché (psicanálise) ou pelo télos (Fenomenologia do Espírito), mas pelo sagrado, pois
visa uma escatologia. De qualquer forma, uma vez mais, é a compreensão de si mesmo num
outro que é reclamada para o horizonte ontológico. E será mais efetiva tal compreensão
quanto mais radical for a despossessão de si mesmo pela leitura de um outro, como é o caso
da fenomenologia da religião que, segundo Ricoeur, não se dá ao sujeito e é, até mesmo,
inacessível a ele. A ontologia assim se revela inseparável do sôfrego trabalho da interpretação
(cf. CI, 23). Noutros termos, não há triunfo de uma ontologia, mas antes sua mutilação em
face da visada que lhe constitui o processo da interpretação.
Contudo, interpretações rivais, longe de se encerrarem em monólogos, podem ser esclarecidas
quanto ao lugar existencial de onde falam e, portanto, mobilizadas para reconhecerem uma
única problemática que as envolvem. A tarefa da hermenêutica então será a de mostrar a essas
modalidades seu abrigo numa mesma estrutura ontológica que possibilita toda a diversidade
das interpretações por intermédio da riqueza interpretativa a que se prestam determinados
símbolos. Da unidade que é o símbolo se deduz a multiplicidade das interpretações.
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Ao fim do percurso, Ricoeur estabelece o vínculo entre via curta e via longa. Não é possível,
para ele, prescindir de uma ou outra, é necessário para reconhecer-se e compreender-se a
si mesmo percorrer a diversidade das filosofias individualizadas, mas percorrê-las em seus
desencontros harmônicos. É o que, percebemos, ocorrer no outro exemplo, o do debate entre
Hans-George Gadamer e Jürgen Habermas ao qual, agora, submetemos nossa análise.
Uma moldura do debate Gadamer/Habermas e a “retomada”
hermenêutica ricoeuriana
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Não nos compete desenvolver linha a linha esse magnífico debate que entrou para os anais da
história da filosofia,2 os limites e propósitos desta comunicação se debruçam sobre um aspecto
muito específico dele: o de demonstrar como o procedimento de Ricoeur nesse conflito assume
o mesmo movimento da retomada no contexto da filosofia weiliana. Não por outra razão
tomaremos o curso desenvolvido desta contenda descrita e analisada pelo próprio Ricoeur.
Pois bem, uma vez mais percebemos que é no liame, no ponto axial da imposição da alternativa,
no caso, entre hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias – no qual ocorre pretensão
de universalidade de uma em detrimento da outra –, que a hermenêutica de Ricoeur opera.
É aqui (ou assim) que se insere sua filosofia hermenêutica ao esboçar um programa de
hermenêutica crítica que busca compreender a controvérsia entre Gadamer e Habermas numa
tensão em complementaridade.
Muito esquematicamente falando, a raiz da crítica ou a “pedra de toque”, como diz Ricoeur,
desferida por Habermas à hermenêutica gadameriana pode ser resumida na maneira como esta
compreende a tradição e, conjuntamente a isso, sua reabilitação do preconceito e da autoridade.
Para Gadamer os pré-conceitos não constituem um gênero indissolúvel, não há apenas préconceitos falsos, mas existem aqueles que informam e carregam sua legitimidade que é a
legitimidade própria da tradição.
Para a hermenêutica das tradições certos acordos preexistem para o bem da própria
comunidade “no sentido de reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradição
conserva algum direito e determina amplamente as nossas instituições e comportamentos”.3
Assim, a hermenêutica, voltada para a existência de acordos prévios, quer, na esteira do
esquecimento do ser heideggeriano, “descobrir e tornar consciente algo que permanece
encoberto e desconhecido por aquela disputa sobre métodos, algo que, antes de traçar limites
e restringir a ciência moderna, precede-a e em parte torna-a possível”,4 como dirá o próprio
Gadamer na abertura de seu magistral livro. O que se propõe, assim, deste lado do debate,
segundo Ricoeur, é “o reconhecimento das condições históricas às quais toda a compreensão
humana está submetida ao regime da finitude” (TA, 329).
Habermas não vê como acordos e consensos podem ser garantidos em dada comunidade, uma
vez que esta é incapaz de superar o fenômeno da ideologia, tomada, por ele, como distorção
sistemática da comunicação que aflige essa comunidade. Ademais, a ideologia unida a outro
fenômeno do qual é tributária, o da dominação, constitui o agravante de qualquer compreensão
do pertencimento como quer a hermenêutica das tradições. Tal patologia, não somente da
comunicação, mas da própria linguagem, distorcida nas condições de exercício que, concretamente, vinculam-se nas relações societárias do mundo do trabalho e do poder, requer, para
Habermas, que procedimentos explicativos sejam acionados, uma vez que os membros da
comunidade ignoram o desvirtuamento da comunicação a serviço da dominação. O limite
dessa hermenêutica, como entende Habermas, se inscreve na natureza de seu campo de
mobilidade: a comunicação da linguagem ordinária. Ainda segundo Habermas, há proposições
que resistem a esse domínio porque estão inseridos em sistemas linguísticos organizados
monologicamente e, consequentemente, escapam da competência do hermeneuta.5 Essa
superação, através da explicitação explicativa, somente pode ocorrer, a seus olhos, pela crítica,
mais precisamente, pela crítica das ideologias.
O cerne de sua reprovação ao status do pertencimento hermenêutico de Gadamer é porque
percebe, de imediato, a ontologização dessa hermenêutica e, consequentemente, no acordo
prévio aquilo que se impõe como constituinte de uma tradição e seus derivados (preconceito
e autoridade). É a propósito dessa hipóstase que Habermas brama contra Gadamer sua aposta
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do ideal de comunicação capaz de balizar os comunicadores contra todas as formas assumidas
pela falsa consciência que se apresentam aos agentes e, assim, conduzi-los, pela reflexão
discursiva, a um exercício permanente de recusa da autoridade pela dominação.
Essa curiosa questão de fundo sob o solo da ontologia é bastante reveladora, nela podemos
verificar uma retomada da crítica de Marx dirigida a Hegel: a que reprova o atraso da dialética
de Hegel em relação ao sentido encontrado dado que o olhar deste é sempre retrospectivo,
enquanto Marx aponta para frente às baterias que irrompem o sentido.6 Weil sobre isso, parece
realinhar ambas as posições quando reconhece que o discurso ontológico vê com profundidade
o problema da multiplicidade dos discursos, muito embora seja incapaz de superá-los com
o discurso que seja do homem no qual todos os homens estariam de acordo (cf. LP, 34 ss.).
A investigação de Ricoeur parece querer o mesmo realinhamento, tal como a retomada na
Logique de la Philosophie exige a libertação do sentido de todos os traçados definidores. Eis,
portanto, por que não deve surpreender a aparição de Eric Weil, numa formulação da retomada,
nesse debate sobre a tradição:
Ter-se-á observado, todavia, que Gadamer utiliza a palavra Vernunft, razão, e não Verstand,
entendimento; é possível um diálogo, baseado nisto, com Habermas e K. O. Apel, também
eles preocupados em defender um conceito de razão distinto do entendimento planificador, que
vêem sujeito ao projecto puramente tecnológico. Não se exclui que a distinção, cara à escola de
Francfort, entre a acção comunicativa, obra da razão, e ação instrumental, obra do entendimento
tecnológico, apenas se sustenta pelo recurso à tradição – pelo menos à tradição cultural viva – por
oposição à tradição politizada e institucionalizada. A distinção que, igualmente, Eric Weil entre
o racional da tecnologia e o razoável (raisonnable) da política seria também aqui, bem colocada;
também em Eric Weil, este razoável não existe sem um diálogo entre o espírito de inovação e o
espírito de tradição. (TA, 341).
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Ricoeur, a despeito de sua defesa da tradição contra certa pretensão da crítica das ideologias
em desautorizá-la como fonte do conhecimento, não deixa de estabelecer os limites desta
compreensão da tradição em Gadamer, cuja orientação ele qualifica de submissa e, nesse
sentido, menos acolhedora da crítica das ideologias (cf. TA, 333). Ora, sabemos que para
Eric Weil a tradição é vista de maneira cumulativa e objetiva avançando e informando
aos que vivem hoje seu próprio sentido, ao contrário do que encontramos em Gadamer
cujo movimento, empreendido pelo intérprete, é sempre regressivo na direção de uma zona
primitiva onde se desenvolve a vida da consciência.7
Ricoeur parece ter em mente, quando reclama a presença de Weil nesse debate, o polifacético
conflito entre justiça e eficácia como foi formulado na Filosofia Política, e vê, nessa dinâmica
atual do conflito entre hermenêutica e crítica das ideologias uma insuficiência, não do conflito
em si, mas da incapacidade das posições conflitivas verem que somente sob o efeito de uma
retomada criadora das heranças culturais que aponte para um despertar sempre renovado da
responsabilidade política é que poderão receber seu sentido.
Semelhante a Weil, Ricoeur mantém equidistância tanto do discurso da condenação do
progresso técnico quanto daquele que recusa absolutamente toda nostalgia das comunidades
tradicionais em nome da absoluta inovação. Não por acaso, o que chamará de o paradoxo
político é o que aproximará, por vezes, da formulação weiliana da tarefa de todo Estado
moderno: a conciliação entre justiça e eficácia, entre o cálculo da racionalidade moderna e o
fundo histórico que informa todo sentido da vida humana.8 Contrário à dualidade estabelecida
pela reedição do duelo entre o Romantismo e a Aufklärung – pois é como vê, em parte, o debate
Gadamer-Habermas que gira em torno à tradição, ainda que tenha avançado em relação ao seu
formato original – Ricoeur, a favor de ambos, convoca Weil.
Nada disso soa estranho quando consideramos o que diz a Logique de la Philosophie sobre a
relação entre comunidade e linguagem. Para Weil, não existe tradução automática em discurso
daquilo que é. Na verdade a linguagem, da qual o homem faz uso, é forjada nos interesses e
nas convenções, criada para a satisfação das necessidades da vida comunitária e inventada, por
esta, para esses fins. Essa é a razão pela qual a linguagem se revela limitada quanto à apreensão
do que está no fundo das aparências. (cf. LP, 51). A linguagem, embora seja a única maneira
de a comunidade falar de si mesma, é a maneira precária de enunciar a verdade. Em síntese:
a verdade é sempre o que está no fundo do discurso (cf. LP, 89).
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De outra maneira, as distorções da comunicação numa comunidade, longe de interditar a
compreensão desta, a pressupõe uma vez que é somente por auto referência que uma tradição
histórica se revela. A linguagem nasce da necessidade: essa constatação explica, ou dela se
pode deduzir, toda hermenêutica ou se se quer sua necessidade. Isso porque ao não poder
enunciar o que seja a verdade ou enunciar tão somente negando tudo aquilo que não é verdade,
dado seu caráter prático, a linguagem se presta a todo tipo de interpretação.
É nesse passo, a nosso ver seguindo uma indicação dada por Grondin, que Ricoeur irá vincular
o conflito entre a hermenêutica e crítica das ideologias a outra distinção entre dois tipos de
hermenêutica: a da confiança e a da suspeita. Distinção que estabelecerá muito antes desse
confronto entre Gadamer e Habermas e que talvez constitua uma das ideias mais fundamentais
de toda sua hermenêutica. Para Ricoeur, é preciso tomar junto essas duas modalidades
interpretativas: a confiança que se apropria do sentido tal qual ele se dá à consciência na
expectativa de orientação, e a suspeita que se distancia da experiência imediata do sentido para
reconduzi-la a uma economia mais secreta.9
Retomadas e conflito das interpretações
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O que propomos agora é demonstrar como nesses dois momentos discorridos, a hermenêutica
ricoeuriana assume a mesma operação lógica da retomada weiliana em relação ao conflito dos
vários discursos filosóficos, como é possível verificar na Logique de la Philosophie. Aliás,
não temos hesitado dizer que é em retomada o procedimento da hermenêutica de Ricoeur. O
específico, no entanto, é a clivagem por onde incursiona aquilo que a Logique de la Philosophie
indica mas não desenvolve, dado que para ela as retomadas são infinitas – pois todas as
combinações são possíveis (cf. LP, 230) – e, nesse caso, não compete a essa lógica da filosofia
demonstrar todas as suas possibilidades, mas tão somente a sua possibilidade.
Eric Weil define a retomada como “o conceito que permite a aplicação da lógica à realidade
histórica, em outras palavras, que permite a compreensão dos discursos concretamente
sustentados pelos homens do passado e do presente” (LP, 82). Ora, sabemos que aquilo com
que se ocupa a Logique de la Philosophie é a pluralidade das formas discursivas cujas filosofias
particulares constituem sua realidade: a filosofia só existe enquanto filosofias, melhor ainda,
enquanto conflito das filosofias. O problema, para ser mais enfático, consiste em tentar falar
de filosofia no singular e não somente no plural, mas no singular como uma filosofia pluralista
capaz de superar o monologismo em que se encerram as diversas filosofias ou as “sabedorias
absolutas” a que Weil se refere alhures (cf. PR I, 09).
Para Weil, é a retomada que compõe em unidade essa multiplicidade das atitudes humanas que
os filósofos desenvolvem em sistemas de pensamento. Contudo, não há somente linearidade
na comunicação das filosofias, mas também circularidade. É circular porque nos possibilita
reconhecer o passado da humanidade como nosso próprio passado, é linear pelo abandono
que cada homem submete a si mesmo ao conceber suas decisões como estritamente pessoais
e sem qualquer alcance universal, no interior de um mundo estável (cf. LP, 80). A vida do
homem, por toda sua fecundidade irradiadora, é o que informa toda elaboração posterior: “O
homem retoma... um discurso que, em sua ação, ele já ultrapassou...” (LP, 82). Assim, se pode
compreender porque a retomada possibilita a passagem da atitude à categoria bem como toda
tentativa de unidade do problema filosófico. Ricoeur elabora o mesmo problema da seguinte
forma: “A história, para nós homens, é virtualmente contínua e descontínua, contínua como
único sentido em marcha, descontínua como constelação de pessoas” (HV, 42).
O núcleo em torno do qual gira todo esse empreendimento é o que compreende ser, exatamente,
as vicissitudes o que prende as filosofias umas às outras. Aquilo que constitui problema é
a ausência de uma unidade de sentido entre os vários discursos, a despeito de todos eles
reivindicarem para si mesmos sua coerência em detrimento de outros ou mesmo sem fazer
apelo algum à coerência, mas não se libertando dela em absoluto dado que entraram no domínio
da linguagem e são discursos.
Desde as primeiras linhas a Logique de la Philosophie guarda a lucidez quanto ao problema
dessa precariedade do discurso: “como se orientar na vida, como tomar uma decisão diante da
violência se o que o discurso diz a seu respeito não é consistente, nega a si mesmo, se aquilo
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que é, ora é isso, ora é aquilo?” (LP, 29). Difícil não cruzar tal questão com toda problemática
perseguida por Ricoeur tanto em relação ao confronto entre hermenêutica e fenomenologia,
quanto ao que concerne o problema da tradição e da crítica. Nesses momentos percebemos
que o problema da ontologia é tomado com muita seriedade porque encarado como orientação,
muito embora o discurso ontológico não seja, para nenhum dos dois filósofos em questão, a
última palavra.
É sob o problema da multiplicidade discursiva em função da unidade temática – em que
o sentido se circunscreve –, que a retomada constitui, para ambos os filósofos, a operação
de segundo grau na qual a filosofia se desenvolve como interpretação e se compõe como
abertura a toda alteridade. O norte de toda essa dinâmica é a busca pelo destravamento e
pela captação do sentido. Na Logique de la Philosophie as categorias-atitudes somente são
capazes de desenvolvimento dando ouvidos, ao máximo, às precedentes e que ao falarem
de si mesmas acabam por formular o que constituirá a sucessiva. É como ouvinte, como
intérprete, numa palavra, como leitor que uma categoria-atitude põe termo à categoria-atitude
precedente. Não nos parece despropositado assentar a refiguração ricoeuriana sob a retomada
weiliana dado esse papel de leitor (ou intérprete) exercido pela categoria-atitude sob uma outra
categoria-atitude (ou mesmo pela categoria sob a atitude), ao mesmo tempo em que se elabora
observando todas as aporias lançadas por esta e só podendo constituir-se em resposta a todas
elas: “É por meio da retomada que a atitude se torna categoria” (LP, 98). Toda a Logique de la
Philosophie pode ser lida como a transformação de um si mesmo que passa por um outro como
atestam os pares: filosofia-história, categoria-atitude, razão-violência, linguagemdiscurso, etc.
Eis a razão pela qual a filosofia só é compreendida em segunda leitura (ou releitura), e a
história, compreendida como filosofia das atitudes humanas, sempre em retomada. Sendo
a passagem de uma categoria-atitude à outra uma passagem não necessária, mas livre,
“injustificável” portanto, deve-se então aceitar a descontinuidade da história, dar asilo a suas
rupturas, sobretudo nessas junções torcidas. Será essa série de emergências descontínuas que
exigirá para si mesma uma atenção sempre nova e totalmente devotada (cf. HV, 41) no que
concerne ao projeto da hermenêutica ricoeuriana. Entretanto, isso não basta. Pois se, por um
lado, a história é essa tensão entre o evento e advento, ela também é a irradiação de um único
sentido em marcha que cruza cada particularismo das atitudes-categorias individuais, como
entende a Logique de la Philosophie.
Seguir a pulverização, sem temor, só é possível para quem compreendeu (e também
empreendeu) a Lógica e sabe que direção tomar, sabe que uma orientação é possível em meio
à variedade dos confrontos, não só inevitáveis como necessários. Essa segunda sequência não
é o empreendimento de uma segunda lógica certamente, mas dela não se pode desvencilhar,
pois é o que está presente como aquilo que orienta, o que permite abrir picadas sem se perder.
Ricoeur vai se embrenhando filosofias adentro, considerando autor por autor, frequentando
e cruzando as áreas mais distintas do pensamento, tramando de problemas em problemas,
explorando cada dobra.
Podemos dizer então o que está em jogo nessa aplicação das retomadas nas junções é a fusão
de horizontes no qual o estranho é incorporado no que é próprio, tal como ocorre nas traduções
de uma língua para outra.10 Ou como diz Ricoeur, o restabelecimento da dialética dos pontos
de vista e a tensão entre o outro e o próprio leva à fusão de horizontes... (cf. TA, 343). Por isso,
para Ricoeur, o debate nunca ocorre em termos de alternativa, mas de retomadas sucessivas
e criadoras.
Bem ao modo da Logique de la Philosophie, que compreende os embates entre as filosofias
como esforço (no limite da extenuação) para não ceder à dualidade, a hermenêutica de
Ricoeur é também a recusa de toda redutibilidade ao dualismo. Tudo o que se impõe como
alternativa em matéria de pensamento é problematizado por essa hermenêutica. É desse modo
que vemos seu direcionamento quanto à imposição de uma escolha entre Analítica do Dasein e
epistemologia da interpretação, entre psicanálise e filosofia, entre hermenêutica das tradições
e critica da ideologias, etc. Nesse último caso, adverte textualmente que não se trata de um
clamor de anexação que anima o investigador, mas da natureza mesma do pensar filosófico
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que compreende seu resultado, apesar da garantia da irredutibilidade de posições divergentes,
como sendo o lugar de uma posição que se inscreve na estrutura da outra (cf. TA, 331).
Essa advertência, que para nós ecoa muito mais como uma confissão, remete Ricoeur ao
seu parentesco originário com Eric Weil. Se Ricoeur será muito mais econômico e, portanto,
discreto ao falar de retomadas após Historia e Verdade, o mesmo não se poderá dizer da
fórmula qualificativa que Weil se atribuía e que o hermeneuta diz preconizar: a de kantiano
pós-hegeliano (cf. TN 3, 367). Seria desprovida de sentido essa tomada de posição numa
filosofia e para um filósofo de franca opção pelo sentido? Não cremos.
Ora, o que Eric Weil busca realizar no plano das interpretações globais da história humana,
Ricoeur submete a outro registro cuja natureza somente se distingue quanto ao plano, mas não
nos parece divergir quanto ao projeto. Essa constatação nos autoriza pensar a retomada em
chave kantiana pós-hegeliana? O que faz Weil ao se apropriar do esquema kantiano e chamálo em sua Logique de la Philosophie de retomada: bem, ele o aplica sobre a multiplicidade
dos discursos filosóficos e procura determiná-los no sentido de sua compreensão, isto é,
ele reagrupa discursos, os tipifica – no sentido weberiano dos tipos ideais. Numa palavra:
eleva uma determinação discursiva ao plano de uma compreensão universal. A retomada é,
exatamente, a finitude da multiplicidade das atitudes humanas categorizada pelo discurso
universal. Como lógica da filosofia o projeto é conclusivo, foi capaz de dizer tudo e o resto,
para falar como Labarrière,11 como lógica do diálogo é sistema aberto, sistema que se conclui
no vazio (cf. AEW, 415) e, portanto, é preciso reabri-lo também, permanentemente, em suas
junções, eixos, bifurcações e entrecruzamentos. Nesses pontos, a nosso ver, é que Ricoeur
preconiza o empreendimento da Logique de la Philosophie.
Conclusão
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Pois bem, parece-nos que é tomando por base o problema da multiplicidade, mas não se
rendendo a ele, que Ricoeur se perfila no trajeto aberto pela Logique de la Philosophie. O
que fica claro, para nós, em toda essa análise do “enxerto” é exatamente esse programa que
História e verdade acrescenta e põe em movimento na hermenêutica.
Retornemos a esse livro e ouçamos o que nele nos fala Ricoeur: “recebo o ‘penhor
da esperança’ quando percebo de maneira fugidia a consonância dos múltiplos sistemas
filosóficos ainda que irredutíveis a um único sistema coerente” (HV, 11). Essa será a tônica
da conduta e do procedimento de Ricoeur no exame das mais diversas áreas do conhecimento
humano e, ao mesmo tempo, o tom de sua crítica (se se trata realmente de uma crítica) a Eric
Weil.
Não ignoramos os percalços dessa incipiente análise. A bem da verdade, nossa expectativa,
no que diz respeito a essa investigação, é que tenha cumprido somente precariamente seu
propósito. Especialmente, pelas razões que apontamos no início quanto à arriscada iniciativa
da prova pela continuidade em filosofia. Ainda assim insistimos no sentido da retomada e
do papel que assume na composição de certos conceitos diretores da hermenêutica de Paul
Ricoeur, senão de sua própria escolha filosófica. A posição adotada em todas as discussões,
notadamente nas que foram evocadas e sumariamente apresentadas nesta comunicação,
corrobora com certa clareza, para nós, uma opção no arbítrio do conflito das interpretações,
fulcro central de sua hermenêutica.
Mas, chamam atenção as razões que mobilizam determinados filósofos, no caso Ricoeur,
a assumir decididamente outra filosofia. Particularmente, a apropriação, no sentido de sua
hermenêutica, da retomada de Eric Weil. Para a total compreensão de nosso propósito resta
ainda que indaguemos sobre o caráter dessa tomada de posição.
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––––, Philosophie et Réalité I. Paris: Beauchesne, 1982.
Notas
1 É interessante notar como em boa parte de História e Verdade há rasgados elogios de Ricoeur à Eric
Weil, em especial à sua Logique de la Philosophie.
2 Para uma caracterização mais geral desse debate remetemos às didáticas exposições de J. Grondin,
Hermenêutica. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. pp. 81-91, E. Stein,
“Dialética e hermenêutica: uma controvérsia sobre o método em filosof a”, in Síntese 29,1983, pp. 21-48
e do próprio P. Ricoeur, TA, pp. 329-371.
3 H.-G. Gadamer, Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2 ed.
Tradução de Flávio Paulo Meurer, Petrópolis, Vozes, 1997, p. 421.
4 Idem, p. 15.
5 Cf. E. Stein, Art. cit., p. 38.
6 Cf. H. C. de Lima Vaz, Ontologia e história. São Paulo, Loyola, 2001, p. 133 ss.
7 Cf. J-M Breuvart, “Tradition, effectivité et theorie chez Eric Weil et Hans George Gadamer”, in Cahiers
Eric Weil I, Lille, PUL, 1987, p. 146.
8 Dirá Ricoeur “Eis uma citação de Eric Weil, muito próxima do que chamo de ‘paradoxo político’:
‘O problema é elevar-se à razão subsistindo, subsistir para elevar-se à razão, e este problema deve ser
resolvido no plano do empírico, da violência, das paixões dos grupos e dos extratos, da competição e
da luta entre os Estados, no plano também do trabalho e do poder que ele oferece, da organização e,
portanto, da riqueza’ (Cf. L1, p. 50 nota e PP§ 39, e).
9 J. Grondin, op. cit., pp. 93 e 94. Essa verificação é perfeitamente tangencial com outra passagem da
Logique de la Philosophie e que também não deverá surpreender: “No início de uma nova época – no
momento em que um novo interesse, ao querer destruir um mundo envelhecido, organiza um mundo
novo –, é, portanto, uma antiga categoria que apreende a nova atitude e fala da nova categoria, e ao falar
a seu respeito, também a esconde e deturpa.” (LP, 82).
10 Cf. E. Stein, Art. cit., p. 35.
11 J.-P. Labarrière apud E. Costeski, Atitude, violência e estado mundial democrático: sobre a filosofia
de Eric Weil. São Leopoldo, Unisinos; Fortaleza, UFC, 2009, p. 100.
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A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
Para citar este artigo
Referência eletrónica
Francisco Valdério, « A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil », Cultura [Online],
Vol. 31 | 2013, posto online no dia 12 Dezembro 2014, consultado a 21 Fevereiro 2015. URL : http://
cultura.revues.org/1872 ; DOI : 10.4000/cultura.1872
Referência do documento impresso
Francisco Valdério, « A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil », Cultura,
Vol. 31 | 2013, 227-246.
Autor
Francisco Valdério
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
Nasceu na cidade de São Luís estado do Maranhão, Brasil (1972), atua no magistério desde o término
da graduação em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (1996), ministrou aulas de filosofia
por mais de dez anos para o ensino médio, destaque para o Centro Integrado Rio Anil e Liceu
Maranhense – nesse último também desempenhou a função de Diretor Adjunto. Nesse período ainda
colaborou com o ensino superior trabalhando na Universidade Federal do Maranhão e no Centro
Federal de Educação Tecnológica. Em 2008 iniciou estudos de mestrado pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, após defender dissertação “Dialética do Estado: ação política na filosofia de
Éric Weil” (2010) prossegue estudos weilianos no doutorado pela mesma instituição. Atualmente é
professor de filosofia na Universidade Estadual do Maranhão.
Originaire de la ville de São Luís do Maranhão, Brésil, Francisco Valdério s’est dédié à
l’enseignement depuis la conclusion de sa licence en philosophie de l’Université fédérale du Maranhão
en 1996, notamment au Lycée Maranhense où fut aussi directeur-adjoint, et, en tant que collaborateur,
à l’Université fédérale du Maranhão et au Centre fédéral de l’éducation technologique. En 2010, il
termine avec succès son Master à l’Université pontificale catholique de São Paulo, en soutenant une
dissertation sur «Dialectique de l’Etat: action politique dans la philosophie d’Eric Weil », et devient
doctorant de la même institution. Il est actuellement professeur de l’Université de l’Etat du Maranhão.
Direitos de autor
© Centro de História da Cultura
Resumos
Refletimos como em dois momentos – no “enxerto hermenêutico sobre a fenomenologia” e
no debate da alternativa entre hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias (Gadamer/
Habermas) –, Ricoeur parece acompanhar o mesmo movimento operatório da retomada: da
inscrição de um discurso num outro ao mesmo tempo em que compreende toda a variedade
interpretativa decorrente dessa alteridade, isto é, da articulação uno­-múltiplo. A hermenêutica
ricoeuriana é, assim, uma tomada de posição análoga àquela da Logique de la Philosophie de
Eric Weil em relação ao conflito das filosofias. Porém, em Ricoeur, a retomada não é mais
(predominantemente) a aplicação sobre as tipologias filosóficas ou dedução coerente através
de uma lógica global, mas diálogo singular com os problemas suscitados pelos discursos dos
filósofos em sua pretensão de universalidade e de sentido.
L'herméneutique de Paul Ricoeur et la reprise d'Eric Weil
On réfléchit comment en deux moments – dans «la greffe herméneutique sur la
phénoménologie» et dans le débat de l’alternative entre l’herméneutique des traditions et la
critique des idéologies (Gadamer/Habermas) –, Ricoeur semble suivre la même procédure
de la reprise: de l’inscription d’un discours dans un autre qui comprend en même temps
toute la gamme d’interprétations qui advient de cette altérité, c’est-à-dire, de l’articulation
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A hermenêutica de Paul Ricoeur e a retomada de Eric Weil
un-multiple. L’herméneutique ricoeurienne est, donc, une prise de position analogue à celle
de la Loqique de la philosophie d’Eric Weil en ce qui concerne le conflit des philosophies.
Toutefois, chez Ricoeur, la reprise n’est plus (principalement) une application à des typologies philosophiques ou une déduction cohérente par le moyen d’une logique globale, mais
un dialogue singulier avec les problèmes soulevés par les discours des philosophes dans leur
aspiration à l’universalité et au sens.
Entradas no índice
Mots-clés : reprise, multiplicité, unité, Logique de la Philosophie, herméneutique
Palavras chaves : retomada, multiplicidade, unidade, Logique de la Philosophie,
hermenêutica
Notas do autor
Serão utilizadas as seguintes siglas no corpo do texto: LP – Logique de la Philosophie, PP –
Philosophie Politique, PR I – Philosophie e Realité I, AEW – Actualité d’Eric Weil. Actes
du colloque International, referente às obras de Eric Weil e HV – História e Verdade, CI – O
Conflito das Interpretações, TA – Do texto à Acção, TN 3 – Tempo e Narrativa, tomo 3, L1 –
Leituras 1, referentes às obras de Paul Ricoeur seguidos do número da página.
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