TRABALHO COMPLEXO E DEGRADADO: A REALIDADE DE UMA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA DE UM HOSPITAL PÚBLICO NO RIO DE JANEIRO Elliane Villas Bôas de Freitas Penteado Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana-CESTEH/ FIOCRUZ Av. Leopoldo Bulhões, 1490 Manguinhos Rio de Janeiro/RJ 21041-210 Anísio José da Silva Araújo Universidade Federal da Paraíba/Depto. de Psicologia e CESTEH/FIOCRUZ Cidade Universitária Campus I João Pessoa/Pb 58059-900 Elaine Duim Martins CESTEH/FIOCRUZ Maria das Graças Mota Melo CESTEH/FIOCRUZ Lolita Dopico da Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 Maracanã Rio de Janeiro/RJ 20559-900 Abstract: This study was develloped at the newborn and pediatric Intensive Care Unity at Bonsucesso’s General Hospital in Rio de Janeiro, and tried to analyse the possible relationships between technology, work process and health, since this unity operates with an advanced health technology. A qualitative methodology was applied, and it consisted of semi-structured interviews and observations at the work place. Among the verified situations, some stand out: a precarious planning of theIintensive Care Unity’s implementation, where workers were excluded from the technological-organizational design; the technological apparatus has a deteriorated operation, almost without chance of being managed; reduction of number of workers, wich implies in a reduction of the service’s quality and workers overload. The observed transfer of technology ilustrates a series of problems poitend by Antropotechnology. The verified situation occurs in a a setting where a State Reformation is taking place, where the main strategy is the dismanteling of the public sector. But, it also reflects archaic management practices, potentialized by the recent changes. Área: Ergonomia e Segurança do Trabalho: Organização do Trabalho. Palavras-chaves: New technologies in health. Deteriorated operation. Antropotechnology 1. INTRODUÇÃO O presente estudo foi realizado no Hospital Geral de Bonsucesso (HGB) em 1997, um hospital público de grande porte integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e com uma clientela majoritariamente oriunda das zonas norte e oeste do município do Rio de Janeiro. Mais especificamente focalizamos a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal e Pediátrica desse hospital, na qual nos propusemos a verificar as possíveis relações entre Tecnologia, Processo de Trabalho e Saúde. A metodologia utilizada compreendeu basicamente entrevistas semi- 2 estruturadas aplicadas aos diferentes profissionais do setor e observação no local de trabalho. Os principais pontos abordados foram: organização do trabalho (divisão de funções, linhas de comando, composição e atribuição das equipes, jornada de trabalho, etc.); processo de trabalho (complexidade, materiais e equipamentos, ritmos, etc.) e emprego de tecnologia na assistência à saúde e suas implicações. A UTI Neonatal e Pediátrica destina-se ao atendimento de recémnatos (0 a 29 dias) e crianças (30 dias a 14 anos) em risco de vida com problemas graves de saúde relacionados à prematuridade, a doenças congênitas com repercussão hemodinâmica, a doenças infecciosas, a diversos tipos de lesões traumatoortopédicas, intoxicações, etc. Necessita, portanto, de recursos da área de saúde com alta tecnologia, associados à atenção e cuidados intensivos. A UTI neonatal possui capacidade para até oito incubadoras e equipamentos como respiradores, bombas de infusão, oxímetros, monitores cardíacos, etc. 95% da clientela é de prematuros ou neonatos, oriundos da maternidade do hospital. A UTI pediátrica possui capacidade para cinco leitos e a clientela é constituida de crianças procedentes da emergência ou do setor pediátrico do hospital ou, ainda, transferidas de outra instituição. Os equipamentos de suporte são os mesmos já citados. O setor tem funcionamento ininterrupto e sua equipe é composta por médicos, enfermeiros diaristas, plantonistas e auxiliares de enfermagem plantonistas. Os diaristas possuem jornada de trabalho de 6 horas (nos turnos da manhã ou tarde) e os plantonistas de 12 horas (divididas em plantões de 7-19 horas e de 19-7 horas, com 60 horas de descanso). A equipe de trabalho da UTI foi estruturada em dezembro de 1995, com aproximadamente 80% dos funcionários recém-contratados através de concurso público. Os 20% restantes eram funcionários antigos do hospital. Devido a diferenças contratuais, o salário do grupo antigo é quase duas vezes maior do que o salário dos recém-admitidos. Atualmente esta composição apresenta-se defasada devido a uma evasão de aproximadamente 30% dos funcionários da instituição. Este déficit de pessoal é explicado pela política de enxugamento do setor público operada através de: programas de incentivo a exoneração voluntária, proibição de acumulação de vínculos, aposentadorias precoces, outras possibilidades de vínculos através de fundações e cooperativas hospitalares, além de baixos salários. Essa carência de pessoal tem ocasionado, entre outros efeitos, a queda na qualidade da assistência ao paciente, a redução do número de internações, sobrecarga de trabalho para os funcionários. Não há uma previsão, a curto prazo, de recuperação deste déficit, uma vez que o mecanismo de admissão de funcionários é através de concurso. Os funcionários têm atribuições previamente estabelecidas de acordo com a atividade desenvolvida. Ao médico cabe o exame clínico e a solicitação de exames para estabelecimento do diagnóstico e a prescrição de medicamentos. Alguns procedimentos são de sua exclusiva competência, como entubação e cateterismos profundos. São atribuições do enfermeiro a realização de cateterismo nasogástrico e vesical, a aspiração de tubo orotraqueal, punção venosa profunda com dispositivo jelco. A enfermeira diarista faz a previsão e provisão de material de consumo da unidade. Também controla material permanente e psicotrópicos. Além disso é responsável pela revisão das rotinas e protocolos e pelo treinamento em serviço de auxiliar e enfermeiro (sobre equipamentos e técnicas de procedimentos). Avalia, 3 igualmente, os equipamentos com defeitos para providências de manutenção interna ou externa. O auxiliar de enfermagem realiza cuidados de rotina como verificação de sinais vitais, aspiração de tubos e das vias aéreas superiores, fornecimento das medicações, cuidados de higiene dos pacientes, entre outros procedimentos. 2. DESCRIÇÃO DOS DADOS A UTI foi inaugurada em março de 1996 e na área física onde foi instalada funcionava o antigo setor de dermatologia, conversão que, obviamente, exigiu algumas adaptações. Por razões de economia, as UTIs neonatal e pediátrica foram unificadas, quando deveriam ser separadas, já que o tratamento de um recém-nascido difere bastante em complexidade do tratamento de uma criança. Esse fato acarretou problemas de adaptação para a equipe, já que os médicos dispunham de experiência ou em neonatologia ou em pediatria, ou até em nenhuma dessas especialidades A disposição prevista inicialmente para os leitos foi modificada, pois havia mais vagas pediátricas que neonatais, quando a demanda era inversa. A equipe recebeu um treinamento teórico em janeiro de 1996 com duração de aproximadamente 45 dias. O treinamento abordou as patologias mais comuns nesse tipo atividade e informações sobre a estrutura organizacional da instituição. Não houve treinamento paralelo em relação aos equipamentos utilizados na UTI. O aprendizado sobre a aparelhagem ocorreu com a UTI já em funcionamento. As informações fornecidas pelos técnicos, quando da instalação dos equipamentos (duas semanas antes da inauguração da UTI), não foram consideradas suficientes. Além disso, os manuais dos aparelhos não estão disponíveis (desapareceram), o que impede uma melhor compreensão do funcionamento dos mesmos. 2.1 - Equipamentos/materiais Adiante uma descrição dos equipamentos disponíveis na UTI seguida dos problemas detectados em cada um deles. Incubadora: o modelo disponível na UTI possui tecnologia moderna, com informações digitalizadas, de fácil visualização e com sistema de alarme sonoros. É utilizada para manutenção e controle da temperatura corporal, evitando consumo energético. Esta regulação térmica é feita de duas maneiras: através do controle da temperatura ambiente da incubadora e através do controle da temperatura corporal por um sensor, que é colocado em contato com a pele do recém-nascido. Situação atual: os sensores deste equipamento não estão mais disponíveis, pois foram danificados devido ao uso inadequado pelos funcionários da unidade (não foram devidamente orientados quanto a sua utilização). Essa falha foi percebida devido a não correspondência entre a temperatura programada e a detectada. Isso teve agravos para os pacientes, uma vez que essa percepção se deu quando da utilização do equipamento. O controle da própria incubadora também não é fidedigno e os funcionários são obrigados a colocar a mão no seu interior, para assegurar-se de que não esteja ocorrendo um superaquecimento. Oxímetro: é um aparelho com dispositivo fotoelétrico utilizado para verificar a saturação de oxigênio capilar sanguíneo. Informa a percentagem de oxigênio no sangue e, indiretamente, em circulação. Possui um sensor com célula fotoelétrica colocado em uma extremidade do corpo, geralmente no dedo do pé. O 4 oxímetro utilizado no setor possui painel digital com informações diversas, tais como frequência cardíaca, curva de oxigenação, fluxo de O2, entre outras. O setor dispõe de quatro equipamentos desse tipo. Situação atual: é um tipo de aparelho que sofre interferências por diversas razões, dentre as quais podemos destacar: colocação inadequada do sensor, variação de luminosidade, mau contato com a tomada, etc. Monitor cardíaco: é utilizado para verificar o funcionamento elétrico do músculo cardíaco. Informa o ritmo e a frequência dos batimentos cardíacos através de representação gráfica. A captação dos estímulos elétricos é feita com sistema de eletrodos posicionados na pele. O modelo utilizado na UTI é microcomputadorizado e possui oxímetro acoplado. Informa diversos parâmetros hemodinâmicos simultaneamente e possui sistema de alarmes sonoros. Entretanto, seu custo é alto e na unidade há somente dois. Bomba infusora: tem como função realizar infusão venosa de medicação controlada com ajuste de tempo e com velocidade constante. A UTI dispõe de dois tipos de bomba: a de seringa e a peristáltica. A primeira é utilizada para soluções de medicação com pequeno volume e que devem ser administradas lentamente. Já a peristáltica é utilizada para infusão de soluções de medicamentos diluídos em frascos de soro conectados a equipos. A bomba em uso no setor possui sistema de alarme sonoro e 25 tipos de sinais digitais de informações sobre seu funcionamento. Situação atual: o mau funcionamento da bomba de seringa, devido ao modelo adquirido e problemas na sua utilização, provocou casos de insuficiência cardíaca congestiva e de hiperglicemia, não tendo, entretanto, ocasionado óbitos. Necessita, portanto, uma observação freqüente do seu funcionamento. Esse tipo de equipamento é vulnerável a problemas de diversas ordens. Se cair líquido no carrinho e ocorrer formação de cristais, por exemplo, pode travar ou acelerar a velocidade de infusão com conseqüente aumento da carga volêmica da criança, ou até mesmo a não administração da medicação. Em relação à bomba peristáltica, se esta não for bem posicionada, trava e impede o fornecimento de líquido para o paciente, embora não haja risco de fornecimento excessivo. Respirador: o respirador ou ventilador mecânico é utilizado nos casos de insuficiência respiratória, quando o doente não consegue manter respiração espontânea suficiente para suas necessidades. Seu funcionamento depende de uma fonte de oxigênio com controle de níveis de pressão. O painel possui mostradores luminosos, várias possibilidades de ajustes e sistema microprocessado de alarmes luminosos e sonoros. Situação atual: esse tipo de equipamento pode apresentar diversos tipos de problema, como falha na ciclagem (interrupção do ciclo respiratório) se alguma peça se desconecta. Por algum tempo os respiradores foram uma incógnita para os profissionais, que não sabiam como usá-los. Dos cinco respiradores da UTI, um está parado há seis meses sem conserto. As rotinas de serviço que foram elaboradas pela enfermagem, estão sendo reformuladas de modo gradativo, pois não contemplam o funcionamento dos equipamentos, destinando-se apenas a condutas terapêuticas de acordo com as diversas patologias. A falta de equipamentos e material de reposição é um dos problemas mais graves do setor. Para contornar esse deficit os médicos se vêem obrigados a aplicar tratamentos mais complexos quando outros mais simples poderiam ser indicados. Transtornos diversos resultam dessa situação: o tempo de internação dos 5 pacientes, em muitos casos, acaba sendo ampliado; o número de internações é restringido, etc. Um outro problema diz respeito à necessidade de medicamentos importados para tratamento dos pacientes, que o hospital não adquire em razão da obrigatoriedade de se promover licitações. Constantemente necessita-se recorrer a outros setores do hospital ou a outras instituições para conseguir material "emprestado", o que nem sempre é possível. Uma das carências mais graves é a de um eletroencefalograma, o que impossibilita, por exemplo, a confirmação da morte cerebral do paciente, cujo perfil clínico aponte para essa hipótese. Há até pouco tempo esse diagnóstico vinha sendo feito através de tomografia mas, atualmente não há filme para o tomógrafo. A UTI tem equipamento de pressão intracraniana, mas falta equipo para o uso deste aparelho. A mesma situação se constata em relação às bombas infusoras. Falta imunoglobulina. Não há catéter percutâneo em quantidade suficiente. Já equipamentos como gasometria, raios-x de beira de leito, oxímetro de pulso, monitor cardíaco existem em quantidade suficiente. Um outro problema colabora para a falta de equipamentos, os casos de furto. Do material adquirido inicialmente para a UTI, desapareceram um aparelho de eletroencefalograma, dois oxímetros de pulso e duas bombas infusoras. Também o sistema de ar comprimido apresentou problemas no início. Por uma falha na instalação permitia a entrada de água, o que podia comprometer o tratamento dos pacientes. Os profissionais "rezavam" para a água não entrar no chicote. Somente quando a direção foi pressionada pelo custo das balas de ar comprimido consumidas na substituição do ar da rede, é que o compressor foi consertado. 3. ANÁLISE DOS DADOS A partir dos materiais levantados na visita realizada ao HGB faremos a seguir algumas considerações iniciais recorrendo, sobretudo, a conceitos oriundos da Ergonomia Situada. Esses conceitos, apesar de formulados a partir de estudos envolvendo indústrias de processo contínuo, nos parecem pertinentes para analisar o trabalho realizado na UTI em pauta. Segundo Lima (1992) a Ergonomia Situada, enquanto disciplina científica, tem como objeto de estudo o funcionamento do homem em atividade profissional. O seu interesse dirige-se, portanto, para o “homem em situações reais de trabalho, cada vez mais compreendidas na sua globalidade e complexidade social” (Lima: 1992, 32). 3.1 - O caráter coletivo do trabalho A atividade coletiva ocorre quando a execução de uma tarefa demanda a intervenção coordenada de vários operadores, em um mesmo lugar ou até em locais diferentes. Desnoyers (apud Athayde, 1996) caracteriza-a como a que é conduzida por um conjunto de operadores em torno de uma mesma meta, que coordenam sua atividade e cooperam. É ainda Athayde (1996) que, a partir de Leplat, identifica alguns sinais da presença de uma atividade coletiva: as formas de comunicação, a existência de regras (não-escritas, negociadas) e da cooperação/coordenação no desenvolvimento da atividade. No que tange as suas funções Athayde (1996) destaca as de regulação social (prevenir, recuperar ou reduzir as consequências de conflitos 6 sobre os resultados); de planificação das operações; de adaptação do prescrito ao real; de construção da perícia (representação esquemática); de auxílio na tomada de decisão; de regulação da carga de trabalho. O objetivo é viabilizar o sistema de produção, reduzir a complexidade e prever/prevenir/detectar/recuperar disfuncionamentos. Duarte (1994) identifica a dimensão coletiva nas indústrias de processo contínuo pela intensa comunicação verificada entre os operadores, o que permite cumprir funções como tomada de informações, coordenação de atividades entre diferentes operadores e equipes de trabalho, negociação de objetivos, entre outras. Elas tem por meta gerar uma representação compatível com o estado do processo (referencial comum). A partir desse breve quadro teórico sobre coletivo, podemos tecer alguns comentários a partir da visita ao HGB. Em primeiro lugar, há que se ressaltar, enquanto característica central do trabalho na UTI visitada, o fato de lidar com casos complexos, obviamente com um nível de exigência bastante superior à prática corriqueira. São casos em que os procedimentos e condutas não se definem de forma imediata. É de se supor, portanto, que o diagnóstico e as decisões necessitem de uma construção coletiva (a representação comum). Isso estaria a demandar um permanente compartilhamento dos saberes de maneira a assegurar um encaminhamento o mais pertinente possível. O que nos pareceu, entretanto, é que a rígida demarcação entre as categorias presentes no trabalho hospitalar, e mais ainda no caso de UTIs, dificulta essa troca, quando muito limitando-a a equipe médica e a situações de urgência. No mais das vezes é a intervenção individualizada dos vários profissionais que prevalece, e a noção de obra que deveria predominar, mostra-se enfraquecida. Isso não significa evidentemente que não deva existir repartição de tarefas, porém, na abordagem dos diversos casos o saber coletivo precisaria ser mobilizado de modo a resultar numa ação a mais adequada possível. 3.2 - A Antropotecnologia Inegavelmente o exemplo sobre o qual nos debruçamos é fartamente ilustrativo do que a Antropotecnologia tem a nos dizer, sobretudo se levarmos em conta o fato de que na UTI visitada o aparato tecnológico desempenha um importante papel nos procedimentos terapêuticos. Segundo Wisner (1993:34) “o objetivo da antropotecnologia é modificar os sistemas técnicos e organizacionais e não mudar a realidade humana, seja ela biológica ou cultural”. Refere-se, portanto, a adaptação da tecnologia a realidade do país que a adquire. Entre os fatores a serem considerados num processo de transferência tecnológica destacam-se segundo Goldenstein (1997): a qualidade do tecido social (nível de instrução, competências, familiaridade com novas tecnologias); tecido industrial: fábricas para parcerias, empresas de manutenção; ambiente econômico do país e região; condições geográficas (clima); Modo Degradado de Funcionamento (MDG). É importante, igualme0nte, precisar a noção de Modo Degradado de Funcionamento. Segundo Duarte (1994) ela “significa, em geral, um processo de deterioração gradual dos equipamentos e dispositivos técnicos de uma instalação ou situação de trabalho caracterizado por um estado de disfuncionamentos e de incidentes constantes” (p. 33). A degradação seria compensada por atividades dos compensatórias dos operadores que “...representavam uma luta contínua contra as anormalidades da produção, através de ajustes e astúcias utilizadas para combater a degradação” (Duarte: 1994, 16). 7 Enquanto características da degradação Goldenstein (1997) identifica as seguintes: sistemas de instrumentação automática constantemente fora do ar; maquinário utilizado em condições diferentes das preconizadas pelos fabricantes; manutenção impossibilitada ou negligenciada; pessoal insuficiente em número, qualificação e experiência. A partir do exposto podemos tecer alguns comentários sobre a UTI estudada. Um primeiro aspecto diz respeito a própria concepção da UTI neonatal e pediátrica. Os dados colhidos parecem indicar a insuficiência no planejamento, e sobretudo o não aproveitamento da experiência dos mais antigos. Isso se constata na própria distribuição dos leitos, em que a UTI pediátrica mereceu um quantitativo maior que a UTI neonatal, quando a demanda era inversa. Uma outra dimensão importante relaciona-se ao aparato tecnológico. A decisão sobre que equipamentos e que necessidades deveriam atender escapou ao coletivo que iria manuseá-los. Ainda hoje, passado algum tempo de constituição da UTI, existem equipamentos inativos e mesmo naqueles em funcionamento, o domínio da equipe é insuficiente, e se deu a partir de tentativas operadas no cotidiano de trabalho. Isso nos remete a questão do treinamento, que, como foi constatado, não contemplou os equipamentos que seriam utilizados, e, sobretudo, foi formulado sem o lastro de uma análise do trabalho em situações similares, portanto distante da realidade com a qual a equipe iria deparar-se. Além disso, existem os problemas inerentes a própria tecnologia. Elas foram projetadas para o país de origem, ignorando quaisquer características do país e da região que a absorveu, tais como a condição da equipe que a utilizaria, empresas de manutenção, etc. Os efeitos se mostram na desconfiança nos equipamentos, na sua gradativa deterioração, com funções sendo anuladas ao longo do tempo, e, evidentemente, numa demanda cada vez maior de trabalho por parte da equipe. 3.3 - Redução de efetivos Na indústria de processo decisões sobre redução de efetivos tem sido tomadas sem um conhecimento suficiente da atividade real dos operadores. Segundo Duarte (1996) o dimensionamento de efetivos deveria considerar entre outros aspectos: o estado de degradação do sistema técnico; a atividade em diferentes situações (partidas, urgências, etc.); o absenteísmo; a concepção do sistema técnico e a polivalência e repartição de tarefas. Conforme verificamos no caso da UTI do HGB, a política de redução de efetivos não está respaldada numa análise da atividade dos profissionais. Se assim o fosse, a redução de efetivos certamente não seria cogitada. Os inúmeros exemplos atestam uma deliberada ação do estado no sentido de uma degradação progressiva do aparato tecnológico-organizacional, das relações interpessoais, culminando por extinguir ou transferir para outrem a prestação do serviço de saúde. 4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO Como já indicamos anteriormente não há como explicar o estado de degradação tecnológica, organizacional, das relações humanas do setor saúde tomando por referência apenas o espaço demarcado nesse estudo, e lançando mão exclusivamente de conceitos ergonômicos, mesmo que de uma ergonomia da atividade. Um movimento de contextualização faz-se necessário para uma maior aproximação da realidade. 8 Vivemos um contexto de globalização, de prevalëncia de uma lógica financeira sobre a produtiva. O Estado insere-se nesse processo desmontando o precário Estado-providência que aqui se instalou. E o faz de forma ainda mais perversa que em outras nações, se considerarmos as precárias condições de vida e trabalho as quais tem sido submetido o povo brasileiro. O debate social sobre essas mudanças e suas implicações praticamente inexiste e a destruição prossegue quase sem nenhuma resistência. Temos, entretanto, que reconhecer que nem tudo neste quadro é reflexo de tempos mais recentes. Existem, certamente, opções organizacionais tradicionalmente marcadas pelo autoritarismo e pela exclusão da participação dos trabalhadores nos processos de concepção, que contribuem no entendimento da degradação. Como pudemos constatar, a falta de uma visão sistêmica, um precário planejamento, a desconsideração pela experiência dos antigos, a ausência de políticas de manutenção do saber acumulado, a inexistência de uma estratégia de formação permanente, a desconsideração das condições locais na incorporação de novas tecnologias, o precário entendimento das funções e do manuseio das tecnologias são aspectos bastante evidentes e que tem de longa data figurado na prática da administração pública brasileira. Não são, portanto, produto apenas desse quadro mais global. É bem verdade, entretanto, que são potencializados pela forma como vem sendo conduzida a política pública atualmente. Práticas, portanto, que permaneceram durante anos obscurecidas aparecem com bastante nitidez e chegam ao ápice da degradação, praticamente sem possibilidade de gerenciamento. Tudo isso sem considerar o impacto que isso possa acarretar no nível de mobilização dos trabalhadores. Sem um quadro mínimo de recompensas pela contribuição que os trabalhadores oferecem, cuja parcela de trabalho tem sido sobejamente ampliada, não há como manter minimamente um envolvimento com o trabalho. Dessa forma, penaliza-se o trabalhador da saúde e a população usuária. BIBLIOGRAFIA ATHAYDE, Milton R. C. Gestão de Coletivos de Trabalho e Modernidade: questões para a engenharia de produção. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado (COPPE-UFRJ), 1996. 260 p. DUARTE, Francisco J. de C. M. A Análise Ergonômica do Trabalho e a Determinação de Efetivos: estudo da modernização tecnológica de uma refinaria de petróleo no Brasil. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado (COPPEUFRJ), 1994. 134 p. DUARTE, Francisco. “Reorganização Produtiva e Concepção da Organização do Trabalho na Indústria de Refino no Brasil: a questão do dimensionamento da mão de obra de operação”. In: LIMA, Francisco P. ª; NORMAND, Juacy E. (eds.). Qualidade da Produção, Produção dos Homens. Belo Horizonte: UFMG, 1996. GOLDENSTEIN, Marcelo. Desvendar e Conceber a Organização do Trabalho: uma contribuição da ergonomia para o projeto de modernização de uma refinaria de petróleo. Dissertação (Mestrado COPPE-UFRJ), Rio de Janeiro, 1997, 129 p. LIMA, Francisco de P. A. Introdução à análise ergonômica do trabalho. Notas de aula: mimeo, 1992. WISNER, Alain. A antropotecnologia. Estudos Avançados, v. 6, n. 16, p. 29-34, 1993.