XI CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA 1 A 5 DE SETEMBRO DE 2003. UNICAMP – CAMPINAS/SP. “CRISE DO WELFARE STATE E TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO: O SURGIMENTO E EXPERIÊNCIA DA RENDA MÍNIMA/BÁSICA E SUAS IMPLICAÇÕES SOBRE A CIDADANIA” CAROLINA RAQUEL DUARTE DE MELLO JUSTO (1.ª VERSÃO) Doutoranda em Ciências Sociais no IFCH/UNICAMP (orientada pelo professor Valeriano Mendes Ferreira Costa) e em Economia Aplicada no IE/UNICAMP (orientada pela professora Sônia Miriam Draibe). E-mail: [email protected] 1 RESUMO: “Crise do Welfare State e Transformações no Mundo do Trabalho: o Surgimento e Experiência da Renda Mínima/Básica e suas Implicações sobre a Cidadania” Neste artigo pretendemos discutir o modo como as transformações no mundo do trabalho e a crise do Estado de Bem Estar Social foram importantes para o surgimento e reformulação da idéia de renda básica nas últimas décadas. Na primeira parte discutimos, em termos teóricos, os desafios colocados para o Estado e para a sociedade por dois movimentos concomitantes e interrelacionados: a crise do Estado de Bem Estar Social, que questiona o papel adquirido pelas políticas sociais no século XX, e as transformações no mundo do trabalho, que têm fragilizado a atuação política de sindicatos, trabalhadores e da esquerda. Enfocamos as influências destes processos para o surgimento e reformulação da idéia alternativa de renda básica. Na segunda parte, a partir das experiências de programas de renda mínima – aí incluídas as brasileiras –, e das noções normativas vinculadas à proposição da renda básica, discutimos a potencialidade e as implicações político-culturais destes programas para o desenvolvimento da “cidadania democráticoparticipativa”. A conquista de direitos, a integração e as possibilidades de transformação social pela via da luta política e da democratização das relações sociais são aspectos enfatizados nesta discussão. I. INTRODUÇÃO Estado, políticas sociais, trabalho e cidadania têm sido termos interligados desde o início do século XX, quando começou a se difundir a idéia de que cabe ao Estado a responsabilidade por garantir o bem-estar do povo. Esta foi uma das bases de estruturação dos modernos sistemas de proteção social, ou seja, a idéia de que o Estado precisava responder ao problema das desigualdades sociais e da miserabilidade que criavam na sociedade um grupo de “subcidadãos de segunda classe” (MARSHALL, 1965). A resposta que se firmou a partir dos anos 30 correspondeu à doutrina de Beveridge, segundo a qual a política social deveria fazer parte da política econômica geral do Estado e, portanto, só seria eficaz se apoiada numa política de pleno emprego. Dessa forma, conforme se desenvolveram os Estados de BemEstar Social europeus, seguindo orientações econômicas keynesianas, 2 consolidou-se a articulação entre progresso econômico e satisfação das prioridades sociais, ou seja, através da ação do Estado, assegurando o pleno emprego, era possível ao mesmo tempo garantir o financiamento das políticas sociais que, atenuando as desigualdades e conferindo direitos, ampliavam a cidadania para os contingentes populacionais desfavorecidos no processo de produção (MARSHALL: 1965). Em síntese, o Estado tornou-se o principal responsável por assegurar e ampliar a cidadania das pessoas, não só por ser a instituição mediante a qual se faz cumprir os direitos civis e políticos, mas porque, através da ação governamental, com a política de pleno emprego, é possível efetivar a integração social via trabalho e, além disso, com a política social, é possível complementar o bem-estar, sobretudo dos “subcidadãos”, ampliando a cidadania e o pertencimento através da rede de direitos sociais. Desde meados dos anos 1970, entretanto, com o fim dos chamados anos gloriosos do capitalismo (que se iniciaram no pós-guerra), o mundo vem passando por uma série de transformações econômicas, políticas e sociais. Em âmbito econômico, a crise do petróleo, o desenvolvimento acelerado do mercado financeiro e dos processos de inovação tecnológica e organizacional, juntamente com o crescimento da instabilidade econômica que os governos passaram a enfrentar (com crescente comprometimento das finanças públicas) trouxeram de volta o problema do desemprego e da sustentação de renda das camadas desfavorecidas no processo de produção da riqueza. Em síntese, recolocou-se para os governos a questão da viabilidade da vinculação entre crescimento econômico e distribuição de renda, em que se apóiam os modelos de Estado de Bem-Estar Social. Em termos sociais, o recurso a formas mais precárias de trabalho, como o emprego parcial, temporário, a subcontratação, a flexibilização da jornada e a desregulamentação do trabalho, aumentou a insegurança das pessoas e, dessa forma, a demanda por políticas sociais. O contraditório deste processo é que justamente quando crescem as pressões sobre tais políticas, também se complicam as suas fontes de financiamento (DRAIBE, 1990: 20), exigindo do 3 Estado reflexão e reformulação das mesmas, enquanto, em âmbito político, a legitimidade das políticas sociais passa a ser questionado, conforme se expandem as idéias neoliberais de emagrecimento do Estado. Na medida em que os sindicatos e associações de trabalhadores vão perdendo força e reconhecimento na sociedade, o avanço das práticas neoliberais vai desembocar, nos anos 1990, em recomendações de focalização, descentralização e privatização no que se refere às políticas públicas, inclusive as sociais (MORAES, 2001: 66). É na esteira destas mudanças e dos debates delas decorrentes que se aprofundaram as discussões e propostas de renda mínima no mundo. As primeiras idéias que ganharam força, como a do imposto de renda negativo, de Friedman, datam dos anos 1970, já com cunho neo-conservador, objetivando a racionalização e eficiência do Estado em contraposição à ineficiência do Welfare State. Com o passar dos anos, porém, conforme o pleno emprego preconizado pelas políticas keynesianas tornou-se um horizonte distante e a necessidade de transferir renda para garantir a segurança social exigiu a reflexão e inovação das políticas sociais – cujo teor foi ainda questionado, na contra-corrente, por movimentos democráticos –, também a esquerda adicionou, sob diferentes concepções, a idéia de renda mínima ao seu repertório, sendo hoje difícil discriminar as diversas propostas em debate. Dentre estas propostas que ganharam força nos últimos tempos, a de renda básica universal – ou renda de cidadania – encontra-se no centro das discussões, tendo como principal diferencial a desvinculação entre o benefício e o trabalho, ou seja, a contribuição social de cada um para a produção da riqueza. Neste artigo pretendemos retomar, primeiramente, as discussões sobre as crises do trabalho e do Welfare State para compreender como as diversas visões a respeito destes processos resultaram em diferentes concepções de política de renda mínima/básica. Em seguida, apontamos quais são os aspectos destas concepções devido aos quais elas se tornam potencialmente mais ou menos favorecedoras da ampliação da cidadania. Finalmente, com base sobretudo em algumas experiências nacionais, discutimos como o desenvolvimento da cidadania “democrático-participativa” tem sido importante para que a renda mínima se 4 inscreva como política social de cunho mais transformador que atenuador das desigualdades sociais. II.Implicações Sócio-Políticas da Crise do Welfare State e das Mudanças no Mundo do Trabalho sobre as Propostas e Formulações da Política Social – E Mais Especificamente para o Debate sobre Renda Mínima/Básica As diferentes formas como são vistas as mudanças que têm ocorrido nas últimas décadas tanto no que se refere ao mundo do trabalho quanto no que se refere aos desafios enfrentados pelos Estados de Bem-Estar Social têm repercussão sobre as várias alternativas e propostas de enfrentamento dos problemas colocados por estas mudanças. Uma vez que, ao longo do século XX, o trabalho consolidou-se como alicerce não apenas dos sistemas de proteção social, como do modelo de cidadania vinculados ao Welfare State, conforme o Estado e o trabalho foram se modificando, também o cerne da política social e da própria cidadania entraram em questão: poderia o trabalho continuar sendo a base da cidadania, quando ele vem deixando de ser – porém sem ter encontrado um substituto – o integrador social por excelência (BAREL, 1990 in SILVA, 2001)?; em que medida o Estado, através da política social, pode ser o responsável pela garantia (e ampliação) da (qual?) cidadania e do bem-estar das pessoas?; como garantir a cidadania social quando ela depende da disponibilidade orçamentária do Estado para o setor social, que está cada vez mais restrita (e com isso a distância entre o direito formal e seu efetivo usufruto está cada vez maior)? Às diferentes formas de responder a estas questões correspondem propostas e formulações de política social nas quais estão implícitas, portanto, visões de mundo e projetos de sociedade diversos. Por isso, analisar os fundamentos sobre os quais se assentam as políticas sociais, isto é, identificar as diferentes versões sobre a dupla crise – do trabalho e do Welfare State – e maneiras de resolvê-la subjacentes às políticas sociais (apontando a certo 5 horizonte) constitui um passo importante no reconhecimento dos rumos e possíveis conseqüências das escolhas que governos e sociedades fazem. Passemos, então, para compreender o significado das diferentes formulações de renda mínima/básica, à análise das visões “concorrentes” sobre a crise e sua gestão. Sônia Draibe e Wilnês Henrique (1988), fazendo um balanço da literatura internacional sobre a crise do Welfare State, agrupam os argumentos em oito tipos: 1. Abordagem Progressista: segundo a qual o Welfare State não estaria passando por uma verdadeira crise, mas por uma mutação em sua natureza e operação; 2. Argumento Conservador: para o qual o Welfare State corresponde a uma estrutura perversa e falida do Estado; 3. Argumento Estruturalista (Progressista e Conservador): explica a crise como de caráter sobretudo financeiro e fiscal; 4. Argumento Institucionalista: para o qual a crise foi produzida pela centralização e burocratização exageradas; 5. Argumento de que a crise se deve à perda de efetividade social do Welfare State; 6. Argumento de que a crise é, sobretudo, de legitimidade; 7. Argumento de que a crise se deve ao colapso do pacto político do pós-guerra e possui, portanto, raízes econômicas e políticas; 8. Argumento segundo o qual a crise deve-se à incapacidade do Welfare State de responder aos novos valores predominantes nas sociedades pós-industriais. Já no que se refere às análises sobre a “crise” do mundo do trabalho na atualidade, em uma recente revisão da literatura sobre o assunto, Araújo (2001) mostra que, enquanto as interpretações deterministas dos chamados “hiperglobalistas” e “neoliberais” tendem a ver a globalização como um processo irresistível, dentro do qual a difusão de novas tecnologias, novas práticas de emprego e novas formas de organização do trabalho e da produção em plano mundial seriam inevitáveis, outros autores contra-argumentam que aspectos legais, institucionais e culturais limitam as possibilidades de difusão destas 6 práticas pelas corporações multinacionais através das fronteiras nacionais. Porém, mesmo entre estes últimos, que reconhecem a assimetria do processo de globalização e de suas conseqüências em diferentes países e regiões do globo, há autores que não consideram os trabalhadores como atores centrais, cujas ações e escolhas (sejam elas de conformismo, negociação ou resistência) têm repercussões sobre este processo. É Jeremy Waddington, segundo a autora, quem procura colocar o trabalho no centro do debate sobre globalização. Waddington, baseando-se nos neo-institucionalistas (que enfatizam a diversidade de regimes de regulação, sua persistência e a influência da ação individual e coletiva no desenvolvimento político), critica a tese da “tendência à convergência dos regimes regulatórios” dos globalistas, ao recusar a determinação da tecnologia e do mercado sobre as mudanças políticas, o que tem uma dupla implicação para o trabalho: “Primeiro, os trabalhadores não são apenas objetos passivos de forças externas, mas podem contestar e influenciar o desenvolvimento dos regimes de regulação. Segundo, apesar de os trabalhadores terem de enfrentar desafios similares em diferentes partes do mundo – colocados pela globalização ou pela descentralização das negociações coletivas, por exemplo – a diversidade dos regimes de regulação exige que os trabalhadores estabeleçam estratégias adequadas a cada tipo de regime” (ARAÚJO, 2001: 35). Assim, segundo Waddington, diante das mudanças nos regimes produtivos, uma série de oportunidades se abre para os trabalhadores, tanto para resistir às estratégias e decisões das empresas quanto para construir a organização sindical. Não há uma equação simples capaz de determinar a reação dos trabalhadores – e nem as suas conseqüências sobre o processo como um todo. As pressões competitivas e a possibilidade de fechamento de postos de trabalho tanto podem motivar os trabalhadores a resistirem na busca da proteção a seus empregos como podem enfraquecê-los devido à perda do poder de barganha (ARAÚJO, 2001: 37). De acordo com estas interpretações a respeito da crise, diversas são as propostas para a equação dos problemas contemporâneos relacionados ás políticas sociais. Assim, a partir da visão, por um lado, de que a crise do Welfare 7 State é sobretudo fiscal e financeira e de que há, portanto, uma crescente restrição orçamentária para os gastos sociais e, por outro, de que o processo de crescimento do desemprego estrutural (via globalização e reestruturação produtiva) é inevitável, alguns autores, inscritos numa concepção mais à direita – tanto liberal quanto conservadora –, tendem a defender a focalização das políticas sociais, vendo no mercado o principal organizador da ordem social. Desta forma, apenas os que não conseguem vencer no mercado competitivo (fracassados e incapazes) recorreriam à ajuda estatal, à qual caberia atenuar a miserabilidade, contendo a massa descontente. Já visões mais à esquerda tendem a ver ambas as crises como de fundo principalmente político, requerendo a organização e ação da classe trabalhadora no sentido de regular e ordenar, via Estado, a distribuição da riqueza socialmente produzida. Neste caso, as propostas tendem a privilegiar a manutenção de políticas sociais de caráter universal, no intuito de impedir a reprodução das desigualdades sociais. Há, entretanto, divergências entre as propostas deste campo. Especificamente no que se refere ao debate sobre renda mínima, é interessante destacar que as primeiras propostas surgiram a partir da idéia do imposto de renda negativo, de Milton Friedman, de inspiração conservadora, e que se baseia na substituição dos atuais sistemas de proteção social por este mecanismo de redistribuição. Nesta concepção a “renda mínima” deveria ser um montante que não excedesse a um certo teto, a fim de impedir o possível desestímulo ao trabalho. Ela seria, portanto, complementar ao salário. Já autores mais à esquerda no espectro político-ideológico, como Gorz (até 1997), Bresson, Aznar e Rosanvallon, acreditam que a solução para a crise estaria no aumento do tempo livre, a partir da redistribuição do trabalho. Também para eles, portanto, a renda mínima deveria ser complementar ao salário, mas, diferentemente das proposições da direita, esta seria uma forma de inverter o processo de mudanças, no sentido do empoderamento e favorecimento dos trabalhadores (com diminuição das desigualdades sociais). Para estes autores, além do mais, a renda mínima seria complementar às demais políticas sociais já 8 existentes e teria o sentido de adensar os direitos sociais e o conteúdo da cidadania. Já a proposta de Renda Básica de Van Parijs não se baseia, como a maioria das demais, na busca de uma solução para a “crise do trabalho” ou da “sociedade salarial” (ou para os problemas e transformações que vêm ocorrendo nesta esfera); independentemente dela, a renda básica, universal e incondicional, segundo este autor, deve ser estabelecida a todo cidadão simples e justamente porque faz parte de uma comunidade. Seguindo o modelo paineano de Estado de Bem-Estar Social1, apoiado sobre o fundamento ético da eqüidade, Van Parijs propõe a garantia de uma renda incondicional independentemente de qualquer necessidade (ex-ante ou ex-post de quem quer que seja) e de modo a não restringir seu uso pelas pessoas e nem a conduta das mesmas. As transferências monetárias são devidas em função da participação de cada pessoa no patrimônio comum. Para o autor, o objetivo da implementação de uma renda básica é o de promover uma sociedade justa e livre que, segundo ele, deve satisfazer a três condições: segurança (existência de uma estrutura de direitos solidamente garantida), propriedade de si mesmo (que a estrutura de direitos permita a cada um a propriedade de si) e a de oportunidade leximin (que a estrutura de direitos permita a que cada pessoa tenha a maior oportunidade possível de fazer o que quer que deseje); ou seja, segundo esta última premissa, não bastam os direitos, deve-se garantir os meios. Para satisfazer a esta última condição, o autor prevê a necessidade de que se proporcione às pessoas a maior renda básica possível2 (ou seja, ela não se baseia 1 De acordo com os fundamentos éticos que os inspiram, os modelos de Estado de Bem-Estar Social são classificados da seguinte maneira (cf. VAN PARIJS, 1994, apud. FONSECA, 2000): Modelo de Estado de Bem Estar Social Bismarkiano Beveridgeano Paineano Fundamento Ético Seguro Solidariedade Eqüidade 2 Van Parijs, apesar de acreditar que o socialismo possa conferir uma renda básica mais elevada que o capitalismo e, com isso, maior liberdade real para todos, considera que esta alternativa teórica tem pouquíssimas chances de se concretizar, uma vez que um país socialista também não pode escapar das exigências de lucratividade. Porém, sem escapar a esta exigência, com base no argumento do “casamento entre a justiça e eficiência”, o autor sugere que os países capitalistas podem conferir a mais alta renda básica possível e, com isso, maior liberdade real a todos. Sob este aspecto, a renda básica poderia constituir um caminho capitalista para o comunismo. A argumentação completa do autor está em Van Parijs (1994a). 9 num critério de necessidades elementares a satisfazer).(VAN PARIJS, 1992 e 1994a; FONSECA, 2000). A vinculação entre trabalho e renda mínima, defendida por Gorz (até 1997) em contraposição à renda básica ou alocação universal proposta por Van Parijs, incondicional, reflete, por um lado, no campo teórico, o primado do contratualismo, baseado na lógica econômica da troca de equivalentes e a qual se opõe a caridade (baseada no unilateralismo e na desigualdade). Já a proposta de renda básica parece inscrever-se entre os princípios de solidariedade e interdependência, assentados no direito, o que supera a oposição entre contratualismo e caridade (FRASER e GORDON, 1994). Tal noção de reciprocidade não-contratual aproxima-se do conceito de dádiva, de Marcel Mauss, segundo o qual a troca vale pelo que significa, ou seja, pelas relações sociais que simboliza, e não por valores econômicos embutidos e fetichizados nos bens de troca. Isto significaria uma superação das relações capitalistas. Por outro lado, a vinculação entre trabalho e renda mínima também reflete, empiricamente, uma mudança na ideologia do movimento operário europeu em relação ao significado de direitos e deveres, que passou de uma estratégia de direitos do trabalho para a do direito ao trabalho e, desta, para o dever de trabalhar ( Standing, 1999, citado por Janson, 2000). Entretanto, num contexto de desemprego estrutural e crise social, esta estratégia mostra-se contraditória para fins de integração e eliminação das desigualdades sociais. Na atual contextualização do mundo do trabalho, há uma quantidade crescente de pessoas para quem o sentimento de cidadania se esvai juntamente com a exclusão do mercado de trabalho (devido à sua ética), ou com a informalização e desregulamentação do trabalho, que de uma maneira ou de outra vem retirando ou negando direitos dos trabalhadores. Se se deve lutar pela garantia dos direitos dos trabalhadores, nem por isso significa que a manutenção da cidadania com base no trabalho seja defensável, pois que, como a realidade vem demonstrando, já não são todos que podem desfrutar de tal status. Portanto, manter a cidadania sobre as mesmas bases corresponde a concordar com a 10 exclusão de milhões de pessoas que não dispõem de um vínculo empregatício, ainda que continuem vivendo de seu trabalho3. Entretanto, é inegável na sociedade a persistência da idéia de que todo cidadão apto deve trabalhar. Com base na ética do trabalho, que desenvolveu o sentimento do “dever de trabalhar” e o de responsabilidade social ligado a ele, torna-se difícil pensar na integração social e no sentimento de pertencimento por outras vias que não a do trabalho. E é também por isso que o direito ao trabalho tem sido defendido como direito social4. (SILVA, 1998). Diferentemente, Josué Silva (1998) vê exatamente na separação entre renda e trabalho a principal contribuição de uma renda mínima para a cidadania. Para este autor, a proposta de renda mínima, ao garantir uma renda às pessoas, independentemente de sua inclusão no mercado de trabalho, faz com que se repense a noção de cidadania tradicional, assentada sobre o trabalho. “(...) a elaboração de propostas de política social que permitam reverter o atual processo de exclusão social de uma crescente parcela da população depende de uma reavaliação do papel de principal mecanismo de integração social que tem sido tradicionalmente atribuído ao trabalho assalariado. É neste contexto, portanto, que ganham sentido as propostas que vêem na quebra do vínculo entre trabalho e renda uma saída para a atual crise social. Este é o caso da noção de renda mínima substitutiva que, ao cortar o vínculo entre trabalho e renda, rompe com o paradigma trabalhista típico dos sistemas de “Welfare State”, onde os benefícios recebidos têm sempre, direta ou indiretamente, o mercado de trabalho como referência”. (SILVA, 1998: 722). O que se trata de afirmar é a idéia de que, estando empregada, ou não, uma pessoa deve fazer parte de uma comunidade, sentir-se pertencente a ela e dispor efetivamente de todos os direitos que ela lhe garante. Independentemente 3 No caso brasileiro, isto equivaleria ao rompimento com a cidadania regulada. Para Josué Silva, no entanto, o direito ao trabalho como direito social não é defensável nem empírica nem politicamente. Isto porque o Estado, através de políticas econômicas específicas, pode apenas incentivar a criação de empregos, mas isto não garante a criação dos mesmos de fato; ou seja, o Estado (pelo menos o democrático) não tem como assegurar o direito ao trabalho como direito social – embora o assegure como direito civil, ao garantir a liberdade de trabalhar: a liberdade de qualquer indivíduo ganhar a vida exercendo uma atividade de sua “livre” escolha. (SILVA, 1998). 4 11 de sua situação no mercado de trabalho, todo membro de uma comunidade deve ser considerado cidadão – tratado como tal e sentir-se como tal. A renda básica, na medida em que conceda a cada cidadão uma renda justificável, não, como afirmam Gorz e Aznar, por sua participação no processo social de produção da riqueza, mas sim por seu pertencimento a uma comunidade política, é capaz de contribuir para a recolocação do lugar do trabalho na sociedade – ou seja, para que ele deixe de ser visto apenas como emprego e fonte de renda –, e para o abandono da ética do trabalho – ou seja, do dever de trabalhar, assentado na lógica econômica da troca. A idéia de renda básica substitutiva em relação aos demais serviços sociais, por outro lado, significa um retrocesso em relação à concepção de bem-estar social que se desenvolveu ao longo do século XX (explicitada por Marshall), isto é, a de que os riscos a que as pessoas estão expostas não são de natureza meramente monetária, e é apenas a este risco que um tal benefício responde, desconsiderando a multiplicidade de riscos sociais e formas da pobreza, além do problema da exclusão, que se refere não apenas à desigualdade de renda. Bastaria a segurança econômica? Tendo em vista que a cidadania (segundo a concepção marshalliana) engloba tanto a dimensão da redistribuição (referente à injustiça sócioeconômica), quanto a do reconhecimento (referente à injustiça cultural, simbólica) (SILVA, 2000), percebe-se que esta segunda dimensão tem sido negligenciada pelas principais proposições, seja de renda mínima, seja de renda básica, presentes no debate contemporâneo. III. Renda Mínima, Cidadania e Democracia5 5 Esta parte está baseada nos capítulos 3 e 4 da minha dissertação de mestrado, defendida em junho de 2002 no IFCH/UNICAMP, intitulada “Assistência Social e Construção da Cidadania Democrático-Participativa no Brasil: um Estudo do Impacto Social e Político do Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM) de Campinas/SP (1995-2000)”. 12 No 8.º Congresso da BIEN (Rede Européia de Renda Básica), ocorrido em 2000, alguns analistas (Christensen, Janson, Kildal e Redl, Tentschert e Till) identificaram nas recentes reformas ocorridas sobretudo nas políticas de emprego e assistenciais dos países escandinavos uma tendência à propagação do workfare, ou seja, da retórica dos direitos e deveres, do “Arbetslinjen” (linha do trabalho) e da “ativação”. O princípio por trás do workfare, ou seja, de que se dê uma contrapartida em troca dos benefícios sociais, está bastante presente no debate americano e remonta às discussões referidas por Marshall (1965) quanto à legitimidade dos benefícios assistenciais: no início do século XX acreditava-se que eram algo que “vagabundos (as)” recebiam “em troca de nada”, mas com o passar dos anos e a consolidação dos modernos sistemas de proteção social passaram a ser vistos como direitos sociais. A retomada do discurso da exigência de contrapartida ao recebimento de benefícios sociais, tal qual exemplificada pelos apelos normativos de Lawrence Mead e pelas mudanças concretas nas políticas escandinavas de emprego e assistência, também é observável quando se analisa algumas propostas de renda mínima. A exigência de uma disposição em aceitar trabalho e/ou treinamento em contrapartida ao recebimento de uma renda mínima é notável na experiência da Renda Mínima de Inserção francesa. Na França, o modelo de Sistema de Proteção Social adotado, com base no princípio conservador (bismarkiano) do seguro, depende amplamente das contribuições dos trabalhadores para seu financiamento, e portanto do nível de emprego. Entretanto, a exigência de uma contrapartida em trabalho pode estar associada a outros fundamentos extra-econômicos, de caráter moral: segundo Silva e Silva (1997), o workfare é muitas vezes visto como veículo capaz de substituir a dependência, o estigma e a discriminação que cercam os assistidos pela manutenção da dignidade, pelo estímulo à responsabilidade e capacidade de iniciativa. Por outro lado, a exigência de contrapartida ao recebimento de benefícios sociais fere o princípio da incondicionalidade dos direitos de cidadania e, desta forma, as concepções de renda mínima em que se apresenta a exigência de 13 contrapartida (sobretudo no sentido do controle do comportamento das pessoas) tendem a deturpar a essência dos direitos sociais e, assim, comprometer o sentido da cidadania. Entretanto, algumas experiências de programas de renda mínima implementados em âmbito municipal no Brasil parecem colocar uma questão desafiadora para a compreensão do sentido de tais programas. É verdade que o estudo do caso brasileiro requer cuidado, pois não cabe uma simples comparação com a experiência européia, tamanhas as especificidades político-sociais que diferenciam as duas realidades. Apesar disso, ainda que de forma indicativa, alguns exemplos têm mostrado que a vinculação entre a transferência monetária e a exigência de certas contrapartidas comportamentais por parte dos beneficiários – não em trabalho – tem tido um efeito ampliador e aprofundante da cidadania especialmente para aqueles “subcidadãos de segunda classe”, discriminados e estigmatizados não só pelo desemprego ou pelas formas precárias de trabalho, como pelo baixo nível de acesso a direitos e pela falta de reconhecimento social (JUSTO, 2002). A maioria dos programas brasileiros de renda mínima tem sido associada à manutenção dos filhos dos beneficiários na escola, com controle da freqüência, como condição para o recebimento da chamada bolsa-escola (hoje programa também federal). Esta exigência, se fere o princípio do direito, por um lado, acaba propiciando um aprofundamento da cidadania, por outro. Nas escolas (públicas) brasileiras, sabe-se que não há espaço para os maus alunos pobres. Se são maus alunos, mas não são pobres, ou se são pobres, mas bons alunos, encontram legitimidade para freqüentarem a escola. Mas as crianças pobres más alunas não encontram esta legitimidade para permanecer na rede educacional brasileira, constituindo o contingente responsável pelos índices de evasão escolar em nosso país6. Porém um dos impactos do programa bolsa escola (no caso estudado de Recife) foi justamente o de conferir a legitimidade para que estas crianças – 6 Cf. LAVINAS, Lena (2000): conferência proferida no dia 25 de outubro, no 24.º Encontro Anual da ANPOCS, Petrópolis/RJ. 14 pobres, más alunas – permaneçam na escola e, não só isso, o de exigir para elas uma maior atenção nas escolas, que precisaram encontrar formas de adaptação para integrar estas crianças cuja presença na escola foi imposta pelo programa bolsa escola (renda mínima). Com isso, o programa tem significado a possibilidade de efetiva universalização do ensino fundamental7. Segundo Lavinas, “(...) o efeito mais importante do Programa é a quebra dos mecanismos usados tradicionalmente pela escola para excluir os alunos mais pobres. (...) O Programa mostra-se efetivo ao promover a ruptura de um dos mecanismos mais fortes de reprodução e legitimação de desigualdades: a exclusão precoce da escola. (...) A permanência dessas crianças na escola é a mudança fundamental produzida pelo Programa que gera, assim, uma possibilidade mais eficaz de combate às desigualdades sociais. Assim, o Estado, através do bolsa-escola, garante a universalização, de fato, do ensino fundamental, através da desativação dos velhos mecanismos de expulsão. (...) Um programa como esse pode ser a mola-mestra que continua faltando à refundação do sistema de proteção social no Brasil, pois usa a seletividade e a focalização para fortalecer princípios universais. Seu impacto na garantia da permanência na escola das crianças pobres com baixo desempenho escolar é a evidência inconteste do lugar que ocupa no rol das políticas e programas de cunho universalista”. (LAVINAS, 2000: 9092, negrito meu). Percebe-se, assim, que, a partir do momento em que o direito dos filhos de beneficiários do Renda Mínima de freqüentarem a escola torna-se uma obrigação, pois que tal freqüência é condição para o recebimento do benefício, aquele que era um direito apenas formal (à escola) adquire existência real. E esta concretização, por sua vez, gera a busca de soluções para um problema que não é apenas o da inclusão destes que são, na maioria das vezes, os maus alunos, fracassados e rebeldes, mas o da sua integração no sistema escolar (JUSTO: 2002: 94). A partir do momento em que a permanência destes alunos em sala passa a ser uma exigência para a escola, esta passa a ser questionada em relação aos seus métodos de ensino, por vezes inadequados e responsáveis pela evasão 7 Cf. LAVINAS, Lena. (2000), op. cit. 15 escolar que atinge boa parte deles (alunos pobres). Portanto, a transformação e readaptação do sistema de ensino tornam-se uma busca permanente, pois a alternativa mais fácil de adiar a resolução do problema através da "expulsão" destes alunos perde sua legitimidade. Com isso, a busca de uma solução para a educação dos maus alunos pobres adquire estatuto político, isto é, torna-se questão cuja solução abandona a esfera privada (das famílias pobres destes maus alunos que, aliás, dificilmente conseguem resolvê-la) passando a ser tratada como assunto de debate público (JUSTO, 2002: 94). A permanência dos alunos pobres nas escolas (abandonando as ruas e/ou o trabalho infantil) representa um importante ganho para a promoção da cidadania. A bolsa escola tem permitido aos seus beneficiários reclamarem o direito de seus filhos freqüentarem os bancos escolares e, além disso, de serem efetivamente educados, exigindo com isso, portanto, que as escolas e a comunidade se voltem para a realidade dos alunos pobres, a fim de que o sistema educacional possa ser reformulado e replanejado de modo a integrá-los. Assim, os beneficiários dos programas têm adquirido voz (inclusive na medida em que passam a participar mais da comunidade escolar, que passa a ser um centro de referência importante para a vida familiar8), e também ouvidos que escutem seus problemas, interesses, demandas e discursos como dignos de respeito e atenção. Adquirem, enfim, um lugar na sociedade que é capaz de lhes proporcionar sentimento de pertencimento (JUSTO, 2002: 95). Os impactos da bolsa escola sobre a cidadania, sobre o aumento da participação das camadas pobres na vida social e política não constituem um caso isolado. No mesmo sentido, os programas de renda mínima têm levado a um aumento da demanda por outros serviços sociais, como nas áreas de saúde, educação (incluindo creches), infraestrutura urbana, que passam a ser reivindicados com maior veemência pelos beneficiários dos programas, que têm lutado por fazer valer seus direitos frente ao Estado. Segundo Lena Lavinas (20009), enquanto os gastos com o programa Bolsa-Escola de Recife 8 9 Segundo Silva e Silva (1997). Op. cit. 16 permaneceram os mesmos ao longo de três anos, outros gastos destinados a serviços direcionados às camadas pobres tiveram de ser aumentados justamente porque o programa de renda mínima tem gerado a ativação dos mesmos por conta do aumento da demanda dos beneficiários. O aumento do acesso dos beneficiários do Programa Bolsa-Escola de Recife a programas institucionais é confirmado pelo dado de que a origem dos benefícios acessados por estas famílias é proveniente, em 46% dos casos, de programas institucionais, e em 47% da “ajuda” (da família, amigos, vizinhos, comunidade, etc.), enquanto que, para as famílias do grupo de controle (não beneficiadas pelo programa), em 71% dos casos a origem dos benefícios é proveniente de “ajuda”, e apenas em 19% de programas institucionais. Este impacto indireto do Programa Bolsa-Escola também foi observado em Brasília (LAVINAS, 2000) e em Campinas Enfim, estes resultados indicam que as experiências de renda mínima têm apresentado o impacto político de despertar a consciência de direitos por parte das populações pobres a quem se dirigem os programas (JUSTO, 2002: 95-96). Portanto, estas experiências de renda mínima têm tido um triplo impacto no que se refere á cidadania: representam um direito social (à renda), que propicia a efetivação do acesso a outros direitos sociais (obrigatoriamente, como no caso do ensino fundamental, ou não) e, ademais, favorece a ampliação da dimensão do reconhecimento da cidadania, diminuindo os aspectos político-culturais das desigualdades sociais. Em um estudo de caso realizado no município de Campinas, foi possível constatar, quanto a este último aspecto, que o Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM) tem desempenhado um papel importante para a construção da “cidadania democrático-participativa”: tem favorecido a formação de identidades sociais, a elaboração de demandas, a organização coletiva, a mobilização e busca por direitos, o aumento do interesse por questões políticas, uma maior participação na comunidade e também na política institucional e o aprendizado da escuta e do respeito às visões dos outros entre os beneficiários, sobretudo mulheres, que freqüentam as reuniões dos grupos sócio-educativos, uma exigência do programa, além da permanência das crianças na escola. 17 O PGRFM tem colaborado para a politização de espaços nos quais as relações de poder não são tradicionalmente identificadas (como é o caso, notadamente, do espaço doméstico) e, com isso, ampliado a noção de cidadania para além do campo específico da atuação em relação ao Estado, como definido estritamente pela teoria política liberal. E ao contribuir para o alargamento dos campos de exercício da política e da cidadania, ele também propicia modificações qualitativas na concepção de cidadania vivida por suas beneficiárias, incorporando à sua prática o sentido – político-cultural – de democracia-participativa. A identificação de relações de poder (ou seja, da presença da política) nas diversas relações sociais de que participam (normalmente consideradas não-políticas, mas estritamente econômicas, sociais, culturais, religiosas, familiares, profissionais, etc.) e a não-aceitação da continuidade inerte desta situação, o que é propiciado pelas reflexões e discussões havidas nas reuniões dos grupos sócio-educativos, também se convertem em geradoras de imaginação e de estratégias que visem transformar desigualdades sociais em “relações de autoridade partilhada”10. E é neste processo, estimulado pelas atividades do PGRFM, que a noção de cidadania democrático-participativa vai se constituindo e sendo exercida, engendrando ao mesmo tempo a democratização das relações sociais. Acrescenta-se a isso que o PGRFM, ao se tornar central na Secretaria de Assistência Social, e ao invocar outros setores da administração pública municipal (através da articulação que gera em torno de si das diversas áreas sociais, como educação, saúde e habitação) a que dêem conta de demandas feitas pelas famílias atendidas, acaba colaborando para uma repolitização da questão social, quando esta vem sendo despolitizada pelo imperativo da eficiência e do crescimento econômicos, que dela retira o seu caráter público, transferindo-a para o campo da técnica e da filantropia. 10 De acordo com SANTOS (1995 :271), “Politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada”. 18 IV. CONCLUSÃO Os exemplos anteriores ilustram que a experiência brasileira tem uma contribuição importante a fazer para a discussão sobre renda mínima, uma vez que incorpora aos seus objetivos não apenas o combate à desigualdade de renda, através de seu mecanismo redistributivo – que aliás é ainda um de seus pontos fracos –, mas também às raízes político-culturais que reproduzem a pobreza no Brasil e que a fazem tão complexa e problemática: aqui não se trata apenas de desemprego e baixa renda, mas de um contingente enorme da população miserável, sem acesso a bens (alimentação e vestuário, por exemplo) e serviços básicos (saneamento, saúde e educação, por exemplo) e, além disso, tradicional e culturalmente excluídas das arenas do poder público, principais vítimas da discriminação e da violência, sem voz e sem direitos. Num Estado em que não chegou a se consolidar um sistema de proteção social efetivamente garantidor da segurança e do bem-estar social de seus cidadãos, os programas de renda mínima têm representado uma potencialidade extra para a ampliação da cidadania social; mas não só isso: têm demonstrado a possibilidade de estímulo à democracia-participativa que é fundamental para o combate a um problema que também não foi vencido ainda pelos países da Europa social-democrata – o da exclusão. Por outro lado, é possível concluir que a concessão de uma renda básica – portanto não condicionada ao trabalho como contrapartida – é um mecanismo capaz de criar e difundir outros referenciais e valores que legitimem a cidadania não mais fundada na categoria trabalho, quando este já não se mostra, nos dias atuais, capaz de desempenhar o papel de integrador por excelência, mas tem conduzido por isso, ao contrário, devido à ética do trabalho que se contrapõe à realidade do desemprego, ao sentimento de desintegração. Em síntese, a associação entre renda mínima e trabalho não contribui para a construção da cidadania na medida em que perpetua a idéia da necessidade do trabalho para o sentimento de integração social, mas o qual há de permanecer ausente para 19 milhões de pessoas diante da improbabilidade de que se volte a alcançar o pleno emprego; já a dissociação entre renda básica e trabalho possibilita a proposição de uma nova noção de cidadania, pois não preconiza a necessidade do trabalho, da contribuição ao sistema produtivo, como elemento base da integração social. O que a renda básica propõe, indireta e potencialmente, é a instituição de referenciais calcados na solidariedade e na interdependência como ativadores da integração social. Os limites da concepção de renda básica encontram-se, porém, justamente na elaboração destes referenciais alternativos, que dêem consistência à cidadania (assim como o trabalho para o Welfare State) e respondam simultaneamente aos demais aspectos da insegurança a que as pessoas estão expostas na vida. Seria a renda básica, deste ponto de vista, um bom substituto aos modernos sistemas de proteção social? O caráter público, garantido pelo Estado, dos demais direitos sociais surgidos e legitimados durante quase um século de edificação do Welfare State permanece um desafio para a renda básica substitutiva. 20 V. BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, Ângela Maria Carneiro. (2001). “Globalização e Trabalho: uma Resenha da literatura” in BIB, n.º 52, 2.º semestre, São Paulo: ANPOCS/EDUSC; AZNAR, Guy. (1988) “Revenu Minimum Garanti et Deuxième Chèque” in Futuribles, Paris, n.º 120, avr.; BARBALET, Jack M.. (1989). A Cidadania. Lisboa: Editorial Estampa; CHRISTENSEN, Erik. 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