GIANCARLO MATURANO GHISLENI ESTADO SOCIAL BRASILEIRO E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO IJUÍ (RS) 2012 Catalogação na Publicação G426e Ghisleni, Giancarlo Maturano. Estado social brasileiro e o princípio da proibição do retrocesso social / Giancarlo Maturano Ghisleni. – Ijuí, 2012. – 134 f. ; 29 cm. Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento. “Orientador: Doglas Cesar Lucas”. 1. Direitos sociais. 2. Estado. 3. Princípio da proibição de retrocesso. I. Lucas, Doglas Cesar. II. Título. CDU: 342.1 Tania Maria Kalaitzis Lima CRB 10/ 1561 UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação ESTADO SOCIAL BRASILEIRO E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL elaborada por GIANCARLO MATURANO GHISLENI como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Desenvolvimento Banca Examinadora: Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJUÍ): __________________________________________ Prof. Dr. José Francisco Dias da Costa Lyra (URI): __________________________________ Prof. Dr. André Leonardo Copetti Santos (UNIJUÍ): _________________________________ Ijuí (RS), 04 de abril de 2012. À minha família, esteio da minha vida, precursora dessa vontade de sempre lutar, de sempre procurar ainda que em meio a escuridão, uma luz que me levasse aos lugares mais altos da existência. montanha da AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por renovar cada dia que passa minhas esperanças num mundo melhor para mim e meus pares. A meus pais, Carlos e Mari – e a ti especialmente, mãe, e tu sabes por que-, bem como, ao meu irmão Fernando e meu padrasto Leão, por serem parte da minha vida. À minha avó que de certa forma (e ela sabe de que forma) foi uma das responsáveis pela minha sobrevivência saudável e pelo que tenho hoje em termos de personalidade. Embora já não esteja conosco neste plano, suas lições serão levadas eternamente por este aluno da vida, seguidor de sua forma simples e amorosa de ser e viver. Por fim, ao meu avô, que também foi pai e amigo me dando um pouco daquilo que tanto precisei quando a necessidade emocional batia à porta. Por fim, meu agradecimento vai dirigido a alguns amigos, em especial ao meu orientador, professor Douglas pela colaboração ao trabalho, atenção despendida e cobranças feitas. Ao meu amigo Lyra, também estendo meu cumprimento pela amizade de acadêmica e fora dela. RESUMO Os direitos sociais tem papel fundamental para implementação de uma realidade mais igualitária nos países em que a desigualdade ainda é latente. Em nosso País os direitos sociais tem previsão constitucional, todavia, discute-se se estes estariam incluídos nas cláusulas pétreas do Art. 60, § 4º da Constituição. A interpretação literal leva-nos a crer que eles não encontram abrigo na imutabilidade constitucional destas cláusulas, podendo haver a supressão dos mesmos. Ainda que a literalidade expresse o contrário, pretendemos demonstrar que se possa defender a indisponibilidade dos mesmos com outra arma: o princípio da proibição do retrocesso dos direitos sociais. Tal princípio vem ganhando destaque entre os estudiosos do Direito Constitucional e tem como pregação a impossibilidade do Estado retroceder em matérias atinentes aos direitos sociais. Quando nos apresentado ao assunto que detém argumentos contras e a favor com a mesma força, este nos fez tomar gosto a ponto de propormos um projeto de dissertação de mestrado com esse tema. Aprovado o projeto, nos colocamos a trabalho desta idéia então imaginária que se torna uma realidade a partir daqui. Assim, estruturamos a presente dissertação partindo da evolução do Estado absolutista passando pelo Estado liberal até o Estado social. Neste estágio de Estado social, também adentramos as linhas da crise instalado no Estado social. Partimos do Estado social e de sua principal característica, os direitos sociais, para analisá-lo no Brasil, destacando no atual cenário o papel do Judiciário na função de promover os direitos sociais traçados pela Constituição de 1988. Ainda, destacamos a ligação dos direitos sociais ao projeto de desenvolvimento do País pretendido pela Constituição. Por fim, analisando o estágio atual dos princípios no direito contemporâneo, tentamos propor na Constituição de 1988 uma leitura, ainda que implícita, do princípio da proibição do retrocesso, além de destacarmos em que medida tal princípio poderia ser reconhecido. RESUMEN EM LENGUA ESTRANGERA (ESPANHOL) Los derechos sociales tienen un papel fundamental en la implementación de una realidad más igualitaria en los países donde la desigualdad es aún latente. En nuestro país los derechos sociales tienen disposición constitucional, pero, aún discute-se se ellos incluyen-se en las cláusulas inmutables del Art. 60, § 4 de la Constitución. La interpretación literal nos lleva a creer que los derechos sociales no son inmutables constitucionalmente, que los mismos pueden sufrir revocación. A pesar de lo literal expresar tal posibilidad, tenemos la intención de demostrar que hay otra arma para defender su inmutabilidad: el principio de prohibición de la regresividad de los derechos sociales. Este principio ha ganando la atención entre los estudiosos del Derecho Constitucional y defensa la imposibilidad del Estado de regreso en asuntos relacionados con los derechos sociales. Cuando presentados al asunto que tiene argumentos a favor y contras con la misma fuerza, el mismo he hecho nosotros tener gusto en el punto de proponer un proyecto de disertación de master en el tema. Aprobado el proyecto, ponemos a trabajar esta idea, aún imaginaria, para la convierte en una realidad a partido de aquí. Por lo tanto, hemos diseñado el presente trabajo empezando por la evolución del Estado absolutista hasta el Estado liberal, después para el Estado social. En esta etapa del Estado social, también introducimos en las líneas la crisis del Estado de bienestar. Partimos del Estado social y su principal característica, los derechos sociales, para analizar en Brasil, especialmente en el escenario actual el papel del poder Judicial en el papel de la promoción de los derechos sociales señalados por la Constitución de 1988. Sin embargo, hacemos la conexión de los derechos sociales en el proceso de desarrollo que exige la Constitución. Por último, analizando el estado actual de los principios en el derecho contemporáneo, proponemos en la Constitución de 1988 una lectura, aunque implícita, del principio de prohibición de la regresividad de los derechos sociales, y en qué medida este principio podría ser reconocido. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................... 8 1. DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL 1.1 - Do absolutismo ao Estado liberal ................................................ 11 1.2 – A formação do Estado social ....................................................... 27 1.3 - a crise do Estado de bem estar social ......................................... 33 1.4 - o Estado de bem-estar social no Brasil ....................................... 40 2. OS DIREITOS SOCIAIS NA PROMOÇÃO DA CIDADANIA: A REALIDADE BRASILEIRA 2.1 - Os direitos sociais e um projeto de desenvolvimento ............... 47 2.2 - Os Direitos Sociais no Brasil na Constituição de 1988 .............. 56 2.3 - Os entraves do Estado social nos países de modernidade tardia ........................................................................................................ 66 2.4 - Poder Judiciário na promoção dos direito sociais no Brasil .... 73 3. O PRINCÍPIO DE PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL NO BRASIL 3.1 - O papel dos princípios no direito contemporâneo ..................... 82 3.2 - Principio da proibição de retrocesso social: história e fundamentos ........................................................................................... 89 3.2.1 - A proibição de retrocesso no Direito comparado ......... 91 3.2.2 - A proibição de retrocesso no Brasil ............................. 100 3.2.3 – Uma proposta de aplicação do princípio .................... 104 3.2.4 – O princípio nos tribunais brasileiros ........................... 105 3.3 - Objeções e críticas a proibição de retrocesso social .............. 110 3.4 - Os poderes legislativo e judiciário e suas relações com os direitos sociais ..................................................................................... 118 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 124 5. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 127 8 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A proibição do retrocesso é atualmente um dos temas emergentes no Direito Constitucional do nosso País. Novas correntes de pensamento vem surgindo acerca do assunto, cada qual trazendo a sua contribuição com base naquilo que se construiu até então sobre o tema. A atuação legislativa tem se tornado cada vez mais limitada pela Constituição e vigiada por aqueles que arduamente a defendem. E é por isso que optamos por tal assunto, pois o estudo do princípio da proibição do retrocesso coloca em voga a proibição do legislador ordinário - especialmente, mas não exclusivamente, pois a esse também estaria submetidas às opções políticas do poder Executivo - suprimir direitos sociais já implementados. Nosso objetivo ao pesquisar sobre o assunto foi o de provar a possibilidade de aplicação do princípio mesmo no meio jurídico brasileiro. Além disso, em casos específicos, buscamos trazer exemplos de como faríamos sua aplicação. Essa necessidade, a nosso ver, surge em razão de que a doutrina avança a passos lentos. Afora alguns autores que produzem com contextualização, outros tantos seguem a orientação dos primeiros compilando e sintetizando. Também em razão disso, o trabalho teve suas dificuldades, pois há a necessidade de se pensar o princípio, fora da disciplina teórica, ajuizando-o na pratica cotidiana dentro dos direitos sociais em litígio. No texto procuramos discorrer sobre alguns dos direitos sociais que julgamos importantes - não os únicos - para a implementação do Estado igualitário e de justiça social que ambiciona a Constituição Federal de acordo com as pretensões descritas no inciso I e III do artigo 3º e artigos 193. A implementação e efetivação desses direitos são instrumentos hábeis a tornar as condições de vida social mais justo e igualitário, pois os seus principais mas não únicos – destinatários são àquelas pessoas que compõe a chamada classe 9 C e D, onde as condições de vida são mais precárias e o Estado, através de legislação e políticas sociais, deve chegar proporcionando a essas classes condições que as classes mais afortunadas detém. Veja-se que quando falamos de melhores condições estamos a falar nas condições precárias de saneamento básico, saúde (vigilância sanitária, epidemiológica), previdência e assistência social, educação, cultura que não chegam a maioria dos brasileiros. Os direitos sociais dos trabalhadores também estão nesta esfera, pois os direitos como previdência, FGTS, salário família. Em razão da utilização vultosa desses direitos sociais pelos mais desafortunados é que deve haver, juridicamente, uma forma de coibir que sua eficácia dos direitos sociais seja reduzida ou limitada pelo poderes a quem, constitucionalmente, deveriam sempre ampliá-los de forma crescente. Atualmente não se tem falado em redução de direitos sociais, todavia, outrora, houve propostas que pretendiam limitá-los. Veja-se o PL 5483/2001, que tratava da flexibilização das relações de trabalho e que hoje encontra-se arquivado à pedido do anterior Presidente da República, é exemplo claro desta intenção1. Ou seja, quando há crise financeira os direitos sociais são os primeiros a serem colocados em jogo. Prova disso é o que atualmente acontece na crise Européia, onde muitos países tem suas políticas sociais cortadas em razão da crise instalada, principalmente na Grécia, Portugal, Irlanda e na Itália2. Por isso, desenvolvemos o trabalho com o finco de demonstrar que partindo do absolutismo até o Estado social, o Estado como instituição destinada a representar a vontade da maioria organizada muda e cria mecanismos que defendam sua existência frente a fúria da economia. No trabalho pontuamos também que a economia cria anomalias de cunho econômico-social que por si só não resolve, deixando-as para que o Estado as resolva. Dessa forma, observamos 1 Maiores informações no Link http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=33868 2 informações obtidas através dos seguintes links< http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2011/06/confira-os-planos-de-austeridade-adotados-naeuropa-3370586.html> <http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/noticia/2011/12/plano-europeu-preve-corte-de-gastos-de-us-3-6trilhoes-3592779.html> 10 durante o século XX a valorização humana através da inclusão dos direitos sociais nas constituições democráticas. Assim dividimos o trabalho em três capítulos onde no primeiro discorremos o desenvolvimento que vai do absolutismo ao Estado social e sua crise de insuficiência causada pelas anomalias econômicas. Discorre-se neste contexto também sobre o Estado social Brasileiro. Já no segundo capítulo, trabalhando especificamente a Constituição de 1988, aprofundamos na análise de alguns direitos sociais a nosso ver mais importantes à promoção da igualdade e promoção da cidadania. Com isso também discorremos sobre a função atual do Judiciário como implementador da vontade do Constituinte originário de 1988. Por fim, no terceiro capítulo, desenvolvemos uma pesquisa sobre o princípio de proibição de retrocesso, suas origens, a aplicação em alguns países da Europa e da América Latina, especificamente Brasil e Colômbia. Ainda, procuramos expor aquilo o que a doutrina brasileira trata como objeções ao reconhecimento do princípio no meio brasileiro, além de apontarmos a importância de vincular o legislador à vontade do constituinte originário no que tange aos direitos sociais nela previstos. 11 1. DO ABSOLUTISMO AO ESTADO LIBERAL O nascimento do Estado pode ser considerado um tema polêmico. Inicialmente é de se destacar que há de se considerá-lo de duas formas: como organização de pessoas e como organização de pessoas com fins políticos quando o homem atinge uma idéia de civilizado. Considerada a primeira alternativa estaríamos a conjugar da idéia de que o Estado tem seu nascimento em uma idade primitiva, onde as pessoas aglomeravam-se em grupos por laços de afinidade ou parentesco com fins internos (sustento) e externo (defesa). Se considerado então como segunda alternativa o início do Estado se dá na era moderna. Essa é a idéia de Bobbio (1987, p. 73/76) Bonavides por sua vez diz que mesmo como ordem política da sociedade, o Estado é proveniente da Antiguidade e se mantém o mesmo até os dias atuais. Pondera que a expressão ‘Estado’, modernamente, fora inaugurada por Maquiavel em O Príncipe, e que, por isso, a denominação usada nem sempre fora a mesma embora a idéia de Estado estivesse presente naquela época. Para o autor A polis dos gregos ou a civitas e a res pública dos romanos eram vozes que traduziam a idéia de Estado, principalmente pelo aspecto de personificação do vínculo comunitário, de aderência imediata à ordem política e de cidadania. No império romano, durante o apogeu da expansão, e mais tarde entre os germânicos invasores os vocábulos imperium e regnum, então de uso corrente, passaram a exprimir a idéia de Estado, nomeadamente como organização de domínio e poder. (2009A, p. 65-66) Ao contrário da polis grega onde o vínculo comunitário entre os indivíduos traduzia a idéia de Estado no ensino de Bonavides, na Idade Média a relação indivíduo-Estado se opõe a idéia acima exposta do “Estado” Grego. Para Novais neste momento A idéia de um poder público de Estado desvanece-se em favor de um sistema político fundado numa rede de vínculos unindo suseranos e vassalos; a idéia de imperium é substituída pela de dominium entendida como mera superioridade territorial por parte do príncipe, mas compatível com a vinculação deste, num plano de igualdade com os restantes senhores, ao complexo entrelaçado de direitos e deveres que caracterizava 3 a sociedade medieval . De facto, nesta vasta cadeia de dependências recíprocas, cada um era titular de jura quaesita, direitos adquiridos, garantidos pelos tribunais comuns independentemente do lugar que o autor da violação ocupasse na hierarquia feudal (1985, p.24). 3 Ehrhardt Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra,1955 pag. 48 e seg. 12 Novais aponta que na Idade Média “tendo em conta a existência de uma jurisdição que tutelava privilégios de todos contra todos, com mais propriedade que de Estado de Direito, se poderá falar relativamente à Idade Média de um Estado de Justiça” (NOVAIS, 1985, p. 25). O sistema econômico que imperava à época era o feudalismo, sistema rígido em progressão social4. Com a crise do sistema feudal, ocorre a centralização dos poderes nas mãos dos reis para das monarquias absolutistas. Isso ocorre no fim da Idade Média (séculos XIV e XV) nos países europeus do antigo regime. A formulação do ideário absolutista nasce junto com a idéia de Estado, a partir do século XV: a explicação clássica do Absolutismo veio da França, onde, durante séculos, tendências centralizadoras se tinham revelado, tais como a luta dos publicistas contra o papa. (...) A política de Estado devia ser separada da religião, a teologia, de qualquer doutrina. Uma política secularizada ... era única sob cujo signo se podia unificar a nação. (...) O último vínculo entre a doutrina política e a teologia foi o conceito da Graça divina. (...) O teórico da monarquia francesa não confessional foi Jean Bodin. (...) Para Bodin, o poder do Estado, e portando do Soberano, identifica - se com o poder absoluto: não pode imaginar outro, pelo menos em teoria. (THEIMER. p. 101-104). O absolutismo como filosofia política tinha como um de seus principais idealizadores Thomas Hobbes, autor de De Cive (1642) e Leviata (1651). Para este autor as paixões humanas não estão dispostas a obedecer as leis morais (equidade, justiça, gratidão e conexões). Pregava o autor que em função da mesquinharia e o egoísmo próprio do homem5 são necessárias concessões dos indivíduos através de convenções a um soberano. Dessa forma, o poder de dizer o direito assim como de executá-lo centralizava-se nas mãos do soberano que passava a deter então poderes sobre o Estado e consequentemente seus súditos A República, então, como reguladora de convenções, é também fiadora da segurança humana. 4 Streck e Bolzan separam o feudalismo em três fases: pré-moderna (que impera neste momento préformação do Estado que denominamos moderno), mercantilista e capitalista, reinante até o momento. (2000, p. 22/23) 5 Umas das possíveis causas da transferência de todo o poder a alguém com habilidades tantas para reprimir o ímpeto “marginal” propriamente humano, para Hobbes, talvez fosse a própria insegurança, segundo informa Bedin: “Thomas Hobbes foi um homem demasiadamente medroso e anormalmente sensível ao temor que provocam, muitas vezes, os acontecimentos políticos violentos e as mudanças abruptas no exercício do poder. Por isso, pode-se dizer que sua obra é fruto deste curioso ‘consórcio entre um coração sequioso de segurança, para quem a paz é um bem supremo, e um espírito indomável, de surpreendente envergadura e de intransigente originalidade” (Chevallier apud Bedin, 2008, p. 114) 13 Bobbio, ao falar sobre Hobbes, também expõe a existência de duas antíteses no pensamento político: a opressão-liberdade e a anarquia-unidade. Segundo o autor, Hobbes pertenceria a segunda antítese definido-o assim: Hobbes pertence, decisivamente, às fileiras dos que tiveram o pensamento político estimulado pela segunda antítese. O ideal que ele defende não é a liberdade contra a opressão, mas da unidade contra a anarquia. Hobbes é obsecado pela idéia da dissolução da autoridade, pela desordem que resulta da liberdade de discordar sobre o justo e o injusto, pela desagregação da unidade do poder, destinada a ocorrer quando se começa a defender a idéia de que o poder deve ser limitado, ou, numa palavra, obcecado pela anarquia que é o retorno do homem ao estado de natureza. (1991, p. 26) Prossegue ainda o autor italiano sobre Hobbes dizendo que o que o Hobbes temia não era a opressão advinda do poder, mas a insegurança resultante de sua escassez. É de se apontar que a obra Leviata de Hobbes brotou em meio a guerra civil inglesa. Nesse contexto, Bobbio aduz que “No Leviatã, as referências à guerra civil como o pior de todos os males são freqüentes, não somente à guerra civil em geral, mas também aquela que causara e ainda causava estragos, no momento em que o autor escrevia na própria Inglaterra” (1991, p. 26/27) Essa segurança buscada por Hobbes só poderia ser oferecida, pelo Rei, uma vez que o mesmo é que salvaria a civilização da barbárie. A civilização, em troca, deveria fazer a concessão dos poderes ao soberano para que recebesse um estado mínimo de segurança. Correa, quando trata do Estado-leviatã, pontua que Hobbes procura efetivar nesse Estado-leviatã “sua pretensão de cientificidade derivando as conclusões sobre a política a partir da análise do homem individual, considerando uma parte do todo que é o Estado” (2010, p.351). O autor acima citado considera que Hobbes via a natureza humana como essencialmente agressiva, “constituindo-se o estado de natureza numa guerra de todos contra todos, no que se aproxima de Maquiavel, para quem os homens são maus, gananciosos, mesquinhos e cruéis”. (2010, p. 355). 14 Continua explicando o referido autor que Hobbes justifica o Leviatã (Deus Mortal) partindo de um contrato social em que o indivíduo cede ao Estado poderes para receber segurança a partir do contrato social por meio do qual os indivíduos renunciam a se estado de natureza. Cabe recordar que para os contratualistas da escola do direito natural, entre eles Hobbes, o binômio estado de natureza/sociedade civil é um construção lógica empregada para dar legitimidade ao Estado moderno sem apelar para o argumento religioso da investidura divina. No caso de Hobbes, estado de natureza significa o estado dos indivíduos dispersos, isolados, apenas movidos pelo desejo egoísta, em especial pelos sentimentos de inveja e de medo, principalmente o medo de sofrer e de morrer. Indivíduos, portanto, totalmente livres, não limitados por nada, mas materialmente incapazes de satisfazer seus desejos naturais, uma vez que nessa ordem natural prevalece a ‘lei dos lobos’, ou seja, a guerra de todos contra todos. (2010, p. 356) A partir dessa idéia - de que um estado de total liberdade ao indivíduo se torna inviável porque faz com que o mesmo fique destituído de qualquer moralidade – Correa pontua que o Estado acabou surgindo como uma construção voluntária e artificial: Esse estado de total liberdade no qual impera o terror torna-se, por isso, inviável, destituído que é de qualquer moralidade. É essa lógica que faz do Estado uma construção voluntária e artificial, um ente moral totalmente autônomo surgido de um acordo comum pelo qual os indivíduos renunciam integralmente à sua potência individual transferindo-a para o poder público. (2010, p. 357) Châtelet e outros ensinam que a criação do Estado deriva de uma substituição aos desejos contrapostos de poder e de viver (em paz): Dado que o estado de natureza é insuportável, dado que o desejo de poder e o desejo de viver (de viver em paz) se contradizem, então surge a capacidade deliberativa própria ao homem que comanda de construir uma instância superior cujo fim é impor uma ordem que elimine a violência natural, que substitua a guerra de todos contra todos pela paz de todos contra todos.(1985, p. 51) Hobbes, portanto, é alinhado a doutrina do positivismo jurídico que pretende que o desejo de ordens morais sejam impostas por um rei (soberano, Estado, Leviatã) que criará normas aplicáveis a todos propiciando a segurança que Hobbes entendia. Por positivismo jurídico entendemos ser aquela doutrina que não se atém a julgar o que o Estado estabelece como norma, sendo que se a norma existe, ela tem validade e pode ser considerada justa. 15 Correa define o absolutismo é tido como legítimo e que por ser assim o rei não está submetido às leis positivas, pois seu poder é divino estando tão somente submetido a realização do bem estar dos seus governados: “A soberania una e indivisível do Estado é ilimitada, desde que assegure a tranqüilidade de o bem-estar dos contratantes” (2010, p. 358). O Estado absoluto, Segundo Novais fica então considerado pela generalidade da doutrina como o modelo anti-modelo contra o qual se erguem a teoria e a construção prática do Estado de direito (1987, p. 26). Novais, além separar o absolutismo em duas fases distintas, a fase patrimonial e a de polícia, com ambas sem qualquer possibilidade de defesa jurídica particular contra o príncipe, pontua que a vontade do príncipe impõe-se à medida do gradual desaparecimento das possibilidades de defesa jurídica dos particulares relativamente às ofensas do Poder, não obstante a crescente importância que a regra de direito assume no estado de polícia no domínio da disciplina jurídica das relações entre os indivíduos. (NOVAIS, 1987, p. 26/27.) Neste momento tanto na França como na Alemanha os parlamentos e tribunais, passaram a perder “progressivamente as faculdades de tutelar os direitos dos particulares contra o soberano, que usava do poder de autodefesa contra os súditos para dispensar-se de propor ações contra os súditos para fazer valer seus privilégios”. (NOVAIS, 1987, p. 28) Neste momento, informa Novais, o Monarca recorria a idéia de direito de polícia para intervir em domínios que entendesse como interesse de bem público. O Estado se situava à margem do direito, fora do controle judicial (1987, p. 28) Para frear a ambição dos soberanos pelo poder, importou-se do Direito Romano a doutrina do fisco onde o poder absoluto passaria a ser considerado pessoa moral de direito privado e responsável como qualquer outro contratante, tendo obrigações e deveres no contrato (Novais, 1987, p. 29). 16 Por conseqüência fazia com que o fisco pudesse ser responsabilizado juridicamente por aqueles que, contra ele na condição de súditos, se opusessem judicialmente. Mas essa doutrina acaba por se resumir tão somente a cobrir os custos da imposição diametralmente imposta aos súditos. Poderíamos considerá-lo como um Estado acima do Direito. (NOVAIS, 1987, p.30) Ainda segundo o autor luso, ainda que através da importação dessa doutrina do fisco se pudesse submeter o Estado, esta submissão quando se traduzia, acontecia de forma parcial (1987, p. 30). Neste sentido, ainda que tivesse estado, estado absolutista era um estado acima do direito, pois não havia mecanismos, segundo o autor, já que os particulares estavam destituídos de quaisquer direitos de natureza pública em face do Estado (NOVAIS, 1987, p. 30). Isso acaba por acarretar uma reação burguesa contra o Estado de polícia instalado, uma limitação jurídica do Estado. Novais expõe que O constrangimento individual e a falta de previsibilidade e segurança, decorrentes da actividade discricionária e ilimitada de um príncipe empenhado na construção de uma “nação culta e polida”, provocariam inevitavelmente a reação da burguesia ascendente contra o Estado de Polícia (1987, p. 31) A burguesia, ainda que beneficiada com pela política econômica mercantilista, estava afastada do governo e necessitava erguer uma contenção contra as arbitrariedades do poder; exigir que o príncipe tivesse sua conduta limitada pela existência de uma esfera de proteção de cada homem em seu núcleo de direitos naturais. , (1987, p. 31-32) Por trás da reação burguesa, de emanação racional da vontade geral, há também o revestimento de uma vontade clara do capitalismo emergente que exigia por parte do Estado uma não-intervenção. Novais explica o que seria esse Estado racional pretendido pela burguesia Um Estado cuja actuação é previsível, em que a Administração está limitada por regras gerais e abstratas, em que as esferas de autonomia dos cidadãos e a vida econômica não estão à mercê de ingerências arbitrárias do Monarca, mas antes protegidas e salvaguardadas pelas decisões racionais da sociedade esclarecida, representada no órgão da vontade geral. (1987, p. 33) 17 O Monarca, que até então se imiscuía à figura de Estado, tornava-se, a partir daí, nada mais que um braço do Estado, um responsável administrador daquilo que organicamente lhe é outorgado pela sociedade com limites também organicamente impostos. Essa é a figura do Estado racionalizado que começa a tomar definições e assume, para Novais, status de Estado de Direito, emanando as normas, ou seja, o direito, do Parlamento. Para o referido autor Estado racionalizado é, assim, um Estado fundado e limitado pelo Direito, numa acepção em que limitação do Estado não se distingue claramente de limitação do Monarca com a subordinação do Executivo ao Legislativo e em que a limitação pelo Direito se confunde com império da lei emitida pelo Parlamento (NOVAIS, 1987, 36). Paralelamente à evolução das formas de Estado, as formas econômicas mudavam até chegarmos às doutrinas do liberalismo econômico atual, agindo inclusive como mola propulsora do desenvolvimento do Estado (do absolutista para o liberal, do liberal para o social). Não era diferente no período pré-moderno6. A transição do Feudalismo para o capitalismo se fez com uma fase intermediária denominada mercantilista. A transição ocorre numa perspectiva evolucionista. Assim nos mostra Streck e Bolzan quando mencionam que mesmo na Europa em fase de transição, coexistiam dois modos econômicos, um que nascia e outro que se esvaia. Durante séculos na Europa ocidental e central coexistiram os dois modos econômicos de produção: o feudalismo, que se esvaía, e o capitalismo, que nascia. Cabe registrar, ainda com Capela, que no interior da ordem feudal surgiram relações de intercambio mercantil, bem como produções para o mercado, e não apenas para o autoconsumo e à tributação feudal em espécie. (Streck e Bolzan, 2000, p.22) O feudalismo, primeira fase desta época pré-moderna, ficou marcada pela distribuição de feudos pelo Estado a particulares que usavam dos servis para o desenvolvimento de suas propriedades. Ao feudalismo podemos atribuir também uma forma “estatal-organizacional”, já que os feudos eram dotados de autoorganização própria com forma de produção de riqueza. 6 Denominação usada por Streck e Bolzan em Ciência Política e Teoria Geral do Estado para denominar o Estado anterior ao absolutismo. (2000, p.20) 18 A segunda, denominada mercantilista, já detinha forte intervenção dos Estados nas economias, essencialmente pelo acúmulo de metais preciosos como forma de fortalecimento econômico. Neste segundo momento, há um sentimento de desprestígio da nobreza feudal e com isso o fortalecimento do Estado absoluto. Era a prática político-econômica predominante dos Estados modernos européia entre os séculos XV e XVII. Foi considerada a época de transição entre o feudalismo e o capitalismo. O terceiro período, o capitalismo, é a fase derradeira onde há a separação da Economia e do Estado, colocando este último de lado face ao poder da economia que, usando dos meios de produção e da propriedade privada, se autogeria. Aqui, em se tratando de forma de organização estatal, estamos já no Estado Liberal. A partir do fim do mercantilismo - fase econômica intermediaria entre o feudalismo e nosso liberalismo econômico atual - no final do século XVIII, é que se dá o nascimento do Estado liberal. O Estado liberal, por Bobbio é conceituado como “uma determinada concepção de Estado na qual o Estado tem poderes e funções limitadas e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social” (2000, p. 7) O autor italiano segue ensinando que o pressuposto filosófico do Estado liberal, entendido como contraposição ao Estado absoluto é a doutrina dos direitos do homem elaborada pela escola do direito natural (ou jusnaturalismo): doutrina segunda a qual o homem, todos os homens, indiscriminadamente, tem por natureza e, menos ainda da vontade de alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais como o direito à vida, a liberdade, a segurança, a felicidade – direitos esses que o Estado, ou mais concretamente aqueles que num determinado momento histórico detem o poder legítimo de exercer a força para obter a obediência a seus comandos, devem respeitar, e portanto não invadir, e ao mesmo tempo proteger contra toda possível invasão por parte dos outros. (2000, p. 11) Segundo ensina Bonavides, para a doutrina do liberalismo “o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional como maior inimigo da liberdade” (2009, p. 40) 19 Segundo Bonavides, o primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades individuais, alcançou sua experimentação histórica na revolução francesa (2009, p. 42). Essa revolução experimentou na verdade a ascensão de uma classe social (a burguesia) que cansada dos senhores feudais, toma o poder, mas tão somente para formular seus princípios filosóficos de revolta social. Pondera Bonavides que embora a burguesia subisse ao poder com o pretexto de universalizar alguns ideais, quando no poder, tornou isso algo secundário. Nestes sentido explica que tanto antes como depois, nada mais fez do que generalizá-los como ideais comuns a todos os componentes do corpo social. Mas no momento em que se apodera do controle político da sociedade, a burguesia já se não interessa em manter na prática a universalidade daqueles princípios, como apanágio de todos os homens.Só de maneira formal os sustenta, uma vez que no plano de aplicação política eles se conservam, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe. (Bonavides, 2009, p. 42) O Estado liberal originou-se da busca dos indivíduos por liberdades individuais frente ao poder absoluto. Objetivavam freios no Estado e a segurança de direitos ligados ao valor liberdade que dessem a pessoa a garantia de não ter sua esfera privada tocada pelo intervencionismo do Monarca. Para Zagrebelski esse Estado tinha “una connotación sustantiva, relativa a las funciones y fines del Estado...o que se destacaba en primer plano era la protección y promoción del desarrollo de todas las fuerzas naturales de la población, como objetivo de la vida de los individuos y de la sociedad” (2003, p. 23) O autor italiano ensina que a contrariedade ao absolutismo na Europa teve matrizes diferentes entre a Europa continental e a Inglaterra e isso acabou por diferenciar os sistemas entre esses países (rule of law end not of men e Rechtsstaat). en la tradición europea continental, la impugnación del absolutismo significó la pretensión de sustituir al rey por otro poder absoluto, la Asamblea soberana; en la Inglaterra la lucha contra el absolutismo consistió en oponer a las pretensiones del rey, los privilegios y libertades tradicionales de los ingleses, representados y defendidos por el Parlamento. (2003, p.25) 20 O pensamento filosófico do liberalismo tem suas origens em Kant, Locke e Montesquieu. O termo liberalismo, entretanto, começou a ser empregado apenas no Século XIX. Bonavides ensina que a filosofia política do liberalismo tinha a pretensão de salva à liberdade: “a filosofia política do liberalismo, preconizada por Locke, Montesquieu e Kant, cuidava que, decompondo a soberania na pluralidade de poderes, salvaria a liberdade. Fazia-se mister contrapor à onipotência do rei a um sistema infalível de garantias” (Bonavides, 2009, p. 45). Aponta ainda o referido autor que a doutrina do liberalismo faz o papel de termômetro das tendências antiabsolutistas: Essa doutrina é, como se vê, o termômetro das tendências antiabsolutistas. Segundo Gierke, o constitucionalismo trouxe inicialmente consigo, durante os combates a favor dos direitos do povo, o enfraquecimento e a desintegração da doutrina da soberania. A teoria tripartite dos poderes “como princípio de organização do Estado constitucional”, é uma contribuição de Locke e Montesquieu. Este se apóia naquele e, equivocadamente, no que supõe ser a realidade constitucional inglesa: um Estado onde os três poderes (executivo, legislativo e Judiciário) estariam modelarmente separados e mutuamente contidos, de acordo com a idéia de que “o poder detém o poder” (“Le pouvoir arrête Le pouvoir”).(Bonavides, 2009, p. 45) Como bem aponta o autor Paraibano, a doutrina não tinha inclinação por forma de governo, desde que neste sentido ficassem assegurada as liberdades dos indivíduos frente ao Estado. Nesses termos A divisão de poderes, por ser, na essência, técnica acauteladora dos direitos do indivíduo perante o organismo estatal, não implicava necessariamente determinada forma de governo, e tanto podia compadecer-se com o Estado democrático como, a monarquia constitucional. Era, em suma, técnica do liberalismo. (Bonavides, 2009, p. 45/46) Como diferenças entre esses autores políticos do liberalismo, pontua o autor que em Locke “o poder se limita pelo consentimento, pelo direito natural, pela virtude dos governantes, de maneira mais ou menos utópica”. Quando Bonavides usa a expressão “utópica”, esta se deve, sem sombra de dúvidas ao otimismo do autor 21 inglês para quem o homem era bom o suficiente para viver em estado de natureza 7 sem agressão aos demais. Naturalmente que podemos constatar pelo liberalismo exalante em Locke que sua concepção a idéia de indivíduo precedia a idéia de sociedade e de Estado. Correa afirma que na idéia liberal de Locke “para o Estado ser perfeito, só falta um juiz imparcial para julgar eventuais conflitos, restando para o Estado e o Direito a finalidade única de proteger (e não transformar) os indivíduos” (2010, p. 367). Mas Bonavides aponta à visão de um grave defeito sua doutrina porque dela “emerge um otimismo que ele não dissimula, despreocupação que quase ignora a natureza profundamente negativa do poder” (2009, p. 47). Constata, por outra via, que o Estado é um processo evolutivo, pois ele não começa e termina em Locke, uma vez que sofre uma reformulação em Montesquieu e encontra em Kant sua derradeira e definitiva forma. Tanto é assim que por vezes Bonavides chega a apontar a filosofia de Locke como uma filosofia do absolutismo do bom rei, diferente daquilo que Montesquieu trouxe: A prerrogativa Lockinana seria, a nosso ver, em suas conseqüências mais favoráveis à monarquia, quando muito, o absolutismo do bom rei, o que é uma concessão das mais largas e vantajosas ao exercício do poder real, um degrau intermediário na evolução para o liberalismo antes que este chegue a Montesquieu, a legitimação em nome do bem público, de ampla e indeterminada esfera de competência ao príncipe recém-saído do absolutismo. Já a doutrina de Montesquieu, inspirada por um sentimento radical de reação ao absolutismo, não podia condescender com as formas mitigadas de limitação do poder, como, por exemplo, a monarquia constitucional dos Estados europeus no período imediatamente posterior as guerras napoleônicas, os quais adotaram um constitucionalismo bastante tímido e moderado, em que prevaleciam ainda princípios de autoridade, tradição e passado (2009, p. 49) Bonavides enxerga o pensamento de Montesquieu como clássico do liberalismo burguês com ponto alto a separação dos poderes que na doutrina de Locke tinha apenas caráter teórico. 7 Ao denominado Estado de natureza poderíamos, de acordo com Correa, dizer que era a forma com que os homens viviam num estágio pré-social caracterizado pela liberdade e igualdade. Nesse estado não há necessidade de suprimir a natureza humana que, por ser boa, também não vai garantir a paz, concórdia e harmonia, contudo, tendo uma instituição organizada segundo regras comuns com um juiz imparcial, fará com que todos aceitem o estado de natureza, regido pelo direito natural 22 Montesquieu foi, incontestavelmente, um clássico do liberalismo burguês. O que há de mais alto na sua doutrina da separação dos poderes, segundo o consenso dos melhores tratadistas, é que nele a divisão não tem apenas caráter teórico, como em Locke, mas corresponde a uma distribuição mais efetiva e prática do poder entre titulares que se não confundem. (Bonavides, 2009, p. 47) O autor da Paraíba descreve que dentre ambos, havia inclusive uma completude. “Montesquieu punha limites ao exercício da autoridade com a separação dos poderes. Locke, com a conservação de direitos naturais, frente a organização estatal” (Bonavides, 2009, p. 168) Mas em meio a Locke e Montesquieu, há um ícone: Rousseau e seu Contrato Social. Esta obra dentre os pontos de divergência das teorias do liberalismo via o poder (transferido ao povo através do contrato social) como inalienável, imprescritível e indivisível. Assim, não se poderia considerar, por exemplo, que o poder, pudesse sofrer divisão, pois para Rousseau este era uno e indivisível, podendo apenas haver repartição de competências. Assim Bonavides resume a idéia: A contradição entre Rousseau e Montesquiieu – contradição em que se esteia a doutrina liberal democrática do primeiro Estado jurídico – assenta no fato de que Rousseau haver erigido como dogma a doutrina absoluta da soberania popular, com as características essenciais de inalienabilidade, imprescritibilidade e indivisibilidade, que se coaduna tão bem com o pensamento monista do poder, mas que colide com o pluralismo de Montesquieu e Constant, os quais abraçavam a tese de que os poderes deveriam ser divididos. (2009, p. 52) O liberalismo, como corrente política, acaba enfrentando pontos de contradição, como não poderia deixar de ser. Nota-se que mesmo defensores das liberdades pregadas e enraizadas ao ideal de liberdade natural dissentiam em suas teorias. Hobbes, embora liberal, via-se favorável a forma de governo monárquica, enquanto Rousseau e Montesquieu viam-se inclinados por formas republicanas e democráticas (ou tinham doutrina incompatível com a monarquia). Segundo as palavras de Leibholz, a tese de que esses dois termos (se referindo a democracia e o liberalismo) são termos casados podem estar dotada de erro de substância. Segundo informa Leibholz democracia e liberalismo podem ter inclusive significação e conteúdo opostos, além de que a síntese tradicional deve acolher-se com rara reserva, por traduzir apenas comunhão histórica de interesses 23 nos combates travados contra o inimigo comum, a saber, o Estado monárquico e autoritário. (Leibholz apud Bonavides 2009, p. 52/53). Ainda, o publicista de Göttingen ensina que as bases em que estão insertas a democracia e o liberalismo são distintas, pois o liberalismo se prende a idéia de que há uma capacidade racional do indivíduo de não só desenvolver suas próprias opiniões, mas também de conviver com as demais diferentes de si. Leciona ainda que essa idéia de liberalismo, que não se volta para a comunidade e sim para o indivíduo, é aquela que se encontra presente nas primeiras constituições liberais (America e Francesa): A possibilidade de dissociar a democracia do liberalismo se cinge, em última análise, à distinção dos valores fundamentais sobre os quais se baseiam. O valor essencial que inspira o liberalismo não se volta para a comunidade, mas para a liberdade criadora do indivíduo dotado de razão. Partindo desse ponto de vista, havia o liberalismo desenvolvido um sistema metafísico completo, fundado na fé de que uma solução racional total podia resultar do livre concurso das opiniões individuais em todos os domínios da vida (...) A importância que tem o indivíduo para o conteúdo do liberalismo clássico manifestase, com particular relevo, no fato de que, originariamente, o valor da personalidade era concebido como ilimitado e anterior ao Estado. É sob esse aspecto que se introduz a doutrina liberal nas primeiras Constituições escritas, as cartas americanas e francesas, cujas teses adquiriram, para a democracia liberal, o valor de uma profissão de fé religiosa e mística. Nos Estados Unidos essa mentalidade findada na crença da personalidade soberana e ilimitada do individuo, precedendo o Estado, se mantendo até o fim do século XIX, graças a atitude conservadora da Suprema Corte (Leibholz apud Bonavides, 2009, p. 53) Legaz y Lacambra conjuga da mesma idéia de distinção entre democracia e liberalismo, embora tenham andado juntas e apareçam ambas como produtos de espírito moderno e consubstanciais com a realidade do Estado oriundo da revolução. (Legaz y Lacambra apud Bonavides, 2009, p. 54) Leibholz, quando trata do assunto, não vê origem comum no liberalismo e na democracia. Neste sentido é bom entender o que o professor de Goettingen ensina: A possibilidade de dissociar a democracia do liberalismo se cinge, em última análise, a distinção dos valores fundamentais sobre os quais se baseiam. O valor essencial que inspira o liberalismo não se volta para a comunidade, mas para a liberdade criadora do indivíduo dotado de razão. Partindo desse ponto de vista, havia o liberalismo desenvolvido um sistema metafísico completo fundado na fé de que uma solução racional total podia resultar do livre concurso das opiniões individuais em todos os domínios da vida(...) 24 A importância que tem o indivíduo para o conteúdo clássico manifesta-se, com particular relevo, no fato de que, originariamente, o valor da personalidade era concebido como ilimitado e anterior ao Estado. É sob esse aspecto que se introduz a doutrina liberal nas primeiras constituições escritas, as cartas americanas e francesas, cujas teses adquiriram, para a democracia liberal, o valor de uma profissão de fé religiosa e mística. Nos Estados Unidos essa mentalidade fundada na crença da personalidade soberana e ilimitada do indivíduo, precedendo o Estado, se manteve até o fim do século XIX, graças a atitude conservadora da Suprema Corte. (Leibholz apud Bonavides, 2009, p. 53). Outro liberal que deve ser lembrado é Kant. Em Kant, como veremos, poderse-á fazer leituras que parecem se contradizerem, com pontos do liberalismo que parecem favoráveis a democracia e outros não. Neste sentido, quando analisa a doutrina Kantiana sobre liberdade, Lleana Beade tenta demonstrar que necessariamente não há contradição na mesma quando constata haver duas posições, mas que entre si não são necessariamente antagônicas: uma produto do liberalismo moderno e outra uma interpretação republicana do pensamento político liberal Kantiano. (Beade, 2009) A referida autora chilena demonstra haver duas posições claramente assumidas acerca da liberdade por Kant. Uma delas, com caráter republicano8, conceitua liberdade do cidadão na obra Kantiana Metafísica dos Costumes como "de no obedecer a ninguna otra ley más que a aquella a la que ha dado su consentimiento". (Kant apud Beade, 2009). Já a outra, para a autora está definida na obra Teoria e Pratica onde Kant define liberdade em um conceito moderno da seguinte forma: Nadie me puede obligar a ser feliz a su modo (tal como él se imagina el bienestar de otros hombres), sino que es lícito a cada uno buscar su felicidad por el camino que mejor le parezca, siempre y cuando no cause perjuicio a la libertad de los demás para pretender un fin semejante, libertad que puede coexistir con la libertad de todos según una posible ley universal (esto es, coexistir con ese derecho del otro) (Kant, apud Beade, 2009). Neste ponto, nos parece que Kant ao associar liberdade como forma de participação direta nas leis (quando fala em consentimento), não pregava 8 Também é referida pelo autor como associada ao conceito de liberdade positiva. 25 exatamente republicanismo, embora nos pareça seja o autor ideologicamente afinado com as idéias de Rousseau. Como descreve Ileana Quienes suscriben una interpretación "en clave republicana" del pensamiento político kantiano suelen desatender el sentido puramente formal en que Kant se apropia de las ideas políticas de Rousseau; y en lo que respecta puntualmente a la definición kantiana de lalibertad como capacidad de no obedecer a ninguna otra ley más que a aquella a la que ha dado su consentimiento, no reparan en el hecho de que el consentimiento del individuo respecto de las leyes no implica una participación directa del pueblo en el procedimiento legislativo. Si se considera, por otra parte, que los subditos no tienen medios de oponer resistencia legítima a las leyes establecidas (aun cuando no pudiesen prestar consentimiento a dichas leyes), es forzoso reconocer que la adscripción de Kant a las filas del republicanismo resulta, cuanto menos, problemática. (Beade, 2009) Kant é tido como o mais ocidental e individualista de todos os teóricos do liberalismo burguês, pois centra sua teoria na revolução francesa além de dar uma formulação mais bem acabada ao Estado liberal-democrático. (BONAVIDES, 2009, p. 53/55) Não podemos olvidar nesse sentido que o Estado liberal é o que inaugura o Estado de direito. O primeiro Estado a trazer o direito como limitador da ação e assegurar liberdade, é o Estado liberal que neste trabalho consideramos ter inaugurado o Estado de Direito. Há quem remonte o Estado de Direito às afastadas épocas gregas9 onde se colocava a razão, ou melhor, o governo da razão e das leis, sobre o governo dos homens10. Todavia, conjugamos da idéia de que a origem do Estado de Direito não pode ser remetida a épocas tão remotas, tendo seu inicio com o Estado liberal. 9 O Estado de Direito, significa que o poder político está preso e subordinado a um direito objetivo, que exprime o justo. Tal direito – na concepção ainda prevalecente no século XVIII, cujas raízes estão na antiguidade Greco-Romana, não era fruto de uma vontade de um legislador humano, por mais sábio que fosse, mas sim da própria natureza das coisas. É Montesquieu quem o exprime no primeiro capítulo de sua obra magna: “as leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. (Ferreira filho, 2009, p. 2) (grifo nosso) 10 Embora o autor entenda ser o Estado de Direito apenas aquele em que se possa considerar que o cerne das preocupações do Estado está centrado na proteção e garantias dos direitos fundamentais, cita o “Estado” grego como exemplo em que muitos autores se baseiam para fazer árvore genealógica do Estado de Direito, dentre eles Mohl, Sthal e Gneist mencionando que estes autores com suas Teorias do Estado de Direito, na mesma esteira de Jellinek, não acrescem nada de novo às doutrinas de Platão e Aristóteles onde a Lei, como ditame da razão, faria dos governantes e governados meros escravos. 26 Novais segue a idéia de que não há a figura de Estado de Direito enquanto não se tem por parte deste o reconhecimento do direito a liberdade do indivíduo. Considerar-se-ia Estado de Direito aquele Estado que garantisse a realização efetiva dos direitos fundamentais, caso a que não se amolda a polis grega em razão da escravidão. Para Novais então, Estado de Direito será o “Estado vinculado e limitado juridicamente em ordem à protecção, garantia e realização efectiva dos direitos fundamentais, que surgem como indisponíveis perante os detentores do poder e o próprio Estado” (1987, p. 17) Dessa forma, poder-se-ia falar, seguindo orientação de Legaz y Lacambra, que “não teria sentido dizer que a polis helênica era um Estado de Direito, ainda que o direito fizesse parte da essência da polis tal como as demais manifestações do espírito como a arte, a religião e a filosofia” (Legaz y Lacambra apud Novaes, 1987, p. 24). O Estado de Direito existente hoje é conseqüência da evolução do homem e do próprio Estado como conseqüência. Na idéia de Novais, como conseqüência da evolução humana que já detinha racionalidade suficiente para visualizar horizontes melhores de convivência humana, O Estado surge como um endereço político Moldado praticamente pelo liberalismo “vivido” na Inglaterra a partir do Século XVIII e, sobretudo, pelas instituições saídas das revoluções liberais vitoriosas em França e na América. Assim, poder-se-ia dizer que, mais do que conceito filosófico, o Estado de Direito surge como um indirizzo político ou um conceito de luta política característico dos movimentos e das idéias prevalecentes no século XIX. (1987, 37). Na Alemanha isso se dá no Século XIX onde, segundo Novais a burguesia Dirigia seus esforços não para a conquista do Estado, mas para a eliminação das arbitrariedades e a vinculação do governo as normas de direito racional. Num processo inverso ao que se tinha verificado na França, a passagem do Estado de polícia ao Estado de Direito faz-se aqui de uma forma gradual, sendo a proteção dos direitos subjectivos alcançada atrav=ES da progressiva restrulção do domínio do antigo regierungsgewalt (poder de governo), enquanto através das instituições do Rechtsstaat se procurava emancipar a burocracia do comando individual do Monarca, elemento este fundamental na construção de uma imagem de um Estado forte, neutral, acima das classes, capaz de conduzir, ‘a partir de cima’ uma revolução burguesa sem direção da burguesia. (1987, 41) Filosoficamente a idéia de Estado de Direito, segundo Bonavides, partiu de conceitos de Hegel, autor nascido no século XVII, mas cujas obras datam do Século 27 XVIII, que o definiu como “realidade da idéia moral”, “substância ética consciente de si mesma” e “manifestação visível da divindade”. Mas o Estado de Direito não nasce pronto, acabado e com os mesmos fins; suas peculiaridades são visíveis na doutrina. Na alemã, por exemplo, o Rechtsstaat tinha condão de orientar política e pessoalmente a pessoa para o desenvolvimento de todas potencialidades, tendo o Estado, a função ou finalidade, o próprio homem. Von Mohl é um dos grandes idealizadores alemães do Rechtsstaat. Para eles na medida em que o Estado trabalha para o pleno desenvolvimento humano a atividade de polícia do Estado surge como algo imprescindível. Para Von Mohl O homem só pode ter como único fim de sua existência terrena a formação mais completa e harmônica possível de todas as suas potencialidades e forças. (...) O Estado de Direito só pode ter este fim: ordenar de tal maneira a vida colectiva que cada um dos seus membros seja apoiado e estimulado ao máximo grau no exercício e aproveitamento de todas as suas forças, livre e integralmente. (Von Mohl apud Novais, 1987) No caso Francês do Estado de Direito, ao contrário do alemão que seria decorrente na imposição de normas que limitassem o poder do Estado, iremos encontrar diferenças apontadas por Novaes no que toca a valoração dos mecanismos de garantia da autonomia do ser. Com a reserva já assinalada quanto a diversidade e subjetividade de sentidos que cada um destes conceitos encerra, será em todo o caso possível descortinar entre a expressão francesa état constitutionnel e o Rechtsstaat uma diferença de perspectivas, reconduzível a uma diferente sensibilidade na valoração dos mecanismos de garantia das esferas de autonomia individual e, em certa medida, da própria natureza dessa autonomia. Assim, enquanto a especificidade da teoria do Rechtsstaat consistiria em ter intuído a importância das regras jurídicas no processo de limitação do Estado - - e aí a insistência no princípio da legalidade e na justiça administrativa -, já no caso do Estado constitucional de matriz francesa a tônica seria, antes do mais, colocado nos mecanismos políticos como o controlo [sic] parlamentar e as garantias constitucionais. (Novais, 1987, p. 43/44) 1.2 – A FORMAÇÃO DO ESTADO SOCIAL Diante das teorias que Hobbes, Locke e Montesquieu desenvolveram, o primeiro enfrentando a questão do Poder, Locke colocando a propriedade como algo 28 sagrado que depois acabara por ser transplantado para a Constituição Francesa de 1791 e o terceiro separando os poderes, Rousseau tenta integrar a liberdade e o poder. Nessa acomodação entre ambos (liberdade e poder) Rousseau dá as costas à liberal-democracia capitalista. Aí, segundo Bonavides, temos o início do Estado social. Segundo ele o Contrato Social “como arma de combate, constitui o primeiro incentivo à grande rebelião anticapitalista do Século XX”. (2009, p. 169). Aquilo que Rousseau deu nas linhas políticas no Século XVIII Marx reproduz no Século XX em linhas econômicas. Bonavides ensina neste ponto que O manifesto de Marx reproduz posição de aparente analogia com Rousseau. O Século XIX o desgosta. A Revolução industrial do capitalismo o acabrunha Todas as teorias políticas do seu tempo se lhe afiguram imprestáveis e malogradas. Nem o socialismo utópico o satisfaz, se bem que as premissas críticas deste, de dissidência com as estruturas sociais vigentes, coincidam em grande parte com as do Marxismo, unindo-os numa frente comum: o empenho sempre tenaz de abater a ordem capitalista. Marx era filósofo combativo às idéias do sistema capitalista, seus vícios injustiça e erros. Idealizava a desconstrução do Estado substituindo o governo dos homens pelo governo das coisas, assentando a ditadura do proletariado. Dessa crítica nasce o socialismo científico e começa a se criar as bases do Estado social. Para os teóricos do socialismo, ao capitalismo era atribuída a paternidade de todos os males sociais existentes. O Marxismo, com bases sociológicas, se constrói à medida que se agrava a crise entre trabalho e capital. Neste momento o capital faz uso do liberalismo enquanto a única arma disponível da classe trabalhadora é a violência. É dessa forma que através do panfleto revolucionário denominado Manifesto Comunista Marx tenta mostrar à classe trabalhadora a única solução passível para transformação daquela realidade imposta: a força. O Estado social se constrói nesta esteira: com a sobreposição de uma burguesia sobre a classe trabalhadora com explorações que atingiam ferozmente a 29 dignidade do ser em nome dum liberalismo que entrava em contradição. Elucidativas é a seguinte passagem de Bonavides neste sentido Aquela liberdade conduzia, com efeito, a graves e irreprimíveis situações de arbítrio. Expunha, no domínio econômico, os fracos a sanha dos poderosos. O triste capítulo da primeira fase da revolução industrial, de que foi palco o acidente, evidencia, com a liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica, a que nem a servidão medieval se poderia, com justiça, equiparar. (2009.p. 59) Com isso, expõe o professor paraibano, há uma obrigatória mudança de rumos da filosofia e da sociologia em busca de um meio termo e uma correição nesse liberalismo. Culmina então, esse meio termo, sendo utilizado e incorporado nas constituições democráticas. As liberdades essas foram assim, dentro dos direitos e garantias individuais, enriquecidas de um ganho que foram justamente das conquistas ocorridas na esfera social. Ao tratar do assunto Estado social, Rodriguez usa denominação diferente: Estado liberal social. Para o autor o Estado social nada mais que um Estado liberal remodelado com as mesmas garantias do Estado Liberal acrescidas de direitos sociais. Para o referido autor, o Estado liberal social teve seu desenvolvimento em razão de que muitos liberais da época visualizaram no Aumento de la pobreza, la miséria, el analfabetismo y la enfermedades, el recrudecimiento de las pésimas condiciones de la vida y trabajo, así como el declive econômico ya iniciado a mediados del siglo XIX, ponían em evidencia la creencia liberal –La clásica y, como más adelante veremos, también la neoclásica- de que el desarrollo económico solucionaría por si mismo estos problemas sociales. Fue por ello que defendieron un amplio programa de reformas sociales que aspiraba a forjar un nuevo orden social en el que se diesen las condiciones de vida imprescindibles para la liberación y el desarrollo de las potencialidades de todos los individuos. (…) Contribuyeron con todo ello a perfilar un nuevo liberalismo ‘social’ caracterizado en primer lugar por su interés en distanciarse de buena parte los presupuestos, instrumentos e objetivos del liberalismo clásico dado que para ello estos ya eran abiertamente inservibles para los problemas planteados por la nueva sociedad y economía; y en segundo lugar por una mayor sensibilidad hacia las enormes desigualdades e injusticias que el desarrollo capitalista había generado. (Rodríguez, 2008, p. 16). Essa tentativa de revisão do liberalismo que cria o que o autor denomina liberalismo ‘social’ cria uma corrente nova do liberalismo clássico11 disposta a fazer 11 Essa corrente é representada, segundo o autor por W Bagehot, H. Spencer, B. Croce, L. Von Mises, F. Von Hayek, M y R. Friedman y G. Sartori. 30 contraposição à regulação econômica, à assistência social prestada por este. Segundo afirma Rodriguez esses que representam tal teoria “son portavoces de un liberalismo conservador abiertamente despreocupado con las desigualdades y injusticias sociales y sumamente hostil hacia la creciente intervención del Estado” (2008, p. 17). Já García-Pelayo para quem a formulação da idéia de Estado Social de Direito é de Hermann Heller, o Estado social surge após a separação de poderes proposta pelos autores do liberalismo que revogaram o absolutismo. Ainda surge após o próprio liberalismo entrar em crise em razão da opressão de classe ocorrida pela incongruência da interpretação liberal. Conforme García-Pelayo, Hermann Heller enfrenta a crise da democracia e do Estado de Direito apontando a seguinte solução: A solução não está em renunciar ao Estado de direito. Consiste em dar a ele um conteúdo econômico e social, em realizar, dentro de seus marcos, uma nova ordem laboral e de distribuição de bens: apenas o Estado Social de Direito pode constituir uma alternativa válida frente a anarquia econômica e à ditadura fascista. Por isso só ele pode ser a via política para salvar os valores da civilização. (Heller apud GarciaPelayo, 2009, p. 5). Conforme se extrai das palavras do autor acima reproduzido foi a Constituição mexicana em 1917 seguida da Constituição de Weimar em 1919, além das posteriores Lei Fundamental de Bonn (1949) seguido assim da Constituição espanhola (1978) a trazerem em seu bojo a idéia de Estado social e democrático de Direito. García-Pelayo parece se aproximar do pregado por Rodriguez quando de suas letras se entende que o Estado social tem um significado de tentativa de readaptação do Estado tradicional às condições da civilização industrial e pósindustrial com seus novos e complexos problemas, mas também com suas infinitas possibilidades de enfrentá-lo. Segundo ensina o autor espanhol, esta política de bem estar vem sendo desenvolvida nos países mais adiantados em termos de política social, melhorando as condições de vida das classes menos favorecidas. Afirma García-Pelayo que 31 desde o último terço do século XIX vem se desenvolvendo nos países mais adiantados uma “política social” cujo objetivo imediato é remediar as péssimas condições de vida das camadas mais desamparadas e necessitadas da população. Trata-se assim de uma política setorial não destinada exatamente a transformar a estrutura social, mas a remediar alguns de seus piores efeitos. (2009, p. 6) O autor constrói sua teoria também partindo da idéia de que o início das reformulações do Estado (a criação do Estado social) parte do pós-guerras mundiais, quando então os Estados passam a adotar a política Keynesiana de distribuição e concessão de condições de consumo às classes desfavorecidas e excluídas do mercado. Segundo o autor, no intervalo entre ambas as guerras se instalam os regimes de fascismo que culminam com a segunda grande guerra. Neste ponto há uma reflexão onde se tenta rumar o Estado nem para o extremo de antes, tampouco para o socialismo soviético. A propósito, sobre o socialismo é interessante apontar que ele não aconteceu na Alemanha, França ou Inglaterra, mas na Rússia onde era menos esperado que acontecesse, talvez por isso a distorção da teoria. Note-se que na Rússia houve a construção de um socialismo sem democracia. Isso é o que aponta Santesmases: En La vida de Lênin se tomaron decisiones que afectaron decisivamente a la construcción de un socialismo sin democracia: las ausencias de partidos políticos, la represión de la oposición interna en el seno del partido del bolchevique; la disolución de la asamblea constituyente. (2008, p. 35) Ao contrario de Garcia-pelayo, Santesmases entende que foi a crise da democracia que fez surgir o Nazismo na Alemanha e o Fascismo na Itália. Paralelamente a isso a Espanha vivia uma fase transitória para o republicanismo em razão da crise da Monarquia lá instalada. Mas precisamos ter claro que, embora hajam divergências entre a nominação do Estado social, sua distância com o Estado liberal é latente. Veja que a ordem liberal tem como característica a oposição entre sociedade e Estado, colocando-os em posições contrárias: a primeira se auto-organizando a ponto de suprir todas as suas demandas e o segundo apenas atuando em espaço de não-intervenção tendo apenas uma auto-organização vertical com base na hierarquia e uma determinada burocracia que determinasse seu funcionamento. 32 Já no Estado Social há uma pressão por parte da sociedade para que o Estado interviesse de forma contundente em algumas ordens a fim de adaptar novos valores ao Estado liberal de Direito, nascendo-se assim o Estado social. Aqui consegue-se vislumbrar que Estado e sociedade passam a fazer parte de um subsistema ficando interligados, pois a sociedade não conseguiria avançar sem a presença do Estado em seu meio, assim como o contrário também acontecia. E tal entender acaba por deslocar o pensamento do liberalismo que entendia ser a liberdade a exigência para a dignidade humana, para um pensamento de que esta última só seria alcançada mediante a materialização dos princípios socioeconômicos pelo Estado. Nesse sentido Garcia-Pelayo aponta que com isso, A propriedade individual tem como limite os interesses gerais das comunidade cidadã e dos setores que se dedicam a torná-la produtiva, ou seja, dos trabalhadores em geral. A segurança formal precisa ser acompanhada pela segurança material, que se impõe a necessidade econômica ou contingente através de instituições como o salário mínimo, a estabilidade no emprego, a atenção médica etc. A segurança jurídica e a igualdade perante a lei devem ser complementadas com a segurança de certas condições vitais mínimas e com uma correção das desigualdades econômicosociais. A participação na formação da vontade estatal, por fim, deve ser aperfeiçoada pela participação no produto nacional através de um sistema de prestações sociais e pela participação na democracia interna das organizações e das empresas, que se verifica por meio de métodos como o controle obreiro, a co-gestão ou auto gestão. (2009, p. 14) E o Estado, neste contexto acaba por se transformar num Estado que, para incorporar os direitos de segunda geração e materializar a dignidade através de direitos, gerencia a implantação de formas estatais que auxiliem na transformação de uma sociedade mais igualitária. E o que significa esse gerenciamento para transformação em sociedade mais igualitária? Garcia-Pelayo responde apontando três conseqüências desta transformação do Estado em Estado manager. A primeira calcada na participação nas políticas institucionalizadas pelo Estado. Assim, o cidadão terá um direito de participação no Estado de bem-estar. No Estado democrático burguês, por meio do processo eleitoral, os cidadãos participam da formação da vontade do Estado, centrada no parlamento e expressada especialmente através das leis. No estado social, a essa participação por parte dos cidadãos se une o direito à participação mais ou menos institucionalizada nas prestações do Estado, um direito a participação no bem-estar gerado pela ação estatal e nas oportunidades proporcionadas pela criação de um adequado ambiente 33 econômico. Isso implica a implantação de novas formas de democracia econômica e social... (2009, p. 26) Outra conseqüência apontada pelo jurista hispânico é o enfraquecimento do Poder legislativo que, não tendo a disposição sobre os valores e tampouco a tecnicidade do executivo para implementar certas políticas de bem-estar, acaba por ter sua função legislativa na votação e escolha de políticas públicas suprimidas pelas forças dos decretos executivos hoje espalhados nos Estados democráticos, como é o caso do Brasil, por exemplo, através da Medida provisória. A terceira conseqüência apontada pelo espanhol, não menos importante que as anteriores, é o fato que o cidadão perdeu sua voz quando clama solitariamente. Este novo Estado encontra-se preso a organizações que influenciam a política, os partidos, e também são influenciados por ela. Dessa maneira, a terceira conseqüência advinda deste estado é justamente a mudança do foco do estado que antes olhava o cidadão isoladamente e agora o vê como membro de uma organização a qual este esteja reivindicando algo do Estado. Mas o Estado social em sua evolução passa a não ter a responsabilidade de tão somente criar condições econômicas favoráveis a um bom ambiente econômico. Aí nasce o walfare state com intervenção do Estado na prestação de serviços sociais de forma distributiva, oportunizando assim aos menos desafortunados a possibilidade de igualdade em relação a certos critérios de cidadania como educação, cultura, saúde, etc. 1.3 - A CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL Não é difícil entender que com a implementação do Welfare state e o conseqüente alargamento das funções do Estado social, com a mudança de paradigmas e focos dos agentes estatais, o Estado de bem-estar social, antes estado manager, passa a ficar sobrecarregado a partir da adoção das políticas keynesianas. Para que não nos passe despercebido, antes de falarmos na crise, por óbvio, vamos tecer considerações acerca do próprio estado de bem-estar social que não se 34 confunde com o estado social. Nesta esteira, imperioso trazer a baila a figura de Keynes, tanto na economia como na política. Seria pretensão em demasia querermos resumir um autor tão importante do século passado em parágrafos, mas tocaremos em pontos específicos que nos interessam para este trabalho. Keynes, economista inglês que vive entre o final do século XIX e metade do século XX, cria um princípio de correspondência global entre crescimento e igualdade de um estado econômica e socialmente ativo. Keynes situa seu trabalho12 num contexto da crise que assolava os anos 30. Nele conclui que o desemprego provém da insuficiência combinada de consumo e de investimentos. Defendia, portanto, que o estado desempenhasse um papel de estimulo a essas duas funções direta (despesas públicas) ou indiretamente (política fiscal e de crédito, dentre outras). Também aponta a taxa de juros como meio de se alcançar um estado de satisfação. As idéias de Keynes de que uma democracia capitalista organizaria despesas suficientes para realizar suas teses na prática, segundo ele mesmo, eram impossíveis de acontecer, a não ser que uma guerra acontecesse (Rosanvallon, 1984, 42). Pois casualmente foi a partir da segunda grande guerra que as políticas Keynesianas passaram a ser aplicadas. Ao contrário de Marx segundo o qual capital e trabalho são expressões que só terão convivência com uma das partes vencida, Keynes associa ambos os elementos colocando o Estado na função interventora de transformação social através da ingerência na economia. As idéias de Keynes foram os alicerces para Roosvelt13 enfrentar a grande crise econômica de 1929, auxiliando assim os Estados Unidos a transpor a grave crise, principalmente através da intervenção do estado na economia segundo noticia Rosanvallon (1984, p.42). 12 "Economic possibilities for our grandchildren". In: Essays in persuasion. Nova York: Classic House Books, [1930]. 13 Franklin Delano Roosvelt foi presidente dos Estados Unidos entre 1933 e 1945 ficando conhecido por ter enfrentado a grande crise econômica de 1930 com políticas Keynesianas 35 Já na Europa o estado social teve várias fases antes de chegar a ser propriamente um estado de bem-estar. Santesmases explica que o Estado social europeu sofreu mudanças entre 1945 e 2001. Para o autor El socialismo no se puede entender sin tener em cuenta y esta ha cambiado una vez más en 2001. Si en 14 sufrió el hecatombe y en 33 la aparición del monstruo del fascismo; si en el 45 si iniciaron los mejores años (la época dorada) y a partir del 68 llegó la hora de una nueva generación; si el 89 fue el momento el momento de la caída del comunismo y la emergencia de la gran contrarrevolución conservadora ¿que ha ocurrido a partir del 2001? (2008, p. 45) Como um rito de desenvolvimento natural, a humanidade, assim como os seus sistemas, evoluem para na maioria das vezes experimentando os extremos, atingirem seus meio-termos e seguirem no seu caminho infindável de desenvolvimento. O Sistema jurídico, como um subproduto do estado, não poderia ser diferente. É um sistema que ao passar dos anos evolui e traz consigo mudanças sociais fundamentais para o próprio desenvolvimento humano. Neste sentido interessante é a conclusão de Rosa segundo o qual Assim é que a marcha da história nos ensina que as normas jurídicas sempre acompanharam as modificações, em um processo de harmonização do particular com as demais partes do geral, processo esse em que, naturalmente, cada setor influi os demais e no todo. A evolução das instituições jurídicas tem obedecido essa regra e os exemplos recentes, no século XX, são ricos em lições a respeito. As observações dos sistemas contemporâneos de direito mostra de ramificações novas, especializações que surgiram da diversificação crescente das atividades sociais, ou da pujança de certos setores de grandes riquezas. (2009, p. 26) Num momento anterior o mundo sai de uma condição onde simplesmente a pessoa humana é relegada a um status secundário (Estado liberal), colocando-se o capital em primeira ordem e vem a revolução. Com ela mudanças com a tomada do poder pelo terceiro estado colocando a pessoa humana em posição de destaque contra o capital (Estado social). As guerras mundiais desencadearam novamente um redesenho do estado social para que este assegure uma rede de proteção social (Estado de bem-estar social), desta vez fazendo-se uso do sistema jurídico através do constitucionalismo. Hoje assistimos a um Estado social interventor (Estado social de bem-estar ou Estado de bem-estar social), que não só interfere na economia, mas que olhando como foco a pessoa humana procura endereçar a ela sua ótica de funcionamento. 36 Esse é o rosto atual do Estado social. Acontece que, em razão das inúmeras seguranças que esta forma de Estado procura doar a pessoa, objeto central do seu agir, acabamos por ver o Estado numa situação de insuficiência em razão das demandas crescentes e da complexidade atual da sociedade. Tão logo implementado o Estado social com objetivo claro de equilibrar as relações - essencialmente no que tange a exploração no trabalho-, este com o passar do tempo redesenhou-se para assumir papéis essenciais na implementação da igualdade. Nele passou a serem assegurados vários outros direitos de cunho prestativo por parte do Estado com o finco de diminuir as desigualdades baseado na idéia de Keynes. O Estado de bem-estar foi um aprimoramento do Estado social porque este tão só não fora suficiente para diminuir o fosso das desigualdades e, ao adotar-se as políticas keynesianas ao Estado social fazendo-o tornar-se o Estado social e de bem-estar, a igualdade passa a ter no Estado seu maior promotor. Embora o Estado de bem-estar hoje enfrente crises por não fazer frente a tantas demandas, seja em razão do grande crescimento populacional mundial, seja em razão do crescimento das demandas sociais e tecnológicas, também não pode passar despercebido, como lembra Fiori, que os modelos de welfare state, diferenciam-se uns dos outros pela forma de financiamento, extensão de seus serviços, pelo peso do setor públicos, forma de organização institucional, etc. Conforme o autor Se a investigação mais recente permitiu – como sempre na hora em que a coruja já levantou seu vôo – esclarecer a complexa rede de determinações econômicas, ideológicas e políticas que definem e diferenciam o Estado de Bem-Estar Social contemporâneo dos sistemas anteriores de organização das políticas sociais governamentais, ela também explicitou melhor as diferenças que separam as várias experiências do mesmo welfare state. Já não cabe a menor dúvida, por exemplo, de que o modelo norte americano tem muito pouco a ver com o modelo nórdico, e este pouco com o da Europa continental, e de todos eles com o Japão. Para não falar de sua diferença com o welfare que foi sendo construído em algumas periferias capitalistas, em particular no caso latino americano. Para dar conta desta nova dispersão, vários autores construíram, nestes últimos anos tipologias que tentam aglutinar as várias experiências em alguns padrões básicos, diferenciados por sua forma de financiamento, pela extensão de seus serviços, pelo peso do setor público, pelo seu grau de sensibilidade aos sistemas políticos, pela sua força de organização institucional (Fiori, p. 135) 37 A este propósito, inclusive, são pontuais as observações de Pochmann quando indica um grau diferenciado de bem-estar nos Estados do centro do capitalismo e naqueles que denomina “de periferia”. Segundo aponta o referido autor no Estado de bem-estar implementado na Europa Ocidental as políticas foram de natureza redistributivas (justiça tributária e transferências sociais); enquanto a experiência norte-americana usou do sistema educacional e da regulação do patrimônio e do fluxo de renda (imposto de renda negativo) (2004). No artigo que intitula Proteção social na periferia do capitalismo: considerações sobre o Brasil, o autor aponta que, após a implementação do Estado de bem-estar social este foi responsável em alguns países europeus e nos Estados Unidos pela redução considerável do nível de pobreza das pessoas (2004). Todavia, conforme explica, o Estado de bem-estar implementado, após quase três décadas de sucesso na redistribuição da riqueza e conseqüente diminuição da pobreza, entrou no “olho do furacão” enfrentando obstáculos provenientes do centro do capitalismo. Para o autor ante de um novo ambiente econômico marcado pela profunda desregulação da concorrência intercapitalista e por modificações importantes na base tecnológica, em meio ao predomínio das altas finanças, o Estado de Bem-Estar Social passou a ser questionado a partir da crise do final dos anos 70. (2004) Ainda para o autor, algumas podem ser as causas que podem ser apontadas como responsáveis pela crise deste Estado de bem-estar: De um lado, o baixo crescimento econômico veio a obstaculizar a continuidade do pleno emprego, assim como as transformações no padrão produtivo inocularam novas formas de trabalho, muitas à margem das contratações coletivas ou legislações existentes. A perda relativa de importância do emprego industrial, envolvida numa outra lógica de produção em redes mundiais, fragilizou compromissos sociais entre empregados e patrões, comprometendo as bases da sociedade salarial e esvaziando o conteúdo dos regimes democráticos. Ademais, o ambiente de flexibilização dos mercados de trabalho voltou a favorecer a maior desigualdade de renda, surgida de uma nova condição de pobreza e do desemprego, negando a integração social e a homogeneidade no padrão de consumo constituídos a partir do fim da II Guerra Mundial. Não é coincidência que as várias reformas realizadas pelas forças das políticas, a partir do ideário neoliberal, procuraram desviar o papel do Estado de Bem-Estar Social. (2004) 38 Segundo assinala Jerez (2005) há uma série de problemas do Estado social que levam-no a se tornar uma forma estatal carente de alterações. Dentre os problemas apontados pelo autor está a hiperjuridificação negativa, a relação do risco e do modelo de seguridade social, crise de legitimidade dentre outros. Essa crise foi deflagrada, segundo aponta o autor, porque el Estado social asumió como tarea la amortiguación de los desequilibrios sociales a través de la redistribución de rentas con lo cual agigantó la legitimidad entre las masas mediante el aseguramiento de mínimos de subsistencia y bienestar, pero al mismo tiempo le creó riesgos, pues lo mando por el atajo de la multiplicidad de funciones con lo que el aparato del Estado de hizo omnipresente con la consecuente carga del sistema político de que hablaba Luhmann. (2005, p.81) O autor colombiano descreve que a partir do aumento das demandas da sociedade faz necessária a presença estatal para intervir em prestações sociais que aumentam em demasia o custo do Estado social que leva consigo uma conseqüente crise econômica e mesmo de legitimação deste Estado de bem-estar14. Segundo opina, “La deslegitimación alcanza niveles preocupantes analizando el proceso de despolitización actual en las capas de la población más joven” (2005, p. 83) Inteligentemente ainda o autor pontua que o fornecimento de uma gana enorme de benefícios desta formulação de Estado social acaba por encontrar uma reação natural de acomodação nas pessoas. Segundo aponta “muchos ciudadanos encontrarán más cómodo vivir de los subsidios que de su esfuerzo personal, con lo cual queda destruida la ética del trabajo” (2005, p. 83) Podemos chegar a conclusão com tais idéias que ampliação da base de representação através do sufrágio, por onde atualmente podem adentrar as portas do parlamento pessoas provenientes das classes menos favorecidas, faz com que o Parlamento, antes órgão responsável pela frenagem dos gastos públicos, agora se torne o responsável pela ampliação desta forma de Estado beneficiador e com isso preste auxílio a crise financeira desta forma Estatal. 14 A nós o estado de bem-estar social e o estado social são tomados como sinônimos. 39 A questão que levantamos é a seguinte: se o remédio usado para a transformação do Estado social não fosse o Estado de bem-estar, haveria outra forma de remodelar-se o Estado social? Rosvallon, aposta numa renovação da idéia de solidariedade a fim de que se alcance os objetivos de uma sociedade mais justa. Se a prática distributiva e a intervenção do Estado na economia não fossem adotadas e à insuficiência do Estado social fosse dado outro remédio, teríamos claramente hoje duas figuras claras: uma que nos daria a imagem de um Estado (welfare state) que não estaria enfrentando crises e outra que talvez tivesse dado outra solução a crise do Estado social distinta da intervenção estatal. Assim, entendemos que a remodelação do Estado social em welfare state trouxe consigo uma crise que ultrapassa em muito a fronteira do financeiro, para se tornar uma institucional do Estado, de representação porque na atualidade o capital continua a determinar os rumos estatais. Giddens (2001) quando aponta a terceira via como solução aos problemas que seria o próprio Estado de bem-estar, acaba por demonstrar as suas próprias crises enumerando dentre elas a globalização, o individualismo, questões ecológicas dentre outras. Sobre cada uma delas o autor se faz perguntas: quanto a globalização – o que é exatamente e quais implicações tem?; quanto ao individualismo – em que sentido as sociedades tem se tornado mais individualistas?; Quanto a questões ecológicas – como deveria ser integrado tais questões a social-democracia? (2001, p. 37-38). Dessa forma, pouco são as respostas e ainda inúmeras são as perguntas de como transpor esse Estado de bem-estar em seu auge de crise. Uns propõe a social democracia15 que por si só acreditamos não ter força para reagir com o capital e com o individualismo. Outros, por sua vez, propõe uma volta ao comunitarismo e a solidariedade16 o que pensamos que por si só não seja suficiente para tanto, uma 15 16 Dentre eles o próprio Antony Giddens com a ‘terceira via’. Como Jurgüen Habermas com sua filiação ao Marxismo Cultural. 40 vez que a cultura que molda cada continente é infinitamente diferente, com histórias que se distinguem. Tentar unificá-las a ponto de se produzir uma cultura voltada ao comunitarismo não nos parece ser razoável. Parece que a implementação de direitos sociais como saúde, educação, previdência e assistência, cultura ainda que tenham algum viés negativo sua implementação, são instrumentos aptos a transformar a realidade de maneira a promover a igualdade social e ao desenvolvimento natural da pessoa humana e do Estado, como conseqüência. 1.4 - DO ESTADO DE BEM-ESTA NO BRASIL Para não ficarmos restritos a mencionarmos os caminhos e as crises do Estado em nível que não se aplique a nossa realidade, traremos alguns importantes tópicos sobre o Estado de bem-estar reproduzido no Brasil. Medeiros (2001) define o welfare state em duas passagens de seu texto. Em uma delas, se referindo ao desenvolvimento dessa forma de estado nos países industrializados, é por ele definido como “a mobilização em larga escala do aparelho de Estado em uma sociedade capitalista a fim de executar medidas orientadas diretamente ao bem-estar de sua população” (2001, p. 6). Em outro momento, o mesmo autor refere que o welfare state é uma forma de compensação que se utiliza de políticas de cunho Keynesianos, à insuficiência do mercado em adequar os níveis de oferta e demanda agregada, controlar politicamente as organizações de trabalhadores e capitalistas e estimular a mercantilização da força de trabalho segundo padrões industriais (fordistas), ao administrar alguns dos riscos inerentes a esse tipo de relação de trabalho e ao transferir ao Estado parte das responsabilidades pelos custos de reprodução da força de trabalho. (2001, p. 5) De acordo com o autor, o modo com que se desenvolve o Welfare state no Brasil é diferente daquele em que ocorre nos Estados da Europa e nos Estados Unidos em razão da posição econômica ocupada pelo Brasil se comparado a esses países, bem como por questões históricas. 41 Segundo afirma, é possível que fatores como “o nível de industrialização (ou modernização), a capacidade de mobilização dos trabalhadores, a cultura política de uma nação, a estrutura de coalizões políticas e a autonomia da máquina burocrática em relação ao governo” influenciem na configuração do Estado de bem-estar social tornando-os diferentes de local pra local (Medeiros, 2001, p. 5). Citando trabalhos de outros autores, Medeiros aponta estudos que fazem menção a Europa Ocidental e América do Norte explicando como acontece essa intervenção Keynesiana na economia dizendo que a necessidade de regulação da economia capitalista, por meio de políticas macroeconômicas capazes de garantir um grau razoável de coordenação entre as diversas instituições encarregadas de produzir bens e serviços, em parte, ser realizada pelo welfare state. As diversas políticas sociais, por um lado, aumentam a capacidade de consumo das famílias dos trabalhadores e se traduzem em gasto do governo em habitação, transporte e saneamento, o que incentiva a expansão da demanda agregada e o desenvolvimento tecnológico e, por outro, ao socializarem os custos referentes aos riscos de emprego industrial e à reprodução da força de trabalho, liberam reservas de capital privado para investimentos e garantem uma reserva de mão-de-obra em diversos níveis de qualificação. (2001, p. 6) Além de ser um considerável mecanismo ou instrumento de política macroeconômica como acima descrevemos, o welfare também pode ser utilizado, segundo Medeiros como um mecanismo de regulação de política da sociedade, porque, aduz o welfare “surgiu como mecanismo de controle político das classes trabalhadoras pelas classes capitalistas: a intervenção no processo de barganha limita institucionalmente a capacidade de organização extra-estatal dos trabalhadores”. Segundo ainda informa essa possibilidade de regulação não se exaure na classe trabalhadora, sendo também estendidas aos capitalistas. (2001, p.7) Como é sabido, o Brasil teve peculiaridades, não só históricas, mas econômicas no que tange a realização de sua modelação. País de base econômica basicamente agrário-exportadora até a década de 30, após isso começou o desenvolvimento de seu setor de indústria. Para melhor entender o contexto, elucidativa é a passagem de BresserPereira quando trata deste assunto. Segundo o autor, no Brasil, há uma clara 42 distinção entre épocas da história e domínio político. Num primeiro momento o que se constata é uma burguesia mercantil exportadora que conflita com a pequena burguesia urbana. Deste conflito nasceria então a burguesia industrial e a classe média (tecnoburocratas) como um quadro de industrialização substitutiva de importação e crescimento do aparelho burocrático estatal (Bresser-Pereira, 2007, p. 15/20). Medeiros assevera que, durante o período de industrialização do país usar o welfare como instrumento de demanda agregada era uma possibilidade diminuta. Isso porque, explica, os problemas da superprodução relacionavam-se mais com os comportamentos externos, além de que o objetivo do Welfare brasileiro era o de regular aspectos relacionados a mão-de-obra trabalhadora. os problemas de superprodução estavam muito mais relacionados ao comportamento do setor externo do que a flutuações nos níveis nacionais da demanda e o número restrito de trabalhadores beneficiados limitava a efetividade das políticas como mecanismo de expansão do consumo. No Brasil o Welfare surge a partir de decisões autárquicas e com caráter predominantemente político: regular aspectos relativos à organização dos trabalhadores assalariados dos setores modernos da economia e da burocracia. (2001) Barcellos, por exemplo, menciona que entre 1930 e 1964 é que há a reconstituição dos aspectos jurídicos e institucionais das políticas sociais, quando então acontece a mudança de uma economia agrário-exportadora para a economia urbano-industrial (1983). Neste sentido, esclarecedoras são as ponderações de Medeiros quando afirma que as medidas centralizadoras tiveram o finco de integrar a economia nacional, propiciando leis que reflitam nas condições de trabalho as medidas de centralização das ações estatais promovidas nesse período tiveram o sentido de propiciar a integração da economia nacional e nesse regulamentar os fatores de produção. Da ótica do Welfare State, essa regulamentação se traduz na promulgação de leis referentes às condições de trabalho e à venda da força de trabalho (2001). A partir de 1930, o embrionamento do Welfare brasileiro é infestado também pela prática repressiva ao movimento dos trabalhadores, conforme Barcellos: 43 Até 1937, embora vigorasse no Brasil o Estado de Direito, já começavam a se delinear os tralis autoritários que estariam presentes com uma intensidade variável, no decorrer do período que se estende até 1964. Nesse primeiro momento, o autoritarismo expressava-se fundamentalmente na estrutura corporativista da organização sindical, que começou a ser montada em 1930. O corporativismo, deslocando os conflitos entre capital e trabalho para a esfera do Estado, descaracterizou e obstaculizou a livre manifestação das reivindicações dos trabalhadores (1983, p.11). Para Draibe, o welfare brasileiro também tivera este ponto de partida (década de 1930) no que tange a políticas legislativas que além dos fundos de pensões e aposentadorias, também criou a CLT. Também aponta que aí neste momento principia a centralização no executivo federal de políticas voltadas à saúde e educação. Vejamos: A produção legislativa a que se refere o período 1930/1943 é fundamentalmente a que diz respeito à criação dos institutos de aposentadorias e pensões, de um lado, e de outro, a relativa à legislação trabalhista, consolidada em 1943. Se essa é, de fato, a inovação mais importante, o período é também fértil em alterações nas áreas de política de saúde e de educação, onde se manifestam elevados graus de “nacionalização” das políticas sob a forma de centralização das políticas sob a forma de centralização no Executivo Federal, de recursos e de instrumentos institucionais e administrativos e resguardos de algumas competências típicas da organização federativa do país (1989,p.8). Mas não se pode olvidar que as políticas criadas foram de caráter eminentemente urbano, quer dizer, limitando a implementação de uma maior igualdade apenas no meio industrializado, para assim não ferir os interesses das oligarquias rurais que detinham forte poder político naquele momento. Segundo aponta Medeiros os “excluídos”, com a expansão da industria, passam a ser inseridos nas políticas destinadas aos trabalhadores urbanos Como a institucionalização do Welfare State no Brasil teve como meta a regulação da força de trabalho em uma indústria de dimensões limitadas, apenas os grupos pertencentes ao núcleo capitalista da economia fizeram parte do compromisso. A base da exclusão dos demais grupos é a satisfação da demanda por força de trabalho (mercadoria do sistema). À medida que a indústria se expande e demanda maior volume de trabalho, aumenta a inclusão de grupos sociais na história do Welfare State brasileiro, independentemente do regime político, como se observa nas décadas subseqüentes à de 1930 (Medeiros, 2001). Por sua vez, entre 1945 e 1964, informa o mesmo autor que poucas foram as mudanças do welfare brasileiro nesta fase populista de governo. Segundo afirma Medeiros, este período é um momento em que o país se volta muito mais a 44 instituição de instrumentos legais voltados a um funcionamento de um governo mais democrático. Barcellos inclusive sugere que as mudanças exigiram a ampliação do Estado para fazer frente a uma concentração urbana e modernização do país: “Em relação à Previdência Social, os problemas da unificação administrativa, da universalização e da uniformização de benefícios e serviços constituíram-se na tônica do período; na área da saúde, estiveram em evidência as questões ligadas ao combate às doenças de massa e à ampliação da assistência médica; no setor trabalho, as lutas sindicais e a política salarial mobilizaram as atenções dos poderes públicos; no que diz respeito à educação, foram a democratização do ensino e a qualificação profissional os aspectos que assumiram maior relevância; finalmente, a constatação da existência de um expressivo déficit habitacional fez com que a habitação passasse a ser encarada também como uma questão social” [Barcellos, 1983, p. 89]. Como fruto de institucionalização e clientelismo, era esperável que com essas políticas fossem beneficiados (pelo Estado de bem-estar brasileiro) grupos determinados. Malloy inclusive se inclina a dizer que havia uma limitação de grupos atendidos, havendo por parte da seguridade social muito mais uma redistribuição horizontal que vertical. Além da limitação em termos dos grupos atendidos, a seguridade social baseava-se mais em um sistema de redistribuição horizontal (entre indivíduos de um mesmo grupo) do que de redistribuição vertical (entre diferentes grupos). Uma das razões para isso eram os critérios de elegibilidade e provisão de benefícios. Uma parte significativa dos programas (em especial os que não possuíam caráter assistencialista) pressupunha a concessão de benefícios na medida da contribuição prévia para o sistema, tratando-se, obviamente, de um mecanismo incapaz de romper a inércia das desigualdades” [Malloy, 1979, p. 108]. Entre a década de meados de 1960 e a década seguinte o país passa por forte período repressivo de domínio por militares e que insistem numa política assistencialista e de clientelismo. Barcellos afirma que nesta época Os governos militares iniciados em 1964 inauguram a fase de consolidação do sistema, acompanhada por profundas alterações na estrutura institucional e financeira das políticas sociais, que vai de meados da década de 1960 a meados da década seguinte. Nesse período, são implementadas políticas de massa de cobertura relativamente ampla, mediante a organização de sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados de provisão de serviços sociais básicos. Baseados em um regime fortemente repressivo, os governos militares restauram muitas das tradições corporativistas do Estado Novo.(Medeiros apud Barcellos, 1983). 45 Nesta época, o welfare brasileiro perdeu o caráter populista para assumir duas linhas distintas: uma de caráter compensatório, (baseada em políticas assistencialistas que objetivavam minorar os impactos das desigualdades crescentes provocadas pela aceleração do desenvolvimento capitalista) e outra de caráter produtivista (encarregada de formular políticas sociais visando contribuir com o processo de crescimento econômico) ( Medeiros, 2001). De acordo com Martine, havia coordenação entre políticas sociais e econômicas neste período. Segundo informações do autor Os recursos que circulavam pela área social passaram a ser estreitamente articulados com a política econômica, sendo subordinados, em várias áreas, ao critério da racionalidade econômica. A iniciativa privada foi, assim, estimulada a assumir importantes fatias dos setores de habitação, educação, saúde, previdência e alimentação. Com essas inovações, a política social passou, inclusive, a ser um dinamizador importante da iniciativa privada” [Martine, 1989, p. 100]. Conforme podemos analisar nos autores acima, no welfare state brasileiro, mesmo após a década de 80, poucos foram os avanços no Brasil para sua construção, principalmente em razão da centralização política e financeira em nível federal e uso com fins clientelísticos e políticos das políticas sociais, além é claro de se trabalhar de uma forma emergencial para sanar determinadas demandas, não fazendo assim da construção do welfare state no Brasil um verdadeiro objetivo a longo prazo. É comum vermos em nossos dias políticas sociais sendo usados de forma partidária e com finco meramente eleitoreiro. Mesmo que de acordo com as palavras de Medeiros tenham havido mudanças no welfare brasileiro, estas ainda não estão aptas a fazermos crer que as inovações trazidas possam cumprir os objetivos buscados de um desenvolvimento de uma sociedade brasileira mais igualitária. De acordo com o autor A descentralização das políticas, a articulação de fato entre os diversos programas e a parceria entre governo e movimentos sociais foram inovações que permitiram redução das práticas clientelistas, distanciamento das políticas assistenciais e continuidade dos programas. A introdução de critérios de delimitação territorial do público-alvo, aliados aos de renda, permitiram melhor focalização dos beneficiários. (Medeiros, 2001) 46 Além desses problemas apontados, também podemos citar como problema crônico da construção de um Estado de bem-estar social no Brasil a mudança de rumos políticos, própria da democracia. À medida que mudam governos, essencialmente se falando em nível federal para nós, em razão de que a concentração das políticas públicas sociais está nesta esfera, esvaziam-se programas que serviram a um governo e que a outro não serve. Assim, temos que necessária uma continuação no desenvolvimento do Welfare State, sendo este possível através do que pretendemos chamar de uso mitigado do Princípio da proibição do retrocesso social. Mas enquanto isso não acontece – ao menos não de forma clara pelo STF em seu pleno - assistimos de camarote o país esbarrar na tentativa de fazer com que a concentração de renda, pobreza, além da miséria, focos do welfare, sejam reduzidas a ponto de se construir um modelo em que a igualdade deixe de ser formal para se tornar material. A constituição deve deixar de ser para os governantes mera letra de lei para se tornar fonte de política pública sempre com o finco de dar a máxima efetividade aos direitos sociais, procurando sempre o avanço e jamais o retrocesso, pois este não representa tão somente cortes em orçamentos, mas afronta direta aos objetivos propostos pelo Constituinte originário de erradicação das desigualdades, promoção da cidadania e promoção da dignidade humana. 47 2. OS DIREITOS SOCIAIS NA PROMOÇÃO DA CIDADANIA: A REALIDADE BRASILEIRA 2.1 - OS DIREITOS SOCIAIS E UM PROJETO DE DESENVOLVIMENTO Os direitos sociais, na promoção da cidadania, esta compreendida sob a ótica de Marshall, tem papel fundamental, pois o Estado naquilo que lhe cabe promove a igualdade entre os desiguais gerando equivalência dos pontos de partida. Isso faz com que o projeto de desenvolvimento de um Estado passe diretamente pelo promoção de direitos sociais que coloquem as pessoas, num ponto de partida, numa situação de equivalência. Primeiramente, há necessidade de conceituarmos desenvolvimento. É importante termos claro que, para este trabalho, não levamos em conta a palavra desenvolvimento vista de forma estreita (como baseado no produto nacional bruto, na industrialização), mas sim consideramos desenvolvimento como processo mais amplo, de expansão das liberdades humanas elementares. Para tanto, nos servimos de um conceito amplo de liberdade adotado por Sen. Segundo o economista indiano o desenvolvimento deve ser visto como: Um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Nesta abordagem, a expansão da liberdade é considerada (1) o fim primordial e (2) o principal meio de desenvolvimento. Podemos chamá-los, respectivamente, o ‘papel constitutivo’ e o ‘papel instrumental’ da liberdade no desenvolvimento. O papel constitutivo se relaciona-se a importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana. As liberdades substantivas incluem capacidades elementares como por exemplo ter condições de evitar privações como fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão etc. Nessa perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve expansão dessas e de outras liberdades básicas: é o processo de expansão das liberdades humanas, e sua avaliação tem de basear-se nessa consideração. (2000, p. 52, 53) Projeto de desenvolvimento econômico, social, moral de um determinado povo inserido num território, no contexto atual, há a necessidade de implementação de políticas públicas e intervenção estatal (Keynes), porque o mercado por si só não é capaz de encarregar-se do desenvolvimento sem cometer falhas que resultem em exclusão social. Os direitos sociais - direitos de cunho prestativo do Estado, instituídos para que diretamente ou indiretamente (através de lei que incentive os 48 particulares a uma política distributiva e solidária) promova a igualdade - são os mecanismos mais conhecidos da atualidade para a realização dessa função. A não instituição dessas políticas prestativas com finalidades distributivas e igualitárias (materialmente falando) deixa a mercê algumas classes sociais menos privilegiadas causando a sua exclusão dum contexto de cidadania. O termo exclusão social, segundo informa Silva, na Europa, especialmente na França tem sido objeto de debate17. Em nossa leitura não pretendemos adentrar no assunto sobre a melhor terminologia; entenderemos como exclusão social o movimento de classes que, em razão do sistema de acumulação de capital, colocam algumas delas em situações desprecavidas de condições mínimas existenciais. Como mencionamos anteriormente, o welfare state brasileiro teve inicio na década de 1930. A partir de então, passamos por períodos de governos populistas e militares até a implementação plena da democracia com a promulgação da Constituição Federal de 1988, onde a construção do Estado de Bem-Estar brasileiro passou a ser um objetivo da Constituição do país. Tanto é assim que os brasileiros encarregados da discussão e elaboração da mesma optaram pela idéia de construí-la sobre as bases da doutrina do dirigismo constitucional, enumerando promessas na constituição que visaram, quiçá, a vinculação do legislador à constituição programática e dirigente que Joaquim Gomes 17 Sobre a exclusão social, entende que esse conceito está no centro do debate social e político Europeu. Substitui-se o termo exclusão social pela categoria "nova pobreza" nos anos 1980, novamente substituída pela categoria “exclusão social” nos anos 1990, em especial, na França. O autor propõe o termo "desqualificação social" para uma compreensão mais adequada do que vem sendo denominado de “exclusão social”. Isso porque no contexto europeu as classes que necessitam da assistência sentem-se humilhadas porque se cria um rótulo negativo sobre essas pessoas, na condição de fracassados porque já conheceram situações melhores. Assim, Paugan (1999, p. 63) compreende a desqualificação social naquele contexto como o "processo de expulsão do mercado de trabalho e as experiências vividas em relação com a assistência que os acompanham em diferentes fases". Já Castel propõe uso do conceito de exclusão pelo que denomina de "desfiliação social" para designar o desfecho do processo de transição da integração para a vulnerabilidade. (Silva, 2010). Esse último nos parece ser adequado para utilizar como sinônimo neste trabalho. 49 Canotilho havia defendido em 1982 em sua tese de doutoramento voltada à Constituição Portuguesa. A tese do autor Coimbrense em Portugal surge com o propósito de dar respostas a Constituição Portuguesa de 1976 que incorporou grandes conquistas e valores profundamente democráticos, bem como com intuito de modificar a realidade social portuguesa da época. Em meio à necessidade de dar aplicabilidade às normas da Constituição daquele país que previa tarefas a serem cumpridas pelos três poderes definindo prioridades, é que se desenvolveu o pensamento da tese de doutoramento do autor coimbrense. Defendia uma vinculação direta do legislador ordinário para assim trazer ao Documento Maior a efetividade que o constituinte originário havia buscado com as normas primárias. Com esse trabalho, Canotilho contribuiu significativamente para a discussão sobre a vinculação do legislador com a finalidade Constitucional. A obra de caráter inédito acabou se tornando uma obra de indispensável estudo e de inquestionável importância, além de que foi seguida por países com direções constitucionais, como foi o caso da Constituinte Brasileira. Não nos passa despercebido que, atualmente, o mesmo autor tenha revisto sua obra para aplicar à tese da Constituição dirigente um constitucionalismo moralmente reflexivo. Canotilho em sua revisão da obra entende que por si só a Constituição não é capaz de conduzir um Estado e Povo num determinado território18 a um destino idealizado para uma transformação radical, tão somente através do positivismo jurídico, como pretendia a constituição dirigente. 18 Segundo o autor essas expressões também estão sendo alvo de afronte pela ‘pós-modernidade’. “Em crise estão muitos dos "vocábulos designantes"-"Constituição", "Estado", "Lei", "Democracia", "Direitos Humanos", "Soberania", "Nação"-que acompanharam, desde o início, a viagem do constitucionalismo. Começar o Curso por algumas dessas palavras viajantes significa não só apresentar aos alunos alguns dos core terms ("conceitos centrais") da nossa disciplina, mas, também, confrontá-los com os novos "arquétipos", os novos "discursos" e os novos "mitos" do universo político” (1993, p. 11/12) 50 Através de um documento escrito concebido como produto da razão que organiza o mundo, iluminando-o e iluminando-se a si mesma, pretendia-se também converter a lei escrita (= lei constitucional) em instrumento jurídico de constituição da sociedade. As coisas colocam-se, para os juristas pós-modernos, em termos substancialmente diferentes. A ideia de constituição como "centro" de um conjunto normativo "activo" e "finalístico", regulador e directivo da sociedade, é posta em causa de várias formas. Em primeiro lugar, assinalam-se os limites da regulação dos problemas sociais, económicos e políticos através do direito. O "direito só regula a sociedade, organizando-se a si mesmo" (TEUBNER). Isto significa que o direito — desde logo, o direito constitucional — é, não um direito activo, dirigente e projectante, mas um direito reflexivo auto--limitado ao estabelecimento de processos de informação e de mecanismos redutores de interferências entre vários sistemas autónomos da sociedade (jurídico, económico, social e cultural). Por isso se diz que o direito, hoje, — o direito constitucional pós-moderno — é um direito pós-intervencionista (= processualizado", "dessubstantivádo", "neo--corporativo", "ecológico", "medial").(Canotilho, 1993, p. 13) O autor situa seu posicionamento acerca da Constituição como a mesma deixando de ser um ‘pacto fundador e legitimador de uma ação prática racionalmente transformadora’ e um processo histórico de emancipação da sociedade (1993, p. 14). Na atualidade, Canotilho, usando do conceito de Teubner, descreve Constituição como um estatuto reflexivo que, através de certos procedimentos, do apelo a autoregulações, de sugestões no sentido da evolução político-social, permite a existência de uma pluralidade de opções políticas, a compatibilização dos dissen-sos, a possibilidade de vários jogos políticos, a garantia da mudança |através da construção de rupturas (TEUBNER, LADEUR apud1993, p. 14). Contudo, o autor adota o conceito moderno de Constituição em sua obra, com a ressalva da constitucionalização da programação da verdade: A posição que se vai adoptar neste Curso é ainda a da modernidade. Acredita-se na consciência projectante dos homens e na força conformadora do direito, mas relativiza-se "a constitucionalização da programação da verdade "(cfr. infra, Parte I, Caps. 2Q/B, 3fi e 4Q/C e D). Eis aqui uma premissa importante de muitos dos desenvolvimentos subsequentes: à constituição de um Estado de direito democrático terá de continuar a solicitar-se uma melhor organização da relação homem-mundo e das relações intersubjectivas (entre e com os homens) segundo um projecto-quadro de "estruturas básicas da justiça" (J. RAWLS), moldado em termos de uma racionalidade comunicativa selectiva (HABERMAS). (Canotilho, 1993, p. 14) Dentro dessa ótica moderna de Constituição, nossa Constituição de 1988 construída sobre o pilar do dirigismo constitucional de Canotilho ainda não revisto, trouxe promessas de significativos avanços rumando a construção de uma sociedade mais igualitária, traçando um projeto de desenvolvimento que incluíam direitos sociais como forma de sua promoção. 51 Prova concreta disso são os artigos constitucionais 3º, 7º 21419, dentre outros que deixam clara a intenção da Constituição em ser o impulsionador de um projeto de desenvolvimento através da aplicação política voltada aos direitos sociais. Havia a intenção de que a Constituição dirigente de 1988 alterasse uma cultura até então implementada; que desse ao povo os direitos que lhe eram usurpados pelo descompromisso das elites governantes com a construção dum País menos excludente. No decorrer destes mais de 20 anos de Democracia e Constituição alternamos momentos de investimentos maiores e menores no social, contudo, durante este tempo os direitos sociais descritos nos artigos primeiros da nossa Constituição se mantiveram intactos, talvez, pela idéia de quem defenda que por força do parágrafo 4º do artigo 60 da C.F. esses direitos se tornem imutáveis 20, ou 19 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: I - erradicação do analfabetismo; II - universalização do atendimento escolar; III - melhoria da qualidade do ensino; IV - formação para o trabalho; V - promoção humanística, científica e tecnológica do País. VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto. 20 Nesta linha Ingo Wolfgang Sarlet in A Eficácia dos Direitos Fundamentais e Paulo Bonavides. Segundo o último autor “... não há distinção de grau nem de valor entre os direitos sociais e os direitos individuais. No que tange à liberdade, ambas as modalidades são elementos de um bem maior já referido, sem o qual tampouco se torna efetiva a proteção constitucional: a dignidade da pessoa humana” (2004, p. 642-643). 52 porque com o amadurecimento político, aqueles que hoje governam, o fazem com olhos fixos aos incisos II e III do artigo 1º da Carta maior21. A cidadania e o desenvolvimento que se pretendia com a Constituição de 1988 enfocavam o retorno dos direitos de cunho negativo, das liberdades individuais cassadas durante o período ditatorial; mas também em grande dose focavam a um projeto social com a manutenção e até o alargamento dos direitos sociais. Atualmente, após duas décadas de democracia já podemos ousar chamá-la de madura, já que ocasionalmente vemos pontuais casos de liberdades desrespeitadas pois a idéia de respeito às liberdades individuais parecem estar solidificadas. Contudo, os direitos sociais, conquanto estejam previstos na constituição e nas leis, ainda carecem em muito de implementação, essencialmente aqueles que o constituinte escolheu fossem a direção constitucional. Note-se que tanto o letrado quanto o analfabeto, no que tange a liberdade de expressão e ao direito de propriedade – ambos direitos ligados a liberdade (de manifestar o pensamento e adquirir bens), por exemplo, tem o direito igualado hoje no país. Contudo, a falta de condições materiais e a desinformação dos desafortunados, local onde o Estado age através dos direitos positivos (sociais), é que o tornam desiguais, não permitindo que usem da sua liberdade de expressão (liberdade de cunho negativo) e da sua propriedade da mesma forma. Isso nos faz pensar que, em muitos casos os direitos sociais são tão importantes para si mesmo como para os direitos de primeira geração, pois o gozo e a fruição dos primeiros passam pelo desenvolvimento da pessoa através do fornecimento pelo Estado dos direitos de segunda geração. Não é demais lembrar que o período anterior à Constituição de 1988, não tinha um projeto de cidadania para sua população abrangendo direitos sociais e objetivos a se buscar através da Constituição (dirigismo constitucional). 21 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – (...); II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; 53 Nossa primeira Constituição, de 1824, fortalecia o poder do imperador com o modelo de repartição quadripartita de Benjamin Constant e não igualava as pessoas, pois o voto era restrito; mesmo assim, havia previsão Constitucional expressa no artigo 179 de direitos civis e liberdades como a de expressão, liberdade religiosa, além da inviolabilidade de domicilio e do direito de propriedade, do princípio da anterioridade da lei penal, do principio da legalidade, da igualdade material perante a lei, dentre outros. Já Constituição de 1891, que sucedeu a Proclamação da República, não previa voto secreto nem o voto feminino (art. 72), contudo rompera com a divisão quadripartita de Benjamin Constant para estabelecer a divisão tripartite de Montesquieu. Assegurou liberdades democráticas, todavia faltou-lhe vinculação com a realidade do País, já que fora uma fusão das Constituições Americana, Argentina e Suíça (SILVA, 2008, p. 72-79). Por sua vez a Constituição de 1934, ao mesmo que trouxe liberdades também concedeu alguns direitos sociais como salário mínimo, dentre outros. Foi a Constituição que mais se aproximou da de 1988. Já a Constituição de 1937, popularmente conhecida como polaca, instituiu o regime ditatorial e cassou liberdades individuais. Segui-se a de 1946 que voltou a abrir aos cidadãos do país as garantias fundamentais de cunho liberal, aproximandose daquela promulgada em 1934. Entre 1964 e 1979 houveram reformas constitucionais, novas Constituições como a de 1967 e 1969 22 que fizeram o País voltar ao regime ditatorial e retroagir em relação aos direitos e liberdades individuais. A análise acima demonstra um fato curioso: direitos de cunho individual não eram concedidos conjuntamente com os direitos sociais; sempre que uma gama se fortalecia a outra sofria enfraquecimento, exceto nas constituições de 1934 e 1946 Pondera José Afonso Silva sobre a “Emenda Constitucional de 1969” que teórica e tecnicamente não se tratou de emenda, mas de nova Constituição. A Emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil. (2008, p.88) 22 54 onde eles apareciam conjuntamente23. Basta ver que foram sucessivas as vezes que enfrentamos o regime ditatorial com limitações das liberdades individuais entre a Proclamação da República (1889) a Constituição de 1988. Uma visão mais aprofundada sobre o assunto pode ser encontrada em Bello. No texto o autor descreve que a cidadania construída no Brasil foi de ‘cima para baixo’ com o refreamento de uma classe pelos governantes da primeira era da República. Segundo o autor, citando Ângela de Castro Gomes a consagração de direitos sociais no Brasil fruto de um processo de barganhas políticas, desencadeado por grupos revoltosos e refreado por Vargas, inicialmente por meio de repressão punitiva e posteriormente através de políticas sociais clientelistas (Gomes, apud Bello 2011, P. 13) Segundo aponta Bello, muito embora desde as primeiras constituições a partir de 1934 estivessem presentes direitos sociais, havia uma discrepância entre o mundo normativo e a facticidade. Conforme aponta Em todo esse processo de reconhecimento dos direitos sociais – sempre presentes, ao menos formalmente, nos textos constitucionais brasileiros (1934, 1937, 1946, 1967/69, 1988) –, a cidadania social recebeu diferentes tratamentos e foi manejada com distintos propósitos. Não obstante, verifica-se uma tônica constante de discrepância entre normatividade e faticidade, evidenciada já em 1872 e intensificada nas últimas décadas do século XX, que demonstra a insuficiência da dimensão jurídica e a necessidade de se criar condições políticas para a concretização desses direitos na prática social. (Bello) Uma vontade constitucional de implementação de um Estado social com um projeto de cidadania crescente assegurado por uma constituição e com observância legal e política de direitos de primeira e segunda geração, somente foi possível ver na Constituinte dirigente de 1987 quando a democracia é retomada definitivamente e então os direitos sociais aparecem casados às liberdades individuais. Neste momento a tese do dirigismo constitucional e a idéia de uma constituição que desse rumos ao futuro brasileiro foi adotada pela Constituinte originária. Na atualidade, os direitos sociais ainda ditam os rumos da igualdade. São 23 Segundo aponta Ferreira Filho, “todas as Constituições brasileiras, sem exceção, enunciaram Declarações de Direitos. As duas primeiras contentaram-se com as liberdades públicas, vistas claramente como limitação de poder. Todas, a partir de 1934, a estas acrescentaram, na ordem econômica, os direitos sociais. A atual, já prevê pelo menos um dos direitos a solidariedade” (Ferreira Filho, 2009, p.99) 55 eles responsáveis por muito daquilo que se vê de melhor no País em termos de projeto de cidadania crescente, com mais igualdade. É importante deixarmos claro que adotamos neste trabalho o conceito de cidadania de Marshall (1967). O autor britânico divide o conceito de cidadania em três elementos indispensáveis para a satisfação do termo: civil, social e político. No elemento civil, o autor entende estarem contidos os direitos de cunho individual, nestes termos: É composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com outros e pelo devido encaminhamento processual. Isto nos mostra que as instituições mais intimamente associadas com os direitos civis são os tribunais de justiça (1967, p. 63) Já no elemento político, o sociólogo ensina que se deva entender aquela gama de direitos De participar do poder político, como membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros do mesmo organismo. As instituições correspondentes são o parlamento e conselhos do governo local. (1967, p. 63). Por fim, o autor denomina como elemento social aqueles direitos que parecem estar mais intimamente ligados ao ideal do welfare state: tudo que vai desde a um mínimo de bem-estar econômico e segurança, ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas com ele são o sistema social e os serviços sociais (1967, p. 63). Nesta esteira, parece que a Constituinte de 1988 ao adotar a idéia de uma Constituição com direções rumo a um Estado social, pretendeu também assegurar aquilo que Marschall em algumas passagens de sua obra denomina como tornar o cidadão um cavalheiro, ou seja, direitos relativos a liberdade, direitos de participação política e direito a condições que lhe permitam um mínimo de vida digna, nesta compreendida o sistema social e os serviços sociais, direitos pranós de segunda geração. 56 Segundo afirma o autor, mesmo através da composição dos três elementos não se conseguiria converter a sociedade em uma sociedade de pessoas iguais porque os desígnios humanos seriam diferentes. Todavia, com a implementação dos três elementos, conseguiríamos tornar o cidadão um cavalheiro: O problema, não é se em última análise, todos os homens serão iguais – certamente que não o serão – mas se o progresso não pode prosseguir firmente, mesmo que vagarosamente, até que, devido a ocupação ao menos, todo o homem será um cavalheiro (1967, p. 59) Para que isso acontecesse, segundo Marshall, seria necessário que o Estado adotasse uma postura que positiva. Afirmava o autor que O Estado teria de fazer algum uso de sua força de coerção, caso seus ideais devessem ser realizados. Deve obrigar as crianças a freqüentarem a escola porque um ignorante não pode apreciar e, portanto, escolher livremente as boas coisas que diferenciam a vida de cavalheiros daquelas classes operárias. Está obrigado a compeli-los e a ajudá-los a tomar o primeiro passo adiante; e está obrigado a ajudálos, se desejarem, a dar muitos passos a frente. (1967, P. 60) Dessa forma, parece que o plano da Constituição de 1988 era esse, ou seja, através dos direitos sociais dos artigos 6º a 11º, assim como aqueles insertos no título VIII com seus capítulos e secções (direito à educação, saúde e desporto; direito à cultura dentre outros) tornar os cidadãos brasileiros capazes de tornarem-se cavalheiros. 2.2 - OS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Os direitos sociais, como se sabe, compõem a segunda geração ou dimensão de direitos na ordem constitucional atual. Na Constituição de 1988 os direitos sociais tem previsão nos artigos 6º ao 11º. Na redação original do Art. 6º não apareciam direitos depois inseridos como o direito à moradia e alimentação, respectivamente incorporados através de emendas em 2000 e 2010. Em razão de que não pretendemos nesse trabalho fazer análises profundas sobre todos os direitos sociais inseridos no texto Constitucional - por entendermos que alguns desses direitos tem maior aptidão a transformação não só da pessoa, mas de uma nação como um todo e pela limitação do próprio trabalho e de seu autor 57 – analisaremos neste ponto alguns desses direitos: educação, trabalho, saúde, previdência e assistência social. O direito à Educação no Brasil, segundo informa Queiroz, tem seu núcleo essencial material contido no título VIII da Constituição, precisamente nos artigos 205 e 208 porque esses artigos, além de identificarem os titulares do direito, traçam objetivos e elencam os entes que devem prestar tal direito. A partir dessas prescrições positivas, identificam-se os titulares do direito, traçam-se os objetivos gerais e superiores da educação, estabelecem-se os princípios informadores do ensino – este visto sob diversas perspectivas (acesso, gestão, qualidade e profissionais da educação) – e elencam-se os entes obrigados à efetivação da educação: a família e o Estado, atribuindo-se a este diretrizes a serem cumpridas. Assim, os arts. 205 a 208 da CF/88 consubstanciam-se na definição da educação e do direito respectivo que o constituinte originário optou. (Queiroz, 2010) Estes dispositivos, que tratam do núcleo do direito à educação, já haviam sofrido modificação com a Emenda 14 que previa a educação fundamental como obrigatória e gratuita, contudo, pela redação da Emenda 59, tiveram novas modificações. As conseqüências advindas de tais modificações são expressas por Queiroz que aduz que após a emenda, as três esferas de ensino (infantil, fundamental e médio) passaram a se tornar direito subjetivo: (infantil, fundamental e médio) Pode-se constatar, a partir do destaque nas citações, que a educação infantil e o ensino médio, componentes, juntamente com o ensino fundamental, da educação 24 básica , passaram a integrar, a nível constitucional, o ensino obrigatório e gratuito. Isto tem grande relevância na efetivação e exigibilidade do direito à educação, pois passam a ser qualificados constitucionalmente como direito público subjetivo (§1º, do art. 208, da CF/88). Dessarte, o titular do direito ao ensino obrigatório e gratuito (infantil, fundamental e médio), por meio do Poder Judiciário, pode constranger o Estado ao cumprimento do dever a ele imposto normativamente e, por conseguinte, ver satisfeita sua pretensão de acesso à educação. Ademais, reforça a eficácia a regra de que a não-oferta ou oferta irregular o ora expandido ensino obrigatório gera responsabilização das autoridades obrigadas a oferecê-lo (§2º, do art. 208, da CF/88) (Queiroz, 2011) A educação, então, após a modificação constitucional dada pela Emenda 59 teve sua obrigatoriedade de prestação pelo Estado. Assim, entre os 4 e os 17 anos de idade, todas as etapas da educação básica (compostas pelo ensino infantil, 24 Nota do autor: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9.394/96): “Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. 58 fundamental e médio) são de obrigatória prestação estatal, tornando-se assim, o núcleo fundamental do direito a educação. Como se nota pelas modificações introduzidas na Constituição, o direito social à educação é um daqueles que a Constituição 1988 pretende que seja um dos motores do desenvolvimento do país para promoção de igualdade. Além da educação, os direitos dos trabalhadores também foi objeto de apreço pela Constituição, visando um ideal de desenvolvimento com igualdade. Conforme aduz Teles (2007), os direitos dos trabalhadores surgem como forma de equilibrar as relações de trabalho, mas também eram usados para designar conquistas relacionadas com a proteção daqueles considerados hipossuficientes: Para estabelecer a igualdade das partes nas relações entre operários e patrões, o termo direito social era utilizado para designar não só os direitos trabalhistas e condições de trabalho, mas, sobretudo, as conquistas relacionadas com a proteção do hipossuficiente (2007, p. 25) Eles estão previstos entre os artigos 7º e 11º da C.F/88. Os direitos dos trabalhadores tem também como finco a observação da construção de uma sociedade mais justa, onde equilibrem-se relações de forças díspares através da norma. É o propósito a que a Constituição se propôs elevando o valor social do trabalho à categoria de Fundamento da República25. Muitos dos direitos dos trabalhadores no País hoje encontram abrigo nas normas, sendo que quando descumpridos há a possibilidade de reclame junto à Justiça do Trabalho que é a porta de entrada para a recomposição de situações de injustiça nas relações de trabalho. Com isso, temos que os direitos sociais relativos ao trabalho gozam de eficácia parcial - não fosse alguns poucos direitos sociais que carecem de implementação como o direito a participação nos lucros - no ordenamento constitucional e infraconstitucional, de modo que seu núcleo essencial se encontra 25 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (grifo nosso) 59 em todas as normas que os enumeram e os complementam. Dentre elas as normas de direito a segurança do trabalho, as normas que estabelecem benefícios como FGTS, 13º salário e férias dentre outras. Contudo, no país ainda há problemas que merecem apontamentos, estes relacionados ao trabalho infantil e escravo. Carvalho menciona que com a criação do PETI (Programa de Erradicação e Prevenção do Trabalho Infantil) em 2002 chegouse a abrigar mais de 810 mil crianças que se encontravam em situação de risco em regiões pobres do País. Em 2000, o Programa sofreu algumas redefinições e experimentou uma significativa expansão, passando de cerca de 140.000 para 810.769 beneficiários em 2002, estendendo-se às áreas urbanas e metropolitanas e contemplando um maior elenco de atividades que utilizam o trabalho precoce em condições especialmente adversas, como os lixões, o comércio ambulante, os cultivos de algodão, fumo, café e laranja, e a ocupação em cerâmicas, olarias, garimpos e pedreiras, entre outras. (2008, p. 554) Com relação ao trabalho, esta ainda aparece como uma das feridas brasileiras. Antero define trabalho escravo, usando normas da OIT, como aquele que além de degradante cerceia a liberdade do trabalhador com constrangimento que vão da esfera física até a esfera moral da pessoa O trabalho escravo se configura, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2005), pelo trabalho degradante com cerceamento da liberdade. Sento-Sé (2000) salienta que o cerceamento da liberdade do trabalhador se dá não somente pelo constrangimento físico, mas também moral, partindo da deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, à proibição de rescindir o contrato de trabalho quando melhor lhe aprouver. (Antero, 2008) Segundo apontam os estudos de Antero e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a realidade do trabalho escravo no Brasil ainda existe e é presente na maioria dos casos em atividades ligadas a extração de madeira ilegal e atividade pecuária. em geral as atividades nas quais se encontram trabalhadores na condição de escravos são aquelas ligadas à derrubada de matas nativas para formação de pastos para a engorda de bois e/ou preparo do solo para agricultura. Como demonstrado no gráfico a seguir, apresentado pela OIT (2005:67), apesar de estar presente em várias atividades econômicas, a pecuária é, de longe, a principal atividade que utiliza trabalho escravo. Esses dados foram retirados dos dois primeiros cadastros de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalho escravo. Destaque-se, também, que ao contrário do que se possa imaginar, as ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil são proprietários informados, latifundiários, muitos 60 produzindo com alta tecnologia para abastecer os mercados interno e externo (OIT, 2005:24) (Antero, 2008). O trabalho referido demonstra que apenas entre 2003 e 2006 mais de 15 mil trabalhadores foram libertados da situação de trabalho escravo, demonstrando que o universo ainda é maior que isso e que ainda são frentes, não só direitos sociais, mais de direitos a própria liberdade, a serem combatidas ferozmente por um país que deseja estar entre os mais ricos do mundo. Pensar em um País rico com situação de trabalho infantil e escravo é contraditório e incompatível com o atual estágio de humanização que vivenciamos. Ainda no que tange aos direitos sociais do trabalho, algumas críticas à insipiente, ainda, efetivação de alguns direitos trabalhistas como o direito à participação nos lucros, proteção no emprego podem ser encontradas em Cunha (2008). De acordo com o autor o país carece de legislação e vontade política neste sentido. Outro direito social que apontaremos, o direito social à saúde, aparece de forma pioneira na Declaração Universal da ONU de 194826 e também no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 196627. Por influência dessas declarações nossa constituição incorporou o direito à saúde como direito fundamental social. Pontua Sarlet que outros países com tradição constitucional tiveram a mesma orientação de introduzir o direito à saúde como um direito fundamental: No plano do Direito Constitucional comparado, já são diversas as Constituições que contém previsão expressa do direito à saúde, como direito fundamental. É o caso das Constituições da Argentina, Paraguai, Uruguai, Portugal, Espanha, Holanda, Itália, Grécia e França, apenas para citar as mais conhecidas. (2007, p. 4) No caso específico do Brasil, a Constituição de 1988 foi pioneira na previsão do direito à saúde como previsão de cláusula constitucional fundamental aos brasileiros. E mais: embora o artigo 5º da Constituição faça uso da expressão “os direitos nelas consagrados são assegurados aos brasileiros e estrangeiros 26 27 Ver artigos 22 e 25 da Declaração Universal Ver artigo 12 do Pacto que afirma ser direito ‘desfrutar do mais alto grau de saúde física e mental’ 61 residentes no país” a interpretação sistemática da Constituição nos leva ao entendimento, seguindo o próprio Ingo Sarlet, que o direito à saúde é destinados “a todos”. Uma leitura adversa poderia fazer com que interpretássemos a Constituição no sentido de que àqueles que, na condição de estrangeiros não residentes no Brasil, não teriam direito à integridade física, segurança, saúde, etc. o que seria literalmente violativo ao princípio da dignidade da pessoa humana tido como fundamento da República. E parece que tal posicionamento não é algo exclusivo ao direito à saúde. Nas palavras de Sarlet, ainda que existam direitos fundamentais de titularidade restrita (os direitos políticos e os direitos dos trabalhadores, por exemplo) a doutrina mais moderna, assim como a jurisprudência mais atualizada felizmente não chancelam este entendimento restritivo, notadamente em homenagem ao princípio da universalidade dos direitos fundamentais. (2007, p. 6) Além de expressar que a saúde é um direito social, nossa Constituição tentou por meio de algumas medidas legais e constitucionais não deixar o direito assegurado apenas de forma escrita num texto que, por ineficácia política, poderia se tornar inaplicável. O texto original da Constituição Federal apenas trazia a universalização do direito à saúde, todavia deixava à Lei de Diretrizes Orçamentárias a incumbência de quantificar o comprometimento de valores gastos com tal direito. Enquanto não definido em lei própria, para aplicação imediata, o artigo 55 da ADCT determinava que, logo após sua promulgação sejam, fossem incluídos 30% no mínimo do orçamento da seguridade social para o setor de saúde. Após praticamente dois anos é aprovada a primeira lei que iria regulamentar as políticas de saúde definidas na Constituição. Tal lei sofreu veto de inúmeros artigos pelo então presidente Fernando Collor que resistiu ao caráter descentralizador e de aplicação de recursos que a lei previa. Dessa forma, uma segunda lei foi aprovada com finco de tratar especificamente dos pontos então omitidos. 62 Mas essa situação de desprestígio com o direito à saúde ainda teve desdobramentos futuros como, por exemplo, o desrespeito na aplicação de valores destinados a saúde. A saída achada foi a Emenda Constitucional 29 que, assim como acontecia com a educação, vincula um investimento percentual também para implementação do direito à saúde. Previa, além disso, intervenção nos entes federados que não cumprissem a determinação de aplicação do percentual constitucional. Hoje, passados onze anos da Emenda 29, a aplicação dos recursos na saúde é praticamente cumprida apenas pela quase maioria Municípios, enquanto a União não a observa e por isso não se legitima a cobrar do Estado (através da intervenção) para que a cumpram. O resultado desta infeliz opção de não vincular o ente político ao investimento neste direito fundamental, é reconhecidamente público para aqueles que minimamente informam-se através de qualquer meio de comunicação das carências da população brasileira atual junto ao sistema único de saúde. Faltam vagas ambulatoriais, médicos reclamam dos pífios valores recebidos do SUS e por isso prestam péssimos serviços, faltam remédios nas prateleiras, dentre outros tantos problemas que se enumerados ocupariam mais algumas laudas. Embora tenhamos nossos problemas com o direito à saúde, ainda necessitado de investimento pesado do Estado, temos de pontuar que também há um avanço, pois atualmente a cobertura do SUS permite a todo brasileiro necessitado que tenha atendimento junto ao mesmo, com medicamentos fornecidos ainda que talvez não o sejam suficientes. Já quanto ao direito à previdência social e assistência aos desamparados, típica função do Welfare state temos o seguinte histórico nacional: a história da Previdência Social inicia em 1888 com a criação da aposentadoria para os empregados dos Correios. Nos anos seguintes houve alargamento através de leis e decretos que passaram a incluir outros setores como os trabalhadores de estradas de ferros, imprensa, Marinha, Casa da Moeda, dentre outros até que em 1933 houve a criação do Instituto de aposentadoria e pensões dos marítimos, considerados a primeira instituição brasileira de pensão no Brasil. 63 Em 1967 houve a Criação da Lei Orgânica da Previdência Social que unificou a legislação referente aos institutos de aposentadorias e pensões. Em 1969 houve a extensão dos benefícios por um plano base aos trabalhadores rurais. Em 1972 houve a inclusão dos empregados domésticos. Em 1974 houve a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social. Em 1979 houve a criação, por lei, de um amparo, conhecido como renda vitalícia, aos maiores de 70 anos e aos inválidos28. Em 1988 a Constituição promulgada traz a previsão da previdência social como um direito social do cidadão em seu texto original. Além disso, ainda consigna o direito à assistência aos desamparados, considerados nesses os idosos e os deficientes que não tivessem condições de prover o próprio sustento. Em 1991 a Lei 8.213 regulamenta os benefícios da Previdência Social e, em 1998 houve a reforma da Previdência com a Emenda Constitucional nº 20. Por fim, em 1999, o Decreto 3.048, Regulamento da Previdência Social, é aprovado A assistência e a previdência, dois direitos sociais implementados pela constituição com objetivo de universalidade de cobertura e atendimento, hoje são braços fortes do Estado social brasileiro. Todavia, há críticas a serem feitas a ele que tem anualmente um déficit de 65 bilhões. Há quem culpe os desvios, a forma de contabilização dos benefícios, as transferências indevidas a outros setores governamentais de valores da Previdência, etc. Segundo Nejberg e Ikeda, o três fatores contribuíram para a impossibilidade de sustentação desse sistema: as mudanças demográficas, as mudanças na composição do mercado de trabalho e a Constituição de 1988. Em seguida, destaca-se o esforço recente do governo para reduzir o déficit da previdência, através da aprovação da Emenda Constitucional nº 20 (Nejberg e Ikeda, 2011, p. 264). Esses autores ponderam que nos anos em que “as arrecadações excederam as despesas com benefícios, outros gastos do governo foram financiados com os 28 Todas as informações foram Informações obtidas no endereço eletrônico http://www1.previdencia.gov.br/pg_secundarias/previdencia_social_12_04.asp 64 superávits previdenciários, sem nenhuma consideração atuarial com os compromissos futuros” (Nejberg e Ikeda, 2011). Embora hajam dois regimes, o geral e único, ambos são parte do mesmo sistema de Previdência. Este último regime, dos funcionários públicos, os referidos autores avaliam que o problema de déficit pode estar no fato de que até 1993 não havia contribuição, leia-se contraprestação, para terem direito à aposentadoria. Em relação ao Regime Jurídico Único, até novembro de 1993 os servidores não contribuíam para suas aposentadorias, que eram assim subsidiadas pela sociedade. Segundo Guerzoni (1999), a lógica da aposentadoria dos servidores públicos se caracterizava por algo que, em linguagem jurídica, é denominado pro labore facto. Isto é, os servidores públicos tinham direito à aposentadoria como uma extensão do fato de trabalharem para o serviço público, e não porque contribuíram para tal. A aposentadoria era uma obrigação do Estado, e não uma contrapartida por uma contribuição feita anteriormente. Somente a partir de 1993, os servidores passaram a contribuir, sem que, no entanto, houvesse qualquer vínculo entre as contribuições e o valor de suas aposentadorias. (Nejberg e Ikeda, 2011, p. 266). Os autores conclui que até a reforma de 1993 não havia um modelo de previdência equilibrado em bases atuariais. Além disso, a não contribuição dos servidores públicos engendrava uma lógica de proteção concentrada de benefícios: a ausência do vínculo contributivo engendra uma lógica política de ação coletiva em que grupos organizados atuam no processo político de modo a adquirir benefícios concentrados, com custos difusos por toda a sociedade e para gerações futuras. Há casos de prefeituras que concediam benefícios com base na remuneração mais alta que os servidores tiveram ao longo de suas carreiras, independentemente de estarem desempenhando essas funções à época da aposentadoria. (Pinheiro, apud Nejberg e Ikeda, 2011, p. 267). Já quanto ao regime geral de previdência, os autores fazem constatações de alguns fatores que entendemos relevantes apontar. Dentro do que os autores chamam de mudanças demográficas estão, por exemplo, o fator aumento de sobrevida dos brasileiros que, após a aposentadoria estão vivendo mais tempo; além disso outro fator é a redução da taxa de fecundidade que por mulher que atualmente está em menos de dois filhos por mulher29. 29 Fonte: IBGE: http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/mulher/mulherhoje.html. Segundo a pesquisa apontada, esse valor era de 2007. Atualmente, estima-se que a taxa de fecundidade esteja abaixo de dois numa tendência natural de queda. 65 Outro fato que processa alterações na previdência atual é a tendência forte para o inflacionamento do setor de prestação de serviços onde a informalidade é maior causando na queda de arrecadação dos serviços de previdência pública. Ainda, conforme os autores, a Constituição de 1988 denominada de Constituição cidadã, alargando consideravelmente os benefícios sociais e welfare state com o finco de tornar o país mais igual, provocou alguns desequilíbrios quando, por exemplo, previu originalmente no texto que as aposentadorias deveriam ocorrer com proventos iguais a última remuneração. Atualmente tal situação não mais existe, mas deixou marcas vermelhas também nas contas da previdência. Também, ao conceder as aposentadorias aos trabalhadores rurais, embora tenham sido grandes conquistas sociais a classe, repartiu esse custo à toda a sociedade. Essas medidas representaram grande conquista social para os rurais. No entanto, a contrapartida financeira foi distribuída por toda a sociedade, uma vez que desde então as contribuições oriundas da área rural nunca ultrapassaram mais do que 13% dos dispêndios totais efetuados especificamente com benefícios rurais, ficando no ano de 1998 em 9,84% (segundo dados do MPAS-SPS) (Nejberg e Ikeda, 2011, p. 270). Esses desequilíbrios previdenciários foram objeto de reformas com o passar do tempo, essencialmente através das Emendas 20 e 47 da CF. Dentre as mudanças, as aposentadorias antes concedidas por tempo de serviço tiveram essa expressão trocada por tempo de contribuição; o salário-família foi restringido a pessoas com baixa renda30; o fim das aposentadorias especiais aos professores universitários, aeronautas, dentre outros. Também foram estabelecidas idades mínimas à aposentadoria, além de exigirem-se outros requisitos. Segundo apontam os Nejberg e Ikeda, essencialmente a Emenda Constitucional nº 20/98 representou avanço significativo “ao estabelecer como 30 Art. 7º, XII da CF/88 redação original: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XII - salário-família para os seus dependentes; (redação revogada pela Emenda 20) XII - salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) 66 princípio básico que os novos critérios devem preservar o equilíbrio financeiro e atuarial da previdência” (2011, p. 273). No atual estágio do welfare state brasileiro, esses direitos sociais dos quais procuramos tratar acima, embora tantos outros mereciam homenagens neste texto como lazer, segurança, alimentação, estes acreditamos ser os tentáculos do Estado Social brasileiro, de forma que sustentam a equidade de forma mais cabal num país materialmente ainda muito desigual. Nestes textos poderíamos ainda expor programas do Estado que visam erradicação da fome e da pobreza, também focos centrais não só da Constituição, mas também do próprio Estado-social. Contudo, optamos por restringir a análise por entender estar ligado ao tema proposto de forma mais indireta. 2.3 - OS ENTRAVES DO ESTADO SOCIAL NOS PAÍSES DE MODERNIDADE TARDIA Que podemos classificar o Brasil como um país de modernidade tardia31 com promessas não cumpridas, não se há de discutir. Nesta seara à medida que vemos no Brasil um Estado ainda devedor, ou na visão de Streck (2009), um país de promessas a cumprir, em se tratando de direitos de segunda geração, pretendemos analisar os entraves que permeiam a efetivação desses direitos. 31 A expressão ‘modernidade tardia’ é expressão usualmente utilizada por Antony Giddens. Outrossim, alguns outros autores denominam o período atual, também como ‘pós-moderno’ conceituando como um período que teve início em “Margaret Thatcher que deve ter compreendido esse estado das coisas de modo intuitivo ao inventar o slogan que afirma que não existe de modo algum algo como a sociedade. Ela é o fenômeno propriamente ‘pós-moderno’ ” (HABERMAS, A constelação pós-nacional: ensaios políticos, Littera-Mundi, 2001, p. 76). (grifo nosso) Também sobre o assunto, salutar a explicação de Bittar, segundo o qual “A expressão é polêmica e não gera unanimidades, assim como seu uso não somente é contestado como também se associa a diversas reações ou a concepções divergentes. A literatura a respeito do tema é pródiga, mas as interpretações do fenômeno são as mais divergentes. Ademais, outras expressões já foram indicadas para designar este status quo, com suas diversas projeções sobre a vida humana, dentre elas ‘supermodernidade’ (Georges Balandier) e ‘modernidade reflexiva’ (Ulrich Beck), sem lograr o mesmo êxito ou o mesmo emprego expandido na literatura especializada Apesar de toda a problemática que envolve a afirmação desta expressão, ela parece ter ganhado maior alento no vocabulário filosófico e sociológico (Lyotard, Habermas, Beck, Bauman, Boaventura de Souza Santos) contemporâneo, e ter entrado definitivamente para a linguagem corrente. O curioso é perceber que é esta já a primeira característica da pós-modernidade: a incapacidade de gerar consensos (2011, p. 131-2) Segundo Harvey que denomina a pós-modernidade como uma espécie de reação do modernismo ela teve início “Em algum ponto entre 1968 e 1972, portanto, vemos o pós-modernismo emergir como um movimento maduro, embora ainda incoerente, a partir da crisálida do movimento antimoderno dos anos 60" (HARVEY apud Bittar 2008, p. 133) 67 Em virtude de que esses direitos em regra demandam investimento econômico do Estado para sua efetivação, este simplesmente ignora as opções do constituinte originário – e, portanto, da sociedade - em denominá-los como de fundamentais (caráter de importância) no título II da Constituição de 1988. Deve ser por isso que Bonavides propõe uma releitura do sistema democrático brasileiro. Para o autor o sistema atual tem implicado uma ruptura entre Estado e sociedade, entre o cidadão e seu representante, entre os governantes e os governados (1987. p. 248). O autor propõe uma democracia direta aduzindo o seguinte: [...] a democracia direta não quer dizer o povo todos os dias, todas as horas, todas as ocasiões, pessoalmente se reunindo ou sendo consultado para fazer leis, baixar decretos, expedir regulamentos, nomear, demitir, administrar ou exercitar toda aquela massa de poderes e funções sem as quais a máquina do poder e do governo fica paralisada ou atravancada. (2002, p. 29) Aponta ainda o autor que a democracia direta proposta tem verticalidade de penetração, auxiliando no desvirtuamento democrático existente na atualidade – opções do Estado na atualidade - em nosso contexto com uma cidadania homogênea. O que determina a democracia direta, com a verticalidade de sua penetração e a horizontalidade de sua expansão em todos os domínios e esferas da Sociedade, é fazer valer assim, sem contraste, uma cidadania hegemônica, virtualmente senhora de seus destinos e governativamente capacitada a chefiar o Estado [...] (2002, p. 32) . Mas, enquanto pairamos sob outros ares democráticos que não os propostos por Bonavides, pensemos em formas de vencer o déficit de cidadania, essencialmente pela não implementação de direitos de segunda geração, indispensáveis ao desenvolvimento de qualquer Estado Democrático, - apesar de pensarmos que já passa da hora de revermos modelos que não fazem frente às demandas da sociedade atual. O déficit democrático que nos referimos é um dos motivos que ensejam a incompletude da realização dos direitos sociais, pois certamente haveriam de termos opções mais acertadas, ao menos no que pertine a vontade da população, com a ‘democracia direta’ proposta por Bonavides. 68 Para analisar esses entraves à promoção de direitos sociais, de acordo com Höfling (2011, p. 31) é necessário que se faça a distinção entre governo e Estado. Para a autora é possível se considerar Estado como o conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período. (2001, p. 31) Assim, as políticas públicas poderíamos dizer são opções do governo. A forma de implementação dos direitos sociais que o Estado considera essencial ao desenvolvimento e que fora umas das escolhas do constituinte originário fez para o futuro do país, acabam por se tornar opções feitas pelo governo, braço do Estado. As políticas públicas neste contexto são políticas de responsabilidade do governo, que exigem um agir deste para promoção da igualdade. Neste contexto, explica a referida autora que estas políticas é que determinam o padrão de proteção social adotada pelo Estado para implementação da igualdade: políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico. As políticas sociais têm suas raízes nos movimentos populares do século XIX, voltadas aos conflitos surgidos entre capital e trabalho, no desenvolvimento das primeiras revoluções industriais.(2011, p.31) O Estado Social que pretendemos com a Constituição de 1988 neste sentido é aquele intermediário que tenta separar dois combatentes: de um lado o sistema de acumulação de capital, de outro os conflitos internos de classes visando o equilíbrio das relações. Neste contexto, ‘políticas sociais’ se tornam a palavra firme do juiz (Estado) que intermédia o conflito. Todavia, contentar o sistema de acumulação de capital e apaziguar diferentes setores da sociedade é algo impraticável. Offe em seus trabalhos recomenda uma alternativa a esta incógnita falando sobre um “novo pacto social”. O autor assinala que 69 os problemas de um país não vão ser resolvidos apenas pela ação do Estado ou do mercado. É preciso um novo pacto, que resolve o dever do Estado de dar condições básicas de cidadania, garanta a liberdade do mercado e da competição econômica e, para evitar o conflito entre esses dois interesses, permita a influência de entidades comunitárias. (Offe, apud Höfling, 2001, p. 35) Na verdade o que parece ser este conflito entre acumulação de capital e conflitos de classes, também passa por ideais que vão do liberalismo e socialismo, um desconsiderando (ou tentando desconsiderar) a existência do outro. Liberais, que hoje se situam numa esfera que chamam de neoliberalismo pedem o fim da intervenção estatal em setores econômicos. Por outro lado socialistas (que já viram o insucesso de Lênin) tentam uma ‘terceira via32’. Essa corrente propagou vários discípulos. Todavia, um dos empecilhos que atravancam o caminho de uma terceira via viável, são os custos sociais que eles apresentam. Segundo Merkel, há equívocos na idéia da terceira via (ao Estado de bem-estar social) dos quais ele aponta três principais: O que se afirma ser a ilusão de que um aumento nos gastos sociais levará automaticamente a uma redução na desigualdade socioeconômica; A natureza passiva dos direitos ao assistencialismo no tradicional Estado de bem-estar social. Em vez de conduzir a uma cidadania mais socialmente orientada e individualmente responsável, ele leva a privatividade, à dependência, à perda de disciplina e à falta de motivação para se adaptar aos novos desafios educacionais do cambiante mercado de trabalho; O tradicional Estado de bem-estar social, embasado principalmente na lógica da modernidade industrial clássica, demonstrou-se inflexível demais ante os problemas industriais. Em parte ele projeta os tipos errados de grupos sociais, raramente incorporando novos tipos de riscos sociais em sua rede de proteção e segurança. Mais que isso, os pagamentos de benefícios já não atentem as necessidades individuais e aos desafios sociais realistas da sociedade heterogênea do final do século XX. (Merkel, 2007, p. 86) A nós, portanto, parece que não só no crescimento das necessidades sociais é a responsável pela crise deste Estado. Pensamos haver também uma crise que além de ser da lei, é também do Estado e vai mais além, sendo também da própria sociedade. A crise não está tão somente no Estado social com suas incapacidades 32 Por ‘terceira via’ Giddens entende como uma corrente política “ressuscitada por Bill Clinton e pelo Conselho de Liderança democrática dos Estados Unidos no Final da década de 80 e em seguida adotada por Tony Blair e o novo partido trabalhista da Grã Bretanha[...] com isso alguns socialdemocratas – nesses países e também fora deles – passaram a identificar a terceira via ou com as políticas adotadas pelos novos democratas e pelo Novo partido trabalhista ou com as estruturas socioeconômicas dos Estados Unidos ou do Reino Unido”. Giddens, Antony. O Debate Global sobre a Terceira Via. São Paulo: Editora UNESP, 2007. 70 financeiras, mas na sociedade que o demanda e na própria lei, esta uma representação sempre de parcela da sociedade. Parece que a crise sendo social, ramifica-se estendendo suas tensões ao Estado, à lei, etc. Neste ponto entendemos ser de significativa citação as palavras de Lopes (1989), segundo qual a sociedade atual pode ser analisada sob quatro enfoques que discriminam suas crises que alcançam o Estado como um todo. Dois desses enforques vamos fazer breve passagem. Vamos analisar o enfoque complexidade e ambigüidade. Por complexidade das relações e estruturas sociais o autor entende que “a industria promoveu especializações em toda a parte: especializações regionais, setoriais, alguns setores econômicos...convivem, sob uma forma de capitalismo, muitas outras formações sociais que vão desde as tribais as relações típicas do capitalismo avançado” (1989, p. 125) Por sua vez, por ambigüidade o autor entende seja sinônimo de conflitividade. Segundo expressa o autor “sendo complexas, as demandas de diferentes grupos (classes sociais, segmentos de classe, grupos não definíveis como classe, tais os intelectuais, os políticos, os religiosos, grupos étnicos, e grupos culturais) são contraditórias”. (1989, p. 126) Seguindo esses enfoques, o que vemos é uma sociedade típica de pósmodernidade que com suas complexidades se põe em constante conflitividade em demandas que são intermináveis em razão do estágio atual. Segundo Bittar descreve que há quem use o termo pós-modernidade como sinônimo de há uma crise que se projeta sobre diversas formas de experiências de mundo, como valores, hábitos, ações grupais, necessidades coletivas, concepções, regras sociais, modos de organização institucional e que necessita não tão somente do Estado, mas também de toda a sociedade civil que é parte do conjunto. Isso faz com que o próprio Estado limite-se diante de inúmeras demandas sociais, muitas dessas sem razão em razão de hábitos, ações grupais, etc. (Bittar, 2008, p. 132) 71 Uma tentativa de análise da crise ou dos entraves a implementação dos direitos sociais considerando apenas o Estado e sua impossibilidade de fazer frente às demandas sociais, sem contudo considerar a parcela da sociedade seria como a tentativa de salvar um doente com reza, ou seja, só o milagre, quiçá a fé, o retirassem do leito para lhe trazer de volta à vida. Falar em crise somente do Estado na implementação dos direitos sociais, hipertrofia do Estado pela crescente demanda por direitos – e apenas direitos –, em aumento perpendicular de impostos para fazer frente a estes gastos de implementação, em menos valores investidos pelo próprio mercado (em função dos altos impostos pagos) para criação de novos empregos e oportunidades que resultariam em condições ao cidadão comum de uma vida minimamente digna, também pode não ser uma saída construtiva. Há de se atentar para a crise que é instalada na própria sociedade. Embora pensemos que a ‘terceira via’ pode ser um caminho para a implementação de uma sociedade mais igualitária e mais justa e esta terceira via passa pelo Estado provendo as falhas que o mercado por si só não consegue sanar, pensamos que há uma necessidade de urgente revisão da própria sociedade neste contexto de pós-modernidade, uma reavaliação de seu próprio papel como auxiliar na implementação de igualdade e justiça. Rawls, nesse ponto, na sua teoria de justiça como equidade que “é uma concepção política – e tão somente política – de justiça para o caso especial da estrutura básica de uma sociedade democrática contemporânea” nos parece propor uma possibilidade de nova idéia social. Embora seja um autor liberal, a nosso ver sua identidade com um sistema equitativo de cooperação regulado por uma busca de uma concepção pública de justiça, faz-nos imaginar sua tendência, ao menos em princípio, a um fraternalismo social. Ainda assim, o autor garante que sua teoria “não é uma doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente – que se aplique a todos os temas e abarque todos os valores” (2003, p. 19). O pensamento de Rawls sustenta-se em algumas idéias fundamentais, vejamos: prega a idéia organizadora de sociedade como um sistema equitativo de 72 cooperação entre pessoas livres e iguais (proveniente de acordo celebrado por quem esteja comprometido com os termos equitativos de cooperação); idéia de uma sociedade bem-ordenada (concepção pública de justiça baseado num sistema equitativo de cooperação) e a idéia de estrutura básica de sociedade (maneira como as principais instituições políticas e sociais da sociedade interagem formando um sistema de cooperação social e a maneira como distribuem direitos e deveres básicos e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social no transcurso do tempo com objetivo de uma justiça de fundo – background justice) (2003, p. 11-21). Quando Rawls tenta propor uma sociedade política “como sistema equitativo de cooperação que se perpetua de uma geração para a outra, em que aqueles que cooperam são vistos como cidadãos livres e iguais e membros normais e cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida” (2003, p. 5) nos parece em verdade ser uma nova forma de colocar a “crise da modernindade” também sob a responsabilidade da própria sociedade essencialmente quando, por exemplo, prega que a distribuição de talentos (não os talentos em si) seriam considerados bens comuns (2003, p. 106 e ss) que devem ser compartilhados. Embora hajam críticas ao trabalho de Rawls 33, em nosso entender, há necessidade neste momento em que as dificuldades do Estado e sociedade são tamanhas, onde as contradições afloram e o consenso sobre os rumos é ainda um ideal, que se proponham novas idéias levando-se consideração o todo, não só o Estado. Entendemos seja necessário que a própria sociedade criae mecanismos que auxiliem na obtenção de melhores resultados praqueles males que ela própria desenvolve. Dessa forma é que olhamos com bons olhos para a teoria de Rawls que idealiza uma sociedade política responsável e que trabalhe de forma cooperada para a geração de pessoas cada vez mais livres e iguais. Por fim, uma passada de olhos 33 Há críticas comunitaristas a teoria de Rawls apontando que sua teoria é abstrata porque baseia-se em uma linguagem universal de justiça desconsiderando as particularidades de cada sociedade real. Um estudo de maior profundidade acerca da teoria e críticas a John Rawls pode ser encontrado em Silveira (2007). 73 no preâmbulo constitucional34 nos dá uma leitura de que o Estado Democrático de Direito traz em seu bojo a fraternidade, o pluralismo, bases que nos parecem estarem atreladas ao pensamento de Rawls. Com esses apontamentos, nos parece em bom tom uma doutrina de Rawls para revermos não só os rumos do nosso Estado e sua crise, mas também da sociedade brasileira, mormente se o foco for desenvolver a idéia preambular da Constituição. 2.4 - PODER JUDICIÁRIO NA PROMOÇÃO DOS DIREITO SOCIAIS NO BRASIL Embora outras leituras da crise do Estado possam ser feitas, com literatura mais abrangente como a crise da sociedade mencionada acima, vamos destacar neste ponto a crise institucional do Estado. Segundo elucidativas palavras de Lucas há uma crise institucional funcional do Estado, especialmente “no que tange a sua perda de exclusividade no exercício das funções jurisdicionais (...) limites e precariedades da jurisdição moderna, que se revela frágil e insuficiente para responder as demandas sociais contemporâneas” (2005, P. 174). A crise do Estado mencionada pelo autor dá conta de que atualmente o poder Judiciário vê-se com uma função política mais importante que no Estado Liberal quando era um poder neutro. Atualmente, no Judiciário restam despejadas as demandas que eclodem de toda a sociedade e de suas complexidades. A crise que era do Estado, também se reflete no Judiciário. Ensina o autor que com isso eclode uma crise na administração da justiça na década de 60 proveniente das lutas promovidas pelos grupos de ação coletiva de enfrentamento como negros, estudantes, etc. (2005, p. 173). Segundo afirma o Lucas, a crise, que fez com que o conflito social saísse do político para a seara judicial, é caracterizada “pela incapacidade do poder 34 Destinado à assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralistas e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias[...] (grifos nosso) 74 jurisdicional em responder aos conflitos jurídicos que emergiram com a consagração dos direitos sociais a serem garantidos pelo Estado providência” (2005, p. 173) A partir daí, com a crise da década de 70, essencialmente nos países periféricos, fez-se alargar a distância entre o prometido pelo estado providência e as políticas governamentais. Neste momento surge o Judiciário como instrumento de respostas as demandas sociais que bateram sua porta. (LUCAS, 2005, p. 174) Atualmente, o Judiciário e o magistrado, diferentemente do que aconteceu no Estado absolutista e no Estado liberal quando era um poder neutro a quem cabia tão somente a atuação dentro dos ditames daquilo que o Legislativo normatizava, tem uma função de alta relevância, não só para os conflitos, mas para implementação do Estado constitucional pretendido. Neste sentido são válidas as palavras de Capella quando diz: O magistrado não é mais a mera boca da lei. A lei em geral, nem estável, nem duradoura, não pode ser seu único ponto de referência. Provavelmente, por razões histórico-culturais, pelo mundo de aparências legitimadoras do poder que neste universo mudado se desenvolve ainda em parte segundo as pautas do Estado gendarme, a magistratura conserva um importante relevo social, e portanto é um reduto do garantismo jurídico no âmbito público. Apesar disso, se encontra funcionalmente em decadência: a atividade processual é demasiado lenta e seguramente imparcial para os novos e expeditos poderes do capitalismo organizado que começam a arbitrar suas diferenças mediante a lei da selva econômica. (2002, p. 225) A Constituição de 1988 trouxe ao Brasil a esperança de um novo País. No seu texto vieram associadas as conquistas dos dois estados: o liberal e o social. Contudo deveria de com o passar de sua idade haver vontade política que transformasse a realidade do País naquilo que determinava o documento de intenções de 1988. A instabilidade econômica dos primeiros anos de democracia pós 1988 fez com que as conquistas sociais documentadas fossem sendo aos poucos abandonadas pelo poder político. Neste momento o Brasileiro se socorre no Judiciário a fim de obter as conquistas prometidas Constitucionalmente. A partir de então o Judiciário, usando do instrumento que lhe fora outorgado em 1988, passa a ter uma postura de defesa do documento constitucional. 75 Como notamos, o Brasil assim como os demais países em desenvolvimento, busca lugar melhor ao sol através da fortificação da economia com ideal desenvolvimentista. Nesta esteira, muitas vezes os recursos de investimento acabam sendo menores do que a necessidade, pois é crescente o investimento especulativo e os investimentos em produção estão cada vez mais a exigir infraestrutura. Com isso, os primeiros afetados são os direitos sociais que demandam forte investimento do Estado para sua realização e que, em razão das outras necessidades estatais ficam, senão totalmente, parcialmente relegados. Acontece que os direitos sociais são direitos fundamentais à realização da dignidade da pessoa humana. Note-se que no artigo 1º da Constituição Federal há dois incisos (II e III, cidadania e dignidade da pessoa humana, respectivamente) que são enumerados como os fundamentos da República. Ao alocarem os direitos fundamentais pelos quais iriam se realizar ambos os incisos, objetos do fundamento republicano, o Constituinte originário optou pela alocação em um único título (II) de todos os direitos que entendia serem fundamentais à realização dos incisos II, III do artigo 1º. Todavia, como já exposto, em razão da necessidade de investimento em outras frentes que permitam o desenvolvimento, há a opção estatal por investimentos que desprestigiem os direitos sociais previstos na Constituição e destinem valores a outros fins, muitas vezes inclusive privados. Canotilho nesta seara, afirma que as empresas privadas adoptam estratégias de deslocalização, de políticas de investimento e de mão de obra tendentes a redução dos custos de exercícios e maximização dos lucros. O Estado, por sua vez, assume cumplicidade com estas estratégias mediante a criação de infraestruturas, benefícios fiscais e legislação laboral. As políticas públicas optam por encaminhar os dinheiros públicos para grandes investimentos infraestruturantes (aeroportos, vias férreas e autoestradas) em vez de os desonerar para os serviços garantidores da efectivação de direitos sociais (2010, p.22). Em nosso caso, embora estejamos investindo cada vez mais, ano a ano, na redistribuição (igualdade material), ainda há necessidade crescente e infindável de investimentos, pois os dados fornecidos pelo IBGE apontam ainda mais de 14 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais (mais de 10% da população adulta, 76 pois a população de 0 a 15 anos atualmente ultrapassa os 47 milhões numa população brasileira universal de 183 milhões), e apenas pouco mais de 60% dos domicílios com acesso a saneamento completo35. A inegável função Estatal de redistribuição é inseparável do Estado social, pois tão somente ele hoje é figura possível de reversão do quadro apresentado. Barcellos explica a função dos direitos sociais como política redistributiva para oportunizar desenvolvimento e melhores condições de vida a população apontando uma preocupação brasileira especial: De acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) estima-se que a arrecadação tributária do Estado brasileiro, incluindo União, Estados e Municípios, correspondeu, em 2005, a aproximadamente R$ 733 bilhões. Em 2004 foram R$ 650,15 bilhões, e, em 2003, R$ 553,18 bilhões. Tais valores resultam da opção política que vigora hoje no Brasil, por força da qual se visualiza no Estado um agente capaz de redistribuir riqueza, impulsionar o desenvolvimento e produzir melhores condições de vida para a população. Assim, sobretudo, por meio da tributação, retiram-se recursos das empresas e pessoas físicas para concentrá-las no Estado, a fim que este os administre tendo em vista os fins públicos referidos. (2008, p. 113) Tendo em vista esse quadro de crescentes, todavia ainda insuficientes recursos que promovam dignidade às pessoas mais desafortunadas, inúmeras são às vezes em que há o pedido de socorro das mesmas às portas do Judiciário reivindicando um direito de ordem fundamental a sua cidadania ou dignidade. Embora a tese do dirigismo Constitucional tenha sido revista por Canotilho que pretende seja a Constituição algo que não defina programaticidade, mas dê apenas uma direção, já que “políticas constitucionalizadas fecharam a comunicação com o direito responsável expresso na criação jurídica por meio de pactos e concertação social...”(2010, p.13) o Judiciário brasileiro desconsidera tal mudança do autor de Coimbra. Em estudo elaborado por Piovesan, essencialmente no que pertine a direito à educação e saúde como objeto de decisões dos principais tribunais brasileiros (STF e STJ) a autora demonstra interessantes resultados. 35 O IBGE considera saneamento completo os domicílios “com serviços simultâneos de abastecimento de água por rede geral com canalização interna, ligados à rede geral de esgotamento sanitário e/ou rede pluvial, e com serviço de coleta de lixo diretamente no domicílio”. Fonte http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=987 77 Há inúmeras decisões no sentido, mas optamos por citar as descritas no trabalho apontado com relação ao fornecimento de medicamentos pelo Estado a pessoas carentes, portadoras de HIV dentre outras doenças graves. No RE 271.286/RS de relatoria do Ministro Celso de Mello, este pontuou que O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por omissão, em censurável comportamento inconstitucional. O direito público subjetivo à saúde traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público (federal, estadual ou municipal), a quem incumbe formular – e implementar - políticas sociais e econômicas que visem a garantir a plena consecução dos objetivos proclamados no art. 196 da Constituição da República. Embora tenham se passado mais de 10 anos desta decisão acima descrita que é do ano 2000, o STF continua tendo essa linha de raciocínio de uma forma geral. Tanto é que em 02/12/2011 o mesmo Tribunal aceitou como tema de repercussão geral o assunto sobre fornecimento de medicamento não registrado pela ANVISA36. Tal processo teve seu ingresso no juízo de Juiz de Fora/MG através da Defensoria Pública. Houve procedência do pedido em primeira instância e no Tribunal de Justiça mineiro foi reformada a decisão para dar provimento ao apelo do Estado de Minas Gerais. Em consequência houve interposição pela Defensoria Pública do Estado de RE e admissão pelo STF como tema de repercussão geral. A tendência é que o STF ao julgar o referido RE mantenha a linha da decisão já que em outras oportunidades manifestou-se no sentido de que “o poder público não pode transformar norma programática em promessa constitucional inconseqüente”. Ainda, quanto a distribuição de medicamentos, esta confere “efetividade aos preceitos constitucionais, representando um gesto reverente e solidário de apreço a vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada tem e nada possuem, a não ser a própria consciência de sua própria humanidade e sua essencial dignidade37” 36 Recurso Extraordinário (RE) 657718 Ainda há outros casos que podem ser referidos oriundos do STF como o RE 232.335, AI 232.469, RE 236.200, AI 236.644, RE 273.834 dentre outros. 37 78 Além disso, no STF há decisões que permitem a internação hospitalar em modalidade “diferença de classe” que permitem a internação do paciente em classe superior mediante pagamento da diferença daquela oferecida pelo Sistema Único de Saúde. Segundo informa Piovesan, o argumento é que a Constituição Federal estabelece o direito à saúde e o acesso universal e igualitário aos serviços e ações para a promoção, proteção e recuperação. Consequentemente, o direito à saúde não deve sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas, no sentido de reduzir ou dificultar o acesso. (2010, p.60) Por fim, ainda de se destacar decisões no sentido que, para garantir o direito à saúde, autorizam prisão domiciliar a quem esteja cumprindo pena e que o estabelecimento penal não apresente condições salubres para o tratamento de saúde38 e da prioridade absoluta das crianças e adolescentes nos tratamentos de saúde39. Já o STJ, segundo afirma Piovesan, ao proferir decisão no REsp 662.033 que tratava de uma ação individual proposta pelo Ministério público para assegurar direito a tratamento de saúde a uma criança, rompe com ótica de formalismo no procedimento para assegurar bem maior: o direito à saúde. (o STJ) tem ainda rompido com uma ótica formalista procedimental, a fim de assegurar o direito à saúde. À título de exemplo, cita-se medida judicial em ação civil pública para proteger o direito à vida e a saúde de criança portadora de doença grave, reformando decisão de Tribunal estadual que teria extinto o processo sem julgamento do mérito por considerar que o Ministério Público não teria legitimidade para defesa de direito individual indisponível. (2010, p. 59) O argumento central da decisão acima proferida no REsp foi de que “a busca pela entrega da prestação jurisdicional deve ser prestigiada pelo juiz de modo que o cidadão tenha, cada vez mais facilitada com a contribuição do Judiciário, a sua atuação em sociedade quer nas relações jurídicas de direito privado, quer nas de direito público40” Em outro caso apontado por Piovesan, o STJ teria dado seguimento a um REsp fazendo vistas grossas ao formalismo, porque, segundo aponta a professora 38 HC 19.913 REsp 577. 836, 95.168, 128.909 e 89.612 40 REsp 662.033 39 79 paulista, “a saúde é dever do Estado, sendo que a falta de medicamentos poderia acarretar morte prematura de criança com doença grave e atrofia muscular espinhal”(2010, p. 58)41. Ainda, há decisões do STJ permitindo o saque de valores referentes ao FGTS para tratamento de moléstia grave, ainda que não prevista na norma42. No STF, Tribunal Constitucional brasileiro, muitas dessas questões foram levadas a plenário e delas extraídas decisões que demonstram que há inclinação para uma leitura constitucional positiva dos direitos sociais, ou seja, uma leitura que obrigue o Estado a implementar os ditames constitucionais sem os quais não se realize a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República (art. 1º, III, CF/88). Já o direito à educação, outro direito social formador da dignidade humana, podemos citar a decisão do Agravo de instrumento 677274/SP que trata sobre o direito de matrícula de criança menor de cinco anos em creche pública. Nele o STF, através do Min. Relator Celso de Mello seguindo o entendimento de Celso Lafer, trata o direito à educação como um direito fundamental apto a formar a pessoa em sua dignidade43. Quer dizer, sendo o direito à educação um daqueles que direitos sociais contidos no artigo 6º da Constituição, e, mais que isso, sendo um dos combustíveis para a formação da liberdade e dignidade da pessoa prevista no inciso III do artigo 1º da carta maior, não se poderia tentar dar a ele assim como aos demais direitos sociais, mesmo aqueles contidos fora do título direitos sociais, outra interpretação. Nesse sentido, Nunes Junior [...] os direitos sociais se integram aos chamados direitos fundamentais. Afigura-se estreme de dúvidas que o objetivo de promover a adequada qualidade de vida a todos, colocando o ser humano “a salvo” da necessidade, promove uma “fundamentalização” dos direitos sociais, uma vez que não se pode pensar em 41 MC 7.240 REsp 644.557 e REsp 686.500 dentro outros. 43 Parte do referido acórdão: (...), o direito à educação - que se mostra redutível à noção dos direitos de segunda geração - exprime, de um lado, no plano do sistema jurídico-normativo, a exigência de solidariedade social, e pressupõe, de outro, a asserção de que a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento político, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as dimensões em que estas se projetem(...)(grifo nosso) 42 80 exercício de liberdades, de preservação da dignidade humana, enfim, de direitos intrínsecos ao ser humano, sem que um “mínimo vital” esteja garantido caudatariamente à própria vida em sociedade (2009, p. 65). Algumas decisões do STF dão conta de que o direito à educação é direito inerente ao sistema constitucional e que, desta forma, deve ele ser não só observado, como também cumprido. Além disso, o próprio Tribunal deixa claro que não há intervenção no Poder Executivo quando o Judiciário por decisão judicial o obriga em suas obrigações contraídas constitucionalmente. Esse é o caso, por exemplo, da decisão proferida no agravo regimental nº 639.337 em que é relator o Ministro Celso de Mello. E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, 81 não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. (...) - (ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125) (grifos nossos) Além disso, proporcionar o Direito à educação não está somente ligado, segundo a decisão do RE 603575, a fornecer escolas, mas também meios para que as crianças tenham viabilizado tal exercício. Segue a ementa do acórdão com relatoria de Eros Grau: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSPORTE DE ALUNOS DA REDE ESTADUAL DE ENSINO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. (...). (RE 603575 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-0240105 PP-01127 RT v. 99, n. 898, 2010, p. 146-152) (grifo nosso) Há de se aclarar que a maioria das decisões provenientes de Tribunais na atualidade dizendo respeito aos direitos sociais dizem respeito a demandas individuais. Ainda assim, o número de pessoas que procuram ainda é baixo. Segundo aponta Piovesan no Brasil, apenas 30% dos indivíduos envolvidos em disputas procuram a justiça 44 estatal , existindo uma clara relação entre índice de desenvolvimento humano e litigância, ou seja, é acentuadamente maior a utilização do Judiciário nas regiões que apresentam maior índice de desenvolvimento humano. (2010, p. 68) Isso demonstra claramente ainda um déficit de cidadania no País que precisa atentar para a deficiência nas prestações assumidas e não cumpridas da Constituição de 1988. A desigualdade ainda é algo que nos atinge de forma direta e deve ser combatida pelo Estado através da implementação dos direitos sociais, tão importantes e necessários aos desafortunados “cidadãos” brasileiros. 44 Nota da autora: “Como explica Maria Tereza Sadek, ‘as razões para isso são inúmeras, indo desde a descrença na lei e nas instituições até a banalização da violência. (...) Por outro lado, ainda que em menor grau que no passado, é baixa a conscientização da população tanto sobre seus direitos, como sobre os canais constitucionais disponíveis para a solução de seus litígios’ (Maria Tereza sadek (org.). Acesso à Justiça, São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 7” 82 3. O PRINCÍPIO DE PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL NO BRASIL 3.1 - O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO CONTEMPORÂNEO Num quadro de incertezas, da segunda modernidade para alguns, modernidade tardia para outros, a ciência do Direito também se vê em busca de novos rumos. Imaginar o Direito com uma metodologia capaz de prever os acontecimentos que, após ocorridos, serão exatamente regidos por determinada norma (método subsuntivo45); um Direito capaz de antecipar-se e reger todas as relações jurídicas, é praticamente impossível, mormente na sociedade complexa atual e na complexidades de relações cotidianas criadas pelas novas formas de convívio. As idéias do positivismo sucumbiram no Tribunal de Nuremberg justamente por não se fazer condizente com uma nova concepção que ali nascia ou sepultava a existente. Seus acusados (do tribunal) invocaram o cumprimento da lei e a obediência irrestrita, todavia, ao fim, essa idéia (de positivismo jurídico), de um ordenamento totalmente indiferente aos valores éticos, havia perdido seu espaço no pensamento esclarecido. Nessa esteira, pensar em princípios como tendo apenas uma dimensão ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direita e imediata já não seria o comportamento mais adequado para os pensadores do Direito. Naquele momento se passou a dar mais responsabilidade à Constituição tornando-a um sistema de aberto e permeável de regras e princípios, com estes últimos tendo valor jurídico. Esse pós-positivismo segundo Barroso e Barcellos é a “designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana” (2003). 45 De acordo com Barroso, tal método clássico de interpretação jurídica “consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença é a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto”.(2003) 83 Nesse contexto, a valorização dos princípios e sua conseqüente incorporação aos sistemas Constitucionais pátrios, assim como seu reconhecimento enquanto normas, fizeram parte da reaproximação do Direito e da Ética. (Barroso e Barcellos, 2003). Os autores, explicam que além desse reencontro da Ética com o Direito deve ser observada a atual leitura de supremacia dos direitos fundamentais. Dizem que, especificamente no caso do Brasil, devem ser agregados ainda mais dois itens: transformação social e emancipação. Isso significou que tratou-se de “transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial e, indo mais além, produzir efeitos positivos sobre a realidade”. (Barroso e Barcellos, 2003) Pata tanto, foi necessário que os princípios rompessem com o passado para conquistar um status de norma jurídica, “superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata” (Barroso e Barcellos, 2003). Embora haja quem de forma muito bem fundamentada e tenaz trabalhe a teoria dos princípios em separação diferente46, iremos usar a separação dual47 46 Ver Humberto Ávila. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Malheiros: São Paulo, 2005. Na obra o autor faz separação das normas em princípios, regras e postulados(também denominadas de normas de segundo grau), criando esse terceiro elemento. O autor leva em conta que as normas são construídas pelo intérprete a partir de dispositivos e do seu significado usual. Nesse contexto a qualificação depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto, nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete. Ao invés de fazer uma leitura dual exclusiva (regras e princípios) como Dworkin e Alexy, por exemplo, faz uma leitura inclusiva onde uma mesma norma pode assumir ora a posição de princípio, ora de regra, ora de postulado. O autor diferencia os três institutos da seguinte forma em uma passagem de sua obra: “os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, isto é, normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção. Diversamente, os postulados,de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, portanto, não se podem confundir princípios com postulados.As regras, a seu turno, são normas imediatamente descritivas de comportamentos devidos ou atributivas de poder. Distintamente,os postulados não descrevem comportamentos, mas estruturam a aplicação de normas que o fazem. Mesmo que as regras fossem definidas como normas que prescrevem, proíbem ou permitem o que deve ser feito, devendo sua conseqüência ser implementada,mediante subsunção, caso a sua hipótese seja preenchida, como o fazem Dworkin e Alexy, ainda assim a complexidade dos postulados se afastaria desse modelo dual.”(2005, p. 89). 84 elaborada por Dworkin e com desenvolvimentos de Alexy em sua teoria normativomaterial dos direitos fundamentais. Deve ficar claro que quando se tratam de Direitos fundamentais, estar-se-á a falar muitas vezes em Princípios, já que grande parte dos direitos fundamentais detém em sua retaguarda um princípio48. Dworkin (2002) dá o primeiro passo para uma teoria do direito quando contribui significativamente enterrando o positivismo jurídico, tendo como principal alvo Hart (p. 35). Em Levando os Direitos a Sério, Dworkin distingue regras de princípio partindo de casos que cita na obra dizendo o seguinte: A definição entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circustâncias específicas, mas distinguem-se quanto a natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis a maneira tudo ou nada. Dado os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (...) Mas não é assim que funcionam os princípios apresentados como exemplos nas citações. Mesmo aqueles que mais se assemelham as regras não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas. (...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não tem – a dimensão do peso ou importância (...) As regras não tem essa dimensão (...) Se duas regras entram em conflito uma delas não pode ser válida (p. 36-43) Dworkin separa ainda os princípios em princípios jurídicos e princípios morais. Segundo a separação que Dworkin estabelece os princípios morais são dotados apenas de aceitabilidade moral, enquanto os jurídicos são dotados de aceitabilidade moral e ajustamento às decisões institucionais.(p. 75 e ss) Alexy dá continuidade ao estudo de Dworkin, repetindo em alguns pontos as premissas de Dworkin e aprofundando em outros pontos. Para Alexy os princípios são normas que permitem a realização parcial, dentro das possibilidades jurídicas existentes e assim os denomina de mandados de otimização: 47 O autor reúne o conceito de regras e princípios dentro do conceito de normas: “tanto regras como princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos de dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas normas”.(2006, p. 87) 48 Para Alexy essa é a indicação quando expressa que “As colisões dos direitos fundamentais acima mencionadas devem ser consideradas segundo a teoria dos princípios como uma colisão de princípios. O processo para a solução de colisões de princípios é a ponderação.”. (1988, p. 10) 85 Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por 49 conseguinte, mandamentos de otimização que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. (grifo do autor) (2006, p. 90) Por sua vez, as regras, outro subproduto de norma, o autor define como tendo conteúdo exato para que seja ou não realizado determinado ato, sem a possibilidade de sua realização parcial: São sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que se exige; nem mais nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. (2006, p. 90) Isso significa, nas palavras do autor, que “a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio” (2006, p. 91) Cabe neste ponto trazermos que tal teoria não está isenta de críticas. Segundo aponta Bonavides (2004), das quais há três centrais. A primeira diz respeito a colisão de princípios onde um deles é declarado inválido. A segunda diz respeito a ocorrência de princípios absolutos, que, diga-se de passagem, Alexy não reconhece, pois para o autor jamais há relação de preferência perante outros princípios. A terceira e última crítica seria relativa a vasticidade conferida pela teoria que seria objeto avaliações de todos os interesses possíveis. A esta terceira objeção, Bonavides diz que Alexy sequer dá atenção, salvo para patentear a diferença entre a sua teoria e a de Dworkin. Menciona Bonavides Esta é a mais fraca das objeções, e a ela pouca ou nenhuma atenção lhe concede o formulador da nova teoria dos princípios, salvo para patentear sua divergência com Dworkin, que entende de maneira restritiva os princípios, fazendo dos bens coletivos meras policies, ao contrário de Alexy, que alarga o conceito e insere nestes os referidos bens. Em Dworkin os princípios entendem unicamente com os direitos individuais, o que já não acontece com Alexy, cujo conceito tem mais amplitude. (2004, p. 280-281) 49 Nota do autor: O conceito de mandamento é aqui utilizado em um sentido amplo que inclui também permissões e proibições. 86 A teoria dos princípios, segundo aponta Bonavides, é hoje o coração das constituições porque causou o enriquecimento dos conteúdos materiais dos princípios cujo raio de abrangência restou alargado com a teoria de Dworwkin (2004, p. 281). Mas, quiçá, tão importante quanto a distinção entre as duas subespécies de normas, é o que há por detrás delas: a ressurreição dos princípios como espécies normativas capazes de ordenarem um Estado para a eticidade de suas regras. Nesse contexto pós-moderno de inúmeros conflitos numa sociedade complexa, onde a todo momento há a necessidade em algum lugar de ponderar sobre dois direitos conflitantes, os princípios tem justamente a função de acalmar aos litigantes sem que contudo desconsiderem-se ou exclua-se o direito de um deles agindo-se assim através da mitigação. Isso não quer dizer que princípios e regras tenham valores diferentes. Aliás, nesse sentido afirmam Barroso e Barcellos que “Sem embargo da multiplicidade de concepções na matéria, há pelo menos um consenso sobre o qual trabalha a doutrina em geral: princípios e regras desfrutam igualmente do status de norma jurídica e integram, sem hierarquia, o sistema referencial do intérprete”. (2003). Apontam ainda os autores, seguindo as diretrizes de Alexy, que “os princípios contem, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a seguir. Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. (2003)Daí a importância de uma separação das normas de direitos fundamentais porque, conforme Barroso e Barcellos “não raras vezes são caracterizadas como princípios, daí a importância de uma teoria que melhor elabore uma distinção entre regras e princípios” (2006, p.86). Como se sabe, os princípios, como mandados de otimização, tem uma função complementar constitucional. Eles preenchem lacunas constitucionais se desenvolvem e criam-se através da interpretação de outros princípios e do próprio sistema como um todo, tornando assim a Constituição o sistema aberto de regras e princípios. Dessa forma, embora não haja a previsão Constitucional expressa para a 87 proibição de retrocesso, por ser o sistema constitucional brasileiro um sistema aberto, com outros princípios irradiantes, com espaços de interpretação abertos, a leitura da existência implícita ao sistema do princípio da proibição de retrocesso é uma leitura possível. Ainda que os direitos fundamentais (e os princípios, por conseguinte) sejam destinados prima facie a proteger a esfera de liberdade do cidadão em relação ao o Estado, a Constituição, que não é documento axiologicamente neutro, traz em seu bojo uma dose expressiva de princípios e valores cujo centro é o desenvolvimento livre da personalidade humana no seio social. Tendo os princípios essa possibilidade de dimensionamento do direito, sem que necessariamente a subsunção da regra ao fato seja diametralmente aplicada ou não, a possibilidade de realização do direito fundamental se alarga gradativamente com a introdução múltipla de princípios no ordenamento. Há uma possibilidade muito maior de se fazer justiça ao caso concreto quando se pode mensurar a aplicabilidade ou não de determinado princípio de direito fundamental ao caso concreto. É por isso que entendemos serem os princípios de extrema importância para o direito atual. A realização da dignidade humana como o valor central do Estado democrático de direito, o desenvolvimento livre da personalidade humana como decorrência direta da dignidade, inúmeras vezes vai se defrontar com a necessidade de que o Estado, em qualquer âmbito de seus poderes, pondere que situação dentre algumas possíveis poderá ser mais adequada para a realização do valor central da Constituição. Caso não tivéssemos rompido com o positivismo, ou seja, caso os princípios não tivessem força de norma assim como as regras, a técnica da subsunção imperaria em situações em que as regras abarcassem uma solução prevista. Onde as regras não detivessem uma solução pré-concebida, o alvedrio do julgador, qualquer que fosse ele o poder do Estado, poderia ser usado. Isso não quer dizer que haja livre-arbítrio do julgador na escolha, acontece que essa escolha não poderá 88 ser despautada do objetivo central e dos valores constitucionais, sob pena de ser declarada nula por quem detém o poder de revisá-la. É por isso que além de se fazerem uso dos princípios explícitos na Constituição, a doutrina e jurisprudência ainda alargam o número de princípios numa leitura implícita da mesma. Seria como uma atividade de interpretação hermenêutica conforme o espírito do Constituinte originário que, deixando omissões, possibilita a leitura pela doutrina e jurisprudência na era do neoconstitucionalismo preenchendo espaços de vazio entre as normas constitucionais. Essa é a idéia pretendida por Alexy quando conceitua a Constituição como sistema aberto de regras e princípios. A leitura que fazemos sobre os princípios implícitos reconhecíveis, segue a mesma orientação do professor de Coimbra, Canotilho. Veja-se: Mas o que deve entender-se por princípios consignados na Constituição? Apenas os princípios constitucionais escritos ou também os princípios constitucionais não escritos? A resposta mais aceitável [...] é a de que a consideração de princípios constitucionais não escritos como elementos integrantes do bloco da constitucionalidade só merece aplauso relativamente a princípios reconduzíveis a uma densificação ou revelação específica de princípios constitucionais positivamente plasmados. (grifo do autor) (1993, p. 980-981) O autor português ainda vai além, aponta que um sistema constitucional baseado tão somente em regras, ou tão somente em princípios seriam imperfeitos; o primeiro por sua racionalidade prática, o segundo pela indeterminação e indecisão. Para o autor o sistema ideal é uma mescla de regras e princípios porque os princípios permitem normogenética e sistêmica em face de sua referência a valores ou sua relevância ou proximidade axiológica, os princípios possuem uma função normogenética e função sistêmica: são os fundamentos de regras jurídicas e tem uma idoneidade irradiante que lhes permite ligar objetivamente todo o sistema constitucional (1993, p. 169/170). Assim, nos parece inteligível uma leitura de que por ser um sistema aberto que permite a releitura com preenchimento, a Constituição pode abrigar o novo princípio que estamos a propor como implícito ao sistema constitucional brasileiro que prevê um projeto de cidadania crescente. 89 3.2 - PRINCIPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL: HISTÓRIA E FUNDAMENTOS O princípio da proibição de retrocesso, como apontamos, não está previsto de forma literal na constituição de 1988. Todavia, assim como o princípio da proporcionalidade, seus defensores adotam a idéia de que sua existência se dá como princípio implícito à Constituição. Canotilho é apontado como o grande precursor da idéia de proibição de retrocesso que também chama de contrarevolução social ou evolução reacionária. O conceito dado pelo mesmo autor sobre o princípio é que seria inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios. Assim, em tese, somente seria possível cogitar na revogação de direitos sociais se fossem criados mecanismos jurídicos capazes de mitigar os prejuízos decorrentes da sua supressão (2002, p. 336) Esse princípio é também conhecido como effect cliquet ou efeito catraca, movimento utilizado por alpinistas que não permitem-lhes retroagir no caminho já escalado. Segundo afirma Leite “A expressão ‘efeito cliquet’ é utilizada pelos alpinistas e define um movimento que só permite ao alpinista ir para cima, ou seja, subir. A origem da nomenclatura, em âmbito jurídico, é francesa, onde a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso (chamado de ‘effet cliquet’) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente. (2009) A doutrina desenvolvida nacionalmente acerca do tema não é extensa, todavia, praticamente é uníssona no que tange aos fundamentos que dão sustentação a tal princípio. O princípio que veda a retrocessão em direitos fundamentais sociais - e aqui estamos a falar especialmente, mas não exclusivamente da legislativa - baseia-se no Estado Democrático de Direito e nos princípios que dali se irradiam, dentre eles a segurança jurídica. 90 Sarlet, sobre o princípio da segurança jurídica refere que a segurança jurídica é inerente ao próprio Estado de Direito, um subprincípio concretizador: A doutrina constitucional contemporânea tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a segurança jurídica passou a ter status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e 50 estruturante do Estado de Direito (2009, p. 433) Como afirmou acima Sarlet, conectado à idéia de Estado democrático, atualmente, está o princípio da segurança, pois nem se cogita tentar imaginar um Estado democrático sem segurança jurídica. Complementa o autor gaúcho: um autêntico Estado de Direito é sempre também – pelo menos em princípio e num certo sentido - um Estado da segurança jurídica, já que, do contrário, também o “governo das leis” (até pelo fato de serem expressão da vontade política de um grupo) poderá resultar em despotismo e toda a sorte de iniqüidades. Com efeito, a doutrina constitucional contemporânea, de há muito e sem maior controvérsia no que diz com este ponto, tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a segurança jurídica passou a ter o status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito. (Sarlet, 2006, p. 4) E é neste ponto que Sarlet afirma sem erros, que “não há como deixar de consignar que, em termos gerais, também no presente contexto importa ter sempre presente a premissa de que a problemática da proibição de retrocesso guarda íntima relação com a noção de segurança jurídica” (2009, p. 433). Vai mais além o autor ao afirmar haver ligação íntima entre os princípios da segurança jurídica e dignidade humana. O professor gaúcho afirma não conseguir vislubrar a segunda sem a implementação da primeira: Considerando que também a segurança jurídica coincide com uma das mais 51 profundas aspirações do ser humano , viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização, desde logo é perceptível 50 Nota do autor: Não é por nada que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em recentíssimo julgado, reiterou o seu já consagrado entendimento sufragando a idéia de que a segurança jurídica constitui um dos elementos nucleares do princípio do Estado de Direito, no sentido de que o particular encontra-se protegido contra leis retroativas que afetem os seus direitos adquiridos evitando assim que venha a ter frustrada a sua confiança na ordem jurídica, já que segurança jurídica significa, em primeira linha, proteção de confiança que, por sua vez, possui hierarquia constitucional. (BverfGE=Coletânea oficial das decisões do tribunal Constitucional da Federal, Vol. 105, 2002, p. 57) 51 Nota do autor: Cfr. bem lembra Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 113. 91 o quanto a idéia de segurança jurídica encontra-se umbilicalmente vinculada à própria noção de dignidade da pessoa humana. (2006, p. 4) Com isso, percebe-se que da segurança jurídica podemos ver brotar o princípio da proteção da confiança, princípio do qual parece decorrer imediatamente o princípio em estudo, que de forma mediata decorre do Estado de direito e da segurança jurídica. Perceba-se que, em nosso caso particular, a partir do amadurecimento do Estado Democrático e Social, criou-se contornos favoráveis ao desenvolvimento da pessoa humana, seu principal foco e um dos pilares; por outro lado o que sustenta a pessoa humana não é outro princípio que não a própria segurança deste perante seus concidadãos e perante o próprio Estado. Afinal, a quem serve o Estado social senão à própria pessoa humana, permitindo seu natural desenvolvimento capaz de levá-la a evolução livre e contínua? Assim, podemos unir os quatro princípios como umbilicalmente ligados: Estado de direito, proteção da confiança, segurança e dignidade da pessoa humana donde decorreria o princípio da proibição de retrocesso. Tal princípio, ao contrário de alguns países europeus, no Brasil ainda caminha e clama por reconhecimento –ainda débil - embora seu estudo52 tenha avançado significativamente. Neste sentido inclusive Derbli acentua que “apesar de ser ainda incipiente no Direito Constitucional brasileiro, a discussão relativa ao princípio da proibição de retrocesso social já galgou níveis mais altos de desenvolvimento noutros países, seja no campo doutrinário seja na jurisprudência” (2007, p. 135). Uma leitura do princípio da vedação ou proibição de retrocesso provem da idéia de vocação da constituição democrática para a progressividade de conquistas no âmbito de implementação de direitos, tantos os de primeira como de segunda geração. Como se sabe, a irretroatividade dos direitos de primeira geração é indiscutível pelo teor do art. 60, parágrafo 4º da CF, por isso nos resta a discussão de sua abrangência aos direitos sociais. 52 Vide bibliografia: Sarlet, Barroso, Pinto e Netto, Fileti, Derbli, de conto, dentre outros 92 Veja-se que após, por exemplo, o legislador preencher as lacunas deixadas pela constituição com a regulamentação de certas matérias importantes a realização do valor igualdade, da dignidade humana buscada pelo constituinte originário, uma possível revogação desta regulamentação traria ao cidadão uma insegurança jurídica culminante numa retrocessão nos direitos sociais já implementados. Não é demais nesse ponto citar Canotilho, citado por Sarlet, que se posiciona a favor da impossibilidade de retrocessão alegando que a partir do momento que determinados direitos são colocados à disposição dos cidadãos através de normas infraconstitucionais que venham a complementar as disposições constitucionais lacunosas, essas incorporam-se como direitos já implementados. No âmbito da doutrina constitucional portuguesa, que tem exercido significativa influência sobre o nosso próprio pensamento jurídico, o que se percebe é que, de modo geral, os defensores de uma proibição de retrocesso, dentre os quais merece destaque o nome do nosso ilustre homenageado, Professor Gomes Canotilho, sustentam que após sua concretização em nível infraconstitucional, os direitos fundamentais sociais assumem, simultaneamente, a condição de direitos subjetivos a determinadas prestações estatais e de uma garantia institucional, de tal sorte que não se encontram mais na (plena) esfera de disponibilidade do legislador, no sentido de que os direitos adquiridos não mais podem ser reduzidos ou suprimidos, sob pena de flagrante infração do princípio da proteção da confiança (por sua vez, diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito), que, de sua parte, implica a inconstitucionalidade de todas as medidas que inequivocamente venham a ameaçar o 53 padrão de prestações já alcançado . Esta proibição de retrocesso, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, pode ser considerada uma das conseqüências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, neste contexto, assumem a condição de verdadeiros direitos de defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua 54 destruição ou redução . (Sarlet, 2006, p. 15) Assim, estaria sim o legislador ordinário legitimado a revogar tais regulamentações desde que as substituísse por novas leis concretizadoras que passassem a implementar de maneira ainda mais abrangente a igualdade material. Derbli sobre o tema ainda adverte que não basta que o legislador tenha competência para minudenciar o conteúdo das normas constitucionais que definem direitos sociais se, posteriormente, puder 53 Nota do autor: Cfr. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 474-5. 54 Cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra: Coimbra Editora., 1982, p. 374, entendimento que, neste ponto, não tem sido objeto de maior reformulação em obras posteriores do renomado constitucionalista; Assim também José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 131. 93 eliminar, pura e simplesmente, a regulamentação efetuada, recriando uma indesejável situação de vácuo jurídico. (2007, p. 4) E o mesmo autor vai mais além quando pontua que nosso Constituinte originário quis punir a omissão pela ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão e pelo mandado de injunção esclarecendo que “se a inércia do legislador, por si, já mereceu a reprovação do Poder Constituinte originário, muito mais censurável será sua atuação comissiva em sentido contrário ao desiderato constitucional, mormente em matéria tão sensível”. (2007, p. 5) Seguindo o raciocínio proposto, veja-se que o mandado de injunção constitucional permite seja manejado tal remédio constitucional sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direito inerentes a cidadania. Não podemos negar que o direito à educação e à saúde, essencialmente, são direitos sociais que tornariam inviável o exercício da cidadania de qualquer cidadão. Dessa forma, se há remédio contra a omissão legislativa que por ventura não propicie ao cidadão a viabilidade desses direitos após a sua implementação e incorporação ao patrimônio do mesmo, poder-se-ia achar razoável que lhe fosse retirada a fruição, quer por opção política, quer por falta de norma regulamentadora, de tal direito já incorporado? Outro ponto que merece registro é a diferença entre normas de imposição constitucional das meras ordens de legislar porque estas se esgotam com o simples ato legislativo, enquanto aquelas, segundo Canotilho (2001, p. 303, 304), “constituem directivas, imposições ou ordens permanentes, impositivas de um esforço de actualização legiferante permanente a fim de se obter uma concretização óptima da lei fundamental”. E essa concretização é um processo diuturno, uma renovação de atos para a consecução de fins constitucionais. Os direitos sociais, por muitos tidos como normas programáticas, são normas que impõe um dever de legislar e, parece-nos, de forma sempre evolutiva. 94 3.2.1 - O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO NO DIREITO COMPARADO Com o crescente alargamento das funções do Estado social passou-se a cogitar se haveriam formas de assegurar aqueles direitos já conquistados, já que o inchaço nas funções estatais poderia trazer consigo uma reversão por parte do mesmo na consecução de fins, na entrega de direitos prestacionais. No sistema alemão buscou-se defender a existência de um princípio que assegurasse o nível de desenvolvimento dos direitos sociais já alcançados, sem, no entanto, dar a elas caráter absoluto, travando assim retrocessos em virtude de mudanças econômicas. Curioso só o fato de que, pelo ordenamento tedesco, o princípio da proibição de retrocesso está ligado ao direito de propriedade. Conforme Derbli, o conceito de propriedade na constituição de Weimar em seu artigo 153 “abrangeria quaisquer direitos subjetivos privados de natureza patrimonial e não apenas a propriedade como direito real” (2007, p. 141), inclusive os direitos sociais já incorporados. Segundo o autor acima citado, ainda, a doutrina alemã não generaliza a aplicação do princípio da proibição de retrocesso a todo e qualquer direito subjetivo patrimonial de natureza pública, e sim estabelece requisitos como a necessária correspondência; a contraprestação pessoal do seu titular; posição jurídica de fruição própria do seu titular e, por fim, que a posição jurídica de seu titular destinese a garantia de sua própria existência. Neste País, a aplicação de tal princípio também está intimamente ligada ao princípio da segurança jurídica e ao princípio da proteção da confiança. A mesma orientação também é dada por Sarlet de forma mais elucidativa. Segundo afirma o referido autor, o conceito de propriedade desenvolvido ainda na Constituição de Weimar por Martin Wolff, foi alargado para além de direitos reais para alcançar também “uma função conservadora de direitos, oferecendo ao indivíduo segurança jurídica relativamente aos direitos patrimoniais reconhecidos 95 pela ordem jurídica, além de proteger a confiança depositada no conteúdo de seus direitos”. (2006, p. 17)55 Convém explicitar que tal proposição foi chancelada pelo Tribunal Constitucional alemão que reconheceu a titularidade do direito atribuída a uma posição jurídica equivalente ao direito de propriedade privada e que, dessa forma, havendo supressão sem qualquer compensação esta entraria em rota de colisão com o princípio do Estado de Direito. Há de ressaltar, conforme Sarlet, contudo, que o Tribunal alemão não reconheceu a proibição de retrocesso a tudo indistintamente. (...) de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, aqui apresentada em apertadíssima síntese, devem estar satisfeitos alguns requisitos: a) à posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo a prestação social) deve corresponder uma contraprestação pessoal de seu titular, que necessariamente não pode ser irrelevante, de tal sorte que uma equivalência absoluta entre a prestação estatal e a contrapartida pessoal não tem sido considerada indispensável, sendo tido como suficiente que a pretensão do particular não se encontre embasada única e 56 exclusivamente numa prestação unilateral do Estado ; b) deve tratar-se de uma posição jurídica de natureza patrimonial, que possa ser tida como de fruição privada para o seu titular, o que ocorre quando o titular do direito pode partir da premissa de que se cuida de uma posição jurídica pessoal, própria e exclusiva, caracterizada por 57 uma essencial disponibilidade por parte de seu titular ; c) A prestação deve servir à garantia da existência de seu titular, já que a propriedade também protege as condições necessárias para uma vida autônoma e responsável, especialmente considerando que a maior parte dos cidadãos alcança a sua segurança existencial menos por meio do patrimônio privado imobiliário e/ou mobiliário, do que pelo resultado de seu trabalho e, portanto, por meio de suas posições jurídico-subjetivas 58 patrimoniais (2006, p. 18) Sendo assim, como se nota, o reconhecimento do princípio em voga na Alemanha fica condicionado a implementação das condições enumeradas acima e que, assim como os demais princípios, não tem caráter absoluto. 55 Nota do autor: Cfr. Peter Badura, “Eigentum”, in: E. Benda/W. Maihofer/H.-J. Vogel (Org). Handbuch des Verfassungsrechts, 2ª ed., Berlin: Walter de Gruyter, p. 347. Registre-se que não adentraremos aqui a discussão (travada especialmente no âmbito da doutrina privatista) em torno de uma concepção funcionalista de propriedade e da gradativa afirmação, pelo menos no âmbito do direito pátrio, de uma visão que poderíamos designar de existencial da propriedade, como revelam, entre outros, os paradigmáticos estudos de Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999; Ricardo Aronne, Propriedade e Domínio, Rio de Janeiro: Renovar, 1999; e Luiz Edson Fachin, Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 56 Cfr. BverfGE (= Coletânea Oficial das Decisões do Tribunal Constitucional Federal), vol. 69, pp. 272, 301. 57 Cfr. Novamente BverfGE vol. 69, pp. 272, 300-1. 58 Cfr. BVerfGE vol. 53, pp. 257, 294. 96 Já em Portugal a inauguração do assunto veio pelas mãos de Canotilho. Para o autor português os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação, etc.), uma vez alcançados ou conquistados, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. Dessa forma, e independentemente do problema “fáctico” da irreversibilidade das conquistas sociais, o princípio da democracia social e económica fundamenta uma pretensão imediata dos cidadãos contra as entiades públicas sempre que o grau de reealização de seus direitos econômicos e sociais for afectado em seu sentido negativo, e estabelece uma proibição de “evolução reaccionária” dirigida aos órgãos do Estado. Esta proibição justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras das chamadas “conquistas sociais”[...]. (Canotilho apud Derbli, 2007, p. 145) Sob a inspiração canotilhana, o Tribunal Constitucional Português quando proferiu o Acórdão 39/84 onde analisava a extinção pura e simples do Sistema de Saúde, já que houvera a revogação da Lei 56/79 que o instituía, declarava a revogação inconstitucional por maioria usando como fundamento o princípio da proibição de retrocesso social. Nessa oportunidade houve a declaração de inconstitucionalidade do art. 17 da Lei em razão da não existência de substitutivo, de forma que por isso a subtração foi tida pelo Tribunal Cosntitucional luso como arbitrária. É, dessa forma, um princípio não só reconhecido pela doutrina, como também pelo órgão máximo constitucional português, incorporando-se como um princípio decorrente do sistema, já que não há expressa previsão constitucional na Constituição de Portugal. Por sua vez, na Ítália, o precursor da idéia da proibição de retrocesso foi Balladori Pallieri. Segundo Derbli (2007, p. 161) o autor ao tratar dos limites da atividade do Estado em face dos direitos individuais, afirma que as limitações, se voltam, em última análise, para a atividade legislativa e podem assumir diversas formas, que, em alguma medida, seriam identificáveis também na Constituição Brasileira. (2007, p. 161) Zagrebelski também defende a idéia de proibição de retrocesso, pois para o autor mesmo que se entenda que os direitos sociais previstos na Constituição não sejam direitos subjetivos e, por isso, gerem apenas uma obrigação política para o legislador, 97 as normas constitucionais que impõe o progressivo desenvolvimento dessa categoria de direitos gerarão a vedação de que a lei dê “marcha à ré” e retorne a estágio anterior de sua concretização (Zagrebelski apud Derbli, 2007, p. 165). O Tribunal Constitucional italiano, não fez menção sobre o princípio em voga, faz sim questão de deixar claro a existência de uma ‘reserva do possível’, algo que o cidadão razoavelmente pode esperar do Estado, pondo dessa forma os direitos sociais às possibilidades econômicas estatais. Em nosso país vizinho, a Colômbia, a proibição do retrocesso vem banhada do nome de “proibição da regressão” ou em seu idioma “prohibicion de regresividad”. Em primeiro lugar, cabe esclarecer que segundo conforme artigo-parecer da Comisión Colombiana de Juristas, organização não governamental com estatuto consultivo junto a ONU, a proibição da regressividade entrou no ordenamento colombiano através da ratificação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, sociais e culturais59. De acordo com o compromisso assumido pelo nosso país vizinho,s segundo informa o resumo executivo além de violadoras do compromisso assumidos com a ratificação, as medidas retrocessivas operam com uma presunção de invalidez. Essa presunção só se torna legítima quando lograr que as disposições adotadas assim o foram com apego aos critérios definidos pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas. Ainda assim, se aceito pelo Comitê a retrocessão, tal medida deverá ter caráter temporal. De acordo com o parecer da comissão, “aunque resulte admisible la adopción de una legislación o política regresiva, persiste para el Estado el deber de alcanzar de forma progresiva la plena satisfacción de los derechos reconocidos en el PIDESC”. Mas há de se ter claro que, ainda que posibilitada a regressividade, essa é relativa, pois quando as políticas ou normas implementadas implicam desrespeito a uma obrigação básica contraída pelo Estado Junto ao PIDESC. Neste sentido é o parecer: 59 Segundo Lopez-Murcia e Garcia-Daza, “Las disposiciones que contienen la obligación de desarrollo progresivo relevantes para la República de Colombia son el artículo 26 CADH, el artículo 1 del Protocolo de San Salvador y el artículo 2 PIDESC. El intérprete autorizado del artículo 26 de la CADH y del artículo 1 del Protocolo de San Salvador es la Corte IDH. Por su parte, el intérprete autorizado del artículo 2 del PIDESC es el Comité” 98 Esta prohibición de adoptar medidas regresivas deja de ser relativa y se convierte en absoluta cuando las políticas o normas implementadas implican un desconocimiento de alguna de las obligaciones básicas (inmediatas) de los Estados parte, tales como la de asegurar como mínimo la satisfacción de niveles esenciales de cada uno de los derechos, la de garantizar el disfrute de los derechos reconocidos en el PIDESC sin discriminaciones o la de comprometer hasta el máximo de los recursos disponibles. En estos casos, la regresividad no admite justificación alguna, y cualquier medida que se adopte en ese sentido constituye “sin más” una violación de los compromisos asumidos a la luz del derecho internacional de los derechos humanos. Outro ponto importante é que, segundo o parecer, há duas formas de se estabelecer a regressividade de um DESC na Colômbia. O primeiro se dá a través de “un examen normativo de las medidas, que procura determinar si la disposición limita, restringe o reduce la extensión o el sentido de un derecho social, o le impone a su ejercicio condiciones que antes no debía sortear” A segunda, é a realização do exame de resultado específico que a medida impõe, nestes termos: “puede realizarse un examen de resultados, para verificar empíricamente el impacto de las medidas que se consideran regresivas, recurriendo a estimativos de los efectos de su puesta en práctica”. Através desta base desenvolvida, a Colômbia teve entre 2002 e 2008 algumas medidas de regressividade que merecem citação neste trabalho. A reforma laboral edos sistemas de transferências, isso porque ambas também, não raras vezes são cogitadas em nosso Estado. A reforma do trabalho colombiana, Lei 789/2002, afetou a extensão de várias garantias dos trabalhadores: Modificó la definición de trabajo diurno y trabajo nocturno, afectando la liquidación de la remuneración adicional por trabajo nocturno (recargo nocturno). Redujo los recargos para el trabajo durante festivos y dominicales. Estableció indemnizaciones diferenciales por despidos sin justa causa según el nivel salarial. Modificó la liquidación de la indemnización por falta de pago. Contrajo el régimen salarial y prestacional de los aprendices. Segundo aponta o estudo realizado pela Universidade Nacional da Colômbia apontou que, para a classe daqueles que prestavam serviços noturnos, além da 18 horas que fora o novo horário estabelecido pela reforma, essencialmente os vigilantes e pessoas que trabalhavam em dias festivos e em domingos, perderam em torno de US 620,00 apenas no ano de 2005. 99 Conforme o apontamento do resumo executivo feito pela Comissão acima descrita, - Colombiana de juristas – as razões invocadas pelo legislativo e executivo para tal reforma não passam pelo critério adotado pela Comitê da ONU. Isso porque, segundo apontam “no se demuestra que la reforma respondiera a una necesidad social o económica imperiosa, no se acredita que la decisión fue adoptada tras la más amplia consideración de los diferentes cursos de acción posibles, y no fue justificada por referencia a la totalidad de los derechos económicos, sociales y culturales”. Ainda, convém recordar que naquele País, somente é reconhecida a temporariedade das medidas retrocessivas, o que não acontece na Lei 789/2002. Ainda, o compromisso daquele Estado é claro no sentido de que a adesão ao Pacto condiciona suas ações para um sempre avanço em termos de implementação dos DESC – Direitos econômicos, sociais e culturais. Já nas reformas constitucionais de 2001 e 2007 na Colômbia, as transferências, segundo aponta o Estudo, representou medida regressiva na inversão social das regiões. Segundo informa por dados estimativos da Federação Nacional de Departamentos, a reforma de 2001 representó una disminución de la financiación de la garantía de la educación, salud, saneamiento básico y agua potable en el período 2002 y 2008 del orden de 27.9 billones de pesos (cerca de 15.000 millones de dólares). Sumado a lo anterior, el acto legislativo 04 de 2007 supone una nueva reducción, en términos reales y en comparación con el régimen original previsto en la Constitución de 1991, por un monto de 34 billones de pesos en el período 2009-2016 (alrededor de 18.000 millones de dólares). Segundo aponta o Estudo, pelo menos por dois motivos tal reforma não preenche satisfatoriamente a possibilidade de regressividade. Umas delas é que a alternativa proposta pela mudança na lei não levara em consideração que dentre as alternativas possíveis, aquela fosse a menos lesiva. A segunda é que se demonstre que se demonstre que elas foram opções corretas para aproveitamento pleno do máximo de recursos disponíveis. 100 Aponta ainda o parecer que as medidas tiveram impacto negativo no financiamento da educação, saúde, saneamento básico e água potável que, segundo a Constituição colombiana contam com proteção especial. Adicionalmente, es necesario señalar que las dos reformas al régimen de transferencias han tenido un impacto negativo en la financiación de la educación, la salud, el saneamiento básico y el agua potable de poblaciones que a la luz de la Constitución Política cuentan con especial protección constitucional, como es el caso de la niñez (art. 44 de la Constitución Política), de la población rural (art. 64 C.P.) y de las personas de menores ingresos (art. 13 C.P.). De otro lado, la prioridad del gasto público social sobre otras asignaciones (art. 350 C.P.) no fue atendida con la aprobación de las dos reformas mencionadas, pues la restricción de la inversión social en las regiones se ha visto acompañada, sin embargo, de un aumento significativo del gasto militar en la última década. Como se nota, o princípio da proibição do retrocesso na Colômbia é um instrumento que, eficaz ou não para compelir o Executivo e o Legislativo – aqui não discutiremos isso – tem uma forma muito inteligente de olhar para as medidas e obstruí-las – quando for o caso -, sejam elas de cunho político ou legislativo, que afrontem os direitos de cunho econômico, social ou cultural. 3.2.2 - O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO NO BRASIL Segundo Derbli, quem teria possivelmente inaugurado o tema acerca da proibição de retrocesso em solo brasileiro, ainda que de forma indireta, teria sido José Afonso Silva em sua obra Aplicabilidade das Normas Constitucionais. Segundo descreve o Procurador do Estado do Rio de Janeiro José Afonso da Silva, confessadamente, sempre vinculou a disciplina das relações econômico-sociais às normas constitucionais de eficácia limitada e princípio programático (doravante apenas normas constitucionais programáticas), a saber, aquelas normas da Constituição que se limitam a traçar os programas das atividades dos órgãos estatais e os fins sociais cuja a consecução incumbe ao Estado e, que, conquanto disponham de caráter vinculativo e imperatividade, exigem a interpositio do legislador para que possam produzir efeitos.(2007, p.166) Outros a aprofundarem o tema no Brasil com fôlego - e que acabam servindo de inspiração para novos desenvolvimentos do tema -, foram Luís Roberto Barroso, Ana Paula Barcellos e Ingo Sarlet, esses últimos inclusive analisam o assunto em 101 trabalho conjunto60. Ingo afirma que a vedação de retrocesso não é absoluta, podendo haver sim ocasiões de retrocesso, todavia, desde que este retrocesso não atinja o núcleo essencial legislativamente concretizado do direito fundamental que, neste caso afetaria a própria dignidade da pessoa Além disso, mediante a supressão pura e simples do próprio núcleo essencial legislativamente concretizado de determinado direito social (especialmente dos direitos sociais vinculados ao mínimo existencial) estará sendo afetada, em muitos casos, a própria dignidade da pessoa, o que desde logo se revela inadmissível, ainda mais em se considerando que na seara das prestações mínimas (que constituem o núcleo essencial mínimo judicialmente exigível dos direitos a prestações) para uma vida condigna não poderá prevalecer, em princípio, até mesmo a objeção da reserva do possível e a correlata alegação de uma eventual ofensa ao princípio democrático e 61 da separação dos poderes . (Sarlet, 2006, p. 20) Ramos (2009) quando trata da previsão textual do princípio, vincula-se a idéia de que a proibição do retrocesso hoje faz parte do ordenamento brasileiro através da cláusula aberta do parágrafo 2º do artigo 5º da CF, já que o Protocolo de São Salvador o prevê e recentemente foi incorporado no ordenamento pátrio: A cláusula aberta do §2º do artigo 5º da CF acolhe no ordenamento constitucional brasileiro, além daqueles direitos fundamentais expressos em seu texto, também os que decorrem dos princípios por ela adotados, e ainda os que resultam da interpretação da Carta Democrática como um sistema, portanto, homogêneo e também, os direitos humanos decorrentes de tratados e acordos internacionais de que o Brasil seja signatário. Digno de destaque é que o princípio do não-retrocesso social, agora previsto expressamente no Protocolo de São Salvador, foi ratificado recentemente pelo Brasil. Assim, ao final e ao cabo, por meio deste pacto, os direitos fundamentais, uma vez reconhecidos e implementados, não admitem retrocesso e, ademais, devem obrigatoriamente, ser implementados progressivamente pelos países signatários. (2009. p. 117) Por sua vez, Netto (2010), em trabalho desenvolvido para a Disciplina de Direitos Fundamentais no seu curso de doutoramento, ao explicar a relativização do Princípio aponta para alguns parâmetros que podem ser usados em que, em seu confronto com outro princípio, a vedação de retrocesso poderia ceder espaço. 60 Vide bibliografia anexa. Nota do autor: Sobre este ponto remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 287 e ss. Neste mesmo sentido, igualmente pugnando pelo reconhecimento de um direito subjetivo a determinada prestação social, v., entre outros, especialmente Andreas Krell, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, p. 37 e ss, Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, p. 246 e ss., e, mais recentemente, Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial das omissões administrativas, Rio de Janeiro: Forense, 2003. 61 102 Apresentam-se, assim, a seguir, parâmetros para verificar a legitimidade constitucional das hipóteses em que, como resultado de ponderação, o princípio de proibição de retrocesso social venha a ceder diante de princípio com maior peso, afirmando-se a medida retrocessiva. Em suma, para ser constitucionalmente legítimo, o afastamento do princípio de proibição de retrocesso social tem que conformar-se aos seguintes parâmetros: a) Proporcionalidade em sentido amplo ou proibição da proteção deficiente; a.1) idoneidade ou aptidão; a.2) necessidade ou indispensabilidade; a.3) proporcionalidade em sentido estrito; b) igualdade; c) segurança jurídica e proteção da confiança; d) racionalidade da fundamentação da medida retrocessiva. (2010, p. 199) Parece que tal proposição dada pela autora se assemelha bastante com a aplicação do princípio da proibição do retrocesso mediante o uso do princípio da proporcionalidade quando este estiver conflitante com outros princípios ou valores. Derbli (2007), por seu turno, entende também haver possibilidade de mitigação ou relativiza o princípio. O autor, contudo afirma que o princípio deverá ser aplicado quando houver por parte do Estado alguma medida que atinja o núcleo essencial do direito fundamental social (p. 281 e ss). Ao fim e ao cabo, este autor acaba por seguir orientação muito próxima ao entendimento de Sarlet que defende que os órgãos públicos assim como os poderes não podem – em qualquer hipótese – suprimir pura e simplesmente direitos sociais ou, o que praticamente significa o mesmo, restringir os direitos sociais de modo a invadir o seu núcleo essencial ou atentar, de outro modo, contra as exigências da proporcionalidade e de outros princípios fundamentais da Constituição. (grifo nosso) (Sarlet, 2006, p. 23) Mas seguindo a orientação de Sarlet, então nos vem a pergunta: o que poderia ser considerado o núcleo de um direito social? Sobre um tema único podemos analisar determinado ponto. Veja-se, por exemplo, o artigo 7º inciso I da CF/88 prevê constitucionalmente a proteção contra despedida arbitrária. Ela pode acontecer com o trabalhador em casos de problemas de saúde provenientes de doença do trabalho, gestação, etc. Atualmente há o instituto da estabilidade que assegura a devida proteção ao trabalhador contra esse tipo de despedida. Além disso, contra a despedida imotivada, também a previsão de multa a ser paga sob o valor do FGTS recolhido durante o período trabalhado. 103 Aí temos um fato curioso. Quando da promulgação da Constituição em 1988, o artigo 10 da ADCT mencionava que, enquanto não houvesse lei que regesse tal matéria sobre despedida arbitrária, a proteção dar-se-ia através do pagamento de no mínimo quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, "caput" e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966 que era de 10% sobre o valor corrigido, ou seja, enquanto não houvesse norma que assegurasse ao trabalhador indenização por dispensa imotivada, essa indenização seria de 40% do valor do FGTS depositado durante o período de trabalho, devidamente atualizado. Supondo que norma viesse em 2012 restringindo casos de estabilidades para gestantes contribuintes individuais, a segurada facultativa, trabalhadores com problemas de saúde decorrentes ou não de acidente de trabalho e a segurada especial previstas no artigo 25 da Lei 8.213/91 ou até mesmo diminuindo os casos de indenização ou até mesmo os valores nos casos de para despedida imotivada. A orientação de Sarlet de resguardo ao núcleo essencial do direito social, é a de que estaria o legislador proibido de editar a referida norma, pois esta ao restringir os casos de aplicabilidade ou até diminuir um direito já implementado do direito de multa de 40% no valor do montante depositado a título de FGTS estria agindo contra o núcleo mínimo resguardado pela Constituição. Há de se apontar que tal análise de caso é de responsabilidade nossa e não de Sarlet. Nas situações acima descritas, temos aquilo que, em nosso entender, é o mínimo que o Constituinte originário colocou na Constituição contra as despedidas de emprego imotivadas, ou seja, o valor de 40% de multa a incidir sobre o FGTS depositado. Nas ADCT’s a Constituinte mencionou no artigo 10 em caráter provisório que “até que seja promulgada a lei complementar”. Fazendo uma leitura progressiva e de proteção ao núcleo na esteira de Sarlet, não poderíamos, por exemplo, aceitar que uma lei complementar, em 2012, viesse a reduzir pela metade esse valor, de forma que estaria agindo contrariamente a Constituição Federal e sua vontade. Como indica o Constituinte originário, aquele é o valor da indenização para casos de despedida arbitrária “até que seja promulgada lei complementar”, tão somente para que não se instale o vácuo legislativo entre a promulgação da constituição e a promulgação da lei complementar. Com isso entendemos que o 104 Constituinte originário deixou claro o que não queria e não aceitava e que tinha como um núcleo intocável. Em outro exemplo que trata ainda do mesmo caso, supomos, por exemplo, que outra norma viesse revogando a lei que estabelece a porcentagem prevista para indenização para despedida arbitrária (art. 6º, "caput" e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966). Com tal atitude se instalaria o vácuo legislativo, tão inaceitável quanto a diminuição da amplitude ou da percentagem da indenização pela despedida indesejada. Em se tratando do direito a saúde, vamos para outro exemplo. Atualmente a Portaria 3916/98 do Ministério da Saúde regulamenta a Lei 8.080/90 que menciona ser de competência dos municípios, por exemplo, além de assegurar a dispensação adequado dos medicamentos, definir a relação de medicamentos essenciais, com base no RENAME, a partir das necessidades decorrentes do perfil da nosológico da população. Embora a cobertura do SUS seja universal, em regra, são as pessoas mais necessitadas que procuram por ele, possivelmente pelas críticas que se fazem ao mesmo. Se houvesse a simples revogação do RENAME (relação nacional de medicamentos essenciais), cuja competência de elaboração é do Ministério da Saúde, tal conduta – política - acabaria por atingir diretamente o direito fundamental à saúde em seu núcleo, afetando principalmente pessoas de maior vulnerabilidade social que possivelmente tenham mais dificuldades em adquiri-los sem comprometer seu próprio sustento. Neste caso estar-se-ia suprimindo o próprio direito à dignidade, à vida, pois não se pode pensar dignidade sem o mínimo de saúde que permita exercê-la. 3.2.3 - UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO Afora o estudo comparativo dos casos acima (criados por nós) com sua resolução baseada nos estudos de Sarlet, podemos sugerir soluções aproximadas ao que prega Sarlet, mas fazendo uso da proposta do Estado Colombiano. 105 Essa proposição diferente de pregar em nosso meio a possibilidade de negar a retrocessão política e legislativa em termos de direitos sociais, seria a seguinte: interposta a medida, ou seja, a medida retrocessiva de algum direito social, deveria tal medida responder três perguntas. A medida passa pelo crivo do princípio da proporcionalidade e pelos três subprincípios decorrentes deste princípio: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Assim, far-se-iam as seguintes perguntas: os meios propostos são adequados aos fins a que se propõe? Há outro meio menos intromissivo na esfera dos direitos e tão eficaz quanto o que se propõe? Além disso, a medida imposta é temporária ou definitiva? Com essa proposição estaríamos a adotar uma posição diferente de todas as propostas até hoje discutidas no seio doutrinário. Isso porque entendemos seja razoável que haja, como alguns pregam62 a possibilidade de uma leitura conjunta dos sistemas com análise econômica, social, cultural da retrocessão em termos de direitos sociais não ficando assim adstrita a uma visão puramente jurídica de sua possibilidade. Estaríamos, deste modo, admitindo a retrocessão, desde que essa então fosse momentânea, por exemplo, para fazer frente a um momento de crise financeira estatal, por exemplo e que esta passasse pelo crivo da proporcionalidade. Quanto a possibilidade de admitir a existência do princípio da proibição de retrocesso no Brasil, pensamos que hajam mecanismos jurídicos suficientes para seu reconhecimento porque 1) decorrente do próprio espírito constitucional que deseja uma sociedade justa e solidária e assim sua existência seria implícita ao sistema 2) porque o país aderiu ao Protocolo de São Salvador (Ramos). 3.2.4 - O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO E OS TRIBUNAIS BRASILEIROS Os tribunais no Brasil, acerca do reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso, tem se manifestado favoravelmente, embora haja notável acanhamento 62 Neste sentido Edgar Morin em o pensar Complexo. Editora Garamond. 106 jurídico. Houve manifestações sobre o princípio inclusive no STF, embora em nenhum dos casos o princípio não tenha sido o ponto central da ratio decidendi. Podemos enumerar as seguintes manifestações do STF: ADI nº 1.946/DF, a ADI nº 2.065-0/DF (tida como a primeira manifestação daquela Corte sobre a matéria, datada de 17 de fevereiro de 2000), ADI nº 3.104/DF, a ADI nº 3.105-8/DF, a ADI nº 3.128-7/DF. Na ADI nº 1.946/DF, o tribunal pleno, por unanimidade, decidiu “dar ao art. 14 da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.98, interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7º, inciso XVIII, da Constituição Federal”. Naquele caso o artigo 14 da EC 20 pretendia estabelecer um limite máximo de R$ 1.200,00 para o recebimento de benefícios. O valor acima deste teto seria pago pela empresa e não pela previdência. De relatoria do Ministro Sydney Sanches na ementa do voto constou que “a pura e simples aplicação do artigo 14 da EC 20/98, de modo a torná-la insubsistente, implicará retrocesso histórico, em matéria social-previdenciária que não se pode presumir desejado”. Prossegue outorgando outras razões ao seu voto: se se entender que a previdência social, doravante, responderá por apenas R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira, facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a constituição visou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (Inc. XXX do art. 7 da CF/88) (...) No decorrer do voto ainda o Ministro expõe mais alguns motivos que ensejaram sua inclinação pela decisão vergastada, pois para o relator o legislador “estará, ainda conclamando o empregador a oferecer a mulher trabalhadora, quaisquer que sejam suas aptidões, salário nunca superior a R$ 1.200,00 para não ter de responder pela diferença” 107 Dessa forma, rechaçou-se qualquer possibilidade de aplicação do referido artigo, pois a ação fora julgada parcialmente procedente para que se fizesse uma interpretação conforme e excluísse tão somente a parte do artigo que limitava os ganhos. Já na ADI nº 2.065/DF não conhecida por decisão da maioria, o Ministro Relator vencido, Sepúlveda Pertence, entendeu que o princípio da vedação de retrocesso social deveria ser a razão de decidir em relação à Medida Provisória nº 1.911-8, que revogou dispositivos das Leis nos 8.212 e 8.213/91. Os dispositivos em voga extinguiam órgãos de deliberação colegiada, uma forma de dar caráter democrático da gestão da Seguridade Social. O Relator, acompanhado pelos Ministros Marco Aurélio, Néri da Silveira e Carlos Velloso, afirmaram que “Inconstitucional é exatamente gerar omissão inconstitucional que já não existia”. Por sua vez, na ADI nº 3.104/DF questionava-se sobre a constitucionalidade do art. 2º da Emenda Constitucional nº 41/2003. Entendeu a Corte que o art. 8º da EC nº 20/98 não criou direito subjetivo aos servidores que não haviam implementado os requisitos para aposentadoria à data de sua publicação. A Relatora, Ministra Cármen Lúcia, fez referência ao princípio dizendo que haveria ofensa ao princípio da vedação de retrocesso social caso fosse extinta a possibilidade de aposentadoria, esse sim um direito social, não incidindo o referido princípio em se tratando de “adaptação dos critérios de transição para o novo modelo previdenciário que se veio a estabelecer”. No caso, prevaleceu o entendimento de que não haveria direito adquirido a regime remuneratório para os servidores públicos estatutários. Ainda, nas ADI’s nº 3.105-8/DF e nº 3.128-7/DF, foram julgados improcedentes, por maioria, o pedido de declaração de inconstitucionalidade do caput do art. 4º da Emenda Constitucional nº 41/2003 que permitiu, então, ser devida a cobrança de contribuição previdenciária dos servidores públicos federais aposentados. Em voto vencido, em que julgava procedente o pedido, acompanhando a Relatora, Ministra Ellen Gracie, o Ministro Celso de Mello abordou o princípio da vedação de retrocesso social da seguinte forma: 108 Refiro-me, neste passo, ao princípio da proibição do retrocesso, que, em tema de direitos fundamentais de caráter social, e uma vez alcançado determinado nível de concretização de tais prerrogativas (como estas reconhecidas e asseguradas, antes do advento da EC nº 41/2003, aos inativos e aos pensionistas), impedem que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive (GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, 1. ed., 2. tir. 2002, Brasília Jurídica, p. 127-128; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, Almedina, item n. 03, p. 320-322; ANDREAS JOACHIM KRELL, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, 2002, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 40; INGO W. SARLET, Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988, in Revista Interesse Público, n. 12, 2001, p. 99). Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais. Ainda, em outro caso, de 2011, um agravo distribuído à Segunda Turma e com relatoria do Min. Celso de Mello tem o seguinte trecho no relatório e voto seguido pelos demais ministros que compõe a turma e que negaram provimento ao agravo do Município que estava sendo compelido, por decisão judicial, a matricular crianças de 0 a 5 anos em creches próximas às residências ou endereços de trabalhos de seus país ou responsáveis legais: O princípio da proibição do retrocesso impede, em termos de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelos cidadãos ou pela formação social em que ele vive Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional (como o direito à educação e à saúde, p. ex.), impedindo, em consequência que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo estado, exceto na hipótese – de todo incoerente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais”. Há ainda, manifestações de tribunais regionais em que o referido princípio é citado, como por ex. o TRF da 1ª Região no Mandado de Segurança nº 2002.38.00.016555-2/MG. Tratava de pedido de aposentadoria por tempo de serviço com conversão de tempo especial em tempo comum onde era posto em análise o artigo 28 da lei 9.711/98 que estabelecia critérios criados arbitrariamente pelo Poder Executivo. Para o relator do recurso, desembargador Souza Prudente, ao qual fora inclusive negado provimento ao recurso e a remessa oficial 109 A existência no direito constitucional brasileiro, pelo menos, da modalidade mais branda de ‘proibição de retrocesso social’ – que veda a ab-rogação da legislação ordinária destinada a concretizar determinado direito social constitucional – torna o art. 28 da Lei 9.711/98 parcialmente inválido, na parte em que pretende exterminar para o futuro da conversão de tempo especial em normal. Também no TRF da 2ª Região há casos. Um de significativa importância e que abordou o princípio da vedação de retrocesso foi a apelação cível nº 2001.51.01.025096-9/RJ. Nela se buscava o reconhecimento de imunidade tributária a entidade de ensino sem fins lucrativos e a 1ª Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso e à remessa oficial. Ao proferir seu volto, o Relator Ricardo Regueira, que teve seu voto seguido pelos demais companheiros de Turma, assim raciocina sobre o caso: Ainda que a Lei 9732/98 tivesse natureza jurídica de lei complementar, padeceria de vício de inconstitucionalidade material, já que está restringindo imunidade conferida pelo constituinte originário. – Em razão do princípio da proibição do retrocesso, somente é lícito ao legislador regulamentar o art. 195, § 7º, da Constituição Federal, para estabelecer condições que venham a conferir uma maior efetividade à imunidade em questão, e não para esvaziar seu conteúdo normativo. No TRF da 4ª Região, um julgado que deve ser destacado é o da apelação cível nº 2006.72.99.000635-6/SC. Distribuído à 6ª Turma, esta decidiu manter a decisão que havia concedido o benefício de pensão por morte a quem não detinha o direito por Lei. Isto porque, uma lei de 1997, Lei nº 9.528, restringia o âmbito de aplicação do direitos social a pensão que fora mais amplamente tratado pela Lei 8213/91. O Relator, Dr. Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, assim se manifestou em seu voto: Na pendência dessa controvérsia, ainda existente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, tenho que se deve dar primazia ao entendimento que confere proteção à criança e ao adolescente, que tem relevância constitucional (artigo 227 da CF/88). Seria o caso, inclusive, de dar-se efetividade ao princípio da proibição de retrocesso, uma vez que uma norma que faz cumprir o norte constitucional de proteção à infância não pode ser mitigada por norma superveniente, que lhe deixa totalmente ao desabrigo na ausência do seu guardião. Assim, a única interpretação possível, que compatibiliza a Lei Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 36, jun. 2010n.º 9.528, de 1997, com a Constituição da República é aquela segundo a qual não houve revogação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda há outros julgados em tribunais estaduais sobre assuntos diversos como, por exemplo, no Tribunal de Justiça gaúcho. Nele podemos encontrar 110 decisões citando o princípio em matéria penal63, civil envolvendo medicamentos64, ambiental65, etc. Como se nota, a visão sobre o princípio e até mesmo porque não dizer a aceitação do mesmo no País pela doutrina e jurisprudência, tem se alargado de forma que os tribunais tem lançado mão dele para fundamentar suas decisões quando as medidas do Estado diminuem ou até mesmo evacuam a possibilidade de acesso do cidadãos aos direitos sociais, especialmente aqueles imprescindíveis a realização do objetivo do nosso Estado: a dignidade humana dos Brasileiros. 3.3 - OBJEÇÕES E CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DE PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL Derbli cita objeções que são feitas ao princípio, dentre elas a) inexistência de definição constitucional acerca do conteúdo do objeto dos direitos fundamentais sociais; b) alegada equivalência entre retrocesso social e omissão legislativa (são correlatas: o retrocesso social pressupõe ato comissivo, e a omissão não é ato sujeito a refutação); c) constitucionalização do direito legal; d) força e proteção maior aos direitos sociais em detrimento dos direitos de liberdade (ambos têm a mesma proteção na CF/88); e) caráter relativo do princípio. (2007, p. 259-284) Quanto a primeira objeção, para o autor acima referido, desde que observado o núcleo essencial, podem outros princípios prevalecer sobre o da vedação de retrocesso, sendo vedada a supressão pura e simples da concretização de norma constitucional que permita a fruição de um direito social, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios. Ainda quanto a este ponto, Sarlet aponta que uma das objeções a ser considerada é que não há, em nível constitucional, previsão de conteúdo específico dos direitos sociais, deixando margem a quem não seja adepto ao reconhecimento de tal princípio o retrocesso de sua implementação crescente. 63 70015021058; 70014867642, Acessível em www,tjrs.jus.br 70046261715; 70045948049, Acessível em www,tjrs.jus.br 65 70005054010. Acessível em www,tjrs.jus.br 64 111 Contra o reconhecimento, em princípio, de uma proibição de retrocesso na esfera das conquistas sociais, costuma esgrimir-se especialmente o argumento de que esta esbarra no fato de que o conteúdo do objeto dos direitos fundamentais sociais não se encontra, de regra, definido ao nível da Constituição, sendo, além disso, indeterminável sem a intervenção do legislador, de tal sorte que este deverá dispor de uma quase absoluta liberdade de conformação nesta seara, que, por sua vez, engloba a autonomia para voltar atrás no que diz com as próprias decisões, liberdade esta que, no entanto, se encontra limitada pelo princípio da proteção da confiança e 66 pela necessidade de justificação das medidas reducionistas. (2006, p. 19) Para o autor gaúcho, tal pretensão não deve prevalecer, pois seria inseguro deixar à boa vontade do legislador a consagração de direitos sociais, este sujeito a todas as influências e interesses: Tal concepção, ao menos no nosso sentir, não pode merecer acolhida, sob pena de se outorgar ao legislador o poder de dispor (de modo excessivamente livre) do conteúdo essencial dos direitos fundamentais sociais, notadamente no que diz com a sua concretização legislativa, já que no plano da mudança constitucional formal já se dispõe da proteção (igualmente não absoluta, embora reforçada) assegurada pelos limites à reforma da Constituição, temática que – tal como anunciado - aqui não será desenvolvida. Da mesma forma, não há como acolher – pelo menos não integralmente e de modo especial no que diz com as suas conseqüências - a crítica tecida, entre nós, por Roger Stiefelman Leal, que chega a admitir – em face da incapacidade prestacional do poder público (no âmbito dos limites postos pela reserva do possível) a possibilidade de uma total supressão de uma determinada legislação 67 concretizadora de direitos sociais ou políticas públicas nesta seara .(2006, p. 20) Sarlet afirma, contrariando Roger Leal a quem cita na passagem acima que com a supressão de direitos sociais, estar-se-ia afetando o núcleo essencial já concretizado na esfera dos direitos sociais. em se admitindo uma ausência de vinculação mínima do legislador (assim como dos órgãos estatais em geral) ao núcleo essencial já concretizado na esfera dos direitos sociais e das imposições constitucionais em matéria de justiça social, estar-se-ía chancelando uma fraude à Constituição, pois o legislador – que ao legislar em matéria de proteção social apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte – poderia pura e simplesmente desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição (2006, p. 20). 66 Nota do autor: Este o pensamento de Miguel Afonso Vaz, Lei e Reserva de Lei. A causa da lei na Constituição Portuguesa de 1976, Porto, 1992, p. 383 e ss., consignando-se, todavia, que o autor não chega a considerar inexistente qualquer manifestação de uma proibição de retrocesso, já que faz menção à proteção da confiança e à necessidade de uma justificação para a edição de medidas retrocessivas no âmbito da legislação infraconstitucional. Entre nós, seguindo precisamente esta linha de entendimento, v. Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 163, para quem “a admissão de um princípio da proibição de retrocesso social, entendido como uma garantia dos direitos sociais perante a lei, conflita com o princípio da autonomia do legislador, uma vez que o nível de determinação constitucional desses direitos parece ser nenhum”. 67 Nota do autor: Cfr. Roger Stifelman Leal, Direitos Sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamentais, artigo extraído da página do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do RGS, acessível em http://orion.ufrgs.br/mestredir/doutrina/leal2.htm 112 O autor sul-rio-grandense vai mais além quando ensina que, em se atingindo o núcleo essencial do direito social, estar-se-ia ferindo a própria dignidade da pessoa humana, que se revela inaceitável. mediante a supressão pura e simples do próprio núcleo essencial legislativamente concretizado de determinado direito social (especialmente dos direitos sociais vinculados ao mínimo existencial) estará sendo afetada, em muitos casos, a própria dignidade da pessoa, o que desde logo se revela inadmissível, ainda mais em se considerando que na seara das prestações mínimas (que constituem o núcleo essencial mínimo judicialmente exigível dos direitos a prestações) para uma vida condigna não poderá prevalecer, em princípio, até mesmo a objeção da reserva do possível e a correlata alegação de uma eventual ofensa ao princípio democrático e da 68 separação dos poderes Fileti, por sua vez, cita 5 objeções a aplicação do princípio da proibição do retrocesso. Dentre elas a (1) indeterminação jurídico-constitucional do objeto dos direitos fundamentais combinada com a liberdade de conformação do legislador; (2) a confusão entre omissão legislativa e retrocesso social; (3) a constitucionalização do direito legal; (4) a maior proteção consagrada aos direitos fundamentais do que os dados aos direitos a liberdade e (5) a realidade fática e caráter relativo do princípio: a observância do núcleo essencial. (2009, p. 161-169) Cabe ressaltar, neste ponto, que as proposições apresentadas por Fileti são as mesmas apresentadas por Derbli em obra publicada dois anos antes. Nesta obra Derbli apresenta ainda uma sexta objeção que relaciona o princípio da proibição com o Estado Democrático (2007, p. 259-292). Outra autora, Netto, enumera quatro objeções a aplicação e reconhecimento do Princípio em estudo: (1) o princípio democrático; (2) a hierarquia das normas; (3) a necessidade de conferir eficácia ao sistema de direitos fundamentais; (4) a reserva do possível. Derbli em sua obra, para discordar da primeira objeção, propõe a separação das normas constitucionais de acordo com Barroso69 que coloca dentro das normas 68 Sobre este ponto remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 287 e ss. Neste mesmo sentido, igualmente pugnando pelo reconhecimento de um direito subjetivo a determinada prestação social, v., entre outros, especialmente Andreas Krell, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, p. 37 e ss, Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais, p. 246 e ss., e, mais recentemente, Marcos Maselli Gouvêa, O controle judicial das omissões administrativas, Rio de Janeiro: Forense, 2003. 69 O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. O autor divide as normas constitucionais em: normas de organização, normas definidoras de direitos e normas programáticas. De acordo com o autor as normas de organização “instituem órgãos da 113 definidoras de direito direitos plenamente fruíveis. Assim, essas normas não seriam programáticas, as quais dependeriam não só do legislador emitir norma regulamentadoras, mas também das opções políticas. Neste ponto concordamos com Derbli e com Claudio Pereira de Souza Netto que afirma que no Brasil, quando não se quer dar efetividade a determinada norma, basta-se que a etiquete com a marca de norma programática: “quando se quis, nos últimos vinte anos, deixar de aplicar a Constituição, bastou-se etiquetar a norma suscitada como programática e transferir para o legislador uma tarefa que, muitas vezes, era do Judiciário” (2003, p. 293-294) Outra objeção que julgamos necessário destaque neste trabalho é a alegada constitucionalização do direito legal que Netto denomina de hierarquia de normas (2010, p.145), ou seja, das regras que definam direitos sociais mesmo ordinárias, acabam por ter força de norma constitucional irrestringíveis. Pensar de tal forma nos afigura incabível. A um, porque não pregamos a absoluta irretroatividade em matérias de direitos sociais, a dois, porque a existência de Estado pressupõe aglutinação de pessoas com o mesmo fim, no caso brasileiro com o finco de construir uma sociedade mais justa, onde não sejam apenas 10% da sociedade de compõe o Estado a proprietária da razão absoluta, com os demais 90% apenas seguindo suas determinações que, diga-se de passagem, são determinações que não raras vezes visam a manutenção do status quo. Quando da promulgação da Constituição se a opção da nossa sociedade foi por criar um País democrático onde se afigure possível o desenvolvimento da pessoa humana e consequentemente da sociedade e das instituições que formam o Estado, não se pode cogitar que aqueles que mais dependem atualmente dos soberania, define-lhes a competência e determina as formas e processo de exercício do poder político” (2009, p. 91). As normas definidoras de direitos por sua vez, como o próprio nome diz definem direitos. Além disso o autor agrupa dentro dessas normas os direitos políticos, individuais, sociais (econômicos, sociais e culturais) e difusos (2009, p. 95-97). Estas normas, segundo o autor aponta, se dividem naquelas (1) que geram situações prontamente desfrutáveis, dependentes apenas de abstenção; (2) que ensejam a exigibilidade de prestações do estado (saúde, previdência social); (3) contemplam interesses cuja a realização depende da edição de norma infraconstitucional integradora. Exemplo: art. 7º, XI (direito a participação nos lucros)(2009, p. 95-112). Já as normas programáticas são “disposições indicadoras de fins sociais a serem alcançados. Estas normas tem por objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o Poder Público” Exemplo: (2009, p. 114) 114 direitos sociais sejam expostos a situações de insegurança jurídica enquanto os palácios seguem resguardados contra medidas do mesmo cunho. É importante assegurar a irretroatividade de tais direitos porque a minoria burguesa faria prevalecer sua vontade mediante seu poderio financeiro e privilegiaria as opções estatais a seus projetos de manutenção do status quo. Outra leitura possível, também apresentada por Derbli, demonstra não ser correta a leitura de constitucionalização ordinária porque a norma ordinária continua sendo passível de modificação e até mesmo revogação, desde que não venha a atingir o núcleo de essencialidade do direito fundamental. Oportuno magistério do autor neste sentido: Nessa linha de raciocínio, cumpre dizer que aqui não se defende a leitura da Constituição através da lei, posição que já não se coaduna com o pensamento jurídico contemporâneo. O que ora se afirma é que o princípio da proibição de retrocesso social pressupõe a possibilidade – que de fato existe – de que a norma constitucional experimente desenvolvimento deflagrado por ação do legislador, a quem também incumbe interpretar as normas constitucionais. Assim, uma lei posterior contrária a norma constitucional , em sua compreensão mais entendida, seria inválida – e mais uma vez, nenhuma novidade há nesta idéia. (2007, p. 271) Quanto a terceira objeção apontada por Fileti, Juiz do Trabalho catarinense, que, como já exposto, seguiu a mesma orientação do professor carioca Derbli, a questão de posição mais favorecida dos direitos fundamentais sociais em relação aos direitos de liberdade também não procede. Primeiramente não procede tal argumento pelo fato de que não há hierarquia entre direitos fundamentais de primeira geração e os de segunda geração onde se encontram os direitos sociais, pois a um, estão descritos no mesmo capítulo da Constituição, a dois, ainda que assim não fosse, a doutrina é clara no sentido de que como direitos ligados a dignidade humana decorrem da própria essência do caráter de humanidade de desenvolvimento do ser enquanto membro da sociedade. Além disso, outra maneira de nos colocarmos contra tal objeção, é que após um processo de amadurecimento democrático-constitucional os direitos de liberdade tendem a ser mais facilmente estabelecidos, isso porque exige do Estado tão somente um não agir, uma abstenção em determinadas áreas, por isso tão logo 115 implementada o valor democracia no Estado Brasileiro, sete anos após poderíamos dizer que nosso país, democraticamente, estava maduro70. Não é demasiada pretensão nossa dizer que economicamente o País tenha encontrado mais dificuldades para se tornar economicamente estável do que para implementar os direitos relativos a liberdade, após a implementação da Democracia em 198571. Por sua vez, após estabilizadas as questões econômicas e relativas aos direitos de primeira geração ligados ao valor liberdade, é natural que o Estado brasileiro tenha se colocado em marcha rumo a implementação da vontade constitucional já destacada no preâmbulo da Constituição72. Por isso, atualmente temos de somar forças que façam do conjunto jurídico-constitucional (ambos os princípios de liberdade e de igualdade) eficazes para que a constituição deixe de ser como ainda é, em certos trechos, literalmente letra morta para alguns cidadãos do País. Outra objeção que Derbli aponta é a desconexão com a realidade do princípio, ou seja, que o fato de proibir o retrocesso dos direitos sociais em dado momento do Estado, faz com que não se o interprete como princípio relativo, tampouco o conecte com a realidade do Estado naquele momento. Em primeiro lugar quem assim o critica caminha nas nuvens, pois nenhum autor prega – mais uma vez - um princípio de caráter absoluto (e nem se poderia!) porque os princípios não são absolutos e sempre estão sujeitos a colisão com outros princípios. Autores como Sarlet pregam uma possibilidade de torná-lo absoluto: 70 Em 1992 houve processo de impeachment contra o então presidente Collor, havendo uma substituição pacífica pelo então vice-presidente José Sarney sem que houvesse um retrocesso democrático. Ver sobre o assunto em Barroso, 2009, p. 309-410. 71 Segundo José Murilo de Carvalho, p. 7 e 124, 156 e seguintes. 72 Preâmbulo Constitucional: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. (grifos nosso) Note-se que inclusive os direitos sociais, ao contrário da ordem estabelecida na Constituição, no preâmbulo foram inclusive colocados a frente dos direitos a liberdade. De tal hermenêutica podemos extrair que no momento da promulgação, 3 anos após a implementação da democracia, o mais preocupante ao Constituinte originário era mesmo assegurar o exercício dos direitos sociais já que grande parte dos direitos ligados a liberdade já se mostravam com certa estabilidade. 116 quando do conflito resultasse o ferimento ao núcleo essencial do direito social, quando então na verdade estaríamos a afrontar o fundamento da República do artigo 1º, III da CF/88. Como a melhor hermenêutica propõe, fundamento é pilar, onde se calça uma estrutura que neste caso é a estrutura do Estado. Sendo assim, atingindo o fundamento (pilar) estar-se-ia a atingir a própria República. Além disso, não é demais neste ponto privilegiar o magistério de Hesse, para quem a norma constitucional pretende ter sua realidade concretizada, mas dentro do substrato espiritual do povo que ela rege, não de forma isolada. Assim a leitura de que a Constituição de 1988 prega é uma leitura conjunta; o princípio da proibição de retrocesso não poderia (nem seria) observado sob um aspecto absoluto sem se levar em consideração o espírito da Constituição conectado com a realidade posta no momento de sua análise sob casos concretos. A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas (1991, p. 14-15) Por fim, a última objeção apontada por Derbli que também é citada por Netto, seria a afronta do princípio em estudo com o princípio democrático, porque haveria supressão do espaço de conformação do legislador. Esta objeção também enfrenta fraqueza de fundamentação. Isso porque, neste ponto, pontuais são as três explicações dadas por Netto pelas quais não haveria objeção no reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso por intervenção no princípio democrático. São as explicações: 1. A ausência de determinação constitucional dos meios, firmas e ritmos de concretização dos direitos sociais; 2. A intenção conexão destes direitos com escolhas políticas e orçamentárias, com a definição das políticas públicas e tarefas estatais; 3. A dependência da concretização destes direitos de fatores econômicos que impõe a escolha de prioridades. (2010, p139) 117 Das explicações de Netto se retiram as conclusões que seguem: o legislativo não seria engessado porque teria de optar pelos meios de concretização da matéria; haveriam escolhas políticas e orçamentárias a serem privilegiadas de acordo com o legislador e ao seu tempo e de acordo com as prioridades elegidas pelos demais poderes.(2010, p.137-144) Netto ainda aponta como objeção o fato da constituição atribuir a todos os direitos e garantias fundamentais aplicação imediata e necessidade de conferir-lhes eficácia. Esclarece a autora que em razão da existência de vários direitos e garantias fundamentais de gerações diferentes, poderia haver colisão de interesses entre a realização de um em detrimento de outro e assim a proibição de retrocesso social estaria a privilegiar mais os direitos sociais.(2010, 144-155) Neste ponto, entendemos que não procede tal pretensão que se justifique como objeção. Supondo exemplificativamente que haja a colisão de uma liberdade individual e um direito social. Como vimos, ambos não detém preponderância um sobre o outro de forma que; em sendo necessário far-se-ia a ponderação entre ambos que resultaria na melhor escolha dentre as possíveis. Em havendo colisão entre dois direitos sociais onde fosse necessária o sacrifício de parte de um para implementação do outro, desde que este sacrifício fosse proporcional, poderia haver retrocessão de um dos direitos sociais até o ponto que não afrontasse seu núcleo. A última objeção citada por Netto da conta de que a reserva do possível, ou seja, as possibilidades financeiras do Estado seria um impasse a proibição na implementação dos direitos sociais já tornados eficazes através de normas. Mas como a professora mineira em passagem expôs a reserva do possível não poderá ser tomada também como absoluta, sob pena de se perpetuarem situação de extrema injustiça com privilegiamento de certos grupos: a máxima eficácia buscada para o sistema de direitos fundamentais não pode voltar-se à perpetuação de privilégios, a perpetuação de garantia de direitos densificados infraconstitucionalmente e de forma desproporcional, deixando sem atendimento necessidades básicas de grupos menos favorecidos. (2010, p.151) 118 De certo mesmo, temos que, de todas as objeções que os autores acima descritos trazem a baila, nenhuma delas tem a força e objetividade capaz de atenuar o impulso e a força que esse princípio tem calcado na doutrina como instrumento de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Tudo isso acima, aliás, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme o artigo 3º da Constituição Federal. 3.4 - OS PODERES LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO E SUAS RELAÇÕES COM OS DIREITOS SOCIAIS Conforme prega Conto, desde o nascimento do Estado moderno, a Constituição vem sendo objeto de teorização das quais, nas concepções contemporâneas, a ela tem se atribuído a função de transformação da realidade através da materialização de direitos fundamentais (2008, p. 63). Seguindo orientação de Canotilho, o autor informa que “não há uma teoria da constituição dominante, mas teorias adequadas a determinados modelos constitucionais”. Isso porque o próprio professor Português orienta que “uma teoria da Constituição, se quiser ser de alguma utilidade para a metodologia geral do direito constitucional, deve revelar-se como uma teoria da Constituição constitucionalmente adequada” (1994, p.79) Nesta esteira, entendemos que a Constituição Brasileira há de adotar a teoria que melhor se encaixe a seus propósitos, à vontade política nela contida e principalmente às necessidade daquele que é um dos elementos do Estado e que outorgaram poderes à Constituinte originária: o povo. Isso necessariamente passa por uma fusão da política com o Direito Constitucional73. 73 Há outras teorias acerca da Constituição de kelsen e Hegel onde o primeiro, positivista, defende que a Constituição é a lei da vida política global do Estado ligada ao “ser” do Estado e o segundo que 119 Esse debate entre as relações da política com a Constituição foi retomado após a Segunda grande Guerra. Como bem observa Fioravanti, as constituições do Século XX, especialmente após a segunda guerra, são políticas e não somente estatais. O Estado passa a não ser o objeto único da Constituição, mas a abrigar toda a sociedade. Nas palavras de Hesse ela se torna a “ordem jurídica fundamental da comunidade. (FIORAVANTE apud BERCOVICI, 2004) Assim, já dentro de uma interpretação de Estado não-positivista, com um conceito de Constituição dinâmico que não se limita a sua própria normatividade, dáse origem a teoria material da constituição. É uma ação reacionária ao formalismo de Kelsen que na teoria pura do direito pretendia retirar quaisquer valores do conteúdo Constitucional. No raciocínio de Kelsen, inclusive o Estado nazista alemão fora Estado de Direito, já que se ancorava em normas constitucionais positivas. Tal posição atualmente é inconcebível no pós positivismo, pois Estado de Direito pressupõe a incorporação não só do direito, mas da ética a ele agregada. O pós-positivismo começou pelas teorias elaboradas por Smend, Shimitt e Heller que pretendiam integrar a constituição de preocupações ideologias e axiológicas. Bonavides aponta que Aquelas direções estavam volvidas para o conteúdo e a matéria dos preceitos normativos, de preferência à forma e às categorias. Relativamente à Constituição, pretendiam em primeiro lugar fixar-lhe o sentido, o fim, os princípios políticos, as teses ideológicas que a animavam, a realidade social e íntima, verdadeira, substancial, que ela exprimia, enfim, aquele conjunto de valores, idéias e fatos sempre inafastáveis, na sua dimensão histórica e vital, capaz de fazê-la a um tempo consciência da Sociedade e expressão de um projeto dinâmico e prospectivo”. (2000, p. 100) Vale neste ponto citar o próprio Heller que prega que não seja a Constituição algo estático, embora também não vai ao outro extremo induzindo que deva a mesma deva ter apenas um caráter dinâmico O conhecimento do Estado e do Direito não deve esquecer nunca, certamente, o caráter dinâmico do seu objeto. Porém menos ainda deve esquecer que só cabe falar entende ser a Constituição um regime político-social do país, estando assim ligada ao dever ser do Estado (Bercovici, 2004) 120 de uma Constituição se for afirmada, não obstante a dinâmica dos processos de integração constantemente mutáveis e, neles, com um caráter relativamente estático. A Constituição do Estado não é, por isso, em primeiro lugar, processo mas produto, não atividade mas forma de atividade; é uma forma aberta através da qual passa a vida, vida em forma e forma nascida de vida. Assim como em uma melodia “transportada” mudaram os “elementos” e, não obstante, a melodia se considera idêntica , assim também na sucessão e na coexistência dos cooperadores que mudam, vê-se como a Constituição persiste como unidade diferenciável. (1968, p. 296) São essas idéias de Heller conjugadas com Smend e Schimitt que, dando origem a teoria material da constituição, criam uma onda de Constituições sociais (ou programáticas) no pós-guerra, informa Bercovici. Para o Autor A Teoria Material da Constituição permite compreender, a partir do conjunto total de suas condições jurídicas, políticas e sociais (ou seja, a Constituição em sua conexão com a realidade social), o Estado Constitucional Democrático. Propõe-se, portanto, a levar em consideração o sentido, fins, princípios políticos e ideologia que conformam a Constituição, a realidade social da qual faz parte, sua dimensão histórica e sua pretensão de transformação (2004). Mas atualmente a discussão em voga centra-se entre aqueles que consideram a Constituição um instrumento de governo definidor de competências e seus opositores que entendem que deva ela ser um plano pro futuro, um dever ser, um plano global que determina tarefas a serem adotadas pelo Estado, um documento capaz de definir fins ao Estado e a sociedade. Estes primeiros, adeptos do liberalismo, pretendem um Estado separado da sociedade, como se esta não fosse parte dele. Já os opositores, especialmente Joaquim Gomes Canotilho e sua teoria da Constituição dirigente, defende um vinculação do Estado como um todo (e portanto do Legislativo) à vontade constitucional. Estabelece o autor que há vinculação jurídica para os fins perseguidos pela Constituição, que dela irradiam imposições vinculativas ao poder político. Como é sabido, em nosso caso particular, o Brasil adotou uma constituição dirigente, justamente por indicar caminhos procurando uma igualdade suficiente para a transformação do Estado Brasileiro. Quer dizer, na mesma intenção que tinha Canotilho, a Constituição Brasileira visou mudar a realidade através das normas. Como aponta Derbli 121 a Constituição ora vigente inaugurou um Estado Social e Democrático de Direito, vocacionado para a progressiva consecução de um projeto de igualdade material ao menos relativa. Mais do que isso, a Carta Magna de 1988 posicionou o Estado como figura central na realização da justiça social, incumbindo da promoção dos direitos sociais e na formulação de políticas públicas voltadas para a paulatina eliminação de desigualdades. Pode-se dizer até que a Constituição estabelece para o poder político um destino de justiça social a ser alcançado. (2007, p.3) (grifo nosso) E o mesmo autor em outra passagem, reitera o já exposto de outra forma, mencionando que o objetivo central da Constituinte com o dirigismo implementado na Constituição visava à promoção de justiça social é de todo conveniente recordar que o modelo de dirigismo constitucional absorvido pelo constitucionalismo brasileiro é aquele voltado para a consecução de um projeto de transformação social, através da previsão, no corpo da Constituição, de um bloco dirigente que conforme a política, fixando-lhe as pautas de atuação para a promoção da justiça social (2007, p. 261) (grifo nosso) É necessário que haja por parte do Legislativo vinculação direta a vontade constitucional, pois do contrário ficaria ao alvedrio dos mandatários do Poder a ampliação do Estado social ou até mesmo seu desmantelamento e portanto o próprio Estado desejado pela Constituinte Originária. E tal necessidade de vinculação do Legislativo as promessas constitucionais ficam ainda mais fortes quando constatamos, como Barroso, que se vive no país um verdadeira crise de representação, o que inclusive enseja com certa urgência uma reforma política nas suas palavras: O país vive no vigésimo aniversário da constituição, um momento delicado, em que a atividade política passa por uma situação de preocupante desprestígio74. Uma grave crise no sistema representativo compromete a legitimidade democrática das instituições legislativas. Nesse cenário, não é possível negar a falta de sintonia entre sociedade civil e os órgãos de representação popular, em decorrência de um modelo político que deixou de servir adequadamente ao país. Por essa razão, tornou-se imprescindível a realização de uma reforma política, já de há muito adiada, capaz de fomentar a legitimidade democrática, a governabilidade e as virtudes republicanas. (2009, p. 346) 74 Nota do autor: Refletindo esse sentimento, o presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, em entrevista à Revista Veja, de 2 de abril de 2008, p. 13-4, declarou: “o Congresso deixou de votar, de legislar, de cumprir sua função. É uma agonia lenta que está chegando a um ponto culminante. Essa questão das medidas provisórias é emblemática da crise do legislativo, que não é mais uma voz da sociedade, não é mais uma caixa de ressonância da opinião pública. Está meio sem função. O Congresso está na UTI, e ninguém do mundo político percebe que esse desapreço pelo Poder Legislativo é uma coisa que está minando as suas bases de sustentação (...). Hoje, o Congresso só quer atuar na fiscalização de outros poderes, através da CPI’s, mas esquece que precisa antes fazer a faxina dentro da casa”. 122 E neste sentido é que cresce a importância do Judiciário de vincular os atos do Legislativo (e não só do Legislativo) à vontade constitucional, reconhecendo direitos que o Legislativo por inúmeras vezes fica inerte em implementar ou os retira. Cabe neste ponto a imposição por um dos Poderes – o Judiciário - para que o(s) outro(s) – Legislativo e por vezes o Executivo – dê efetivo cumprimento à Constituição e pelo menos ao núcleo essencial dos direitos sociais nela previstos e com isso reconhecendo uma proibição de medidas retrocessivas desses Poderes na implementação de direitos fundamentais, mormente para que não fiquem expostos as bem-querências do Legislativo e Executivo, principal responsável pela destinação orçamento estatal. Neste ponto, salutar são as palavras de Campilongo que aposta no Judiciário como conferidor de eficácia as normas constitucionais definidoras de direitos, essencialmente os sociais: Segundo aduz o autor “O desafio do Judiciário, no campo dos direitos sociais, era e continua sendo conferir eficácia aos programas de ação do Estado, isto é, às políticas públicas, que nada mais são que os direitos dessa seletividade inclusiva” (1994) Lucas neste sentido também aponta que a partir daí a relação entre os poderes sofre alteração, com o Judiciário intervindo em espaços antes reservados ao Executivo: altera-se significativamente a relação entre os Poderes do Estado, e a independência política do Poder Judiciário torna-se um grande dilema. O Judiciário é constitucionalmente obrigado a intervir em espaços tradicionalmente reservados ao Executivo para garantir direitos sociais e a se manifestar sobre um novo campo de litigiosidade, marcadamente coletivo e de orientação fortemente política.(2005, p. 182-183) Ainda, segundo o mesmo autor o advento do Estado social trouxe incumbências ao Poder Judiciário, fazendo com que sua atuação tivesse dimensão realizadora de direitos: As alterações nos padrões legislativos iniciadas pelo advento do Estado social influenciou na redefinição dos papéis da atividade jurisdicional, tornada mais atuante e mais discricionária para atender à aplicação de um direito que se torna mais principiológico e mais aberto, exigindo, por conseqüência, uma atuação mais 123 presente do magistrado. Não se trata de iniciar um relativismo jurisdicional sem parâmetros, mas de uma necessária discricionariedade para interpretar e aplicar os ideais constitucionais apresentados em forma de princípios constitucionais semanticamente abertos. (2005, p. 183) Neste diapasão, o Judiciário no Estado brasileiro, passou a desempenhar um papel político e tão somente ele tem o poder de vincular o Legislativo (declarando inconstitucional atos contrários a Constituição que retrocederem na implementação de direitos sociais) à execução sempre crescente dos direitos fundamentais sociais. Depois da reconstitucionalização do País em 1988, o Judiciário passou a exercer espaço significativo, ao lado, e por que não dizer muitas vezes à frente – para aqueles que falam em ativismo do Judiciário – dos demais poderes. Isso fez com que houvesse, após 1988, literalmente a revitalização da cidadania com auxílio forte do Poder Judiciário. E isso não entendemos por um ativismo judicial, mas verdadeira consciência do cidadão sobre o alcance de seus direitos. E isso, entende-se, não seja usurpação de poder do Judiciário, especialmente do STF, pois é eles atualmente que detém o dever de resguardo à Constituição e ao núcleo do Estado, a democrática e a dignidade dos brasileiros. 124 CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se tem em termos de Proibição de retrocesso atualmente no País é ainda muito promiscuo. Discute-se se há a possibilidade de seu reconhecimento e em que grau ele poderia acontecer, se de forma absoluta ou relativa. A doutrina no Brasil teve talvez seus primeiros passos dados pelos pés de José Afonso Silva em seu trabalho monográfico Direito Constitucional e aplicabilidade de suas normas. Atualmente sobre o assunto muitos trabalhos tem surgidos, mas a evolução em si do tema do princípio ainda é tímida, pois exceto em alguns casos há uma tendência da doutrina a olhar apenas sob o ângulo dos países desenvolvidos. Em se tratando de países como o Brasil, em desenvolvimento, ou até mesmo a Colômbia, país conhecidamente tido como subdesenvolvido em termos econômicos – e isso aqui é que nos interessa - o tema tem avanços mais significativos. O olhar sobre países em semelhança com o Brasil em termos de necessidade ainda vigorante de implementação de direitos sociais – que Streck chama de modernidade tardia e promessas incumpridas - se faz necessária e até iríamos mais longe, indispensável. O olhar acuidado sobre o princípio da proibição do retrocesso no país, demonstra, conforme Ramos, que de acordo com o protocolo de São Salvador, tratado sobre direitos humanos introduzido no ordenamento jurídico em 1999 através do Decreto 3.321 e a cláusula constitucional abertura do parágrafo 2º do artigo 5º poderíamos ter tal princípio como introduzido em nosso sistema constitucional. Outra leitura possível é a que Sarlet faz tornando os direitos de cunho social também cláusulas insertas no texto que restringe atuação do Constituinte derivado. Por fim, não é demasiada insistência em mencionar que o quadro constitucional não aceita regressão em termos de direitos sociais, porque visa progressivamente a implementação de um Estado justo e solidário que indiscutivelmente passa pela possibilidade de se ter segurança jurídica em relação a não só os direitos de liberdade, mas também aos DESC. 125 Por fim, nos cabe pensar em que intensidade poderia ter o princípio em voga aplicação em nosso meio jurídico. Não é demais uma vez mais repetir que não se pode tratar princípios como absolutos. Mesmo os direitos de liberdade não o são. Dessa forma, a aplicação do princípio da proibição do retrocesso pode atualmente no País ser trabalhada com duas restrições. Uma delas é de forma que não atinja o próprio núcleo essencial do direito social como propõe Sarlet. Mas então se pergunta: o que é o núcleo essencial do direito social? Uma análise criteriosa deve ser feita em cada caso de forma que não seja esvaziado o conteúdo do direito social. Por exemplo, o direito a saúde que não dê o mínimo necessário ao necessitado deste, está a ferir o próprio direito social em sua essência, pois saúde, presume-se possibilidades mínimas de ofertar aqueles que se encontrem enfermos condições de consultas com quem possa lhe diagnosticar a causa e o tratamento – se houver – para a enfermidade. Supondo que medida legislativa, em razão da necessidade de cortes nos gastos públicos, restrinja os atendimentos emergenciais a todos os brasileiros. Caso a medida fere o princípio em voga porque o direito a saúde somente fica evidenciado quando da existência de uma enfermidade e, tendo um cidadão necessidade de saber qual a causa da falta de saúde e não tendo condições de consulta médica, pois supõe-se seja um total desafortunado, fica-lhe ceifado além do direito de gozo de saúde, o próprio direito a vida a medida que ela possa ser colocada em risco. Num segundo caso suponha-se que, por medida política, seja feito atendimento médico somente em uma cidade central com raio de abrangência de 200 km. Estando determinado cidadão acometido de doença que necessite de urgente tratamento, num Estado como o Amazonas, estar-lhe-á, com grandes probabilidades, suprimido por completo o direito a saúde e com ele provavelmente a vida. Neste sentido é que entendemos ser pertinente a análise através dos ensinamentos de Sarlet. Por outro lado, pensamos ser indiscutivelmente necessário que, em razão de não ter caráter absoluto tal princípio, em alguns casos possa haver sim retrocessão, todavia, ainda que haja, esta deve ser temporária e passar pelo crivo do princípio da proporcionalidade e seus subprincípios: necessidade, adequação e proporcionalida126 de em sentido estrito. Pela análise da medida, seja de cunho político ou legislativo, se terá a resposta as seguintes perguntas: Há necessidade de tal medida? Há outro meio tão ou mais eficaz que resultasse em melhor ou igual resultado? A medida é a menos gravosa? Os meios são adequados aos fins que pretende? Com essas considerações, pensamos ter contribuído, ainda que com severas limitações inerentes a pessoa que os escreve, ao desenvolvimento do tema proposto dando senão grandes contribuições, algumas mais que sejam pertinentes ao aprofundamento futuro daqueles que me derem a honra de ler esse trabalho. 127 BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. 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