Coletânea de Trabalhos de Conclusão de

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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
C OLEÇÃO
A DMINISTRAÇÃO
J UDICIÁRIA
Volume V
COLEÇÃO
ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA
VOLUME V
COLETÂNEA DE TRABALHOS DE CONCLUSÃO
DE CURSO APRESENTADOS AO PROGRAMA DE
CAPACITAÇÃO EM PODER JUDICIÁRIO
– FGV DIREITO RIO –
Concretização do Direito Humano de Acesso à Justiça: Imperativo Ético
do Estado Democrático de Direito • MARCELO MALIZIA CABRAL
Orientador: Professor Dr. ROGÉRIO GESTA LEAL
Gestão Estratégica de Vara • ELIANE GARCIA NOGUEIRA
Orientadora: Professora MARIA ELISA BASTOS MACIEIRA
Planejamento Estratégico em Comarca de Porte Médio – Santa Maria –
Poder Judiciário do Rio Grande do Sul • VANDERLEI DEOLINDO
Orientador: Professor Dr. MAURITI MARANHÃO
Trabalhos aprovados e aceitos como requisito parcial
para a obtenção do certificado de Pós-Graduação Lato
Sensu, nível de especialização, em Poder Judiciário.
Fundação Getúlio Vargas, Escola de Direito FGV Direito
Rio. Setembro de 2007.
Porto Alegre, maio de 2009
Marcelo Malizia Cabral, Eliane Garcia Nogueira e Vanderlei Deolindo
2
EXPEDIENTE
Publicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – CorregedoriaGeral da Justiça
Autores:
Eliane Garcia Nogueira – Graduada em Direito pela UFPEL - Universidade Federal de
Pelotas, Juíza de Direito no Rio Grande do Sul, Pós-graduada pela FGV/RJ, na área
de Administração Judiciária. Secretária Executiva do Plano de Gestão pela
Qualidade do RS.
Marcelo Malizia Cabral – Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas.
Especialista em Poder Judiciário, área de Administração, pela Escola de Direito da
Fundação Getúlio Vargas/RJ. Consultor do Plano de Gestão pela Qualidade do TJRS.
Juiz de Direito no Estado do Rio Grande do Sul.
Vanderlei Deolindo – Graduado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.
Especialização em Gestão Empresarial – Universidade Regional Integrada.
Especialização em Administração Judiciária – FGVRio. Consultor do Plano de Gestão
pela Qualidade do Judiciário do RS. Vice-Presidente Cultural da AJURIS – Associação
dos Juízes do Rio Grande do Sul. Juiz de Direito do Estado do Rio Grande do Sul.
Arte da capa: Paulo Guilherme de Vargas Marques – DAG-TJRGS
Diagramação e impressão: Departamento de Artes Gráficas do TJRGS
Tiragem: 1.500 exemplares
Coletânea de trabalhos de conclusão de curso apresentados ao Programa de Capacitação em Poder
Judiciário - FGV Direito Rio. – Porto Alegre : Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2009.
208 p. : 21 cm. – (Coleção Administração Judiciária v. 5)
Conteúdo: Concretização do direito humano de acesso à justiça : imperativo ético do estado
democrático de direito / Marcelo Malizia Cabral ; Orientador: Professor Dr. Rogério Gesta Leal –
Gestão Estratégica de vara / Eliane Garcia Nogueira ; Orientadora: Professora Maria Elisa Bastos
Macieira – Planejamento estratégico em comarca de médio porte - Santa Maria - Poder Judiciário do
Rio Grande do Sul / Vanderlei Deolindo ; Orientador: Professor Dr. Mauriti Maranhão.
Trabalhos aprovados e aceitos como requisito parcial para obtenção do certificado de PósGraduação Lato sensu, nível de especialização, em Poder Judiciário. Fundação Getúlio Vargas,
Escola de Direito FGV Direito Rio. Setembro de 2007.
1. Poder Judiciário – Administração da justiça. 2. Acesso à justiça. 3. Arbitragem. 4. Juiz –
Liderança. 5. Juiz – Relações humanas – Motivação no trabalho. 6. Mediação. 7. Poder Judiciário –
Planejamento estratégico. I. Cabral, Marcelo Malizia. II. Nogueira, Eliane Garcia. III. Deolindo,
Vanderlei. IV.Título: Concretização do direito humano de acesso à justiça : imperativo ético do
estado democrático de direito. V. Título: Gestão Estratégica de vara. VI. Título: Planejamento
estratégico em comarca de médio porte - Santa Maria – Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. VII.
Série.
CDU 347.97/.99
Catalogação na fonte elaborada pelo Departamento de Biblioteca e de Jurisprudência do TJRS
Coleção Administração Judiciária
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MBRO
ADMINISTRAÇÃO DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Des. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA
Presidente
Des. ROQUE MIGUEL FANK
1º Vice-Presidente
Des. JORGE LUÍS DALL’AGNOL
2º Vice-Presidente
Des. LUIZ ARI AZAMBUJA RAMOS
3º Vice-Presidente
Des. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS
Corregedor-Geral da Justiça
4
Marcelo Malizia Cabral, Eliane Garcia Nogueira e Vanderlei Deolindo
Coleção Administração Judiciária
5
SUMÁRIO
CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA: IMPERATIVO
ÉTICO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO • Marcelo Malizia Cabral
INTRODUÇÃO ...........................................................................13
1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ACESSO À JUSTIÇA .........................18
1.1 A preocupação com o acesso à justiça no mundo .........................18
1.2 Origem e desenvolvimento do acesso à justiça no Brasil ................22
2 CONTEÚDO DA EXPRESSÃO ACESSO À JUSTIÇA ...............................25
2.1 A significação brasileira e suas conseqüências ............................25
2.2 As investigações do direito comparado .....................................29
3 CONCEITUAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA .........................................33
4 O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO ................................43
4.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos ............................43
4.2 A consagração dos direitos humanos prestacionais na ordem
constitucional ..................................................................44
4.3 O acesso à justiça na ordem constitucional e sua natureza
de direito humano prestacional .............................................46
4.4 O desafio da concretização dos direitos humanos ........................49
5 OBSTÁCULOS À CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO
À JUSTIÇA............................................................................52
5.1 Óbices de natureza econômica ..............................................52
5.2 Óbices de natureza cultural e social ........................................56
5.3 Óbices de natureza legal .....................................................61
6 CONCRETIZANDO O DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA ..............63
6.1 O papel dos movimentos sociais .............................................63
6.2 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas .............66
6.3 Ações para a superação dos obstáculos de natureza econômica ........70
6.4 Ações para a superação dos obstáculos de natureza cultural e social .....73
6.5 Ações para a superação dos obstáculos de natureza legal ...............79
6
Marcelo Malizia Cabral, Eliane Garcia Nogueira e Vanderlei Deolindo
REFLEXÕES FINAIS .....................................................................81
REFERÊNCIAS ...........................................................................85
GESTÃO ESTRATÉGICA DE VARA • Eliane Garcia Nogueira
INTRODUÇÃO .......................................................................... 91
1 GESTÃO ESTRATÉGICA ............................................................ 94
1.1 Necessidade de Gestão........................................................94
1.2 O Que é Gestão Estratégica ..................................................97
1.3 A Importância da Comunicação ..............................................98
1.4 Criando um Clima ............................................................ 101
2 GESTÃO DE PESSOAS .............................................................104
2.1 Importância do Tema - Motivação ......................................... 104
2.2 Liderança ..................................................................... 110
2.3 Juiz-Líder ..................................................................... 113
2.4 Juiz-Líder e Conflitos........................................................ 115
2.5 Juiz-Líder e Motivação ...................................................... 117
3 PROCESSOS DE TRABALHO ......................................................120
3.1 Eficiência no Setor Público ................................................. 120
3.2 Conceito de Processos....................................................... 123
3.3 Mapeamento dos Processos de Trabalho.................................. 124
3.4 Mapeamento X Tecnologia da Informação ................................ 124
3.5 Como Melhorar os Processos de Trabalho: Melhoria Contínua ......... 126
3.6 Indicadores de Desempenho................................................ 129
4 ESTUDO DE CASO: GESTÃO ESTRATÉGICA DE UMA VARA CÍVEL ..........134
4.1 Introdução .................................................................... 134
4.2 Identificação do Órgão ...................................................... 136
4.3 Nome do Trabalho ........................................................... 136
4.4 Nome do Responsável e Equipe ............................................ 136
4.5 Delimitação da Ação......................................................... 136
4.6 Objetivos...................................................................... 136
4.7 Metas .......................................................................... 137
4.8 Desenvolvimento............................................................. 137
4.8.1 Identificação do Problema.......................................... 137
4.8.2 Análise das Principais Causas....................................... 138
4.8.3 Plano de Ações ....................................................... 138
4.8.3.1 Foco no Cliente Externo................................... 138
4.8.3.1.1 Pesquisa de Satisfação ........................ 138
4.8.3.1.2 Atendimento do Balcão........................ 139
Coleção Administração Judiciária
4.8.3.2 Foco nas Pessoas (cliente interno) ...................... 139
4.8.3.2.1 Rotinas de Reuniões Mensais de Avaliação.... 139
4.8.3.2.2 Reuniões de Confraternização ............... 139
4.8.3.2.3 Escalas para Férias e Licenças ............... 140
4.8.3.2.4 Valorização dos Estagiários e Voluntários
como Auxiliares ................................ 140
4.8.3.2.5 Ambiente de Trabalho......................... 141
4.8.3.3 Foco nos Processos......................................... 142
4.8.3.3.1 Mapeamento e Acompanhamento das Rotinas
Cartorárias...................................... 142
4.8.3.3.2 Padronização dos Procedimentos ............ 142
4.9 Métodos e Técnicas Adotadas no Desenvolvimento das Ações ....... 142
4.10 Resultados e Benefícios Alcançados ..................................... 143
4.11 Comparação, Através de Dados Estatísticos, de Maneira
a Comprovar a Eficácia das Ações no Alcance dos Objetivos ........ 145
CONCLUSÃO .......................................................................... 149
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 152
ANEXOS................................................................................ 154
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO EM COMARCA DE PORTE MÉDIO – SANTA
MARIA – PODER JUDICIÁRIO DO RIO GRANDE DO SUL • Vanderlei Deolindo
1 INTRODUÇÃO........................................................................ 161
1.1 OBJETIVOS..................................................................... 161
1.1.1 OBJETIVO GERAL ..................................................... 161
1.1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ............................................. 161
1.2 O PODER JUDICIÁRIO E SUA ADMINISTRAÇÃO ............................. 162
1.3 A JUSTIFICATIVA PARA A REALIZAÇÃO DE UM PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO ................................................................. 171
2 DESENVOLVIMENTO................................................................ 175
2.1 A COMARCA DE SANTA MARIA – RS ......................................... 175
2.1.1 LOCALIZAÇÃO E ESTRUTURA....................................... 175
2.1.2 SITUAÇÃO CRÍTICA – PROBLEMAS.................................. 176
2.2 O PRINCÍPIO: LIDERANÇA E VONTADE PARA MUDAR ..................... 177
2.3 O PLANO DE GESTÃO ........................................................ 181
2.4 UMA DAS AÇÕES – PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO ....................... 190
2.4.1 ANÁLISE DO AMBIENTE EXTERNO E INTERNO ................... 191
2.4.2 CENÁRIOS............................................................ 195
2.4.3 VALORES............................................................. 196
2.4.4 VISÃO ................................................................ 197
7
Marcelo Malizia Cabral, Eliane Garcia Nogueira e Vanderlei Deolindo
8
2.4.5
2.4.6
2.4.7
2.4.8
2.4.9
2.4.10
2.4.11
MISSÃO ............................................................... 197
FATORES CRÍTICOS DE SUCESSO .................................. 198
LINHAS ESTRATÉGICAS ............................................. 199
OBJETIVOS ESTRATÉGICOS ........................................ 200
INDICADORES........................................................ 201
PLANOS DE AÇÃO ................................................... 202
IMPLANTAÇÃO E CONTROLE – PDCA ............................. 203
3 CONCLUSÃO ........................................................................ 205
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 208
Concretização do Direito Humano
de Acesso à Justiça: Imperativo Ético
do Estado Democrático de Direito
MARCELO MALIZIA CABRAL
10
Marcelo Malizia Cabral
11
RESUMO
Concretização do direito humano de acesso à justiça. Esse é o tema central
do estudo. Constitui preocupação de todos os povos, em todos os tempos.
Inicialmente, tratado apenas no plano formal, como a possibilidade
universal de acesso à justiça. Após, com a consagração do princípio da
igualdade material, o tema passou a ser investigado sob o prisma da
possibilidade concreta de as populações terem acesso à justiça. Insere-se o
acesso à justiça no rol dos direitos humanos prestacionais. Examina-se e
define-se seu conteúdo de modo bem mais abrangente que o simples
acesso à jurisdição formal, integrando-lhe, também,
mecanismos
consensuais de resolução de conflitos, tais como a conciliação, a mediação
e a arbitragem. Em decorrência de sua caracterização como direito social,
defende-se a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas e de
ações afirmativas de parte do Estado e da sociedade, à garantia do acesso
material da humanidade a mecanismos de pacificação social. Examinam-se
os obstáculos à sua realização – de ordem econômica, cultural, social e
legal – e, por fim, apresentam-se propostas de ações para a concretização
do direito humano de acesso à justiça. Apregoa-se, então, a valorização
das ferramentas consensuais de resolução de conflitos, com a utilização
dos recursos humanos e materiais existentes nas comunidades, reservandose a jurisdição formal como instrumento subsidiário e complementar à
realização da justiça.
Palavras-Chave
Acesso à justiça; direitos humanos; políticas públicas; conciliação;
mediação; arbitragem.
12
Marcelo Malizia Cabral
Coleção Administração Judiciária
13
INTRODUÇÃO
O acesso à justiça constitui um dos temas que maior atenção tem
despertado nas sociedades contemporâneas.
A evolução dos povos tem apontado para um gradativo crescimento das
atribuições dos poderes estatais.
A insegurança e a incompreensão ocasionadas por uma produção legislativa
sem precedentes, aliadas a uma exigência crescente de ações negativas e positivas
do Poder Executivo no respeito às liberdades públicas e na concretização de um
extenso rol de direitos sociais, culturais e econômicos, têm provocado um
crescimento vertiginoso da demanda do Poder Judiciário.
Sobre esta hipertrofia do Poder Judiciário, com peculiar clareza manifestouse o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mário da Silva Velloso:
Eu ouvi, e já mencionei isto por mais de uma vez, de um magistrado
carioca radicado em São Paulo, o eminente juiz Américo Lacombe, no
seu discurso de posse na Presidência do Tribunal Federal da 3ª Região,
afirmativa que achei muito interessante. Disse ele que, se os séculos
XVIII, este a partir da segunda metade, e XIX, foram os séculos do Poder
Legislativo e, se o século XX tem sido o século do Poder Executivo, o
século XXI haverá de ser o século do Poder Judiciário. [...] Vejam os
Senhores porque eu penso que isso vai acontecer. As reformas
constitucionais que se fazem contemporaneamente, conferem à
cidadania um novo sentido. As novas Constituições querem o exercício
consciente da cidadania, que se traduz na obrigação de o cidadão
fiscalizar, cada vez mais, o Poder. O cidadão é o grande fiscal do
Poder, mesmo porque o Poder existe em razão dele e para satisfazer as
suas necessidades. Acontece que essa fiscalização se exerce mediante a
ação do Poder Judiciário, vale dizer, mediante medidas judiciais. As
reformas constitucionais que se fazem contemporaneamente visam a
viabilizar esse desiderato.1
Além dessa novel participação popular na coordenação e na fiscalização
dos atos do Estado, esse tem prometido efetivar uma série de direitos à
1
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação
dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, p. 14-15.
Marcelo Malizia Cabral
14
consagração da cidadania, confiando-se a garantia de sua concretização, também,
ao Judiciário.
É a emergência mundial do Estado social, o welfare state, a expandir os
poderes e as competências dos órgãos legislativo e executivo, reclamando o pronto
controle judiciário da atividade do Estado.2
Ao lado das exigências decorrentes do crescimento da atividade do Estado,
o mundo contemporâneo inaugurou a massificação da economia, dos negócios, da
informação e, conseqüentemente, das relações sociais.
Com
esse
fenômeno,
como
adverte
Cappelletti,
“sempre
mais
freqüentemente, até uma só ação humana pode ser prejudicial a vastos grupos ou
categorias de pessoas, com a conseqüência de mostrar-se totalmente inadequado o
esquema tradicional do processo judiciário, como litígio entre duas partes.”3
Demonstração do crescimento da procura da sociedade pelo Poder
Judiciário consta de criterioso estudo coordenado por Maria Tereza Sadek4, dando
conta do aumento da dedução de pretensões perante a justiça brasileira no período
de 1990 a 1998, na ordem de 106,44%, enquanto a população, no mesmo período,
aumentou em apenas 11,33%.
Esse extraordinário crescimento da procura dos povos pelo Judiciário,
verificado no Brasil e em todo o mundo, neste último século, levou os atores da
cena judiciária
à
perplexidade,
ocasionando,
igualmente,
um importante
congestionamento desse poder estatal. Despertou, assim, a sociedade, para a
necessidade de se criarem mecanismos ao acolhimento e ao pronto processamento
dessa demanda.
Identifica-se, então, uma das faces do tema acesso à justiça, aquela
concernente à eficiência da prestação do serviço ofertado à sociedade pelo
2
3
4
“Daí o fato de que o âmbito do processo cresceu bem além dos limites tradicionais da lide
essencialmente ‘privada’, envolvendo esta apenas sujeitos privados; estendendo-se muito seguidamente
a lides comprometedoras dos poderes políticos do Estado. Justiça administrativa e Justiça constitucional
tornaram-se, assim, componentes sempre mais importantes do fenômeno jurisdicional, freqüentemente
confiadas a novas e altamente ‘criativas’ cortes administrativas e constitucionais” (CAPPELLETTI, Mauro.
Juízes Irresponsáveis? Traduzido por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1989, p. 21-22).
Ibidem, p. 23.
SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 15.
Coleção Administração Judiciária
15
Judiciário, qual seja, a solução dos litígios que lhe são apresentados individual ou
coletivamente, em tempo razoável, com qualidade e eficiência.
A incapacidade do Judiciário brasileiro em administrar esse crescimento da
procura por seus serviços tem levado a sociedade ao descrédito e à insatisfação,
especialmente em razão da necessidade de longa espera entre o ajuizamento dos
pedidos e seu julgamento.5
Realizar-se-á, deste modo, ainda que brevemente, um mapeamento dos
fatores que ocasionam a morosidade do Judiciário, em especial diante do
incremento de sua demanda, apontando-se algumas medidas para reduzir o tempo
de tramitação dos processos, acenando-se, assim, para a possibilidade da oferta de
uma solução mais célere aos litígios, o que resultaria no aumento da eficiência do
Poder Judiciário e na conseqüente qualificação do acesso à justiça.
Importa ressaltar, nessas palavras iniciais, que o crescimento da procura
pelo Judiciário em proporção superior ao aumento populacional, verificado nas
últimas décadas, não significa a ampliação do acesso à justiça ou, ainda, que a
sociedade tenha alcance materialmente igual a esse serviço público.
Interessante apresentar, nesse ponto, outro elemento investigado por
Sadek, que demonstra ser o crescimento da procura pelo Judiciário reflexo da
desigualdade da sociedade brasileira quanto à acessibilidade a bens e serviços:
Os IDHs no decorrer do período revelam que o país experimentou
alguma melhoria entre 1990 e 1998, no que se refere à esperança de
vida, à educação e à renda. O índice apresentou um crescimento de
0,7804 em 1990 para 0,8345 em 1998. A evolução positiva foi
constante, não se verificando em nenhum ano sequer a estagnação,
quer pioras em relação ao ano anterior. No que se refere aos efeitos do
IDH na procura pelo Judiciário, é possível afirmar que melhoras nesse
índice possuem correlação positiva com o aumento no número de
processos entrados na Justiça (correlação de Spearman de 0,7333). Isto
é, aumentos nos níveis de escolaridade, de renda e na longevidade
contribuem para o crescimento na demanda por serviços judiciais. No
que se refere às regiões, o IDH permite-nos afirmar que o Nordeste e o
5
“Para que se tenha uma idéia, em pesquisa recentemente realizada pela CNT em conjunto com a Vox
Populi, 89% das pessoas entrevistadas consideram a justiça demorada, lenta, enquanto 67% acham que
ela só favorece os ricos, e 50% não confiam nela.” (Pesquisa publicada no jornal O Globo, de 07 de abril
de 1999, 2. ed., p. 5, apud CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e
Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 80).
Marcelo Malizia Cabral
16
Norte reúnem os mais baixos indicadores socioeconômicos do país,
durante todo o período. Em contraste, o Sul, o Sudeste e o CentroOeste apresentam as melhores condições no que diz respeito às
dimensões captadas pelo IDH. É notável como quanto mais alto é o IDH,
melhor é a relação entre processos entrados e população. Ou seja, é
acentuadamente maior a utilização do Judiciário nas regiões que
apresentam índices mais altos de desenvolvimento humano.6
O que se constata, assim, é que as populações que estão demandando
cada vez mais o Judiciário são aquelas situadas em posições privilegiadas do
extrato social, quedando-se a esmagadora maioria da sociedade brasileira ao longe
da possibilidade de resolver seus conflitos individuais ou coletivos por intermédio
dos mecanismos de pacificação social disponíveis ao grupo social, dentre os quais,
o Poder Judiciário.
Justamente nesse sentido apontou a conclusão da investigação científica
há pouco apresentada7, advertindo-se, ao fim, para o risco ocasionado à
manutenção do Estado de Direito pela não-asseguração do efetivo acesso à justiça
a expressivo número de brasileiros:
O que poucos ousam sustentar, completando a primeira afirmação, é
que, muitas vezes, é necessário que se qualifique de que acesso se fala.
Pois a excessiva facilidade para um certo tipo de litigante ou o estímulo
à litigiosidade podem transformar a Justiça em uma Justiça não apenas
seletiva, mas sobretudo inchada. Isto é, repleta de demandas que
pouco têm a ver com a garantia de direitos – esta sim uma condição
indispensável ao Estado Democrático de Direito e às liberdades
individuais. Desse ponto de vista, qualquer proposta de reforma do
Judiciário deve levar em conta que temos hoje uma Justiça muito
receptiva a um certo tipo de demandas, mas pouco atenta aos pleitos
da cidadania.8
6
7
8
SADEK, Maria Tereza (Org.), op. cit., p. 20-21.
“O volume de processos entrados e julgados é o primeiro traço que deve ser destacado. Como interpretar
esses números? [...] Desta forma, a explicação deve ser buscada em outra parte. Ou seja, talvez
tenhamos que recolocar o problema salientando que, mais do que a democratização no acesso ao
Judiciário, defrontamo-nos com uma situação paradoxal: a simultaneidade da existência de demandas
demais e de demandas de menos; ou, dizendo-o de outra forma, poucos procurando muito e muitos
procurando pouco. Assim, o extraordinário número de processos pode estar concentrado em uma fatia
específica da população, enquanto a maior parte desconhece por completo a existência do Judiciário, a
não ser quando é compelida a usá-lo, como acontece em questões criminais.” (Ibidem, p. 40).
Ibidem, p. 41.
Coleção Administração Judiciária
17
Esta situação decorre do contentamento das sociedades, durante séculos,
com a simples igualdade formal da população relativamente ao acesso à justiça.
Não havia a preocupação com a repercussão das desigualdades sociais no
acesso a direitos, realidade modificada no último século, quando os povos passaram
a proclamar a necessidade de se garantir a igualdade material da população no
acesso aos direitos de que são titulares.
Inaugura-se, então, a valorização do princípio da igualdade material,
fazendo surgir a necessidade de políticas públicas e de ações afirmativas a que as
comunidades
hipossuficientes
tenham,
materialmente,
acesso
aos
direitos
consagrados pela ordem jurídica, dentre os quais, à justiça.
Então, o acesso à justiça passa a ser encarado como direito humano
prestacional, e sua concretização assume posição de desafio às sociedades
contemporâneas, fazendo com que se examinem os obstáculos à sua oferta
igualitária e universal. Catalogam-se, assim, as circunstâncias limitadoras do acesso
à justiça, classificando-as como de ordem econômica, cultural, social e legal.
Desvendam-se, igualmente, as diversas formas de realização de justiça, que
ultrapassam em muito a concepção de prestação formal de jurisdição, apresentando-se
ferramentas informais, rápidas e de baixo custo para a pacificação de conflitos, dentre
as quais a conciliação, a mediação e a arbitragem. Registra-se, ainda, nesse ponto, a
importância do envolvimento da comunidade nas atividades de pacificação social.
Realizado esse diagnóstico e definidos o conteúdo e a extensão do direito
humano de acesso à justiça, apresenta-se uma série de ações tendentes à superação
desta realidade de limitação do acesso à justiça, para se garantir a utilização rápida e
desburocratizada a toda a população das mais diversas formas de solução de conflitos e
de pacificação social. Somente dessa forma se estará promovendo a cidadania e a
dignidade da pessoa humana, princípios da República Federativa do Brasil.
Com a concretização do direito humano de acesso à justiça, também se
alcançará a redução das desigualdades sociais, a promoção do bem de todos, a
construção de uma sociedade livre e justa, bem como o desenvolvimento nacional,
objetivos fundamentais da República, consoante proclamam os artigos 1.º e 3.º da
Constituição Federal.
Marcelo Malizia Cabral
18
1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ACESSO À JUSTIÇA
1.1 A preocupação com o acesso à justiça no mundo
O prestígio ao valor justiça e a busca pela garantia de sua concretização
acompanham a evolução do homem. Desde os primórdios, a humanidade consagrou
a justiça como valor necessário à dignidade e ao desenvolvimento dos povos.
Multiplicam-se as teorias para sua conceituação, cuidando-se de tema
investigado pelas mais diversas ciências, desde a Antropologia e a Filosofia,
passando pela Sociologia, até chegar ao Direito.
Sempre, todavia, há um concertamento intuitivo de que as pessoas devem
lutar incessantemente para a materialização da justiça, variando seu conteúdo e
extensão de acordo com fatores econômicos, religiosos, sociais e culturais de cada
época.
Uma das reflexões mais completas sobre o tema foi desenvolvida por
Chaïm Perelman, que teve a oportunidade de discutir as concepções abstrata e
concreta de justiça:
A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa
igualdade. Desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás, até os
juristas, moralistas e filósofos contemporâneos, todos estão de acordo
sobre este ponto. A idéia de justiça consiste numa certa aplicação da
idéia de igualdade. [...] É ilusório querer enumerar todos os sentidos
possíveis da noção de justiça. Vamos dar, porém, alguns exemplos deles,
que constituem concepções mais correntes da justiça, cujo caráter
inconciliável veremos imediatamente: 1 - A cada qual a mesma coisa. 2 –
A cada qual segundo seus méritos. 3 – A cada qual segundo suas obras. 4 –
A cada qual segundo suas necessidades. 5 – A cada qual segundo suas
posições. 6 – A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.9
A regulamentação da busca pela realização do valor justiça encontra os
primeiros registros no Código de Hamurabi, onde se previa a proteção às viúvas,
aos órfãos e aos oprimidos:
9
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1 e 9.
Coleção Administração Judiciária
19
Em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não oprima o fraco e
para que seja feita justiça à viúva e ao órfão. Que cada homem
oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai
ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar nas minhas
ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à
causa que traz e possa ele compreender o seu caso.10
Igualmente, em Atenas, eram nomeados dez advogados anualmente para
atender aos pobres, havendo o Digesto, em Roma, determinando a oferta de
advogado, de ofício, pelo juízo, às mulheres, aos pupilos, aos débeis e àqueles que
não conseguissem tal patrocínio em razão do poder de seu adversário.11
No período medieval, o cristianismo, com forte influência, conduziu ao
predomínio de concepções religiosas sobre o direito, tempo em que os ordálios, ou
juízos de Deus, constituíam fonte primária de julgamentos, quando as partes
participavam diretamente dos atos, sendo esta a concepção de acesso à justiça
então vigente. Foi nesse período, também, que surgiu o direito canônico.
A partir do século XIV inicia-se o processo de questionamento do poder da
igreja e dos reis, assim como a busca de determinados direitos em face dos
ilimitados poderes exercidos por esses.
Principia, assim, a luta por afirmação e igualdade que redundou na
consagração dos direitos do homem, quando também se proclamou a necessidade
de o Estado garantir o acesso universal à justiça.
Contudo,
foram a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia (EEUU), de 12 de
junho de 1776, o primeiro diploma escrito de direitos do homem na
história da civilização, e a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 26 de agosto de 1789, crismada pelo prestígio
universalizante da Revolução Francesa, que cristalizaram o princípio de
10
11
LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p.
31-32.
“Deverá dar advogado aos que o peçam, ordinariamente às mulheres, ou aos pupilos, ou aos que de outra
maneira débeis, ou aos que estejam em juízo, se alguém os pedir; e ainda que não haja nenhum que os
peça, deverá dá-lo de ofício. Mas se alguém disser que, pelo grande poder de seu adversário, não
encontrou advogado, igualmente providenciará para que lhe dê advogado. Demais, não convém que
ninguém seja oprimido pelo poder de seu adversário, pois também redunda em desprestígio do que
governa uma província, que alguém se conduza com tanta insolência que todos temam tomar a seu cargo
advogado contra ele.” (ZANON, Artemio. Da Assistência Jurídica Integral e Gratuita. São Paulo: Saraiva,
1990, p. 8-9).
Marcelo Malizia Cabral
20
Direto Natural de que todos são iguais perante a lei, fundamento da
assistência jurídica pública, concebida como dever do Estado.12
Coube à França, todavia, editar, em 22 de janeiro de 1851, “o Code de
L’Assistence Judiciaire, diploma que legou ao instituto a denominação originária de
assistência
judiciária,
substituída,
hodiernamente,
pelo
predicamento
de
13
assistência jurídica, termo mais abrangente e apropriado [...].”
A partir de então, até o século XX, os mais diversos Estados, por todo o
continente, passaram a reconhecer, de alguma forma, a direito universal de acesso
à justiça.
Deste modo, na Espanha,
La justicia será gratuita cuando asi lo disponga la ley e, em todo caso,
respecto de quienes acrediten insuficiência de recursos para litigar
(Constituição Espanhola de 31.10.1978, art. 119); nos Estados Unidos da
América, Los Angeles abriga a mais antiga Defensoria Pública do país,
instalada em 1914; a Constituição do Uruguai, de 24 de agosto de 1966,
dispõe que La justicia será gratuita para los declarados pobres com
arreglo a la ley (art. 254); no continente africano, a Constituição de
Cabo Verde, de 1981, estatui que todo o cidadão 'tem o direito de
recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os actos que violem os seus
direitos reconhecidos pela Constituição e pela lei, não podendo a
Justiça ser negada por insuficiência de meios econômicos.' 14
É no período contemporâneo, destarte, que cresce em importância a
questão do acesso à justiça, havendo, assim, a preocupação com a garantia de
igualdade material e não apenas formal, buscando-se a possibilidade de real acesso
da população aos mecanismos de pacificação de conflitos.
Em outras palavras, pode-se afirmar que foi no século XX que se
inaugurou, verdadeiramente, o movimento de acesso à justiça.
Com efeito,
12
13
14
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação
dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, p. 336.
Ibidem, p. 336.
Ibidem, p. 337-344.
Coleção Administração Judiciária
21
As reivindicações do movimento marxista, especialmente no campo
trabalhista, serviram de marco histórico em muitos países para a
discussão do significado do acesso à justiça, enquanto proteção ao
trabalhador. Podemos afirmar que o Direito do Trabalho foi o ponto de
partida do verdadeiro acesso à justiça – o seu significado, no que se
refere aos direitos individuais, pela facilidade do acesso, pela
prevalência da mediação e da conciliação, pela índole protetiva, em
especial no que diz respeito ao ônus da prova, do trabalhador, e mais
do que isso, a visão coletiva da massa trabalhadora. A necessidade
dessa intervenção do Estado no decorrer do período liberal para
assegurar direitos, principalmente no campo social, que o livre jogo do
mercado não permitia, caracteriza uma nova fase, a histórica dos
Estados desenvolvidos. Estamos no Estado social, o Estado intervém
visando a assegurar não mais aquela igualdade puramente formal,
utópica, concebida pelo Liberalismo, mas a procura de uma igualdade
material, permitindo que os mais desfavorecidos tivessem acesso à
escola, à cultura, à saúde, à participação, àquilo que já se sustentava
no passado, à felicidade. A nova ordem resgata a dimensão social do
Estado, com mais intensidade no que concerne à ordem jurídica. O
Estado Administrador assume feição cada vez mais intensa,
notadamente protetiva. [...] Em curto espaço de tempo, o Judiciário
converte-se, realmente, em instância de solução de conflitos de toda a
espécie. Passa a haver uma demanda muito grande por justiça. [...]
Cresce de importância, portanto, neste momento, a concepção do real
significado de acesso à justiça. É preciso que ela sirva, e bem, a todos,
desde os mais carentes aos mais privilegiados, desde o indivíduo
isoladamente considerado até o grupo, a coletividade, globalmente
considerada. Surge, assim, primeiramente nos países desenvolvidos, a
partir das reivindicações sociais de que se vem a falar, a demanda por
formas céleres e efetivas de justiça para a população em geral.15
A roborar a ocorrência dessa explosão contemporânea da preocupação com
o acesso à justiça, após acentuar cuidar-se de tema que ocupa de há muito as
civilizações, Boaventura de Sousa Santos explicita haver a questão angariado
destaque nas discussões sociais a partir do pós-guerra:
Por um lado, a consagração constitucional dos novos direitos
econômicos e sociais e sua expansão paralela à do Estado de bem-estar
transformou o direito ao acesso efetivo à justiça num direito charneira,
um direito cuja denegação acarretaria a de todos os demais. Uma vez
destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos
direitos sociais e econômicos passariam a meras declarações políticas,
de conteúdo e função mistificadores. Daí a constatação de que a
15
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 20-27.
Marcelo Malizia Cabral
22
organização da justiça civil e em particular a tramitação processual não
podiam ser reduzidas à sua dimensão técnica, socialmente neutra,
como era comum serem concebidas pela teoria processualista, devendo
investigar-se as funções sociais por elas desempenhadas e em particular
o modo como as opções técnicas no seu seio veiculavam ações a favor
ou contra interesses socais divergentes ou mesmo antagônicos
(interesses de patrões ou de empregados, de senhorios ou de inquilinos,
de rendeiros ou de proprietários fundiários, de consumidores ou de
produtores, de homens ou de mulheres, de pais ou de filhos, de
camponeses ou de citadinos, etc.).16
Aliás, esse desafio contemporâneo de se materializar o acesso à justiça,
fazendo-o universal, exige a identificação dos fatores que empurram uma
considerável parcela da sociedade para a margem dos mecanismos de pacificação
social, assim como o estabelecimento de estratégias para a sua superação, desafio
que permanece entre os povos até a atualidade e que constitui, exatamente, o
objeto desse estudo.
1.2 Origem e desenvolvimento do acesso à justiça no Brasil
A exemplo do que se passou nos mais diversos continentes, a
problemática do acesso à justiça ocupou a sociedade brasileira desde o período
colonial.
À época vigiam as Ordenações Filipinas, de 11 de janeiro de 1603, que
dispunham: “§ 10 – Em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens móveis,
nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o
Pater Noster pela alta del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como se pagasse os
novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia
de pagar o aggravo.”17
16
17
SANTOS, Boaventura de Sousa. O acesso à justiça. In JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça
em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola
Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 405-406.
MORAES, Humberto Pena de; SILVA, José Fontenelle Teixeira da. Assistência Judiciária: sua gênese, sua
história e função protetiva do Estado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1984, p. 82.
Coleção Administração Judiciária
23
A superação do enfoque caritativo sobre o acesso à justiça foi inaugurada
com a Constituição Federal de 1934 – a primeira a se preocupar com a matéria –
que previu, dentre as garantias individuais do cidadão, em seu art. 113, n.º 32, a
obrigatoriedade de a União e os Estados concederem aos necessitados “assistência
judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais e assegurando a isenção de
emolumentos, custas, taxas e selos.”
Após o retrocesso político imposto pela Carta de 1937, a que lhe sucedeu,
em 1946, trouxe idêntica previsão, em seu art. 141.18
A primeira legislação infraconstitucional republicana a cuidar da espécie
foi inserida no ordenamento jurídico pátrio em 1950, qual seja, a Lei Ordinária n.º
1.060, vigente até a atualidade, que regulamentou os requisitos, o conteúdo e a
abrangência da assistência judiciária.
A Carta Política de 1937, assim como a emenda ditatorial de 1939,
mantiveram o texto de antanho, até que a Constituição vigente, promulgada em 5
de outubro de 1988, ampliou o conteúdo da garantia do acesso à justiça,
assegurando assistência jurídica – e não apenas judiciária – aos necessitados.19
Inovou, também, ao determinar a criação de instituição estatal
encarregada de prestar atendimento nas áreas de informação, aconselhamento e
defesa
judicial
hipossuficiente.
18
19
20
e
extrajudicial,
atendendo
aos
interesses
da
população
20
“Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade
dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos seguintes
termos: § 35 – O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos
necessitados.”
“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXIV - o Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.”
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV. § 1º Lei
complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e
prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe
inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da
inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. § 2º Às Defensorias
Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta
orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao
disposto no art. 99, § 2º.”
24
Marcelo Malizia Cabral
Verificou-se, portanto, um considerável alargamento na compreensão da
assistência a ser prestada àqueles que não disponham de situação econômica que
lhes permita arcar com os custos necessários à orientação jurídica e ao acesso à
justiça.
Esse avanço mereceu o registro de Humberto Peña de Moraes:
Como instrumento de transformação, no Estado Democrático de Direito,
a Defensoria Pública viabiliza a que se concretize, em todos os graus e
instâncias, a assistência jurídica, integral e gratuita, elencada entre os
direitos e deveres individuais e coletivos – art. 5.º, LXXIV –,
possibilitando, assim, o efetivo acesso à jurisdição – no sentido de
inserção, em ordem jurídica legítima e justa – de todo um vasto
contingente empobrecido da malha social. Não é suficiente que o
Estado garanta a todos iguais oportunidades diante da lei, sendo
indispensável, demais disso, que crie e opere, com presteza e
eficiência, os mecanismos conducentes à efetivação do discurso
constitucional. [...] Cabe gizar, de outro prisma, que a Constituição da
República em vigor ampliou, consideravelmente, a proteção conferida
ao minus habentes, substituindo, de forma moderna e apropriada, o
termo assistência judiciária pela expressão assistência jurídica – art.
5.º, LXXIV. Dessa maneira, conquanto a assistência judiciária deva ser
havida como atividade dinamizada perante o Poder Judiciário, a
assistência jurídica, ligada à tutela de direitos subjetivos de variados
matizes, porta fronteiras acentuadamente dilargadas, compreendendo,
ainda, atividades técnico-jurídicas nos campos da prevenção, da
informação, da consultoria, do aconselhamento, do procuratório
extrajudicial e dos atos notariais.21
21
Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e Defensoria Publica. In JUSTIÇA: PROMESSA E
REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados
Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p.
355-356.
Coleção Administração Judiciária
25
2 CONTEÚDO DA EXPRESSÃO ACESSO À JUSTIÇA
2.1 A significação brasileira e suas conseqüências
Falar-se em acesso à justiça, no Brasil, tem sido sinônimo de se investigar
o acesso ao Poder Judiciário. Essa é a definição resultante da consciência popular,
aquela que está inserida no imaginário coletivo e que se constrói a partir da
observação da sociedade no que se refere ao funcionamento de suas Instituições.
Mais do que isso, a sociedade brasileira, frente a um conflito de
interesses, além de vislumbrar o Poder Judiciário como a possibilidade única de
resolução de sua questão, acredita que isso somente poderá se efetivar por meio
de um processo.
E, ao falar-se em processo, constrói-se a imagem daquela série de
procedimentos formais, com ritos sacramentados, palavras ininteligíveis àqueles
que não conheçam a técnica jurídica, enfim, uma série de atos que redundarão, ao
final, em uma decisão proferida por um magistrado.
Essa concepção não carregaria conteúdo tão desanimador se esse desfecho
não fosse precedido de uma longa espera e se essa decisão final não se resumisse,
em regra, à mera declaração formal de um direito, longe, no mais das vezes, de ser
realizado.
Isso tudo sem se considerar que essa decisão final proclamadora da ordem
justa ao caso examinado sujeita-se, ainda, geralmente, a uma série de
questionamentos
e
recursos
para,
somente
então,
qualificar-se
com
a
imutabilidade e com a exigibilidade, ou seja, tornar-se passível de implementação.
Todavia, mesmo depois de percorrido esse longo caminho, essa decisão
está longe de representar a materialização do direito declarado, ou seja, seu
cumprimento, na maioria das vezes, reclama o desenvolvimento de uma série de
outros atos, também formais e burocráticos, até que aquele bem da vida
pretendido seja, finalmente, alcançado a seu titular.
Marcelo Malizia Cabral
26
Noutras palavras, o acesso à justiça, no Brasil, tem se reduzido à
possibilidade de apresentação de uma pretensão perante o Poder Judiciário, que
receberá, como corolário de uma série de atos, uma decisão proferida por um
magistrado proclamando o direito e a justiça àquele caso.
Resume-se, pois, o direito humano de acesso à justiça, dentre nós, a uma
possibilidade formal, tardia, desigual, unidirecional e conflitiva de realização do
justo.
O Poder Judiciário, no modelo atual, alcança seu desiderato de solver um
conflito de interesses após uma longa cadeia de combates, ou seja, por meio de um
novo embate, de uma longa batalha, onde novos e sucessivos conflitos exsurgem,
mediante imputações recíprocas de condutas violadoras de direitos, acusações
mútuas, impugnações, recursos, até que uma palavra heterônoma consagre um
vencedor, dando lugar a uma outra série de conflitos, inconformidades e
insatisfações.
Acresce-se a esse modelo combativo de justiça, a circunstância de que a
declaração final do direito, em um sem número de casos, ocorre sem que os
titulares dos interesses em disputa tenham a possibilidade de dialogar, de
apresentar ao outro a origem de sua insatisfação, o significado das violações
apontadas, a repercussão da ofensa ao direito em seu dia-a-dia, em seu
patrimônio, em seu trabalho, diante de seus familiares, em seus sentimentos,
enfim, em sua vida.
Essa fórmula pouco democrática e participativa de processo e a cultura
que valoriza mais a forma ao conteúdo, o motivo escrito ao sentimento falado, a
pretensão formal à motivação sincera, originam uma decisão longe de promover o
entendimento, resolver as questões cotidianas, promover a paz.
Atualmente, no Brasil, pensar-se em acesso à justiça dessa forma, no
plano da realidade, do dia-a-dia das pessoas, traduz oportunizar-se à população o
ajuizamento de uma ação perante o Poder Judiciário, o que passará pela
tramitação de um processo formal, moroso, conflitivo e pouco democrático, até
que se chegue à declaração de um direito, muitas vezes apenas formal e incapaz
de restaurar o entendimento e consolidar a justiça almejada.
Coleção Administração Judiciária
27
Talvez esse panorama constitua uma das explicações para a insatisfação e
o descrédito da população para com o Poder Judiciário, sinônimo de acesso à
justiça no caso brasileiro, situação que, no mais das vezes, contribui para a
potencialização de conflitos, para a disseminação da violência e para a busca por
formas não convencionais de realização de justiça.
Ao discorrer sobre a crise por que passa o acesso à justiça no Brasil,
pontua José Eduardo Faria:
O Censo de Vitimologia do IBGE, numa das pesquisas que cobre o
final dos anos 80, revela um número assustador: 67% dos brasileiros
envolvidos em algum tipo de conflito optaram por não procurar o
Judiciário, ou porque não têm a confiança necessária no Judiciário,
ou porque desconfiam da morosidade do Judiciário. Mas o fato é
que, quando 67% dos brasileiros envolvidos em algum tipo de
conflito não procuram o Judiciário, de alguma maneira essa nãoprocura não apenas é o endosso, digamos assim, de uma prova de
falta de confiabilidade nas instituições, mas pior ainda, é a
possibilidade que o vazio deixado seja ocupado pela lei do mais
forte, ou seja, uma Justiça não necessariamente estatal ou não
necessariamente exclusiva nas mãos do Estado.22
Outros
estudos
também
dão
conta
de
índices
elevados
de
descontentamento com o funcionamento da justiça brasileira, seja quanto à sua
eficiência, à sua imparcialidade ou confiabilidade.23
22
23
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Ato Público: Democratização Já! Dia Nacional de
Mobilização. Porto Alegre: 2002, p. 39.
“GRYNSZPAN, Mário. Acesso e recurso à justiça no Brasil: algumas questões, in Cidadania, Justiça e
Violência. PANDOLFI, Dulce et al org. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. Este trabalho
descreve, dentre outras pesquisas: Survey Lei, Justiça e Cidadania, realizada na região metropolitana do
Rio de Janeiro pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOCFGV e ISER, 1997). O quadro I dessa pesquisa trata dos graus de confiança atribuídos à justiça pela
população em geral e pela parcela que já recorreu, e a conclusão obtida, nas palavras do pesquisador:
“Na verdade, o que predomina entre a população é um tipo de visão que se opõe àquela que confere
legitimidade e reconhecimento à justiça, questionando-se, basicamente, a sua imparcialidade, a sua
equanimidade e a sua eficiência. Indo muito mais além, o que os resultados de lei, justiça e cidadania
parecem indicar é a própria existência de um sentimento de efetiva cidadania nacional, cuja espinha
dorsal, historicamente, é a idéia de tratamento igual perante a lei.” Dos entrevistados, 90,7%
responderam que, no Brasil, a aplicação das leis é mais rigorosa para alguns do que para outros. Apenas
7,9% responderam que a aplicação se dá igualmente para todos, e 1,4% não souberam ou não quiseram
responder.” (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil
Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 80-81).
Marcelo Malizia Cabral
28
Na mesma seara, as conseqüências de uma visão reducionista do acesso à
justiça no Brasil e na América Latina não escaparam à percepção dos pesquisadores
Catherine Slakmon e Philip Oxhorn:
De acordo com um recente estudo sobre democratização e cidadania na
América Latina, a falta de acesso às instituições formais do sistema
judiciário, o apoio popular generalizado a medidas autoritárias de
controle social, violência policial, impunidade, corrupção, justiça de
favela, esquadrões da morte e justiceiros foram predominantes e
abriram caminho para a consolidação não do Estado de direito
democrático, mas do “desestado” de direito. O termo capcioso cunhado
por Mendez, O´Donnell e Pinheiro (1999), refere-se ao atual estado de
“violência sem lei” perpetrado tanto por atores estatais como atores
sociais que, alegam eles, indica uma “clara abdicação da autoridade
democrática.” [...] De acordo com a literatura sobre o desestado de
direito, a solução preferida pelos cidadãos de todas as classes parece
ser a justiça e segurança privadas, não raro fora da lei. No mundo
retratado na literatura, dezenas de milhões de brasileiros residentes
em favelas e cidades-satélite recorrem a meios ilegais e violentos de
justiça e segurança privada, como justiceiros, o linchamento e a justiça
de favela, ao passo que os ricos têm acesso a recursos de segurança
sofisticados e modernos, guarda-costas e corrupção para driblar os
processos judiciais e se beneficiar de proteção.24
Como se pode ver, a limitação do acesso à justiça, assim como sua
burocratização e ineficiência conduzem a mecanismos sociais que em nada
contribuem à consolidação da democracia e da dignidade do ser humano.
As sérias conseqüências sociais de um acesso à justiça limitado e pouco
eficaz, impõem seu repensar, identificando-se seus obstáculos e as possibilidades
de sua superação.
O primeiro desafio parece ser, justamente, o enfrentamento da
significação da expressão acesso à justiça, alargando-a, para que possa abranger
outros métodos de pacificação social e assim assegurar o acesso material a toda a
população, temas que serão examinados com maior profundidade nos capítulos
posteriores.
24
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas Direções na
Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 36-37.
Coleção Administração Judiciária
29
2.2 As investigações do direito comparado
A idéia de solucionar litígios por intermédio de ações formais perante o
Poder Judiciário, ainda que possa ser vista como exclusiva ou principal forma de
acesso à justiça na sociedade brasileira, constitui concepção abandonada por
diversos países do mundo.
Esse modelo de justiça litigiosa, formal, existe em todas as sociedades
contemporâneas e precisa ser mantido.
O que varia na experiência de diversas sociedades é a existência ou não de
outras alternativas, mais informais, rápidas e, via de regra, consensuais, de
pacificação social.
Noutras palavras, a expressão acesso à justiça possui, alhures, significação
bem mais abrangente àquela que a equipara ao acesso à jurisdição formal prestada
pelo Poder Judiciário.
Com efeito, experiências de diversas comunidades apresentam a perspectiva
de que o acesso ao Poder Judiciário seja encarado apenas como uma das possibilidades
de resolução de conflitos e não como a única via disponível à população.
Percebe-se, igualmente, a possibilidade de ampliação do acesso à justiça
com a multiplicação das ferramentas de pacificação disponíveis ao grupo social.
Como observa Cappelletti,
Existem vantagens óbvias tanto para as partes quanto para o sistema
jurídico, se o litígio é resolvido sem necessidade de um julgamento. A
sobrecarga dos tribunais e as despesas excessivamente altas com os
litígios podem tornar particularmente benéficas para as partes as
soluções rápidas e mediadas, tais como o juízo arbitral. Ademais,
parece que tais decisões são mais facilmente aceitas do que decretos
judiciais unilaterais, uma vez que elas se fundam em acordo já
estabelecido entre as partes. É significativo que um processo dirigido
para a conciliação – ao contrário do processo judicial, que geralmente
declara uma parte “vencedora” e outra “vencida” – ofereça a
possibilidade de que as causas mais profundas de um litígio sejam
examinadas e restaurado um relacionamento complexo e prolongado.25
25
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 83-84.
Marcelo Malizia Cabral
30
E o pesquisador prossegue, relacionando alguns modelos alternativos de
obtenção de justiça existentes no mundo:
O sistema jurídico japonês oferece exemplo conspícuo do uso
largamente difundido de conciliação (169). Cortes de conciliação,
compostas por dois membros leigos e (ao menos formalmente) por um
juiz, existem há muito tempo em todo o Japão, para ouvir as partes
informalmente e recomendar uma solução justa. [...] Muitos países
ocidentais, em particular a França e os Estados Unidos, estão
comprovando a veracidade da instituição dos relatores japoneses. A
experiência dos Estados Unidos, em 1978, com os “centros de justiça de
vizinhança”, que será discutida a seguir, em conexão com os “tribunais
populares” (172) constitui um exemplo importante da renovada atenção
dada à conciliação, e a nova instituição francesa do conciliador local já
passou do nível experimental. A experiência começou em fevereiro de
1977, em quatro departamentos franceses e, em finais de março de
1978, foi estendida a todos os 95 departamentos franceses (172a). Os
conciliadores são membros respeitados da comunidade local que têm
seu escritório geralmente nas prefeituras e detêm um mandato amplo
para tentar reconciliar os litigantes com vistas à aceitação de uma
solução mutuamente satisfatória. Os conciliadores, indicados pelo
Primeiro Presidente da Corte de Apelação com jurisdição sobre a
localidade, também são chamados a dar conselhos e informações.
Evidentemente, existe uma grande demanda na França pelos serviços
oferecidos pelos conciliadores locais.26
A tentativa de conciliação presidida por juiz diverso daquele que conduz o
processo também foi experimentada em Nova Iorque, com importantes índices de
resolução de conflitos.27
A Justiça americana ocupa posição de vanguarda nas chamadas Alternative
Dispute Resolucion (ADR), ferramentas disponíveis à comunidade em alternativa ao
litígio judicial.
Torna-se importante referir uma outra experiência americana com os
chamados rent-a-judge, consistente na contratação de juízes
aposentados para resolver os litígios e cujas decisões, por sinal, não
26
27
Ibidem, p. 84-85.
“O sistema de ‘Entrevistas e Distribuição de Trabalho’ começou em Nova Iorque no ano de 1970, como
uma tentativa de vencer o atraso de 137.000 processos nos tribunais da cidade. Os juízes,
alternadamente, atendem como ‘entrevistadores’, objetivando a tentativa de acordo nos casos que iriam
a julgamento. Se não houver acordo, o caso é imediatamente encaminhado a outro juiz para julgamento.
Aproximadamente 60% dos casos foram resolvidos por acordo, e o atraso dos tribunais estava vencido no
final do ano de 1971. O método básico dos juízes é ouvir ambas as partes, apontar as fraquezas de cada
um e enfatizar as dificuldades e custos do julgamento.” (Ibidem, p. 86).
Coleção Administração Judiciária
31
têm revisão pelo Judiciário. [...] É importante ressaltar que as ADRs
fazem parte da estrutura do Estado Americano e têm um apoio na
American Bar Association, que é uma organização dos advogados e que
apóiam e participam de projetos, no sentido de instituir formas de
encaminhamento e diagnóstico preliminar, com o intuito de determinar
qual o procedimento mais adequado para o caso apresentado. [...] Há
uma idéia de afastar sistemas adversariais, o conhecido Adversary
System,
adotando
instrumentos
procedimentais
simples
e
objetivamente rápidos, em favor das partes, evitando-se a
contenciosidade. Essas denominadas “portas” realmente estabelecem
horizontes a serem seguidos para cada situação.28
Experiências na busca de soluções negociadas também são encontradas no
Canadá, mediante a realização de audiência preliminar presidida por mediador –
pré-trial conference – e na Itália, com uma equipe de profissionais ligados ao
Estado que atua na busca da resolução pacífica dos conflitos durante o
desenvolvimento do processo.29 A França30 e a Inglaterra31 também registram
organizações comunitárias encarregadas de aproximar as partes. Essas alternativas
podem estar ou não centralizadas nas mãos do Estado e podem envolver em maior
ou menor grau as comunidades em que inseridas.
A possibilidade de a própria comunidade buscar, organizadamente,
administrar recursos para a solução dos conflitos diários que ocorrem em seu meio,
através da oferta de informações básicas sobre cidadania e da utilização de
técnicas de conciliação e mediação, tem sido utilizada em diversas comunidades
com bastante êxito.
Em algumas experiências, mais que uma alternativa de resolução de
conflitos, esses métodos diferenciados são condição para que se deduza uma
pretensão perante o Poder Judiciário.
28
29
30
31
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005, p.127-128.
Ibidem, p.129.
“Nesse país, é importante referir os conciliateurs, uma instituição revigorada, constituída por
particulares, designados pelo Judiciário, com a obrigação de aproximar as partes a obter um acordo.
Uma outra instituição é a dos médiateur, considerado um colaborador do magistrado, tendo a missão de
mediador. Por sinal, essa técnica também é praticada na Alemanha e na Itália.” (Ibidem, p. 129-130).
“Na Inglaterra, igualmente, há uma preocupação em resolver os litígios sem perder de vista a paz entre
as partes. Assim, os Advisary Conciliation and Arbitration Service e os Office of Fair Trading foram
criados para resolver, dentre outros, os problemas na área de vizinhança e consumidores, à semelhança
do conhecido Neighbourdhood Justice Center, dos EUA. Essa idéia, que também se propaga na Suécia, na
França e em outros países, é no sentido de resolver os problemas junto às comunidades, com
aproximação das partes envolvidas e interessadas na solução dos casos propostos.” (Ibidem, p. 130).
Marcelo Malizia Cabral
32
Experiências
mais
próximas
na
busca
de
soluções
negociadas
e
antecedentes ao acionamento do Poder Judiciário também merecem registro.
Até mesmo a previsão de obrigatoriedade de prévia tentativa de solução
consensual do conflito à provocação da jurisdição encontra registro na América
Latina.
No continente sul-americano, a Argentina, para compor conflitos, busca
formas alternativas, antes que qualquer demanda ingresse na via
judicial. A mediação passa a ser vista com importância institucional,
como movimento do próprio Poder Judiciário em consonância com o
Poder Executivo, através do Ministério da Justiça, num projeto em que
se estabelecem programas para atender a diversos segmentos da
sociedade, de forma centralizada e integrada com as comunidades que
serão beneficiadas. O sistema na Argentina está bem avançado com
obrigatoriedade de uma fase inicial pela mediação e conciliação na
solução das controvérsias, para uma gama de causas, antes, portanto,
da instauração do processo formal.32 No Uruguai, a comprovação de que
a pendência de processo judicial ou a falta de condições de acesso à
solução de um problema evolui para males psicossomáticos fez com que
a Suprema Corte de Justiça firmasse Convênio de Cooperação
Interinstitucional com o Ministério da Saúde Pública, para instalar, nas
dependências de hospitais, centros de atendimento de problemas
jurídicos. Tais centros propiciam a solução de problemas jurídicos,
enquanto as pessoas aguardam a resolução de seus problemas médicos.
A idéia pode representar um trabalho descentralizado em grandes
hospitais, assim como é possível Juizados itinerantes atendendo
grandes condomínios, sob uma agenda organizada e em que se preveja
a recepção de pedidos e a presença de conciliadores e mediadores em
dias adrede determinados com a finalidade de solucionar os conflitos.33
32
33
“A Nova Lei de Mediação e Conciliação Argentina instituiu em caráter obrigatório a mediação prévia a
todos os Juízos, promovendo a comunicação direta entre as partes para a solução extrajudicial da
controvérsia. As partes estão isentas do cumprimento deste trâmite se provem que, antes do início da
causa, existiu mediação perante os mediadores registrados pelo Ministério da Justiça. O procedimento
de mediação obrigatória não é aplicado em causas penais, ações de separação e divórcio, nulidade de
matrimônio, filiação e pátrio poder, com exceção das questões patrimoniais derivadas destas. O Juiz
deverá dividir os processos, encaminhando a parte patrimonial ao mediador. Ademais, não se aplica aos
processos de declaração de incapacidade e de reabilitação, causas em que o Estado seja parte, habeas
corpus e interditos; medidas cautelares até que sejam decididas, esgotando a respeito delas nas
instâncias recursais ordinárias, continuando logo o trâmite da mediação; diligências preliminares e prova
antecipada, juízos sucessórios e voluntários, concursos preventivos e falências; e, finalmente, causas que
tramitem perante a Justiça Nacional do Trabalho. J.S. Fagundes Cunha e José Jairo Baluta. Querstões
Controvertidas no s Juizados Especiais. Curitiba: Juruá, 1997, p. 25-26.” (Ibidem, p.130).
Ibidem, p.131-132.
Coleção Administração Judiciária
33
3 CONCEITUAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA
A significação da expressão acesso à justiça tem sido objeto de estudos de
diversas áreas do conhecimento e sua extensão sistematicamente ampliada, de
modo a abranger o sentido de universalidade material.
Em um dos escritos mais clássicos sobre o tema, resume essa evolução,
com precisão, Mauro Cappelletti:
O conceito de acesso à justiça tem sofrido uma transformação
importante, correspondente a uma mudança equivalente ao estudo e
ensino do processo civil. Nos estados liberais “burgueses” dos séculos
dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para a solução dos
litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos
direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial
significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de
propor ou contestar uma ação.34
O Estado e a sociedade contentavam-se, assim, com a possibilidade
meramente formal de que todos os cidadãos pudessem recorrer ao sistema de
justiça para a salvaguarda de seus direitos.
A cada um incumbia a obtenção dos recursos necessários ao efetivo
exercício desse direito, mecanismo próprio do sistema laissez-faire.35
O
desenvolvimento
das
sociedades,
entretanto,
deu
origem
ao
reconhecimento de direitos sociais de parte dos Estados, reclamando sua atuação
positiva para a asseguração a todos, efetivamente, do gozo desses novos direitos.
Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça tenha
ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare
state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos
em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, ao
mesmo tempo, cidadãos. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido
progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre
os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de
34
35
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 9.
“A justiça, como outros bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem
enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por
sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não
efetiva.” (Ibidem, p. 9).
Marcelo Malizia Cabral
34
direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação.36
As
reflexões
iniciais
sobre
o
acesso
à
justiça
passam,
fundamentalmente, por sua asseguração material a toda a população.
assim,
37
Esta, com efeito, constitui a primeira temática com que se defrontam
todos os povos na atualidade: como se assegurar a todos, em condições de
igualdade material, o acesso à justiça?
A centralidade e a atualidade dessa preocupação em todo o mundo foram
sintetizadas por Cappelletti, em conferência proferida na Assembléia Legislativa do
Rio Grande do Sul, ocasião em que problematizou:
Estou aqui para falar de algo que tomou anos de minha vida
profissional: o estudo e a investigação de um problema que acredito
fundamental para todas as sociedades contemporâneas. Observo que
entre os problemas mais importantes, que exigem solução, em todos os
países, está o problema da efetividade, da igualdade de todos perante
o direito e a justiça. Trata-se do problema da pobreza legal. A
dificuldade de acesso de muitos indivíduos e grupos aos benefícios que
derivam da lei e das instituições jurídicas, em particular as instituições
de proteção legal, sobretudo os tribunais. [...] O movimento para
acesso à justiça é um movimento para a efetividade dos direitos sociais,
ou seja, para a efetividade da igualdade.38
36
37
38
Ibidem, p. 11-12.
“Perante o Judiciário, não parece verdadeiro que todos sejam efetivamente iguais. A partir da exigência
de um profissional que a Constituição considera indispensável à administração da justiça – art. 133 –
constata-se que o despossuído em regra não consegue se fazer representado por jusperito de talento. E
se o Estado é obrigado a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos – inciso LXXIV do art. 5.º da Constituição da República –, na prática o nomeado
se desincumbe formalmente do encargo, longe de ombrear-se com o empenho do advogado constituído.
[...] Vastas camadas populacionais vêm sendo singelamente excluídas da justiça convencional. É raro o
comparecimento do favelado para pleitos típicos de uma cada vez mais reduzida classe média: são as
ações edilícias, as concernentes às relações de família, de responsabilidade civil, dos vínculos de
consumo. Em Estados desenvolvidos a comunidade dos consumidores é integrada por todos os habitantes.
Diversamente, num país como o Brasil, até a condição de consumidor é subtraída ao marginal – assim
entendido o ser humano despossuído e em condições de misarabilidade total –, pois alheio ao processo de
mercado em que se envolvem apenas os fornecedores e a população economicamente ativa.” (NALINI,
José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 30-31).
CAPPELLETTI, Mauro. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. Conferência proferida no Plenário da
Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre: Nova Fase, 1995, n. 35, p. 47.
Coleção Administração Judiciária
35
Em seqüência, após pontuar a existência de três ordens de fatores a
dificultar o acesso à justiça – econômicos, organizacionais e processuais –, sobre os
primeiros, complementou:
“O tema da pobreza, o tema da representação legal dos pobres, coloca os
seguintes problemas: antes do Juízo, informação, assistência
extrajudicial; e dentro do Juízo, assistência judiciária. É preciso enfatizar
que não basta a assistência, através de advogados, em Juízo. Pode
ocorrer que a assistência extra e pré-judicial seja mais necessária,
porque pobreza significa, normalmente, não apenas pobreza econômica,
mas, também, pobreza jurídica. Isto é, pobreza de informação. Os pobres
não conhecem seus direitos e assim não dispõem de informação suficiente
para saber o que podem fazer para se protegerem, para obterem os
benefícios que o direito substancial poderia lhes garantir. Esta primeira
onda é, fundamentalmente, uma tentativa de assegurar aos pobres a
assistência de experts, de juristas, antes e dentro do Juízo. É um tema
muito antigo. Nos tempos de Roma antiga, e depois no Medievo, falava-se
em representantes dos pobres. Todo esse fenômeno tornou-se diferente,
mais significativo em nosso século.” 39
Importa assinalar, outrossim, que os esforços das sociedades contemporâneas
na proposição de ações que garantam o acesso à justiça a todos os seres humanos
advêm do princípio da igualdade material, consagrado no mundo moderno.40
Essa igualdade “deve ser entendida, antes de tudo, como igualdade de
possibilidades desde o nascimento. Cada homem livre é responsável pela
preservação da liberdade dos outros homens e não se pode admitir que uns nasçam
com a certeza de que terão uma situação de superioridade, dos pontos de vista
econômico, político e social, na mesma sociedade em que outros já nascem
condenados a uma vida de miséria e submissão.”
39
40
41
41
Ibidem, p. 48-49.
“O princípio da isonomia oferece, na sua aplicação à vida, inúmeras e sérias dificuldades. De fato,
conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual para os que se acham em
desigualdade de situações. A justiça que reclama tratamento igual para os iguais pressupõe tratamento
desigual aos desiguais. Isso impõe, em determinadas circunstâncias, um tratamento diferenciado entre os
homens, exatamente para estabelecer, no plano fundamental, a igualdade. O imperativo do tratamento
desigual dos que estão em situação desigual na medida em que se desigualam impõe, por exemplo, ao
legislador o estabelecimento de leis especiais, que protejam determinadas categorias. Para isso, editamse leis para amparar os economicamente fracos; os trabalhadores; os mal alojados; os inquilinos e assim
por diante.” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1, p. 27).
DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 14.
Marcelo Malizia Cabral
36
A preocupação com a igualdade material é antiga, como bem adverte
Humberto Peña de Moraes:
Ecoa imorredoura a advertência de Leão XIII, na Encíclica Rerum
Novarum, acerca da proteção estatal dos excluídos de fortuna, ao
assegurar, in expressis: A classe dos ricos se defende por seus próprios
meios e necessita menos da tutela pública; mas o pobre do povo, baldo
de riquezas que o ampara, está peculiarmente confiado à proteção do
Estado.42
A
questão
da
garantia
do
acesso
igualitário
à
justiça
torna-se
especialmente relevante em um país como o Brasil, que ostenta discriminação
histórica43 e índices importantes de desigualdade social.
Noutras palavras, preocupar-se com o acesso ao sistema de justiça de
parte de populações vulneráveis é centrar-se o olhar para uma parcela significativa
da população brasileira.44
Essa circunstância foi examinada com perspicácia por Joaquim Falcão:
42
43
44
Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e Defensoria Publica. In JUSTIÇA: PROMESSA E
REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados
Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 364.
“No Brasil, a falta de acesso à Justiça é um problema histórico. Somos um país politicamente
autocrático, centralizador e elitista. Sofremos do mal da ausência de uma classe média significativa nos
primeiros quatro séculos de nossa história, como também de um proletariado que se tenha organizado a
partir de suas raízes e por força de sua própria combatividade. Foi no século XIX que se deu a integração
do imigrante, a expansão da classe média nacional e o aparecimento dos primeiros segmentos do
proletariado com alguma significação. [...] Somos, portanto, um povo que fez sua história com escassa
participação popular. Acostumamo-nos a aguardar sempre as decisões do Estado, vale dizer das elites
dominantes.” (BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à
justiça: um problema ético-social no plano da
realização do direito. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 105-106).
“No Brasil, a triste constatação é a de que a pobreza aumenta progressivamente. Em 1988, a pobreza
absoluta atingia 32,5% da população, ou 44 milhões de habitantes. Por pobreza absoluta define-se a
situação das pessoas com rendimento inferior a um quarto do salário mínimo, ou que vivem em famílias
com rendimento menor que um salário mínimo. No quesito distribuição de renda, ocupa o Brasil posição
desprivilegiada: “Nos países do Leste europeu e na URSS, os 10% bem aquinhoados são entre três e sete
vezes mais ricos que os 10% mais pobres. Nos países industrializados ocidentais, EUA, Reino Unido,
inclusive países que os liberais brasileiros fingem tomar como paradigmas, aquela relação varia entre
cinco e pouco mais do que 10. Os tigres asiáticos também não são muito selvagens: Japão, Hong-Kong,
Coréia e Taiwan apresentam distribuições tais que em nenhum deles os 10% mais ricos são mais do que
15 vezes mais ricos que os 10% mais pobres (no Japão essa relação é de cerca de seis vezes). Nos países
subdesenvolvidos da Ásia, essa relação varia entre 10 e 40, o mesmo acontecendo na África, com
exceção da África do Sul e de sua região de influência onde esse fator chega a cerca de 60 vezes. Na
América do Sul, excluindo o Brasil, é no Peru que a renda se mostra mais concentrada, onde os 10% mais
ricos chegam a ser 50 vezes mais ricos: aqui os 10% mais ricos ganham cerca de 90 vezes mais do que os
10% mais pobres.” (MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e
Justiça Gratuita. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 2).
Coleção Administração Judiciária
37
Na maioria dos países desenvolvidos, a questão do acesso à Justiça é
focalizada como desafio de implementar, através da prestação
jurisdicional, os direitos das minorias. Um desafio democrático,
também fundamental para o Brasil. Mas, data vênia, não acredito ser o
principal, se é que podemos falar em hierarquia de direitos. Explico
melhor. Quem não tem acesso à Justiça no Brasil não são apenas
minorias étnicas, religiosas ou sexuais, entre outras. Quem não tem
acesso é a maioria do povo brasileiro. O Judiciário, por seus custos
financeiros, processos jurídico-formais e conformação cultural é
privilégio das elites, concedido, comedidamente, a alguns setores das
classes médias urbanas. A maioria da nossa população, as classes
populares, quando tem acesso, o tem como vítima ou como réu. Não é
deles, um ativo. É um passivo. Não é deles um direito, mas um dever.
Nos países desenvolvidos, o problema do acesso surgiu pela conjugação
de pelo menos três fatores: a criação de novos direitos, os direitos
humanos de terceira geração, diriam alguns, a expansão da cidadania,
diriam outros; o acesso a maior renda, isto é, a melhor distribuição de
renda nacional, possibilitando novos consumidores de Justiça; e,
finalmente, o incremento da complexidade das relações sociais,
sobretudo nos grandes centros urbanos, aumentado assim a
possibilidade de conflitos. Estes fatores, todos eles, existem sim no
Brasil. Mas nossa doença apresenta outro sintoma agudo, que provoca a
ausência das classes populares como autor no processo judicial: a
pobreza. [...] Em outras palavras, nossa tarefa é dupla. Ao mesmo
tempo em que temos que lidar com a implementação dos novos direitos
e o aumento dos conflitos nos grandes centros urbanos, temos que
assegurar os direitos fundamentais interditados para a pobreza
brasileira. Em resumo, o terceiro sintoma a constatar é que o
deficiente acesso à Justiça atinge as minorias em ao mesmo tempo, a
maioria da população brasileira.45
Desse modo, a definição da expressão acesso à justiça principia pela
concepção de acesso como sendo a possibilidade material de todos os seres
humanos, independentemente de sua situação econômica, cultural, social, ou de
outros fatores, estarem em condições de utilizar o sistema acesso à justiça com as
mesmas possibilidades e facilidades de que dispõe qualquer pessoa.
Esta a premissa de qualquer estudo sobre acesso à justiça: o desafio de se
conferir igualdade material à humanidade, possibilitando-se a todas as pessoas a
utilização do sistema de justiça.
45
FALCÃO, Joaquim. Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento. In JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o
acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB;
tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 273-274.
Marcelo Malizia Cabral
38
A materialização desse ideal depende da identificação e da superação de
uma série de obstáculos, tema que será examinado nos capítulos subseqüentes.
Outra investigação que se faz imperativa quando se realiza esforço de
conceituação da expressão acesso à justiça, diz respeito à delimitação de seu
conteúdo: implica definir-se o que compreende a expressão justiça nesse
particular.
Em outras palavras, acesso à justiça significa apenas o acesso ao Poder
Judiciário, ou alberga, também, outras formas de resolução de conflitos, como a
mediação, a conciliação e a arbitragem? Mais do que isso: deve haver um
distanciamento na relação estado-sociedade na distribuição de justiça ou existe a
possibilidade de interação e de realização de práticas complementares?
Outra seara, igualmente, merece investigação: há de se encarar o acesso à
justiça unicamente como a disponibilização de ferramentas de pacificação social ou
abrangeria, também, a informação da população sobre seus direitos, no mais das
vezes, requisito essencial à sua perseguição através das ferramentas de acesso?
Decerto a consciência da comunidade sobre a extensão e o conteúdo dos
direitos que lhes são assegurados pelo ordenamento jurídico constitui elemento
essencial do acesso que se examina.46
A consciência do real significado da cidadania plena, ou seja, a dimensão
que os direitos individuais, sociais, culturais e econômicos podem oferecer à vida
das pessoas, constitui informação fundamental à sua perseguição.
46
“Os tribunais devem manter serviço de atendimento facilitado, para fornecer informações sobre
andamento de processos, sobre o endereço da assistência judiciária, sobre problemas jurídicos concretos
de toda ordem. E isso por meio de telefone, de fac-símile, de guichês com funcionários treinados e
conscientes de que o povo é seu patrão. Somente o pobre brasileiro sabe explicar o quão é maltratado
nas repartições públicas. O Judiciário poderia reverter esse quadro, desenvolvendo um programa de
transparência, dando-se a conhecer ao cidadão através de ações de caráter essencialmente informativo.
Os tribunais e associações têm o dever de manter a população informada, divulgando os endereços dos
foros, e dos organismos vinculados à realização da Justiça, os horários de realização das audiências, o
funcionamento dos juizados especiais, e outros dados de interesse, inclusive prestando contas da
produtividade do Judiciário. Projetos mais ambiciosos poderiam sugerir as Cartilhas da Cidadania,
contendo o elenco dos direitos que consubstanciam o direito a ter direitos. Em linguagem acessível, de
compreensão por qualquer do povo, com forma atraente e suscetível de operacionalização mediante
recurso à prestigiada classe dos publicitários brasileiros. Não é demasia pensar-se em uma série de
folhetos, sob a denominação ‘Eu e a Justiça’, subdividindo-se em ‘Eu e a Constituição’, ‘Eu e o Direito de
Família’, ‘Eu e o Direito de Propriedade’, ‘Eu e o meu emprego’, ‘Eu e o Direito Penal’, além de outros
títulos. A denominação com ênfase no prenome pessoal da primeira pessoa tem o intuito de prestigiar a
consciência da cidadania.” (NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à Justiça. Revista CEJ,
Brasília, v. 1, n. 3, 1997, p. 63).
Coleção Administração Judiciária
39
Até mesmo sobre a dimensão e o significado do acesso à justiça como
direito é impositivo que a comunidade tenha pleno conhecimento, para que possa
buscá-lo legitimamente.
Refletindo, justamente, sobre essa faceta do acesso à justiça, adverte Paulo
Cezar Pinheiro Carneiro, colacionando experiência de sua atuação profissional:
É evidente que o primeiro componente a tornar algo acessível,
próximo, capaz de ser utilizado, é o conhecimento dos direitos que
temos e como utilizá-los. O direito a tais informações é ponto de
partida e ao mesmo tempo de chegada para que o acesso à justiça, tal
como preconizamos, seja real, alcance a todos. É ponto de partida
porque, sem ele, uma série de direitos, notadamente no campo
individual, não seriam reclamados, e ponto de chegada, na medida em
que, agora no campo coletivo, eventuais direitos reclamados e obtidos
fossem realidade para poucos. Exemplo marcante dessa situação
ocorreu recentemente com a drástica desvalorização do real perante o
dólar, no mercado de câmbio: milhares de pessoas não reclamaram,
não pleitearam a renegociação de seus respectivos contratos
individualmente considerados, indexados pelo dólar, perdendo seus
respectivos bens, por absoluto desconhecimento de seus direitos.
Muitos não sabiam onde e como buscar informações sobre se teriam
algum direito (ponto de partida); outras tantas não se valeram do êxito
obtido pelo Ministério Público, através de medida liminar em ação civil
pública destinada a substituir a indexação originária, por absoluto
desconhecimento do significado do resultado obtido ou de como
deveriam agir para torná-lo efetivo – ponto de chegada. [...] Trata-se
de pessoas que não têm condições sequer de ser partes – os “nãopartes” são pessoas absolutamente marginalizadas da sociedade,
porque não sabem nem mesmo os direitos de que dispõem ou de como
exercê-los; constituem o grande contingente de nosso país.47
Então, a definição do objeto do acesso à justiça inclui não apenas a
imprescindibilidade da garantia de acesso igualitário, mas também o necessário
conhecimento do grupo social sobre o conteúdo e a amplitude dos direitos que lhe
são assegurados pela ordem jurídica.
Noutro ângulo, importa frisar que o direito humano de acesso à justiça
possui dimensão bem mais ampla do que o simples acesso ao Poder Judiciário.
Para se assegurar acesso à justiça a uma comunidade, necessita-se de
cidadania plena, possibilitando-se a cada ser humano o conhecimento sobre seus
47
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 57-58.
Marcelo Malizia Cabral
40
direitos e sobre as ferramentas disponíveis à sua materialização, ofertando-se à
sociedade modalidades alternativas de resolução pacífica de conflitos.
Concretizar-se o direito fundamental de acesso à justiça significa
assegurar-se a toda a sociedade a possibilidade de realização da paz, e o alcance
desse valor pode ser obtido por diversas outras formas, não somente por meio da
jurisdição formal prestada pelo Poder Judiciário.
Dito de outra forma, o acesso à justiça compreende uma série de
ferramentas disponíveis à realização da justiça, complementares à prestação
ofertada pelo Poder Judiciário e, em diversas situações, mais céleres, mais eficazes
e com menor custo.
Alguns exemplos dessas possibilidades são os centros de cidadania, as
práticas de mediação, conciliação e arbitragem, assim como as experiências de
justiça restaurativa e de justiça comunitária realizadas em diversos países do
mundo. Registram-se, também, com êxito, no Brasil, algumas dessas experiências,
ainda que escassas.
Na percepção de Jasson Ayres Torres,
o Brasil vai assimilando paulatinamente esses modelos alternativos de
justiça informal e adotando instrumentos viabilizadores à solução dos
conflitos. É preciso acreditar em idéias que projetem um futuro
melhor, mais equânime e mais justo. O Brasil não pode descartar o
valor da aproximação das partes e a solução das causas através de
escritórios e agências, para viabilizar um acordo. Num segundo
momento é que poderá ocorrer a homologação da autoridade judiciária,
se houver interesse na obtenção de um título executivo judicial. Caso
contrário, a validade é de natureza extrajudicial. [...] Pensamos numa
justiça de consenso, em que o direito seja dirigido para uma solução
pacífica do problema existente. [...] A participação de juízes leigos,
conciliadores, mediadores, juízes de paz e de colaboradores
espontâneos representa o desejo de paz. Uma nova realidade é o que
se constata num mundo permanentemente em transformação, com
problemas crescendo desmedidamente, e as dificuldades se
apresentando cada vez mais complexas a exigir soluções através de
novas alternativas na aplicação imediata do direito, procedimentos
simplificados, com custo compatível ao acesso pleno a uma justiça
eficaz, atendendo, enfim, aos interesses e às expectativas da
sociedade. Uma nova concepção de justiça, realmente, marca uma
Coleção Administração Judiciária
41
linha divisória na afirmação e no desenvolvimento do princípio
constitucional do mais amplo acesso à Justiça.48
Essas são algumas das possibilidades existentes e disponíveis à sociedade à
concretização
da
promessa
constitucional
de
acesso
à
justiça.
Todas
complementares à jurisdição formal, prestada pelo Poder Judiciário que, ainda
assim, há de prosseguir em sua missão de distribuir justiça por meio dessa
ferramenta quando seu uso se revele adequado ou se mostre necessário.
A esse mesmo horizonte apontou a Ministra Eliana Calmon Alves, por
ocasião de sua posse no Superior Tribunal de Justiça:
Tenho a convicção de que o mundo está caminhando no sentido de ter
um Judiciário minimizado.49 Tenho essa opinião a partir da observação
que faço de países da common low, de origem inglesa. As partes em
conflito podem eleger um árbitro de confiança, que solucione o
impasse. Se, por acaso, não houver satisfação quanto à solução, aí sim,
recorre-se ao Estado. Isto está sendo muito comum, as chamadas
soluções alternativas de conflito. Há diversos mecanismos, como o
Juízo Arbitral, que você citou, a Mediação e a Conciliação. É o que há
de mais moderno em termos de Direito. O Juízo Arbitral é uma parte
dessas soluções dadas a grandes conflitos na área econômica. A
mobilidade do capital cresceu graças à agilidade dos meios de
comunicação. Como pode esse capital ficar atrelado a um Poder
Judiciário demorado, paquidérmico e ultrapassado? Nos Estados Unidos,
por exemplo, em grande parte dos casos, os conflitos são solucionados
fora do Judiciário, mas este fica na retaguarda, pois, se não houver
solução, as pessoas podem recorrer a ele. Em quase todos os estados
dos EUA estão sendo imputadas pesadas multas àqueles que tiverem
recorrido ao Judiciário e este tiver apresentado a mesma decisão que o
juiz arbitral, mediador ou conciliador. Na visão deles, significa que a
Justiça foi acionada desnecessariamente. Eu acho que no Brasil
deveríamos proceder assim, mas agimos exatamente ao contrário.50
O que importa grifar no esforço de conceituação que se exercita são as
diversas formas de realização de justiça passíveis de disponibilização ao grupo
48
49
50
O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 132, 136
e 158.
Acreditamos que a valorização de mecanismos alternativos de resolução de conflitos não minimize o
Judiciário; ao contrário, o maximize, seja em razão do prestígio resultante da qualidade de parceiro ou
coordenador dessas práticas complementares, sempre mais eficazes e menos dispendiosas, seja porque
poderá prestar uma jurisdição formal mais célere e de melhor qualidade quando procurado a esse fim.
Entrevista concedida à Revista Consulex, Ano III, n. 32, ago. 1999, p.7, apud TORRES, Jasson Ayres, op.
cit., p. 147.
Marcelo Malizia Cabral
42
social, assim como a circunstância de que o acesso à justiça pode e deve ser
garantido não apenas pelo Poder Judiciário, mas pelo Estado e pela sociedade, em
regime de parceria.
A esse respeito, após denominar algumas práticas alternativas de
resolução de conflitos com forte participação comunitária de “micro-justiça”,
Catherine Slakmon e Philip Oxhorn ponderam:
É importante frisar que, embora a micro-justiça se baseie em processos
horizontais de atuação e participação direta do cidadão, o impulso
original de mobilização, a operação e a sustentabilidade dos projetos
dependem, em significativa medida, de atores externos à comunidade.
[...] Os modelos cidadãos de justiça e segurança jamais devem tentar
competir com o Estado, e sim complementá-lo. Se os programas forem
projetados para competir, ou interpretados como concorrentes do
Estado, então estarão de fato e implicitamente procurando substituí-lo,
o que não é desejável, já que efetivamente legitimaria o
estabelecimento de um segundo sistema de classes de justiça para as
populações carentes (a menos que o sistema judiciário estatal formal
tenha sido completamente desacreditado e não seja considerado uma
opção viável).51
O acesso à justiça, compreende, então, o conjunto de ferramentas e de
práticas ofertadas pelo Estado e pela sociedade à humanidade, de modo universal e
materialmente igual, para a realização da justiça.
51
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo (Orgs.). Novas Direções na Governança
da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 48-49.
Coleção Administração Judiciária
43
4 O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO
4.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos
Direitos humanos podem ser definidos como “o conjunto institucionalizado
de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a
sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana.”52
Na doutrina de Pérez Luño, direitos fundamentais do homem constituem
“um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico,
concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as
quais podem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível
nacional e internacional.”53
Para José Castan Tobeña, direitos humanos são “aqueles direitos
fundamentais da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual
como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de
essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser
reconhecidos e respeitados por todo o poder e autoridade, inclusive as normas
jurídicas positivas, cedendo, não obstante em seu exercício, ante as exigências do
bem comum.”54
Designados de variadas formas, dentre as quais direitos humanos, direitos
humanos fundamentais, direitos fundamentais do homem, direitos da pessoa
humana, direitos naturais, direitos do homem, liberdades fundamentais, liberdades
públicas, importa salientar que esse conjunto de direitos “relacionam-se diretamente
com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da
dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte da maioria dos
52
53
54
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005, p. 21.
CASTRO, J.L. Cascajo, Luño. Antonio-Enrique Pérez, CID, B. Castro, TORRES, C. Gómes. Los derechos
humanos: significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1979, p. 43, apud
MORAES, Alexandre, op. cit., p. 22.
Ibidem, p. 22.
Marcelo Malizia Cabral
44
Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito
consuetudinário ou mesmo por tratados e convenção internacionais.”55
Delimitado o objeto dos direitos humanos, é relevante ressaltar que eles
reclamam prestações negativas ou positivas do Estado.
Os primeiros são chamados de direitos de não-lesão, direitos civis e
políticos, ou direitos de liberdade, e dependem de uma abstenção do Estado à sua
asseguração.
Os últimos exigem prestações positivas do Estado, identificados, ainda,
como direitos sociais, econômicos e culturais, constituindo-se, pois, em direitos
prestacionais, dentre os quais se situa o direito humano de acesso à justiça.
4.2 A consagração dos direitos humanos prestacionais na ordem constitucional
Os direitos humanos, nos quais se inserem os direitos prestacionais56,
identificados, ainda, como direitos sociais, econômicos e culturais, aqueles que
reclamam ações positivas do Estado57, cresceram de importância na vigente ordem
constitucional.
Para Flávia Piovesan, “o texto de 1988 ainda inova, ao alargar a dimensão
dos direitos e garantias, incluindo no catálogo de direitos fundamentais não apenas os
direitos civis e políticos, mas também os direitos sociais (ver capítulo II do título II da
55
56
57
Ibidem, p. 23.
“Os direitos a ações positivas podem ser qualificados como direitos a prestações em sentido amplo. Os
direitos fundamentais à prestação em sentido amplo, por sua vez, classificam-se em direitos à proteção,
direitos à organização e procedimento e direitos prestacionais em sentido estrito ou direitos
fundamentais sociais. [...] A primeira das características dos direitos fundamentais sociais que vem à
tona é a de serem direitos a ações positivas. Como já referido, uma ação positiva representa uma
mudança causal de situações ou processos de realidade, enquanto a omissão significa uma não-mudança
de situações ou processos na realidade, embora fosse possível a mudança.” (LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo.
Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 84-88).
“Em uma apreciação preliminar, pode-se dizer que direitos de defesa exigem uma omissão do Estado, e
os direitos prestacionais, uma ação positiva. Porém, ocasionalmente, direitos de defesa exigem ações
positivas do Estado – v.g., uma autorização para uma reunião –, e os direitos prestacionais exigem ações
negativas – v.g., uma pretensão de não-revogação de lei que regulamenta direitos fundamentais sociais.
Isso conduz a uma diferenciação material e formal entre ambos. Uma diferenciação material entre
direitos a ações positivas e ações negativas depende da fundamentação do direito, independentemente
de ocasionalmente surgir uma pretensão a uma ação positiva ou negativa como meio para se alcançar a
realização do direito no sentido material.” (Ibidem, p. 83).
Coleção Administração Judiciária
45
Carta de 1988). Trata-se da primeira Constituição brasileira a integrar, na declaração
de direitos, os direitos sociais, tendo em vista que nas Constituições anteriores as
normas relativas a esses direitos encontravam-se dispersas no âmbito da ordem
econômica e social, não constando do título dedicado aos direitos e garantias.”58
O avanço da Carta Política brasileira, no que se refere à consagração dos
direitos prestacionais, também mereceu o registro de Rogério Gesta Leal:
Entre avanços e recuos, a Constituinte consegue, pela insistência de
poucos segmentos políticos, alinhavando compromissos em torno de
temas ligados a grande parte da população brasileira, insculpir no texto
final matérias de ampla abrangência social, contemplando várias
gerações de direitos humanos. A despeito de se saber que o grau de
efetividade na garantia dos direitos humanos independe da qualidade
de seu enunciado normativo, é imperioso que se reconheça a abertura
política e jurídica prestada pela nova Constituição a este fim. Levando
em conta o grau de miserabilidade do povo brasileiro, atingindo quase
2/3 dos cidadãos, os direitos humanos de primeira geração, fruto da
sedimentação da cultura burguesa, pouco interesse representam no
quadro político e econômico nacional, porque negados pelo
funcionamento do próprio sistema. Entretanto, podem-se perceber
avanços formais na enunciação constitucional de proteção aos direitos
humanos de segunda, terceira e quarta gerações. Pode-se afirmar que,
como referencial jurídico, a Carta de 1988 alargou significativamente a
abrangência dos direitos e garantias fundamentais, e, desde o seu
preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito no
país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos socais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos. Nos seus artigos introdutórios,
a Constituição estabelece um conjunto de princípios que delimitam os
fundamentos e os objetivos da República. Dentre estes, destacam-se a
cidadania e a dignidade da pessoa humana59.60
58
59
60
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3ª ed. São Paulo: Editora
Max Limonad, 1997, p. 61.
Afirma José Afonso da Silva: “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de
todos os direitos fundamentais. Concebida como referência constitucional unificadora de todos os
direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa
humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativoconstitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da
dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais,
ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate
de direitos econômicos, sociais e culturais.” (SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo.
6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 93).
LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 1997, p. 130-131.
Marcelo Malizia Cabral
46
4.3 O acesso à justiça na ordem constitucional e sua natureza de direito
humano prestacional
Muito embora grande parte da doutrina identifique a afirmação
constitucional do acesso à justiça no inciso XXXV do art. 5.º da Constituição Federal
de 198861, de seu texto se extrai uma destacada preocupação do constituinte em
conferir igualdade material à população ao utilizar esse serviço público,
democratizando-o e facilitando-o, seja com a criação e o fortalecimento de
instituições dedicadas ao asseguramento de direitos à pessoa humana, seja com a
ampliação de mecanismos de resolução de conflitos.
Aliás, constituindo-se em norma dirigente, a Carta Política – legislação
maior da República Federativa do Brasil – não poderia trazer previsão diversa,
porquanto todos os seus mandamentos devem ser interpretados em direção à
garantia da dignidade da pessoa humana – um de seus fundamentos (art. 1.º) –,
assim como à redução das desigualdades sociais, à erradicação da pobreza e da
marginalização e à promoção do bem de todos – alguns de seus objetivos
fundamentais (art. 3.º).
Em referência às normas em comento, observa Manoel Gonçalves Ferreira
Filho que “esta definição de metas reflete o espírito de uma ‘constituição
dirigente’, ou, pelo menos, uma ‘constituição plano’.”62
“Isto significa que a Constituição se torna, antes de tudo, uma lei material
a preordenar fins, objetivos, até meios, num sentido rigidamente estabelecido.” 63
Na dicção de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, “a nova Constituição
brasileira, amplamente influenciada em diversas de suas partes pelos movimentos
sociais e com as metas que se desenhavam na legislação ordinária antes referida,
consagrando e alargando o âmbito dos direitos fundamentais, individuais e sociais,
prevendo a criação de mecanismos adequados para garanti-los [...]”64, possibilitou,
61
62
63
64
“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...]”
Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 20.
NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 33.
Op. cit., p. 48.
Coleção Administração Judiciária
47
em uma série de disposições, a ampliação e a materialização do acesso universal à
justiça, destacando-se, dentre outras, as seguintes:
a) consagração do princípio da igualdade material como objetivo
fundamental da República, tendo como meta a construção de “uma
sociedade livre, justa e solidária, com a redução das desigualdades
sociais” (art. 3.º); b) o alargamento da assistência jurídica aos
necessitados, que passa a ser integral (art. 5.º, LXXIV),
compreendendo: informação, consultas, assistência judicial e
extrajudicial; c) previsão para a criação de Juizados especiais
destinados ao julgamento e a execução de causas cíveis de menor
complexidade e penais de menor potencial ofensivo, com ênfase na
informalidade do procedimento e a participação popular através do
incentivo à conciliação, e a participação de juízes leigos (art. 98, I),
trazendo, portanto, novidades de monta no que diz respeito à
sistemática implantada pela Lei n.º 7.244, de 7 de novembro de 1984,
que organizava os Juizados de Pequenas Causas; d) previsão para a
criação de uma justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos
eleitos, com mandato de quatro anos, com competência para o
processo de habilitação e a celebração de casamentos, para atividades
conciliatórias e outras previstas em lei (art. 98, II); e) tratamento
constitucional da ação civil pública (art. 129, III), como instrumento
hábil para a defesa de todo e qualquer direito difuso e coletivo, com a
modificação da Lei n.º 7.437/85, que limitava a defesa de tais
interesses ao meio ambiente, consumidor e outros bens e direitos de
valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; f) criação de
novos instrumentos destinados à defesa coletiva de direitos: mandado
de segurança coletivo (art. 5.º, LXX), e o mandado de injunção (art.
5.º, LXXI), bem como a outorga de legitimidade para os sindicatos (art.
8.º, III) e para as entidades associativas (art. 5.º, XXI) defenderem os
direitos coletivos e individuais homogêneos de seus filiados; g)
reestruturação e fortalecimento do Ministério Público, como órgão
essencial à função jurisdicional do Estado, conferindo-lhe: atribuições
para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses coletivos e sociais (arts. 127, §§ 2.º e 3.º), prevendo inclusive
a eleição com mandato dos procuradores-gerais dos estados, distrito
federal e territórios (art. 128, § 3.º); garantias de vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios (art. 128, I, letras a, b,
e c, respectivamente); h) elevação da Defensoria Pública como
instituição essencial à função jurisdicional do Estado, com incumbência
à orientação jurídica e à defesa dos necessitados, devendo ser
organizada em todos os estados, no distrito federal, territórios e,
também, no âmbito da própria União (art. 134 e parágrafo único). 65
65
Ibidem, p. 49-50.
Marcelo Malizia Cabral
48
Não resta dúvida, desse modo, que a preocupação do constituinte com a
asseguração de direitos ao ser humano, em especial com os direitos prestacionais,
refletiu-se, igualmente, no trato do acesso à justiça.66
Destarte, disciplinado em nível constitucional, no título II da Carta Política,
que estatui os “direitos e garantias fundamentais”, o acesso à justiça, assegurado a
toda a humanidade, reclamando ação positiva do Estado, constitui-se em direito
humano prestacional, atributo, aliás, reconhecido pelos estudiosos do tema.
Mauro Cappelletti, por exemplo, ao dissertar sobre a conceituação do
acesso
à
justiça,
enfatiza
que
o
direito
ao
acesso
efetivo
tem
sido
progressivamente reconhecido como sendo de importância capital para a
concretização dos direitos proclamados pelas ordens jurídicas, uma vez que a
titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação. 67
Em seqüência, preconiza: “O acesso à Justiça pode, portanto, ser
encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar direitos a todos.”68
De acordo com Paulo César Santos Bezerra, o acesso à justiça “é um
direito natural, um valor inerente ao homem, por sua própria natureza. A sede de
justiça, que angustia o ser humano, tem raízes fincadas na teoria do direito
natural. Como direito, o acesso à justiça é, sem dúvida, um direito natural.” 69
A dimensão de direito fundamental do homem de que se reveste o acesso
à justiça também não escapou à análise de Alexandre Freitas Câmara:
66
67
68
69
“Houve opção nítida pela ampliação das vias de acesso ao Judiciário. [...] A preocupação com a
facilitação do ingresso ao sistema solucionador de questões que afligem as pessoas alcançou ressonância
também nas Cartas estaduais. [...] Existe destinação expressa do Judiciário, por vontade do constituinte,
a atender ao maior número de reclamos. Não é necessário recorrer-se a interpretações sofisticadas para
concluir que os responsáveis pela justiça institucionalizada têm compromisso consistente com a
multiplicação de portas de acesso à proteção dos direitos lesados. E diante de textos de tamanha
abrangência não se pode afirmar que a Constituição tenha deixado de fornecer ao juiz fundamentos
positivos para tornar o acesso à justiça uma concreção, uma realidade fenomênica, não mera aspiração
doutrinária.” (NALINI, José Renato, op. cit., p. 43).
Op. cit., p. 11.
Ibidem, p. 12.
Op. cit., p. 119.
Coleção Administração Judiciária
49
Entre os direitos humanos reconhecidos por diversas declarações
nacionais e internacionais, está o acesso à justiça. Este não deve ser
visto como mero direito de acesso ao Poder Judiciário. Ao se falar em
acesso à justiça, está-se a falar em acesso à ordem jurídica justa. Assim
sendo, só haverá pleno acesso à justiça quando for possível a toda a
sociedade alcançar uma situação de justiça.70
4.4 O desafio da concretização dos direitos humanos
Muito embora de fundamental importância, a proclamação constitucional
dos direitos humanos não se afigura suficiente à sua realização na realidade fática
da vida das pessoas.
Há um longo caminho a ser percorrido entre o reconhecimento formal de
direitos humanos pelas mais diversas ordens jurídicas e sua concretização,
especialmente quando se faz necessária a atuação positiva do Estado, como na
hipótese de concretização de direitos humanos prestacionais ou sociais.
Norberto Bobbio, em reflexão sobre a extensão e a materialização dos
direitos humanos, de há muito destacou que “o problema que temos diante de nós
não é filosófico, mas jurídico, e num sentido amplo, político. Não se trata de saber
quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são
direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais
seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados.” 71
Examinando os direitos do homem na sociedade atual, Silvia Maria Solci
pontua:
Os direitos são proclamados e desrespeitados internacionalmente,
havendo uma defasagem entre as conquistas e a sua efetivação, mesmo
considerando-se todos os avanços já alcançados pela humanidade nesse
campo, conforme aponta Bobbio (1992). Enfim, o mundo está em luta
incessante pelos direitos, pela sua ampliação e especificação. Aos olhos
insensíveis de tantos “o máximo” que se tem conseguido é a proposta,
nem sempre concretizada, de satisfação de necessidades que garantem
70
71
QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002,
p. 2.
Op. cit., p. 25.
Marcelo Malizia Cabral
50
a sobrevivência ou, ainda, efetivadas sob princípios discriminatórios. O
direito não é, de fato, universal, tão pouco é uma meta desejada por
todos. Apesar de se contemplar a “era dos direitos”, segundo Bobbio
(1992), na realidade concreta vive-se profundo desrespeito aos direitos
humanos. A luta pelo reconhecimento dos direitos não é recente. Há
longo tempo o homem se dedica a reivindicá-los; uma vez conquistados
deve fazer com que sejam realizados e não violados. O direito não se
faz sem lutas, as quais assumem diferentes formas, tal como a
denúncia, o debate, o protesto, a resistência. Em conseqüência, o
direito vai sendo construído em determinado contexto social fruto das
transformações da sociedade, podendo significar não só avanços mas
retrocessos. A “formação e o crescimento da consciência do estado de
sofrimento, de indigência, de penúria, de miséria, ou, mais
geralmente, de infelicidade, em que se encontra o homem no mundo”
(Bobbio, 1992, p. 54), força-o a empenhar-se na superação de tal
estado fazendo surgir “zonas de luz” as quais considera indícios de
progresso da humanidade, tal como os amplos debates internacionais
sobre os direitos do homem que hoje ocorrem.72
Com esse mesmo dilema se depara o direito humano de acesso à justiça:
muito embora não se duvide de seu status constitucional e de sua relevância social,
em realidade ainda se está muito distante de conferir à humanidade o conjunto de
ferramentas e de práticas, de modo universal e materialmente igual, à realização
de justiça.
Ilustrativo, a esse respeito, o painel apresentado por Catherine Slakmon e
Philip Oxhorn, demonstrando a intensidade da falta de concretização do direito
humano de acesso à justiça verificada no Brasil e na América Latina:
A literatura é conclusiva: em decorrência da democratização verificada
ao longo dos últimos vinte anos no Brasil e na maioria dos países da
região, os cidadãos gozam de um nível inédito de liberdade política, ao
mesmo tempo em que sofrem com “violações sistemáticas de seus
direitos civis” (ou seja, os direitos relativos à justiça) diariamente
(Oxhorn, 2003; Ecksteins; Wickham-Crowley, 2003; Caldeira, 2000;
O´Donnell; Pinheiro, 1999; Holston; Caldeira, 1998). Embora a
transição para a democracia no Brasil tenha efetivamente garantido
direitos civis previstos pela Constituição, não concretizou as melhorias
esperadas na acessibilidade e qualidade dos serviços de justiça e
segurança formais, que permanecem amplamente desregulados fora das
instituições formais do sistema judiciário. Se o Estado não detém
monopólio efetivo da violência e da justiça e é visto como reforçador e
72
SOLCI, Silvia Maria. Os Direitos do homem na sociedade
<http://www.ssrevista.uel.br/c_v2n1_direitos.htm>. Acesso em: 17.9.2007.
atual.
Disponível
em:
Coleção Administração Judiciária
51
criador de mais insegurança e injustiça, então quais são as alternativas
ao sistema judiciário formal e aos órgãos de repressão tradicionais para
a obtenção de justiça e segurança?73
A redução dessa distância entre a norma e a realidade, assim como as
ações necessárias à concretização do direito humano de acesso à justiça,
integrarão as reflexões constantes dos próximos capítulos deste estudo.
73
Op. cit., p. 36-37.
Marcelo Malizia Cabral
52
5 OBSTÁCULOS À CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À
JUSTIÇA
Já houve possibilidade de se delinear o conteúdo do direito humano de
acesso à justiça como sendo “o conjunto de ferramentas e de práticas ofertadas
pelo Estado e pela sociedade à humanidade, de modo universal e materialmente
igual, para a realização da justiça.”74
Registrou-se, igualmente, a dificuldade encontrada pelas sociedades
contemporâneas na concretização dos direitos humanos, fazendo com que se
verifique um distanciamento importante entre os direitos declarados e aqueles
efetivamente disponibilizados à comunidade, realidade que não excepciona o
acesso à justiça.
Na mesma esteira, assinalou-se, desde o princípio, a intenção de se
apontarem mecanismos para a concretização do direito humano de acesso à
justiça, medida que reclama, inicialmente, a identificação das circunstâncias que
impedem ou dificultam sua materialização.
O propósito deste capítulo, desse modo, é o de se proceder à identificação
de alguns dos fatores que obstaculizam a concretização do direito humano de
acesso à justiça.
Agrupar-se-ão referidas circunstâncias de acordo com sua identidade,
apreciando-se os fatores econômicos, culturais, sociais e legais que entravam a
realização plena do direito humano de acesso à justiça, não havendo a pretensão
ou a possibilidade de se apresentar rol taxativo de causas, mas apenas aquelas mais
recorrentes e importantes.
5.1 Óbices de natureza econômica
As circunstâncias decorrentes da desigualdade da humanidade quanto ao
acesso a bens de valor econômico têm sido apontadas como importante causa a
74
p. 36.
Coleção Administração Judiciária
53
impedir o acesso de grandes grupos de indivíduos aos mecanismos de realização de
justiça.
As despesas para o ajuizamento de uma demanda perante o Poder
Judiciário não constituem valores meramente simbólicos e muitas vezes limitam ou
inibem75 a intenção daquele que pretende ver um direito reconhecido e
materializado ao utilizar esse serviço. Estudos revelam, tornando ainda mais
dramática essa situação, que, em proporção, a prestação de justiça formal tem se
revelado mais custosa aos hipossuficientes.76
Há quem apregoe até mesmo a isenção absoluta de custas para assegurar a
universalidade do acesso, proposta que merece acurada reflexão.
77
Não se olvida
da existência de gratuidade àqueles que não disponham de condições financeiras
de arcar com as despesas do processo sem prejuízo de seu sustento ou de sua
família, nem de haver a Carta Política determinado ao Estado a instalação de
Defensorias Públicas para atendimento aos necessitados.78
75
76
77
78
“A resolução formal de litígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosa na maior parte das
sociedades modernas. Se é certo que o Estado paga os salários dos juízes e do pessoal auxiliar e
proporciona os prédios e outros recursos necessários aos julgamentos, os litigantes precisam suportar a
grande proporção dos demais custos necessários à solução de uma lide, incluindo os honorários
advocatícios e algumas custas judiciais.” (CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça.
Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 15-16).
“Quanto aos obstáculos econômicos, verificou-se que nas sociedades capitalistas em geral os custos da
litigação eram muito elevados e que a relação entre o valor da causa e o custo da litigação aumentava à
medida que baixava o valor da causa. Assim, na Alemanha, verificou-se que a litigação de uma causa de
valor médio na primeira instância de recurso custaria cerca de metade do valor da causa. Na Inglaterra
verificou-se que em cerca de um terço das causas em que houve contestação os custos globais foram
superiores ao valor da causa. [...] Estes estudos revelam sobretudo que a justiça civil é cara para os
cidadãos em geral mas também revelam que a justiça civil é proporcionalmente mais cara para os
cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles fundamentalmente os protagonistas e os
interessados nas ações de menor valor e é nessas ações que a justiça é proporcionalmente mais cara, o
que configura um fenômeno de dupla vitimização das classes populares face à administração da justiça.”
(FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática
S.A., 1989, p. 46).
“Dentre os obstáculos econômicos que se antepõem entre o lesado e o equipamento formulador da
justiça figura a cobrança de custas. Pese embora a gratuidade assegurada para todo aquele que alegar
insuficiência de recursos para custear a demanda, na verdade ainda há muita pobreza excluída dos
serviços judiciais, diante da inevitabilidade de algum dispêndio: a realização de uma perícia, a obtenção
de documentos, compromissos que não serão suportados pelo defensor constituído. Considerando que a
justiça venha a ser prestação pública de caráter essencial, ela deveria ser gratuita a todos. Alegar que
haveria estímulo à demanda em virtude da gratuidade parece não se fundar em análise adequada da
personalidade humana. [...] Mas o fato de não se cobrar pela prestação jurisdicional é desvinculado da
multiplicação dos processos, de mesma maneira como a imaginária isenção de pagamento por internação
hospitalar não é, diretamente ao menos, causa de epidemia.” (NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à
justiça. 2. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 61).
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV). § 1º Lei
Marcelo Malizia Cabral
54
Todavia, ainda assim, a precariedade do atendimento das unidades em
funcionamento no país e, por igual, a circunstância de haver um grande número de
estados e de municípios sem esse serviço instalado, são fatores que excluem
milhões de brasileiros do acesso à justiça.
Sem a instalação da Defensoria Pública, a garantia de acesso à
justiça não passa de promessa solene e farsaica aos desafortunados
e excluídos da vida social digna. É preciso que a promessa
constitucional torne-se realidade para que os carentes tenham
acesso à ordem jurídica justa. Como coloca Luiz Guilherme
Marinoni, de nada adianta a solene garantia de acesso à justiça
quando boa parte da população não tem condições de pagar um
advogado e não existe uma assistência judiciária estruturada de
modo a atender as necessidades do povo. O Estado tem o dever de
tornar a justiça acessível a todos e, portanto, está obrigado a
estruturar adequadamente a assistência judiciária, tornando-a
capaz de atender aos reclamos sociais. 79
Importa registrar, outrossim, que, mesmo ultrapassados esses obstáculos
referentes às despesas necessárias ao ajuizamento de uma ação perante o Poder
Judiciário e à obtenção de patrocínio de advogado, a escassez de higidez
econômica do pretenso usuário do Poder Judiciário constitui, em diversas ocasiões,
fator limitador ao seu acesso à justiça.
Isso porque a formatação formalista do Poder Judiciário e a necessidade
de se aguardar a solução final da pretensão por um período de tempo bastante
dilatado, no mais das vezes, também corporifica situação a limitar o acesso,
economicamente, dos hipossuficientes à justiça.
Noutras palavras, não dispondo de condição econômica adequada para
suportar o tempo de tramitação do processo, o hipossuficiente acaba por optar
79
complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e
prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe
inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da
inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.”
SOARES, Fábio Costa. Acesso do hipossuficiente à justiça. A Defensoria Pública e a tutela dos interesses
coletivos latu sensu dos necessitados. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça.
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 93.
Coleção Administração Judiciária
55
pela não reação à violação ao seu direito, permanecendo longe do serviço de
prestação de justiça. 80
Ainda que se ultrapassem todos esses óbices, e o indivíduo termine por
apresentar ao Poder Judiciário seu pedido de restauração da paz, a seqüência de
barreiras que se lhe apresentam ainda prossegue, agora consubstanciada no desafio
de lograr demonstrar sua razão ao Estado-Juiz em igualdade material de condições
relativamente a seu adversário.81
Como adverte Mauro Cappelletti,
pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros
consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou
defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para
litigar. Podem, além disso, suportar as delongas do litígio. Cada
uma dessas capacidades, em mãos de uma única das partes, pode
ser uma arma poderosa; a ameaça de litígio torna-se tanto plausível
quanto efetiva. De modo similar, uma das partes pode ser capaz de
fazer gastos maiores que a outra e, como resultado, apresentar
seus argumentos de maneira mais eficiente. Julgadores passivos,
apesar de suas outras e mais admiráveis características, exacerbam
claramente esse problema, por deixarem às partes a tarefa de
obter e apresentar as provas, desenvolver e discutir a causa.82
Cuida-se da igualdade de armas, impositiva à solução adequada do litígio,
exigindo que uma parte possa se valer de recursos tão qualificados quanto os
utilizados por seu adversário, o que envolve a contratação do advogado, a
disponibilidade de arcar com despesas para a obtenção de documentos,
deslocamentos de testemunhas, peritos, entre outros.
80
81
82
Após referir a dupla vitimização dos hipossuficientes em razão do alto custo das demandas de menor
valor econômico, Boaventura Souza Santos enfatiza: “De fato, verificou-se que essa vitimização é tripla
na medida em que um dos outros obstáculos investigados, a lentidão dos processos, pode ser facilmente
convertido num custo econômico adicional e este é proporcionalmente mais gravoso para os cidadãos de
menos recursos.” (FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A Função Social do Judiciário. São
Paulo: Editora Ática S.A., 1989, p. 47).
“Eis o novo significado social do princípio da igualdade processual, atuando mediante adequados
institutos e por força do reconhecimento de poderes de iniciativa judicial que, como lembra
Calamandrei, ‘podem colocar a parte socialmente mais fraca em condições de paridade inicial frente à
mais forte, e impedir que a igualdade de direitos se transforme em desigualdade de fato por causa da
inferioridade de cultura ou de meios econômicos.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do
direito processual: de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Forense Universitária, 1990, p. 11).
Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988,
p. 21-22.
Marcelo Malizia Cabral
56
Não fosse suficiente essa gama de limitações que a hipossuficiência
econômica impõe à população, essa falta de recursos se apresenta, muitas vezes,
ainda, como causa de outros óbices, de natureza cultural e social, como se
examinará a seguir.
5.2 Óbices de natureza cultural e social
Ainda que as restrições ocasionadas pelas questões de natureza econômica
sejam as mais recorrentemente apreciadas pelos estudiosos do tema, as
dificuldades ligadas a aspectos culturais e sociais da humanidade apresentam
importância acentuada no estudo do direito humano de acesso à justiça.
Entende-se por desenvolvimento cultural e social de uma comunidade o
maior ou menor grau de acesso à educação, à saúde, ao lazer, ao trabalho, à
informação, assim como a outros direitos humanos.
Boaventura de Sousa Santos não deixa qualquer dúvida a respeito da
influência da hipossuficiência cultural e social no exercício do direito humano de
acesso à justiça:
Mas como comecei a referir, a sociologia da administração da justiça
tem-se ocupado também dos obstáculos sociais e culturais ao efetivo
acesso à justiça por parte das classes populares e este constitui talvez
um dos campos de estudo mais inovadores. Estudos revelam que a
distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto
maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e que essa
distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos,
mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam
estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades
econômicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos
tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais
dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo
problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as
possibilidades de reparação jurídica. Capplowitz, por exemplo, concluiu
que quanto mais baixo é o estrato social do consumidor, maior é a
probabilidade que desconheça seus direitos no caso da compra de um
produto defeituoso. Em segundo lugar, mesmo reconhecendo o
problema como jurídico, como violação de um direito, é necessário que
a pessoa se disponha a interpor a ação. Os dados mostram que os
Coleção Administração Judiciária
57
indivíduos das classes baixas hesitam muito mais que outros a recorrer
aos tribunais mesmo quando reconhecem estar perante um problema
legal. [...] O conjunto destes estudos revelaram que a discriminação
social no acesso à justiça é um fenômeno muito mais complexo do que
à primeira vista pode parecer, já que para além das condicionantes
sociais e culturais resultantes de processos de socialização e de
interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar.83
A hipossuficiência social e cultural resulta, assim, inequivocamente, no
distanciamento da população com o sistema de justiça, a começar pela falta de
informação.
Desconhecendo seus direitos e até mesmo o direito de ter direito material
a direitos – via direito humano de acesso à justiça –, as populações com baixos
índices de desenvolvimento humano são as que menos procuram o sistema de
justiça.84 Essa situação apresenta-se agravada diante da cultura do sistema de
justiça brasileiro que pouca preocupação tem demonstrado na comunicação com a
sociedade e, em especial, na produção de informações sobre como acessá-lo.85
Não bastassem todos os entraves de ordem econômica e a falta de
informações, a localização dos Foros – em regra bem distantes de comunidades
periféricas –, sua imponência e até mesmo o distanciamento social das
comunidades de baixa renda com os operadores do sistema de justiça – servidores,
advogados, juízes –, seja em relação à linguagem, seja no que se refere às vestes86,
83
84
85
86
Introdução à sociologia da administração da justiça. In FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A
Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989, p. 48-49.
A esse respeito, na introdução desse estudo colacionou-se pesquisa noticiada por Maria Tereza Sadek
dando conta de que a relação entre habitantes e processos no Brasil é diretamente proporcional ao
índice de desenvolvimento humano das populações.
“A informação institucional a respeito do serviço público da justiça praticamente não existe no Brasil. Há
necessidade de informação ao destinatário, mediante fornecimento de todos os detalhes que viabilizam o
ingresso ao Judiciário, inserindo-se conselhos práticos quanto à inteira gama de produtos disponíveis.
Singelo aconselhamento jurídico, ensinando a quais setores recorrer quando necessários os préstimos da
justiça, mostra-se essencial: o conjunto normativo se amplia e a sociedade de consumo exige nível cada
dia mais elevado de educação de seus cidadãos. Saber a quem e como procurar nos momentos de
vulneração a direitos é básico.” (NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed., São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 85-86).
Notícia recentemente veiculada pela mídia dá conta do grau de obstaculização do acesso à justiça a que
questões sociais podem levar: “Tiras censuradas. Juiz suspende audiência porque parte usava chinelos.
Por Gláucia Milicio. O juiz Bento Luiz de Azambuja Moreira, da 3ª Vara do Trabalho de Cascavel (PR),
decidiu cancelar uma audiência porque uma das partes calçava chinelos. Para ele, “o calçado é
incompatível com a dignidade do Poder Judiciário”. O trabalhador Joanir Pereira ajuizou ação trabalhista
contra a empresa Madeiras J. Bresolin. A primeira audiência, no entanto, não foi feita porque o exfuncionário estava com calçado impróprio para o ambiente, de acordo com o juiz. Na ata, o juiz
registrou a sua insatisfação e marcou uma nova data para a audiência. O caso foi noticiado, nesta quinta-
Marcelo Malizia Cabral
58
são circunstâncias que desmotivam e desencorajam grandes contingentes humanos
de procurar a realização de justiça.
Jasson Ayres Torres explicita essas limitações detalhadamente:
Quem recorre ao Judiciário não assimila a demora, não entende as
fórmulas e os procedimentos complicados da vida forense, não aceita
rotinas, o linguajar complexo, tudo distante do entendimento normal
da comunicação entre pessoas. Esse afastamento da realidade e da
objetividade da vida torna enfadonho o processo, burocratizando a
administração da Justiça. [...] Pensando nas incontáveis pessoas que
ficam à margem da Justiça, porque não têm condições econômicas e
até se sentem constrangidas em entrar numa sala do Fórum, pela
imponência dos prédios, pela formalidade e distanciamento, desde a
linguagem até o desenrolar dos atos processuais, é que a idéia de uma
Justiça simples, informal, imediata, cria força e receptividade.87
A experiência estrangeira chegou às mesmas constatações, solidificando os
aspectos culturais e sociais como limitadores do acesso à justiça em termos mundiais:
Mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamento jurídico
qualificado podem não buscá-lo. O estudo inglês, por exemplo, fez a
descoberta surpreendente de que “até 11% dos nossos entrevistados
disseram que jamais iriam a um advogado”. Além dessa declarada
desconfiança nos advogados, especialmente comum nas classes menos
favorecidas, existem outras razões óbvias por que os litígios formais são
87
feira (21/6), pelo site Espaço Vital. “O juiz deixa registrado que não irá realizar esta audiência, tendo
em vista que o reclamante compareceu em Juízo trajando chinelo de dedos, calçado incompatível com a
dignidade do Poder Judiciário”, registrou o documento. O presidente da Amatra da 9ª Região (Associação
dos Magistrados do Trabalho), José Mário Kohler, comentou a decisão. Para ele, não tem nada de indigno
uma pessoa simples calçar chinelos durante uma audiência. Mário Kohler disse, ainda, que jamais
suspenderia uma audiência por esse motivo e que a maioria dos juízes do trabalho também não. “O juiz
tem de agir com o bom senso judiciário”, destacou. Leia a ata: Numeração única: 01468-2007-195-09-002. Reclamante: Joanir Pereira. Reclamada: Madeiras J. Bresolin Ltda. TERMO DE AUDIÊNCIA. Aos treze
dias do mês de junho de 2007, às 15:10h, na sala de audiências da 3ª Vara do Trabalho de Cascavel, sob a
direção do Juiz do Trabalho Dr. BENTO LUIZ DE AZAMBUJA MOREIRA, foram apregoados os litigantes.
Presente o(a) reclamante, acompanhado(a) de seu(sua) procurador Dr. Olímpio Marcelo Picoli (OAB/TO
3631) . Presente o(a) reclamado(a), por intermédio do preposto José Orlando Chassot Bresolin,
acompanhado(a) de seu(sua) procurador Dr. Heriberto Rodrigues Teixeira (OAB/PR 16184), que junta
procuração, carta de preposição e contrato social. O Juízo deixa registrado que não irá realizar esta
audiência, tendo em vista que o reclamante compareceu em Juízo trajando chinelo de dedos, calçado
incompatível com a dignidade do Poder Judiciário. Protestos do reclamante. Em face da providência, o
Juízo designa nova data para instauração do dissídio, dia 14 de agosto de 2007 às 14h30min. Cientes as
partes. Nada mais. Audiência encerrada às 16h10min. E para constar, eu Suzeli Maria Idalgo Becegato,
Assistente Administrativo de Sala de Audiências, digitei a presente ata. BENTO LUIZ DE AZAMBUJA
MOREIRA. Juiz do Trabalho. Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2007.” Disponível em
<http://conjur.estadao.com.br/static/text/56839,1>. Acesso em: 18.9.2007.
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005, p. 73-74 e 164.
Coleção Administração Judiciária
59
considerados tão pouco atraentes. Procedimentos complicados,
formalismo, ambientes que intimidam, como o dos tribunais, juízes e
advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se
sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho.88
Catherine Slakmon e Philip Oxhorn trazem outro elemento, por demais
preocupante, de ordem social e cultural, a prejudicar o acesso à justiça: a
desconfiança de determinados grupos populacionais para com a imparcialidade e a
confiabilidade do sistema formal de justiça:
Um estudo recente sobre cidadania e democracia na América Latina
revela que, na maioria dos países da região, o sistema judiciário
formal e a polícia tendem a reproduzir desigualdades
socioeconômicas existentes, negando o princípio fundamental da
igualdade entre os cidadãos perante a lei (Ecksteins; WickhamCrowley, 2003; O´Donnell; Pinheiro; 199, Holston; Caldeira, 1998).
Os baixos níveis de confiança (que não surpreendem) na polícia e
no Poder Judiciário (OAB, 2003; Pesquisa de Valores Mundiais,
levantamento de 1995-1997; Buscaglia, 1995), sobretudo entre os
cidadãos de baixa condição socioeconômica, são um forte indicativo
da improbabilidade de recurso aos canais legais tradicionais para a
solução dos problemas e conflitos que provocam a insegurança e a
injustiça percebidas e efetivas. Em outras palavras: quando as
pessoas têm um problema a ser resolvido ou um conflito de
interesses a mediar, têm menor probabilidade de recorrer às
instituições estatais para tanto e “obter justiça”.89
Embora as limitações sociais e culturais até então declinadas possuam
relação direta com as condições econômicas das populações, outras limitações
dessa natureza apresentam-se dissociadas dos aspectos econômicos, como por
exemplo, a falta de cultura das comunidades na organização e na busca por direitos
enquanto grupo ou classe.
Trata-se da defesa coletiva de direitos, a exigir o desenvolvimento da
consciência – questão social e cultural – do grupo social de sua importância e
conveniência.
88
89
Ibidem, p. 23-24.
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo (Orgs.). Novas Direções na Governança
da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 43.
Marcelo Malizia Cabral
60
Mauro Cappelletti denomina esse obstáculo ao acesso à justiça de pobreza
jurídica:
Pobreza jurídica não é somente a pobreza de um indivíduo, que não
tem recursos financeiros, que não tem cultura bastante, que não tem
posição social adequada, ou seja, pobreza econômica, social, jurídica,
cultural, etc. Pobreza pode ser um fenômeno mais vasto. Fenômeno de
grupos, de categorias. Tipicamente o caso do consumidor. Todos somos
consumidores,
sem
que
sejamos
necessariamente
pobres
economicamente ou culturalmente. Mas a sociedade contemporânea, a
indústria é tal que produtos são fabricados de forma massiva, milhares,
milhões de produtos do mesmo tipo, em série. Não é a produção
artesanal de outras épocas: é uma produção em massa. O consumidor,
que compra um produto com pequeno defeito de um dólar, não pode se
defender individualmente. Aí se trata de um interesse fragmentado,
demasiado pequeno para que o cidadão, individualmente, defenda seu
direito. Mas se todos os consumidores, em conjunto, decidirem atuar,
serão milhões de dólares, e não apenas um, pois milhares, centenas de
milhares ou milhões de consumidores estarão comprometidos.90
Fábio Costa Soares, citando Ada Pellegrini Grinover, exemplifica outras
situações de pobreza jurídica – gerando os carentes organizacionais – e registra a
necessidade do desenvolvimento da cultura de organização e mobilização desses
grupos para a superação desse obstáculo do acesso à justiça.91
Outro importante fator de ordem cultural refere-se à concepção
reducionista, formal, conflitiva, burocrática e não efetiva que a população detém
sobre o sistema de justiça.
Em outras palavras, a inexistência de uma cultura que identifique o acesso
à justiça também como possibilidade de resolução pacífica de conflitos – via
mediação, conciliação, arbitragem, modelos de justiça comunitária e de justiça
90
91
REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 35. Porto Alegre: Nova Fase, 1995, p. 50.
“As relações travadas entre indivíduos na atualidade são marcadas pelas notas da complexidade e da
desigualdade fática. [...] Parece crucial que à sociedade de massa deve corresponder o processo de
massa para a solução dos conflitos de massa. [...] Assim, por exemplo, o consumidor no plano das
relações de consumo; o usuário de serviços públicos; os que se submetem necessariamente a uma série
de contratos de adesão; os pequenos investidores do mercado imobiliário; os segurados da Previdência
Social; o titular de pequenos conflitos de interesse, que via de regra se transforma em um litigante
meramente eventual. Todos aqueles, enfim, que no intenso quadro de complexas interações sociais hoje
reinantes, são isoladamente frágeis perante adversários poderosos do ponto de vista econômico, social,
cultural ou organizativo, merecendo por isso mesmo maior atenção com relação ao seu acesso à ordem
jurídica justa e à participação por intermédio do processo.” (Acesso do hipossuficiente à justiça. A
Defensoria Pública e a tutela dos interesses coletivos latu sensu dos necessitados. In QUEIROZ, Raphael
Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 84).
Coleção Administração Judiciária
61
restaurativa, formas informais e céleres de resolução de conflitos –, inibe a
população de buscar sua resolução por meios lícitos e consensuais.
Esse desestímulo é gerado pela certeza de que buscar justiça, no Brasil,
implica o enfrentamento de uma longa e burocrática batalha judicial, o que,
muitas vezes, até mesmo potencializa o conflito em lugar de mitigá-lo.
Ademais,
o povo não quer decisões eruditas, recheadas de citações
doutrinárias e jurisprudenciais, mas soluções objetivas, simples e,
acima de tudo, que resolvam o caso concreto de forma
descomplicada, atendendo às expectativas de uma justiça rápida e
eficaz. Realmente, facilitar o acesso do cidadão à Justiça a que
possa apresentar a reclamação de um direito tendo resposta
imediata do Estado, representa um anseio da sociedade. [...] O
Poder Judiciário não pode ser inacessível, elitista, ficando distante
do povo, não cumprindo com seu papel de distribuidor de justiça,
sob pena de as angústias e emoções reprimidas crescerem, o
descrédito se instalar, gerando revoltas e insatisfações.92
5.3 Óbices de natureza legal
Mesmo que as dificuldades de ordem econômica, social e cultural sejam
ultrapassadas, o acesso à justiça ainda encontra óbices de ordem legal,
responsáveis, na maioria das vezes, pela morosidade na tramitação dos processos.
O excessivo formalismo do processo e a grande variedade de vias de
impugnação93 às decisões proferidas em seu curso são algumas das causas da
92
93
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005, p. 160-161.
“Outro grande obstáculo ao funcionamento da máquina judiciária é o elevado número de recursos – oito
(8) nos termos do art. 496, sem contar a remessa de ofício, os embargos de declaração dobrados (a
sentença e o acórdão), o agravo também dobrado (retido e de instrumento), e os recursos regimentais
como os agravos regimentais, o que eleva esse número para onze (11), afora o mandado de segurança
que é freqüentemente manejado como sucedâneo recursal, com o que teríamos uma dúzia (12) de
recursos. É preciso convir que nenhum ordenamento jurídico agüenta semelhante carga recursal, e nem
há tribunal que dê conta dela. Não tenho conhecimento de país que adote modelo semelhante, o que é
justificável, pois enquanto os outros confiam nos seus juízes de primeiro grau, e partem da presunção de
que as sentenças são corretas, e só excepcionalmente erradas ou injustas, no Brasil, partimos do
extremo oposto, supondo que as sentenças são, no geral, erradas ou injustas, e só excepcionalmente
corretas.” (ALVIM, J. E. Carreira. Alternativas para uma maior eficácia na prestação jurisdicional.
Revista da Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal, n.2. Brasília: 1996, p. 128).
Marcelo Malizia Cabral
62
excessiva morosidade94 verificada na resolução dos conflitos entregues ao
Judiciário.
Essa morosidade se apresenta como limitação do acesso ao Poder
Judiciário, porquanto serve de desestímulo a um grande contingente de pessoas
que, pelos mais variados motivos, deixa de apresentar suas pretensões em razão da
impossibilidade de aguardar a decisão a ser proferida ao final.
Uma justiça tardia gera problemas insanáveis, atingindo o âmago da
pessoa. Por isso as afirmativas de que não ter acesso ao Poder
Judiciário ou tê-lo e não conseguir obter com a presteza desejada a
reposição do direito no seu devido lugar e no tempo exigido, representa
a própria negação da justiça. [...] É compreensível o fato de muitas
pessoas não recorrerem ao Judiciário, pois se torna algo dispendioso, e
nem todos têm condições econômico-financeiras para contratar um
advogado e suportar o custo de uma demanda.95
Não é demais se apontar, por fim, que os hipossuficientes são os que mais
sofrem com as conseqüências da longa tramitação dos processos.
Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices de
inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as partes
e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas causas, ou a
aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam
direito. A Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e
Liberdades Fundamentais reconhece explicitamente, no artigo 6.º,
parágrafo 1.º, que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de
“um prazo razoável” é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível.96
94
95
96
“O Judiciário padece mais por falta de eficiência do que por falta de seriedade. É por isso que temas
como controle externo não apaixonam a comunidade. Esta reclama da morosidade da justiça. Uma
justiça que, se vier a ser mais pronta e inteligível, gozará do apreço devotado pela comunidade àqueles
que a servem adequadamente.” (NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed., São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 166).
TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 48-50.
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. op. cit., p. 20-21.
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63
6 CONCRETIZANDO O DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA
Reconstituídas suas origens históricas, definido seu conteúdo e traçados os
obstáculos à garantia do direito humano de acesso à justiça, resta que sejam
delineadas as estratégias para a construção de um acesso à justiça materialmente
universal à população.
Apontar-se-ão, nesse capítulo, ações necessárias à remoção dos obstáculos
à concretização do direito humano de acesso à justiça, várias delas passíveis de
realização no âmbito de atuação da magistratura, constituindo-se esse estudo,
assim, em verdadeira proposta de intervenção social dirigida à sociedade e, em
especial, à magistratura brasileira.
Ofertar-se-á, dessa forma, um rol de ações a serem efetivadas pela sociedade
e pela magistratura para a materialização do direito humano de acesso à justiça.
Com efeito, pontua Norberto Bobbio, com extremo acerto, a relevância e
a complexidade da concretização dos direitos humanos:
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não
é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não filosófico, mas político. [...] Com efeito, o problema que
temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais
amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses
direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais
ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais
seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados. [...] O problema real
que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e
imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.97
6.1 O papel dos movimentos sociais
O acesso à justiça constitui-se em direito de fundamental importância na
construção de um Estado Democrático de Direito.
97
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 24-25 e 37.
Marcelo Malizia Cabral
64
Como já se pontuou, o acesso à justiça afigura-se como pressuposto para a
materialização de uma série de outros direitos titularizados pela população.98
Desse modo, a articulação e a organização comunitárias apresentam-se
como estratégias necessárias à sua consagração. Justamente por esse motivo foram
historicamente utilizadas pelos grupos sociais como instrumento de pressão a que
os organismos estatais materializassem os direitos que lhe são prometidos,
consagrados no ordenamento jurídico.
Nessa linha, no dizer de Gohn, movimentos sociais,
são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores
sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles
politizam suas demandas e criam um campo político de força social na
sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados
sobre temas e problemas em situações de: conflitos, litígios e disputas.
As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria
uma identidade coletiva ao movimento, a partir desses interesses em
comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solidariedade
e é construída a partir da base referencial de valores culturais e
políticos compartilhados pelo grupo.99
No caso brasileiro, todavia, verifica-se número inexpressivo de
organizações sociais trabalhando no sentido de concretizar o direito humano de
acesso à justiça, muito embora já tenham desempenhado função relevante na
realização desse direito fundamental, como anota Paulo Cezar Pinheiro
Carneiro:
98
99
“O tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o processo civil
e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade socioeconômica. No âmbito da justiça
civil, muito mais propriamente do que no da justiça penal, pode falar-se de procura, real ou potencial,
de justiça. Uma vez definidas as suas características internas e medido o seu âmbito em termos
quantitativos, é possível compará-la com a oferta da justiça produzida pelo Estado. Não se trata de um
problema novo. No princípio do século, tanto na Áustria como na Alemanha, foram freqüentes as
denúncias da discrepância entre a procura e a oferta da justiça e foram várias as tentativas para
minimizar, quer por parte do Estado (a reforma do processo civil levada a cabo por Franz Klein na
Áustria), quer por parte dos interesses organizados das classes sociais mais débeis (por exemplo, os
centros de consulta jurídica organizados pelos sindicatos alemães). Foi, no entanto, no pós-guerra que
esta questão explodiu. Por um lado, a consagração constitucional dos novos direitos socioeconômicos e
sociais e a sua expansão paralela à do Estado de bem-estar transformou o direito ao acesso efetivo à
justiça num direito charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de todos os demais. Uma vez
destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos direitos sociais e econômicos
passaram a meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores.” (SANTOS, Boaventura de
Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça. In FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e
Justiça: A Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989, p. 45-46).
GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995, p. 44.
Coleção Administração Judiciária
65
A partir da década de 80, praticamente já consolidada a reabertura
política com a Lei de Anistia, a Nova Lei Orgânica dos Partidos, que
ensejou inclusive a criação do Partido dos Trabalhadores (PT),
começaram a tomar corpo movimentos sociais diversos, seja das classes
dominadas, seja de outros matizes, caladas pela ditadura. Foi nesse
contexto que surgiram a Central Única dos Trabalhadores, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimentos Ecológicos e ONGs
diversas, exigindo a efetivação de direitos fundamentais e socais,
enfim, uma vida digna e livre e, portanto, justiça, na sua acepção mais
ampla e nobre. Inúmeras publicações científicas de sociólogos,
filósofos, psicanalistas, cientistas políticos, a partir de uma visão
interdisciplinar, abordavam temas ligados aos direitos fundamentais e
sociais e, em especial, o relativo ao acesso à justiça de forma
igualitária e eficiente, na busca da consolidação de um sistema jurídico
mais atuante, moderno e participativo.100
Talvez a falta de consciência da dimensão e da importância desse direito
constitua um dos óbices à organização popular,101 postura, aliás, na contramão da
história desenhada pela nova cidadania nacional.102
Essa circunstância foi percebida e anotada por José Murilo de Carvalho:
100
101
102
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 43-44.
“Os movimentos se constituem a partir de dois elementos motrizes: a carência e o trabalho
desenvolvido pela organização dos moradores. Entre ambos, existe um elemento articulador,
constituído por um conjunto de mecanismos internos ao movimento que permite a passagem da
necessidade à reivindicação, mediada pela afirmação de um direito. Isto configura o que Durham
caracteriza como “um amplo processo de revisão e redefinição do espaço de cidadania”. [...] Não
existe, entretanto, uma relação mecânica e espontânea entre carência e reivindicação. O elemento de
conscientização se manifesta em ações sociais diferenciadas, porém dentro de uma perspectiva do que
alguns autores têm denominado de modelo comunitário (Durham, 1984; Evers, 1984).” (JACOBI, Pedro.
Movimentos Sociais e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 1993, p. 151).
“Um primeiro elemento constitutivo dessa concepção de cidadania se refere à noção mesma de
direitos. A nova cidadania assume uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a
concepção de um direito a ter direitos. [...] Ela inclui a invenção/criação de novos direitos, que
surgem de lutas específicas e de suas práticas concretas. Nesse sentido, a própria determinação do
significado de ‘direito’ e a afirmação de algum valor ou ideal como um direito são, em si mesmas,
objetos de luta política. [...] A nova cidadania requer - é inclusive pensada como consistindo nesse
processo – a constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que
consideram ser seus direitos e lutando para seu reconhecimento enquanto tais. Nesse sentido, é
uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania ‘desde baixo’. Um terceiro ponto
é a idéia de que a nova cidadania transcende uma referência central no conceito liberal: a
reivindicação ao acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado. O
que está em jogo, de fato, é o direito de participar na própria definição desse sistema, para
definir de que queremos ser membros, isto é, a invenção de uma nova sociedade.” (DAGNINO,
Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: do que estamos falando?). Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/venezuela/faces/mato/Dagnino.pdf>. Acesso em 20.9.2007.
Marcelo Malizia Cabral
66
O que a tradição estatista, que chamei uma vez de estadania, fez, no
entanto, foi gerar grande ênfase nos diretos sociais, exatamente porque
eles sempre supuseram iniciativa estatal. [...] Há clara percepção desses
direitos e da obrigação do Estado de providenciar sua garantia. [...]
Sintomaticamente, entre os direitos sociais ainda não foram incluídos,
pela população, pelo governo, o de acesso à justiça. A população, são
pesquisas do IBGE e de institutos de opinião pública que o mostram, teme
a polícia e não confia na justiça comum, que julga cara, lenta e favorável
aos ricos. [...] O Judiciário sempre foi discutido como parte da
engrenagem política da divisão de poderes, como um poder político, e
não como um distribuidor de justiça. [...] Não seria difícil imaginar o
efeito revolucionário que teria, sobretudo, entre a população
marginalizada das grandes cidades, a rápida solução, por uma justiça ágil
e barata, da multidão de pequenos conflitos que infernizam o cotidiano
dessa população e tornam na prática letra morta para ela o capítulo dos
direitos da Constituição. [...] Além das óbvias dificuldades representadas
pela morosidade, pelo custo, pela complexidade e insuficiência da
máquina judiciária, o maior obstáculo à democratização do acesso à
justiça talvez seja essa fraca consciência dos direitos que bloqueia a
disposição para reivindicá-los.103
Propugna-se,
assim,
que a organização popular se
desenvolva,
dialogando com o poder público para que se concretize o direito humano de
acesso à justiça.
Isso porque “conscientizar os cidadãos de seus direitos, mostrar-lhes os
caminhos da justiça, fazê-los afogar o Judiciário em demandas é, a meu ver, o
caminho eficaz para forçar a entrada do problema da democratização do acesso
à justiça na agenda da política.”
104
Enfim, “para que haja solução autêntica é
necessário que a voz dos verdadeiros interessados se faça ouvir.” 105
6.2 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas
Como se sublinhou quando do exame dos entraves ao pleno acesso à
justiça, as limitações de caráter econômico afastam considerável número de
103
104
105
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero americanos. Organização
Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 290-292.
Ibidem, p. 293.
Ibidem, p. 293.
Coleção Administração Judiciária
67
pessoas dos mecanismos de resolução de conflitos. Não fosse o bastante, a
hipossuficiência econômica origina, muitas vezes, restrições de ordem social e
cultural, fatores que, associados, empurram os povos para a margem dos
mecanismos de pacificação social.
Essas circunstâncias, decorrentes da deficitária distribuição de renda e,
também, da ineficiência das políticas públicas necessárias à asseguração da
dignidade ao ser humano, originam uma cidadania de segunda classe, formada
pelos sem-nome, sem-abrigo, sem-alimentação, sem-saúde, sem-profissão, semesperança, sem-dignidade e, igualmente, sem acesso à justiça.
Esse outro Brasil, em verdade, é composto de dezenas de milhões de seres
humanos, aos quais há de se garantir os direitos proclamados pela Carta Política, o
que impõe, da mesma forma, o alcance da efetivação do princípio da igualdade
material.106 A concretização do direito humano de acesso à justiça apresenta-se,
assim, como imperativo ético do Estado Democrático de Direito.
Destarte, não por motivações de caridade ou de benevolência, mas por
imposição constitucional e ética, hão de se efetivar ações afirmativas e
desenvolver políticas públicas para a concretização dessas promessas democráticas,
dentre as quais, a do universal acesso à justiça.107
106
107
“A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a
lei, começou a ser questionada quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só,
suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que
gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível
de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições. Assim,
sob esse novo aspecto, a tradicional posição de neutralidade do Estado foi sendo abandonada, dando
lugar a uma posição ativa na busca da concretização da igualdade positivada nos textos
constitucionais. Diante desta nova perspectiva, foram surgindo as denominadas Ações Afirmativas, que
nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material.” (FARIA,
Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de
(Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 15).
“O Estado passa a ser responsável pela democratização do acesso à justiça, pela redução da
desiguladade real (em oposição à igualdade formal) perante a lei. Com essa inversão, abriu-se, à
expansão da democracia, imenso campo até há pouco tempo desprezado. Ao mercado de massa, à
participação política de massa, ao estado de bem-estar de massa, acrescenta-se o ideal de uma justiça
de massa como coroamento da construção do cidadão moderno.” (CARVALHO, José Murilo de. O acesso
à justiça e a cultura cívida brasileira. In Justiça: Promessa e Realidade: o acesso à justiça em países
ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa
Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 289).
Marcelo Malizia Cabral
68
Com efeito,
a definição objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica
e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se
promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por
preconceitos encavados na cultura dominante na sociedade. Por esta
desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela
afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação
social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado
formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação
afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento
ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.108
Não há dúvida da responsabilidade do Poder Judiciário para com a
coordenação e o desenvolvimento dessas ações de construção da igualdade
material no acesso à justiça, visto ser o encarregado, constitucionalmente, da
distribuição de justiça aos seres humanos.109
Apontando para a responsabilidade do Judiciário na democratização do
acesso à justiça, apregoa o magistrado José Renato Nalini:
A ordem constitucional confere ao Poder Judiciário o monopólio da
realização da justiça. A sua ineficiência, a lentidão com que responde
aos anseios comunitários, a falha na efetividade da prestação
jurisdicional fazem surgir resistência na preservação desse esquema.
Incumbe ao Judiciário demonstrar que pode otimizar sua atuação,
liderar o movimento pelo acesso e coordenar – sob sua órbita –
qualquer forma alternativa de realização de justiça. A essa missão
todos os juízes estão convocados. [...] O objetivo é conclamar os
magistrados para uma tomada de posição. O que pode ser feito para
melhorar o funcionamento da justiça, de maneira a acolher sob sua
proteção vasta legião de excluídos? O que se pode fazer para resgatar a
credibilidade perdida? 110
108
109
110
FARIA, Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ, Raphael Augusto
Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 15-16.
“A solução de conflitos pode ter um caminho judicial ou mesmo extrajudicial. [...] Nessa via
extrajudicial, vai preponderar o interesse dos envolvidos. Nesse terreno é que sentimos a importância
de o Poder Judiciáro não ficar alheio e nem se tornar estranho ao desfecho do conflito, propiciando
uma negociação diretamente pelas partes, contando, para tanto, com a participação de profissionais
da área do direito, com a presença de um terceiro com vontade deliberada de resolver o problema.
[...] Essa participação, porém, deve ficar sob a coordenação do Poder Judiciário, como instituição
organizada e com delegação do Poder Estatal para a distribuição da Justiça.” (TORRES, Jasson Ayres. O
acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005. p. 155-156).
NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
p. 166-167.
Coleção Administração Judiciária
69
Após comentar as possibilidades de resolução de conflitos por intermédio
de mediação e conciliação, assim como a informalidade, a celeridade e o facilitado
acesso à justiça verificados nesses mecanismos de pacificação social, sublinha
Jasson Ayres Torres:
Não se pode negar, porém, que são iniciativas como essas que,
tomadas, representam alto significado de democratização da Justiça,
tornando o Judiciário mais próximo do cidadão, com participação mais
efetiva da vida em sociedade e ensejando uma melhor distribuição de
Justiça, porque se alcançarão as pessoas menos favorecidas e com
menos oportunidades de reclamar um direito. [...] A implantação de
medidas racionalizadoras na vida forense e na vida do cidadão é uma
conseqüência do acompanhamento das transformações sociais para a
afirmação do tão desejado acesso à Justiça, compreendendo na
amplitude desta expressão, também, a efetividade da jurisdição. É
necessário, portanto, que voltemos o olhar para importantes temas e é
imprescindível que o mundo jurídico nacional tenha consciência do
valor desses problemas e se mobilize para viabilizar alternativas
satisfatórias na solução de conflitos. Pretende-se, hoje, mais do que
nunca, um Poder Judiciário mais próximo e mais entendido pelo povo.
Ao lado de medidas alternativas na solução de conflitos em que se
afirmem os direitos do cidadão, é preciso encontrar caminhos para
garanti-los, com um Estado presente, sem excluir ninguém, tendo o
Judiciário como um dos esteios a dignificar e valorizar o ser humano.111
Fazem-se necessários, então, a implementação de políticas públicas e o
desenvolvimento de ações afirmativas112 no sentido da superação dos obstáculos já
identificados ao acesso à justiça.
Apresentar-se-ão, nos tópicos seguintes, algumas sugestões de ações no
sentido de se concretizar o direito humano de acesso à justiça.
111
112
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005. p. 166-167.
“A experiência e o tempo têm-nos demonstrado que a estratégia de combate à discriminação somente
com base no campo normativo, de regras meramente proibitivas de discriminação, não surte efeito.
Isto tem feito com que as diversas classes, que durante toda a história foram discriminadas, venham a
se mobilizar de diversas formas, atuando para que possam desfrutar do acesso à justiça que sempre
lhes foi negado.” (FARIA, Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ,
Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 18).
Marcelo Malizia Cabral
70
6.3 Ações para a superação dos obstáculos de natureza econômica
Como se pôde apontar, os obstáculos de natureza econômica são aqueles
que por primeiro se identificam quando se aborda o tema acesso à justiça. Estão
relacionados à necessidade de recolhimento prévio de custas quando do ajuizamento
de uma ação e, também, quando há gastos com as demais despesas decorrentes do
processo, como advogado, peritos, testemunhas, documentos, entre outras.
A possibilidade de eliminação do pagamento de custas apresenta-se como
inadequada em razão de que, invariavelmente, estimularia toda a sorte de
demandas, em especial aquelas temerárias e com pouca possibilidade de êxito ante
a inexistência da cautela ocasionada pela necessidade de algum dispêndio para o
acesso à jurisdição.
Contrariaria, da mesma forma, uma tendência mundial de exigência de
contraprestação à oferta de jurisdição.113
Porém, a cobrança das custas decorrentes do processo não pode ser
tomada como limitadora do acesso à justiça, porquanto as ordens jurídicas
mundiais são claras em isentar os hipossuficientes desse ônus, justamente no
intuito de se alcançar a tão almejada igualdade material.
A ampliação e a garantia plena do acesso à justiça estão a reclamar,
entretanto, interpretação adequada do instituto da assistência jurídica integral e
gratuita, insculpido na Constituição Federal,114 consentânea com os fundamentos e
os princípios da República Federativa do Brasil.115
113
114
115
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 15-18.
“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXIV - o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”
Constituição Federal: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. [...] Art. 3º Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Coleção Administração Judiciária
71
Cabe gizar, de outro prisma, que a Constituição da República em vigor
ampliou, consideravelmente, a proteção conferida aos minus habentes,
substituindo, de forma moderna e apropriada, o termo assistência
judiciária pela expressão assistência jurídica – art. 5.º, LXXIV. Dessa
maneira, conquanto a assistência judiciária deva ser havida como
atividade dinamizada perante o Poder Judiciário, a assistência jurídica,
ligada à tutela de direitos subjetivos de variados matizes, porta
fronteiras acentuadamente dilargadas, compreendendo, ainda,
atividades técnico-jurídicas nos campos da prevenção, da informação,
da consultoria, do aconselhamento, do procuratório extrajudicial, e dos
atos notariais.116
A atividade interpretativa do juiz, desse modo, há de considerar todos
esses fatores e, em especial, os princípios constitucionais para a boa realização do
justo, no caso em exame.
Ultrapassada a questão atinente ao pagamento das custas processuais,
outro fator de relevância na concretização do direito humano de acesso à justiça,
refere-se à assistência de advogado, necessária na maioria das pretensões levadas
ao Poder Judiciário.117
Com efeito, a opção brasileira pelo sistema de advogados públicos,
mediante a implantação de Defensorias Públicas, somente terá o condão de
viabilizar o acesso à justiça àqueles que não dispõem de condições econômicas de
constituir advogado, quando houver oferta adequada desse serviço à população.
A esse respeito, importa referir que o alcance da igualdade material
pressupõe que o serviço dos Defensores Públicos seja descentralizado, com
atendimento nos bairros e em horário que possibilite as pessoas serem atendidas
sem a necessidade de se ausentarem do trabalho.
116
117
MORAES, Humberto Peña de. Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e Defensoria
Publica. In Justiça: Promessa e Realidade: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização
Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1996, p. 356.
Nos Juizados Especiais Cíveis, em pedidos de valor econômico de até vinte salários mínimos, a parte
requerente não precisa estar assistida por advogado durante o processo, consante art. 9.º da Lei n.º
9.099/95.
Marcelo Malizia Cabral
72
Para José Murilo Carvalho “os defensores públicos deveriam invadir favelas
e outras áreas carentes para demonstrar a essa imensa população marginalizada
que a Constituição vige também para ela.” 118
Outro mecanismo de ampliação do acesso à justiça são os Juizados
Especiais Cíveis. Eles se caracterizam pela gratuidade, pela informalidade, pela
rapidez e pela participação popular.119 Portanto deveriam existir em maior número,
atender descentralizadamente e em horário em que os trabalhadores pudessem
acessá-lo sem prejuízo de seu trabalho.120
A presença de postos de atendimento dos Juizados nos bairros periféricos
conseguiria diminuir a distância da população com o sistema de justiça. Assim, a
participação da comunidade na estrutura dos Juizados representaria um esforço de
abertura e de democratização do Poder Judiciário.121
No dizer de Jasson Ayres Torres,
esse novo sistema de justiça identificado com o homem comum, pela
simplicidade e informalidade do procedimento adotado, dá início à
imagem de um Poder Judiciário mais acessível a todos os segmentos da
sociedade. A proximidade do povo e a linguagem compreensível, menos
complicada, conduz a um melhor funcionamento da Justiça,
repercutindo em todo o território nacional, com a edição de leis
estaduais, ensejando que milhares de brasileiros pudessem reclamar,
de forma simples e direta, os seus direitos.122
118
119
120
121
122
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização
Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1996, p. 292.
“Essa participação popular na administração da justiça será tanto mais proveitosa na medida em que
pessoas do próprio bairro e, portanto, conhecidas pelos membros da comunidade onde o Juizado esteja
situado contribuam com o seu trabalho para o alcance dos fins visados, especialmente a conciliação
com pacificação.” (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação
Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 108).
“A descentralização da justiça, com a criação de tribunais especiais para o julgamento de causas de
pequena complexidade (art. 3.º), nos bairros, com os seus respectivos serviços de assistência
judiciária, permite que os Juizados sirvam de pólos de informação de direitos, quaisquer que sejam
(arts. 57 e 58), minimizando o gravíssimo problema da desinformação jurídica existente no nosso país
em ao mesmo tempo, facilitando o acesso das classes menos favorecidas ao Judiciário.” (Ibidem, p.
106).
“A tendência em direção à comunidade atende o espírito de uma nova cultura jurídica, de que a
justiça não pode ficar parada, diante da modernidade presente. Concepção de uma justiça
conciliadora, descentralizada, saindo dos gabinetes, indo ao encontro dos cidadãos e de seus
problemas, tentando resolvê-los, não a deprecia, não a diminui, não lhe retira o poder; pelo contrário,
a torna mais respeitável e solidifica a imagem de credibilidade junto ao povo pelo trabalho itinerante
que realiza.” (TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 95).
TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 98.
Coleção Administração Judiciária
73
O modelo de tramitação dos processos verificado nos Juizados Especiais
tem recebido o elogio de juristas e de estudiosos de todo o mundo, porque diminui
consideravelmente o número de atos até que o caso tenha seu julgamento final,
como também o número de recursos.
Ao lado do enxugamento do tempo de tramitação do processo e do
atingimento
da
tão
sonhada
celeridade,
mantiveram-se
as
garantias
do
contraditório e da ampla defesa daqueles que são demandados nesse sistema de
justiça.123 Desse modo, o fortalecimento e a expansão desses Juizados seriam
instrumento inequívoco de concretização do direito humano de acesso à justiça.
Da mesma forma, a ampliação dos tipos de pretensões passíveis de exame
de parte desses Juizados e a do valor máximo dos pedidos caracterizaria
extraordinário avanço no acesso à justiça.
A facultatividade da assistência por advogado, hoje limitada às causas de
até vinte salários mínimos, também serviria à universalização do acesso, sem que
isso implicasse em diminuição de garantias processuais, porque se garante a
assistência de advogado quando desse recurso dispõe a outra parte, em observância
ao princípio da igualdade material ou da paridade de armas.
6.4 Ações para a superação dos obstáculos de natureza cultural e social
As limitações mais importantes ao acesso à justiça verificadas em
decorrência de aspectos culturais e sociais estão relacionadas à hipossuficiência
econômica suportada por grande parte da população brasileira.
A falta de informação, como já se explicitou, constitui o mais importante
óbice à busca da efetivação de direitos por meio do sistema de justiça, e sua
123
“A Lei das Pequenas Causas não é e não se esperava mesmo que fosse, um corpo isolado com vida
autônoma e despregado de raízes lançadas para fora de si. Ela constitui, isso sim, um ponto bastante
luminoso na constelação das leis processuais que têm vida no universo do ordenamento jurídico. Em
outro escrito, ressaltei que o processo ali instituído, se bem que inteiramente novo e revolucionário na
forma como encadeados os seus atos com simplicidade e os seus sujeitos com muita liberdade, é um
processo fiel ao modelo contemporâneo e tradições brasileiras, além de rigorosamente alinhado aos
sadios princípios presentes nos sistemas processuais da atualidade.” (Cândido Rangel Dinamarco. A Lei
das Pequenas Causas e a Renovação do Processo Civil, apud WATANABE, Kazuo [et al.] (Coord.).
Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985).
Marcelo Malizia Cabral
74
superação passa por uma grande concentração de esforços, visando ao
esclarecimento da população sobre seus direitos e sobre os métodos disponíveis à
busca de sua materialização.
Esse trabalho deveria principiar pelas instituições encarregadas da
educação, procedendo à inclusão de disciplinas que informassem a comunidade
sobre seus direitos e sobre os caminhos existentes à sua efetivação.
Nesse
mesmo
horizonte
poderiam
trilhar
todas
as
organizações
comunitárias e de prestação de serviços, levando à população a real dimensão de
sua cidadania, desvendando-lhe os direitos de que é titular e mostrando os
mecanismos existentes à sua concretização.
Talvez essa tomada de consciência servisse para impulsionar a organização
social, que poderia, então, articular-se na promoção desses esforços de informação
e na reivindicação dirigida ao Estado, para que se desincumba das missões que a
Carta Política lhe outorgou.
Somente com o real conhecimento da população sobre o extenso rol de
direitos de que é titular e sobre os mecanismos de acesso à justiça de que dispõe,
construir-se-á um Estado Democrático de Direito na exata magnitude que sua
conceituação concebe.
Importa salientar que nem mesmo a superação dos obstáculos econômicos
– com a instituição de Juizados Especiais gratuitos e com a disponibilização de
advogados sem custos – possibilita o acesso à justiça à revelia da efetivação do
direito à informação.
Pesquisa realizada em Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro
comprova que, nem mesmo diante da isenção de despesas, as populações
hipossuficientes acessam os mecanismos de justiça.
Nesse estudo, também se comprovou que essa limitação persiste mesmo
em unidades situadas em regiões periféricas.124 Com segurança, então, pode-se
124
“O resultado das entrevistas realizadas não é preciso no que concerne à identificação em percentuais
das classes sociais que freqüentam os Juizados. Todavia, pode-se afirmar, com segurança, que
predomina em larga escala a classe média, apesar das discretas tendências de um maior afluxo da
classe pobre, assim considerados aqueles que auferem renda inferior a três salários mínimos,
notadamente nos Juizados situados no Centro da Cidade. Importante consignar três situações colhidas
nas pesquisas que confirmam as afirmações acima. A primeira revela que, na pesquisa realizada no
Coleção Administração Judiciária
75
afirmar que o desenvolvimento de políticas públicas de informação às pessoas sobre
a importância de sua cidadania é pressuposto inafastável à concretização do direito
humano de acesso à justiça.
Assim, além das instituições de ensino, todos os organismos componentes
do sistema de pacificação social deveriam envidar esforços no sentido da
conscientização da comunidade sobre o teor e a extensão de seus direitos, o que
haveria de ser procedido por intermédio de folhetos explicativos, oficinas,
seminários, congressos, encontros e outras atividades a serem realizadas por
aqueles atores, dentre os quais se poderia mencionar o Poder Judiciário125, a
Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública, o Ministério Público e suas
respectivas associações126.
Outra ação fundamental para a concretização do direito humano de acesso
à justiça relaciona-se com a necessidade de mudança de paradigma quanto à
compreensão de seu conteúdo.
Não se pode mais, em tempos de relações de massa e de crescimento de
populações urbanas, em especial, periféricas, conceber-se o acesso à justiça
exclusivo ao Poder Judiciário, resumindo-se esse acesso à prestação formal de
jurisdição.127
125
126
127
então Juizado de Pequenas Causas situado na favela do Pavãozinho (primeira etapa), no bairro de
Ipanema, não figurava um único morador da favela como autor de uma ação. A maioria quase absoluta
das ações eram propostas por pessoas da classe média, que, em 60% dos casos, iam acompanhadas de
advogado, para tratar assuntos basicamente referentes à indenização decorrente de colisão de
veículos e de infiltrações em apartamentos situados no bairro Ipanema. A segunda, decorre de
elaborada pesquisa realizada no Juizado situado na UERJ, que revela os seguintes percentuais: 13% do
público possuía renda média de até três salários mínimos; 13%, entre três e cinco salários mínimos;
37% entre cinco e 10 salários mínimos; e 36% renda superior a 10 salários mínimos.” (CARNEIRO, Paulo
Cezar Pinheiro, op. cit., p. 135-136).
“O brasileiro tem direito constitucional à informação. Não desatende à positividade o juiz que se
preocupar com a transmissão desses dados à comunidade. Antes, estará implementando a nova ordem
constitucional, que pretende tornar cada homem um bom cidadão – ou, segundo a feliz expressão de
Hanah Arendt, o direto a ter diretos. [...] O juiz não está excluído da responsabilidade de manter o
destinatário informado de seus direitos, nem da transparência que a prestação jurisdicional também deve
se revestir, pois administração pública submetida aos preceitos do art. 37 da Constituição da República.
Deve, portanto, assumir papel protagônico na disseminação de todos os informes que tornem o Judiciário
mais conhecido e mais próximo da população.” (NALINI, José Renato, op. cit., p. 87).
No endereço www.amb.com.br pode-se encontrar o manual do Projeto Justiça e Cidadania Também se
Aprendem na Escola, desenvolvido pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, que leva
informação sobre cidadania às comunidades escolares.
“El auspicio de la implementación de ciertos mecanismos alternativos para la solución de los
conflictos, que se sustenta igualmente en razones que hacen al costo del servicio judicial. El
desemboque jurisdiccional – que, desde luego, resulta imprescindible – debe pasar a erigirse en la via
Marcelo Malizia Cabral
76
Além dessa interpretação limitativa de acesso à justiça como sinônimo de
acesso ao Poder Judiciário, outro paradigma há de ser rompido, qual seja, aquele
que iguala a obtenção de justiça à disputa, ao enfrentamento, à utilização
incessante de recursos, à contenda, ao litígio.
Antes de formar exércitos de profissionais prontos para a guerra, as
escolas de direito hão de produzir seres humanos treinados e emprenhados na
busca da resolução pacífica de conflitos, ou seja, na busca da paz.128
A jurisdição formal, burocrática e técnica há de ser reservada como última
alternativa à resolução de um conflito, ou seja, acionada somente quando
esgotadas as vias consensuais de pacificação social.129 E essas hão de existir, de se
multiplicar, alcançando todos os bairros, todos os extratos sociais, todos os povos.
128
129
última, a la que se arriba recién al cabo de la eventual frustración de otras, que se ofrecen a los
justiciables con evidentes ventajas para sus intereses (menos o inexistente costo, mayor celeridad,
informalidad). Debe preverse, entonces, un escalonamiento de ‘instancias’, insertas dentro de la
órbita del órgano jurisdiccional, que garantice los acuerdos a través de su homologación. Una primera
conciliatoria, obligatoria para todos los conflictos; en subsidio, otra arbitral voluntaria; solo el tránsito
infructuoso por aquella y la declinatoria de ésta habilitan el conocimiento judicial. Otra idea no
desdeñable consiste en organizar tales modos alternativos con la intervención de las comunas y las
asociaciones de abogados y de magistrados. Para éstos implicaría asumir roles diversos de los
tradicionales, que constituyen un significativo aporte al bien común a través del perfeccionamiento de
la justicia, en una via participativa en general inédita.” (BERIZONCE, Roberto O. Algunos Obstáculos al
Acesso a la Justicia, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 68, p. 67-85, out./dez 1992, apud TORRES,
Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2005, p. 157).
“O número incomensurável de ações que chega aos fóruns e tribunais a cada dia, faz com que se pense
em novos modelos de distribuição de Justiça. Resolver os conflitos é encontrar diretrizes na área
judicial como na extrajudicial, dentro ou fora do processo, incrementando propostas na seara da
transação, concretizando a conciliação e a mediação, assim como o arbitramento, previsto no Sistema
dos Juizados. A arbitragem, como similar do arbitramento, tem objetivo semelhante. Ora, todos esses
mecanismos podem ser colocados à disposição das pessoas, com incentivo e apoio da Instituição do
Poder Judiciário, para que possam realizar seus desideratos.” (TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 136).
Sobre o tema, colaciona-se recente noticiário produzido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“Centro Judicial de Conciliação será instalado em Canoas. A partir da próxima segunda-feira (3/9), a
Comarca de Canoas passará a contar com o Centro Judicial de Conciliação. Trata-se de um projetopiloto e objetiva viabilizar conciliações em questões que envolvem qualquer valor e mesmo antes da
entrada formal da ação na Justiça. A iniciativa é uma contribuição do Rio Grande do Sul ao Movimento
Nacional pela Conciliação do Conselho Nacional de Justiça. A proposta foi idealizada no âmbito da
Comissão de Conciliação de 1º Grau, coordenada pela Juíza-Corregedora Vera Lúcia Fritsch Feijó. A
magistrada acredita que “o projeto reverterá em considerável economia de recursos materiais e de
pessoal, na medida em que previne o ajuizamento de demandas e encurta o tempo de tramitação dos
feitos no sistema judiciário”. As instalações estarão dimensionadas para atender pedidos relacionados
com situações de superendividamento, condomínios, consumidor (vícios de produto e serviços,
propaganda enganosa, contas de água, luz e telefonia), contratos bancários e registros indevidos em
cadastros de inadimplentes e as ações visando a obter indenizações por danos de qualquer natureza. O
Centro atuará de duas formas, recebendo as partes antes da judicialização do pedido e, caso o
processo já tenha sido proposto em uma das Varas Cíveis de Canoas, viabilizando a realização de etapa
buscando a conciliação. Com isto, pretende o Tribunal: prevenção de demandas com a pronta solução,
Coleção Administração Judiciária
77
Quando se apregoa a utilização de mecanismos consensuais de pacificação
social, pensa-se na instituição e na implantação de ferramentas de mediação,
conciliação e arbitragem. Esses instrumentais podem contar com maior ou menor130
participação do Estado e da sociedade, dando origem a uma série de possibilidades que
vão desde postos avançados de conciliação131 e de atendimento de Juizados Especiais,
passando por centros de cidadania, experiências de justiça itinerante e de justiça
restaurativa132, até chegar a práticas de justiça comunitária133 ou de micro-justiça.134
Mas o que importa acentuar-se nesse ponto é a necessidade de que as
populações disponham de mecanismos que estimulem o diálogo, a compreensão e o
entendimento, sempre com acesso gratuito, fácil, próximo.
Essas ferramentas devem privilegiar a informalidade, a rapidez, o
protagonismo comunitário, enfim, estimular a organização popular, a negociação, o
consenso, a resolução dialogada dos conflitos e, por conseqüência, a busca e a
obtenção pacífica da justiça. Para isso impõe-se uma ruptura com o atual
130
131
132
133
134
redução de pressão nas Varas e Juizados, com economia de tempo, trabalho e recursos públicos.”
Disponível em: <www.tj.rs.gov.br.> Acesso em 22.9.2007.
“Monopólio do Estado é a função jurisdicional, consistente na solução das lides que lhe são submetidas
pelas partes em conflito. Não têm, evidentemente, natureza jurisdicional as gestões que visem a
facilitar a autocomposição (a qual compreende a renúncia, a submissão e as concessões recíprocas), e
que vêm sendo feitas, desde sempre, por pessoas e entes institucionalizados ou não (os advogados, os
órgãos da Assistência Judiciária, o Ministério Público, os próprios membros do Poder Judiciário). O
processo só surge para solucionar a lide, e esta somente se configura, como pretensão resistida,
quando as forças espontâneas do direto se mostrem incapazes de superar o conflito de interesses.
Desde a tradição do direito lusitano até o direito moderno, a conciliação pode ser atividade
extrajudicial, livremente exercida por órgãos não jurisdicionais, ainda que atuem junto ao juiz.” (Ada
Pellegrini Grinover. Aspectos Constitucionais dos Juizados de Pequenas Causas. apud WATANABE,
Kazuo [et al.] (Coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985,
p. 11-12).
“Além dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estão em funcionamento em São Paulo os Juizados
Informais de Conciliação, que atendem às causas que não são de competência dos Juizados Especiais.
As reclamações que são encaminhadas aos Juizados Informais de Conciliação só podem ser resolvidas
através de acordos realizados em uma única audiência, sob orientação de um conciliador ou de um
juiz. Se houver acordo esse é homologado pelo juiz, produzindo um título judicial. Se não houver
acordo, a única alternativa para o reclamante é recorrer à Justiça comum. [...] Apesar de não estar
regulamentada por lei, a atuação do Juizado Informal de Conciliação também indica a importância da
conciliação como forma de solução dos conflitos sociais. Neste sentido, 85,40% do total das audiências
realizadas (48.248) resultaram em acordo entre as partes (41.206).” (SADEK, Maria Tereza (Org.).
Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 51-52).
No endereço www.justica21.org.br pode-se encontrar a descrição da experiência de justiça
restaurativa desenvolvida pelo Projeto Justiça para o Século XXI, no Estado do Rio Grande do Sul.
No endereço www.tjdf.gov.br pode-se encontrar a descrição da experiência de justiça comunitária
desenvolvida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
Várias experiências nesse sentido estão reunidas em publicação do Ministério da Justiça intitulada
“Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança”, lançada no ano de 2006.
Marcelo Malizia Cabral
78
paradigma de justiça que se apresenta como a antítese do que se acabou de
estabelecer.
E todos esses mecanismos devem se organizar de modo a possibilitar o
atingimento da igualdade material dos povos, com a consagração da dignidade do
ser humano e com a redução das desigualdades sociais.
Dessa forma, serviços de informação jurídica, mediação, conciliação e
arbitragem hão de se espalhar pelos mais distantes rincões, sempre na busca de
informar as comunidades sobre seus direitos e de lhes disponibilizar os meios para
sua materialização.
A atenção preferencial às comunidades hipossuficientes há de promover a
redução das desigualdades, e os mecanismos pacíficos hão, sempre, de preceder os
instrumentais formais de realização de justiça, passíveis de acionamento se e
quando aqueles se mostrarem insuficientes, de modo complementar.
A concretização do direito humano de acesso à justiça reclama o percorrer
desse caminho, ressaltando a existência de um extenso e exitoso rol de
experiências havidas exatamente com a observância desses mecanismos, passíveis
de
replicação,
sem
prejuízo
do
estabelecimento
de
outras
iniciativas
complementares análogas.
A valorização dos mecanismos de resolução consensual de conflitos tem
granjeado ações de parte de várias unidades do Poder Judiciário nacional, seja
para processos formais em curso, seja para objetivos de sua evitação.
Experiências de justiça itinerante têm levado informação e justiça para
comunidades muito distantes desses serviços.
A busca do entendimento, da redução de danos futuros e da restauração
de relações humanas, tem obtido resultados animadores no campo da mediação e
da justiça restaurativa.
O protagonismo da comunidade, com a valorização de sua cultura, de seu
conhecimento e de seu potencial de organização, tem servido à concretização da
justiça em comunidades periféricas dos mais diversos Estados brasileiros, em
experiências de justiça comunitária ou micro-justiça.
Coleção Administração Judiciária
79
Deste modo, a superação dos obstáculos de natureza social e cultural
depende da existência de políticas públicas e de ações afirmativas para que se
concretize o direito à informação e se valorizem os mecanismos consensuais,
informais, rápidos e democráticos de resolução de conflitos, assegurando-se,
materialmente, o acesso universal à justiça.
6.5 Ações para a superação dos obstáculos de natureza legal
A contribuição de fatores de ordem legislativa para o impedimento do
acesso à justiça reclama articulação e mobilização da comunidade e dos agentes do
sistema de justiça, denunciando esses fatores e coordenando ações à sua remoção.
Entretanto, há de se pontuar que a atividade interpretativa já pode se mostrar
capaz de afastar uma série de aparentes impedimentos legais ao acesso à justiça.
Isso porque as normas infraconstitucionais não podem contrariar a Carta
Política, havendo esta declarado como princípio da República Federativa do Brasil a
dignidade da pessoa humana e porque, além disso, dentre seus objetivos encontrase a redução das desigualdades sociais.135
Todavia, quando não afastados pela atividade interpretativa, os fatores
limitadores do acesso à justiça merecem remoção via ação legislativa. Com esse
propósito, no âmbito da busca da celeridade processual, uma série de medidas
foram aprovadas, recentemente, em um movimento de redução da morosidade na
tramitação dos processos perante o Judiciário.136
135
136
“Além de dirigente, a Constituição do Brasil de 1988 é uma Carta principiológica. A relevância dos
princípios nunca tem sido suficientemente salientada. Compreende-se que para a mentalidade calcada
no dogmatismo positivista mostra-se perigosa a incursão pela principiologia, necessariamente fluida.
Todavia, o direito não se esgota nas leis. Não é ‘mero somatório de regras avulsas, produto de atos de
vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si’. Direito é muito mais do que
isso. É o acervo de valores, é conjunto significativo, é consistência, é o consenso jurídico resultante da
consciência coletiva num determinado momento histórico [...] Não será melhor a justiça realizada
mediante aplicação rígida da letra da lei do que aquela resultante de um juiz que assuma a missão de
realizar os valores de sua comunidade e de sua época.” (NALINI, José Renato, op. cit., p. 45-46).
“Sem dúvida, as maiores conquistas ocorreram no âmbito da antecipação de tutela e tutela específica,
audiência de saneamento e ação monitória – temas ligados exatamente à celeridade da Justiça.”
(ALVIM, J. E. Carreira, op. cit., p. 122).
Marcelo Malizia Cabral
80
Outras ações para a facilitação e a ampliação do acesso à justiça deveriam
ser tomadas na busca da valorização e do fortalecimento dos Juizados Especiais
Cíveis, aumentando-se o valor máximo para o ajuizamento de pedidos e tornandose, sempre, facultativa a assistência por advogado, desde que a parte adversa
esteja nesta mesma situação e seja, igualmente, pessoa física.
A obrigatoriedade da paralisação de ações individuais quando houver
demandas coletivas versando sobre o mesmo tema, também se apresentaria como
medida
de
considerável
redução
do
número
de
processos
tramitando,
desnecessariamente, nos tribunais, além de produzir uniformidade nos julgados.
Enfim, essas são algumas proposições, não se pretendendo proceder a
aprofundamento
maior
na
área
das
reformas
concretização do direito humano de acesso à justiça.
legislativas
necessárias
à
Coleção Administração Judiciária
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REFLEXÕES FINAIS
O direito humano de acesso à justiça constitui tema da mais alta
relevância na atualidade, seja em razão da sua extensão, seja em decorrência da
necessidade de sua afirmação.
Como houve oportunidade de se demonstrar, garantir-se concretude a esse
direito implica, por princípio, ofertar-se informação precisa à humanidade quanto
aos direitos que titulariza, os quais, em regra, são desconhecidos por dezenas de
milhões de brasileiros.
Um grande esforço de informação e de educação há de produzir seres
humanos conscientes da verdadeira dimensão que a Carta Política outorgou aos
povos que ocupam o território nacional.
Ao lado da consciência das promessas de garantia de direitos humanos
insculpidas pela República Federativa do Brasil em sua norma maior, ao povo deve
chegar, igualmente, informação sobre a magnitude das violações a esses direitos,
impostas diariamente à humanidade.
Somente o conhecimento coletivo e integral da amplitude dos direitos
conferidos à população, da necessidade de sua concretização imediata e do
descomprometimento do poder público e da sociedade para com esses
compromissos éticos, podem construir lastro firme e dar vida ao direito humano de
acesso à justiça.
Em outras palavras, sem que a comunidade se aproprie do rol de direitos
que a ordem jurídica lhe confere e do sistemático desrespeito a essas ordenações,
não haverá percepção das injustiças que lhe são impostas cotidianamente.
Da mesma forma, sem essas experiências, a população não experimentará
a necessidade incessante da busca por justiça e não reclamará a concretização
desse direito, pressuposto do alcance de todos os outros.
Então, somente com educação e informação, formar-se-á uma cidadania
consciente, questionadora, organizada, articulada, protagonista da luta pela
asseguração de seus direitos. Esse, exatamente, constitui o primeiro elemento do
direito humano de acesso à justiça.
Marcelo Malizia Cabral
82
Somente uma cidadania informada do conteúdo e da extensão de seus
direitos promoverá a mobilização social necessária à realização das políticas
públicas e das ações afirmativas imprescindíveis à realização do direito humano de
acesso à justiça.
Importante registrar-se que essa política de informação e de disseminação
do conhecimento dos direitos humanos há de ser direcionada, preferencialmente,
às comunidades que registram hipossuficiência social, porquanto a igualdade
material somente será alcançada com o estabelecimento de ações estratégicas à
sua redução.
O conceito de direito humano de acesso à justiça carece, da mesma
forma, de revisão. Com efeito, o que se verifica, na atualidade, é uma garantia de
acesso à justiça eminentemente formal.
O sistema de distribuição de justiça está aberto a todas as pessoas.
Todavia, somente aquelas que dispõem de condições sociais, econômicas e
culturais mínimas, dele se utiliza.
E essa realidade se instala como decorrência de diversos fatores que
limitam o acesso da população à justiça, tais como a desinformação sobre o
conteúdo dos direitos humanos e dos mecanismos de resolução de conflitos
existentes; o elevado valor das custas processuais; a insuficiência dos serviços
ofertados pelas Defensorias Públicas; a impossibilidade econômica e social de se
suportar a longa tramitação dos processos até a realização do direito; a distância
física, social e cultural das comunidades com os locais de prestação de justiça e
com as pessoas que nele trabalham; a falta de compreensão das formalidades e da
linguagem próprias do sistema de justiça formal, assim como de sua morosidade,
dentre outros.
A revisão conceitual necessária é justamente aquela capaz de reduzir
esses obstáculos em número e intensidade, o que reclama o desenvolvimento de
políticas públicas e de ações afirmativas.
Nesse sentido, há de se caminhar na busca da democratização, da
desburocratização, da informalização, da celeridade e da consensualização do
acesso à justiça.
Coleção Administração Judiciária
83
Somente se alcançará a tão sonhada igualdade material dos usuários dos
serviços de pacificação social com a real universalização dos mecanismos de
resolução de conflitos, quando os serviços de distribuição de justiça estiverem
próximos da população, nos bairros, nos centros comunitários, assim como nos
grupos sociais mais distantes e periféricos.
Além de se integrar aos contextos territorial, social e cultural, os
mecanismos de pacificação social hão de estabelecer comunicação adequada com
seus usuários. Hão de existir, assim, locais para a informação e para a distribuição
de justiça nos centros comunitários e nas escolas, em parceria com os serviços já
existentes nas comunidades em situação de hipossuficiência social.
O atendimento há de ser descomplicado, a linguagem acessível, o que se
mostra possível com a integração, a articulação e a utilização preferencial dos
recursos humanos existentes nas próprias comunidades.
Valorizam-se, dessa forma, os recursos comunitários, seu protagonismo e
reconhece-se seu potencial organizacional, passível, inclusive, de proceder à
pacificação dos conflitos existentes, com geração de justiça e paz.
Do mesmo modo, os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos
formais, lentos e dispendiosos hão de ceder lugar a ferramentas informais, rápidas,
gratuitas, que privilegiem o consenso, o diálogo, o entendimento.
Para que se alcance esse objetivo, necessária se faz a ruptura de
paradigmas culturais, dentre os quais aquele que traduz a justiça como algo
alcançável somente após um longo tempo de batalha, com a observância e a
reverência a fórmulas e formalidades.
Esse novo modelo de justiça participativa, informativa, consensual,
próxima, acessível, somente será alcançado com a integração e com o
estabelecimento de parcerias entre o poder público e a sociedade.
A valorização de ferramentas pouco utilizadas e algumas vezes até mesmo
desvalorizadas, como a informação, a orientação, a conciliação, a mediação, a
arbitragem, dentre outras, há de ser procedida pelos agentes do sistema de justiça
e pela sociedade.
Marcelo Malizia Cabral
84
A justiça há de ser pensada como instrumento de concórdia, de consenso,
de restabelecimento de relações, de reajuste de regras de convivência, de diálogo,
valores sempre buscados com informalidade, rapidez e eficiência.
A jurisdição formal, instrumento a que se resume o acesso à justiça
hodiernamente, há de constituir instrumento complementar, utilizado somente
após o insucesso daquelas ferramentas, ou quando não recomendada sua utilização.
Óbices legais à garantia do acesso materialmente igualitário e à redução
da morosidade do sistema formal de prestação de justiça também haverão de ser
transpostos.
Enfim, com a ruptura de paradigmas, utilização de ferramentas modernas,
valorização da participação comunitária, desenvolvimento de políticas públicas e
ações afirmativas de ampliação do acesso à justiça, será possível materializar-se o
acesso universal a um sistema de resolução de conflitos seguro, rápido e eficaz,
com produção de justiça e paz.
O desafio, agora, prende-se à concretização do direito humano de acesso à
justiça, transformando-se em realidade a promessa de justiça para todos.
Coleção Administração Judiciária
85
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88
Marcelo Malizia Cabral
Gestão Estratégica de Vara
ELIANE GARCIA NOGUEIRA
90
Eliane Garcia Nogueira
Coleção Administração Judiciária
91
INTRODUÇÃO
Já há algum tempo vem sendo alardeada a crise do Poder Judiciário. O
incremento assustador da demanda associou-se a um descontentamento cada vez
maior com os serviços prestados pelo Judiciário. As críticas são constantes e
veementes. A lentidão da justiça, a estrutura engessada, arcaica e burocrática, o
distanciamento do povo, a linguagem inacessível, os rituais ininteligíveis, as
dificuldades de acesso à justiça, são apenas alguns exemplos dessas críticas,
citadas quase diariamente pelos meios de comunicação.
O descrédito com a capacidade de reverter este quadro também aumenta,
não apenas externamente como também no bojo da instituição. O cenário é crítico.
E tal é a gravidade que se impõe uma reação premente.
Na proposta de Nalini1, do juiz protagonista, capaz de gerar a mudança do
Judiciário, a indignação perante este cenário é imprescindível:
Indignar-se quanto àquilo que impede o Judiciário de ser a instituição
respeitada, eficiente e eficaz com que os idealistas sonham, é
expressão de um compromisso ético. Compromissado derivado não
apenas de uma deontologia jurídica ou de uma ética própria do
magistrado. Mas atitude de uma verdadeira ética social.
A pretensão do presente estudo é utilizar lições, métodos e técnicas de
outra área de conhecimento com o objetivo de aprimorar a distribuição da justiça.
E vai além. Busca chamar a atenção para a gravidade do cenário que envolve o
Poder Judiciário, em especial a Justiça Estadual, e sensibilizar, sobretudo, os
juízes, acerca da imposição de mudanças contínuas, necessárias e urgentes.
O mundo pós-moderno não foge da interdisciplinaridade. As ciências não
são mais estanques e dissociadas. O direito mudou e a justiça precisa seguir o
mesmo caminho.
O Poder Judiciário é composto por juízes. O juiz, então, deve acompanhar
estas mudanças, desprendendo-se da estrutura que segue presa ao passado.
1
NALINI, Renato. A Rebelião da Toga. Cidade: Editora Millenium, 2006, p. 137
Eliane Garcia Nogueira
92
Burocrata, tecnicista, conservador, distante, solitário, profundo conhecedor
das leis. Este é o retrato do juiz de ontem, cujo perfil atendia as necessidades sociais
da época, extremamente centrada no utilitarismo e no império da lei.
A sociedade moderna estava em busca da segurança e utilizava-se de um
modelo abstrato e válido para todos, traduzido na lei. A nítida separação dos
poderes e a elaboração legislativa, como instrumento da democracia preponderava.
Os ideais da Revolução Francesa sustentavam-se na igualdade formal, representada
pelas idéias Kantianas. O juiz, neste contexto, era técnico, centrado no fiel
cumprimento da lei, com poder interpretativo limitado e com a constante
preocupação de adequação do fato à lei. Os benefícios à determinadas classes
sociais advinham da lei e o juiz desempenhava o papel de garantidor desses
benefícios, uma vez que se limitava a aplicar a lei. A Constituição Federal estava
num segundo plano e não tínhamos linhas princípiológicas.
Este cenário que mudou muito na pós-modernidade. A globalização, a
quebra de barreiras, os avanços tecnológicos, sobretudo da tecnologia da
informação, o fim da guerra fria são apenas alguns acontecimentos históricos que
mudaram a sociedade.
O Brasil sentiu esses efeitos, embora de forma mais lenta. A revolução dos
costumes gerou mudanças aceleradas dos padrões morais e comportamentais. A
economia se intrincou, passando do liberalismo para o neoliberalismo. O Estado,
em última análise, mudou.
O que se espera de um juiz neste contexto? O juiz de hoje deve, e alguns
já
caminham
neste
sentido,
ser
interdisciplinar.
Deve-se
socorrer
dos
conhecimentos de outras áreas para exercer sua nobre função de julgar com o
mínimo de conhecimentos técnicos. É necessário que o juiz saiba trabalhar em
equipe e mais, liderá-la. O juiz é gestor de sua vara e deve primar pela eficiência e
eficácia dos serviços prestados. Deve vivenciar a comunidade em que está inserido,
aproximar-se. Deve prestar contas da atividade pública que desempenha como
gestor público que é. A sociedade espera isso de um juiz e a lei assim impõe.
Assim é o juiz de hoje: interdisciplinar, ágil, aberto, eficiente, eficaz,
gestor e na busca incessante pela justiça e satisfação da sociedade. Afinal, servem-
Coleção Administração Judiciária
93
se a ela. Esta é a interface do Judiciário com a administração que se busca assentar
neste estudo.
A administração tem origem na área pública. No século XVII surgiu o cargo
de ministro (minus) em contraposição ao magistrado (magis). As decisões eram
cumpridas pelo administrador, que era o executor. Passada essa época, é chegado
o momento dos magistrados administrarem suas varas, setores e tribunais. É o JuizGestor.
É necessário que o magistrado se utilize das lições da administração para
melhor gerir a prestação dos serviços jurisdicionais. Uma pequena amostra dessa
possibilidade é o que se pretende apresentar.
Eliane Garcia Nogueira
94
1 GESTÃO ESTRATÉGICA
1.1 Necessidade de Gestão
Todas as organizações, inclusive o Poder Judiciário sofrem pressões. As
pressões podem ser externas ou internas. Especificamente, quanto ao Poder
Judiciário, são exemplos de pressões externas: o aumento constante de demandas; a
investigação de casos de corrupção; o descrédito da sociedade quanto aos serviços
prestados; mudança constante das leis; os cortes orçamentários, entre outros.
O envelhecimento do quadro, as licenças-saúde, as aposentadorias,
limitação do quadro funcional são exemplos de pressões internas que abalam a
organização. Tantas outras pressões ainda poderiam ser citadas, entrementes, a
intenção precípua é o ângulo de análise destas pressões, ou seja, as pressões
podem significar uma grande oportunidade de melhoria. Quanto maiores as
pressões, maior é o campo de atuação em direção à mudança do quadro.
A gestão surge como necessidade premente para o enfrentamento destas
pressões. O Poder Judiciário será tão forte quanto for sua legitimação. A
legitimação de um Poder de Estado passa pela sua importância para a sociedade e
pela eficácia e eficiência dos serviços prestados.
Como ainda não se lida com a concorrência no Poder Judiciário, os
problemas não aparecem tal como são, como, também, a gravidade deles. Há
uma idéia generalizada de que as coisas não estão tão ruins assim, afinal, o
Poder Judiciário ainda é constantemente procurado pela população. Ocorre que
a dita “concorrência” aos serviços prestados pelo Poder Judiciário ainda é
tímida.
A mudança organizacional também não é familiar para o Poder Judiciário.
As regras e procedimentos freqüentemente não são questionadas. Preponderam
assertivas do tipo: “sempre foi assim”; “o sistema não permite alterações”; “outros
já tentaram e não deu certo”; “nossa atividade é peculiar e não admite
comparações”. Não raro o foco está distante do cliente e centrado na própria
organização. Passa-se para afirmações simplistas do tipo: “os clientes estão sempre
Coleção Administração Judiciária
95
insatisfeitos” ou “no Judiciário sempre alguém sai insatisfeito porque perdeu a
ação”. Logo, a ameaça ainda está distante e a acomodação acaba por preponderar.
Nos últimos anos, sobretudo, as pressões vêm aumentando e as críticas,
antes pontuais, passaram a ser constantes. Soma-se a isso a perda de garantias e o
descrédito da sociedade2.
Até mesmo entre os magistrados o conceito acerca da agilidade do Poder
Judiciário é negativo. Em pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados do
Brasil, entre os magistrados de primeiro grau, 46,2% avaliaram como ruim o
Judiciário em termos de agilidade. No segundo grau o percentual foi de 43,2%,
consoante pode ser visualizado na tabela abaixo:
Tabela 1: Avaliação do Judiciário em termos de agilidade, por instância, em %
Primeiro Grau
Bom/
Segundo Grau
NR/
Bom/
S.op.
boa*
Regular
Ruim**
8,8
38,6
50,5
2,1
15,6
35,2
46,5
31,6
29,2
14,9
NR/
Regular
Ruim**
13,6
38,7
43,9
3,7
2,8
22,3
33,9
38,8
5,1
15,2
24,0
22,4
28,3
21,8
27,5
28,4
37,9
18,8
13,3
23,0
44,3
19,4
64,5
17,8
7,4
10,2
65,5
14,9
5,3
14,4
12,5
17,3
10,3
59,9
16,5
14,9
5,3
14,4
TST
11,8
22,4
21,3
44,4
12,8
22,4
25,0
39,8
STJ
16,1
33,9
34,4
15,7
23,5
33,4
30,5
12,6
STF
11,5
29,1
46,2
13,2
17,8
29,6
43,2
9,4
Boa*
Judiciário
Justiça
Estadual
Justiça
Trabalho
Justiça
Federal
Justiça
Eleitoral
Justiça
Militar
* soma das notas “muito bom” e “bom”
Fonte: Pesquisa AMB, 2005.
2
S.op
** soma das notas “ruim” e “muito ruim”
GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 1997. p. 171., aponta
como uma das causas da morosidade do Judiciário a desatualização das leis e as falhas na elaboração. Refere a
dependência do Judiciário do Executivo, no que respeita à autonomia financeira e do Legislativo quanto à
modernização legislativa. Conclui apontando para os problemas operacionais que são da esfera do Judiciário e
salienta sobre os efeitos da morosidade: A morosidade corrói a legitimação do Judiciário. Afasta o
jurisdicionado. Quebra a confiança. Provoca descrença e estimula o get rid of the judges.
Eliane Garcia Nogueira
96
Conseqüência lógica deste duplo descrédito: o enfraquecimento do
Judiciário.
Nessa linha de argumentação importante torna-se frisar que o Princípio da
Eficiência foi introduzido no ordenamento jurídico na Lei Maior, qual seja, a
Constituição Federal3.
A eficiência está ligada ao custo do produto, ou seja, é fazer mais com
menos, perpassando pela necessária prestação de contas à população acerca do uso
do dinheiro público.
Todos os juízes são gestores, não há como fugir disso. Seja na
administração do gabinete, da vara, da direção do foro ou do tribunal, o
magistrado se identifica com a figura do gestor público. Em sendo assim, tem o
dever constitucional de administrar com eficiência.
Exigem-se, do Poder Judiciário, eficiência e duração razoável do processo.
Reitera-se: são princípios constitucionais4. Dessa forma, não há como fugir do
conhecimento de habilidades gerenciais que permitirão uma gestão estratégica.
Nesse viés, pondera-se que é desnecessário um conhecimento aprofundado em
administração, ou mesmo, de técnicas gerenciais. Basta o desenvolvimento de uma
visão estratégica da organização e o conhecimento de algumas técnicas, seja para
utilizá-las, seja para utilizar os profissionais da área com mais eficiência.
Necessário frisar, ainda, a especificidade da atividade jurisdicional. Tal
circunstância deve ser sopesada para a manutenção do exercício da atividade
gerencial. A especificidade da atividade somada à interdependência entre a
atividade-fim e a atividade administrativa são fatores que desaconselham uma
delegação integral do gerenciamento das varas, setores e tribunais.
Não bastasse isso, o Judiciário é um Poder de Estado e, como tal, lhe é
exigido um controle direto da administração. Esta linha argumentativa não afasta a
necessidade de utilização, em alguns casos, de técnicos e especialistas de outras
áreas. Porém, isso não pode ser feito por magistrados com olhos vendados. Quanto
3
4
Constituição Federal, artigo 37, caput,ao dispor: A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte..., 3º edição,
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 30.
Constituição Federal, artigo 5º, inciso LXXVIII e 37 “caput”.
Coleção Administração Judiciária
97
mais os magistrados conhecerem as técnicas gerenciais e conhecimentos
estratégicos, mais aptos estarão para exigir do profissional contratado e
participarão das escolhas estratégicas e operacionais.
Forçoso concluir que administrar já faz parte do dia-a-dia de todos os
magistrados. Para fazê-lo com mais eficiência, basta unir conhecimentos técnicos à
prática gerencial diária.
1.2 O Que é Gestão Estratégica
Assentada a necessidade da gestão insta analisar o que é gestão estratégica.
Ela se constitui no conjunto de objetivos, metas, processos e indicadores da
organização. A gestão estratégica não se cinge à aplicação de métodos e técnicas
diferenciadas. Ela se constitui numa nova forma comportamental que produz uma
mudança na organização. Pressupõe o estabelecimento de uma visão de futuro e o
traçado dos objetivos para alcançar os resultados almejados.
A gestão estratégica está alicerçada na visão de futuro da organização e
não fica tradicionalmente voltada para os problemas presentes. É o olhar para
frente. E esse olhar deve ser flexível, ainda que planejado, porque a previsão exata
do futuro é impossível diante das inúmeras mudanças de cenário.
A visão estratégica perpassa toda a organização e todos os objetivos
estratégicos devem ter em vista a visão de futuro da organização, num agir
conjunto, em comunhão de esforços para o alcance dos resultados. Daí a
importância de sua disseminação e assimilação em todos os níveis hierárquicos,
sendo que os resultados serão captados em todas as esferas.
Numa versão resumida,
(...) toda a essência da visão estratégica na administração pode ser
resumida na idéia de se construir, em nível organizacional, uma postura
que seja suficientemente forte para indicar com clareza um caminho
futuro e suficientemente flexível para ser alterado de acordo com
novas condições ambientais. A gerência estratégica é a gestão do
futuro, torna-se crucial no mundo de hoje, em que o futuro se aproxima
velozmente do presente. A visão estratégica ajuda a tomar decisões
Eliane Garcia Nogueira
98
numa era em que já não se tem mais tempo de formular e definir os
problemas5.
Inexistindo direcionadores estratégicos, as mudanças de rumo são
correntes e geram um clima de incerteza e insegurança. Os problemas não são
esperados e a surpresa constante gera a busca de um culpado. O ambiente
organizacional se contamina e a baixa produtividade e as tensões são freqüentes.
Uma linha estratégica propicia uma certa previsibilidade e uma certeza dos rumos
da organização. A segurança, ainda que temporária, tranqüiliza e harmoniza o
ambiente de trabalho. Saber o que se espera de cada profissional é imprescindível
para o seu desempenho. Aqui, outro ingrediente surge: a comunicação.
1.3 A Importância da Comunicação
Na gestão estratégica a comunicação se dá em dois níveis: externa e
interna. A interna ocorre no âmbito da organização, envolvendo todos os setores.
Todos os membros da organização devem ter a visão clara da estratégia, motivo
pelo qual a comunicação deve ser constante e o mais livre de ruídos possível.
É necessário que o líder comunique a todos, de todos os níveis, quais são
as decisões estratégicas e como pode ser dada a contribuição para o resultado
final. Reuniões periódicas, boletins informativos, palestras, murais, quadros ou
qualquer outro meio é válido para implementar a comunicação constante.
A comunicação externa é de suma importância. O processo de eleição dos
objetivos estratégicos deve, necessariamente, passar pelas expectativas dos
clientes. Aliás, a prestação dos serviços é para os clientes e não para consumo
interno. O foco deve ser o cliente e não a organização. Isso não significa dizer que
aspectos internos devam ser negligenciados, porém, a importância maior deve ser a
satisfação do usuário.
5
MOTTA, Paulo Roberto. Ciência e a Arte de ser dirigente. 15 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 92.
Coleção Administração Judiciária
99
A temática tem importância tal que foi inserida na Constituição Federal,
através da Emenda Constitucional 19/98, no artigo 37, § 3º, inciso I, que estatui6:
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na
administração pública dieta e indireta, regulando especialmente: I – as
reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,
asseguradas a manutenção de serviço de atendimento ao usuário e a
avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços.
Em decorrência da inexistência de competição e concorrência na área
pública, muitas vezes o foco no usuário é descurado. No Poder Judiciário, a
inserção dos magistrados e servidores num sistema judiciário burocrático e arcaico
contribui para esse desvio de foco. As regras são tantas e os caminhos tão tortuosos
que a visão do produto final resta embaçada. O cliente não é lembrado e, muitas
vezes, é visto com desagrado.
Neste contexto, as necessidades dos clientes são desconsideradas e perde-se
o sentido da atividade desenvolvida. Isto ocorre porque há um erro no foco. O chefe
está centrado no exercício do seu poder. Os subordinados no trabalho, como forma
de sobrevivência, e o cliente esquecido. A comprovação deste fato é notória. Basta
ver a ausência de pesquisas de satisfação do cliente na maioria dos serviços públicos.
No âmbito do Poder Judiciário, que é essencialmente um prestador de
serviços à população, ouvir a voz do cliente deve ser uma constante. Sem saber
quais são as expectativas dos usuários como avaliar a entrega do produto final?
Muitos podem alegar que o produto final do Poder Judiciário – a prestação
jurisdicional – nem sempre agrada a todos porque, em regra, uma das partes não
tem seu pedido acolhido. Não é disso que se fala. Fala-se na forma da entrega da
prestação jurisdicional, que perpassa tempo de tramitação de um processo,
linguagem acessível, cortesia no atendimento, direcionamento à satisfação do
usuário, audiências no horário e por aí vai.
O fato é que o Poder Judiciário não tem uma cultura de comunicação, seja
externa ou interna. Normalmente a produtividade é alta, mas não é mostrada à
sociedade. Assim, a população desconhece o trabalho desenvolvido e a
6
Op. Cit. p. 32.
Eliane Garcia Nogueira
100
multiplicidade e complexidade das atividades. Se não conhece, não compreende e
não valoriza o serviço prestado, bem como os integrantes do Poder Judiciário. Este
quadro de desconhecimento e distanciamento da sociedade acaba por gerar mágoa
e frustração entre os servidores, que se ressentem da falta de valorização do
trabalho desenvolvido, pela sociedade. O mesmo quadro se repete internamente.
Não se conhece o trabalho desenvolvido em outros setores e varas. Há um
desconhecimento acerca da exata produtividade e capacidade de trabalho dos
servidores e magistrados e não se faz benchmarking7, isto é, não existem
parâmetros de comparação. Esse contexto obsta a comunicação dos objetivos
estratégicos da organização. Em regra, a informação é passada à chefia que, não
raro, não a repassa, gerando um vazio que logo é preenchido por informações
conflitantes
e
incorretas,
a
conhecida
“rádio-corredor”.
Nesse
ciclo,
as
informações capengas geram pontos de conflito.
A comunicação em geral no Poder Judiciário tem mão única: ocorre de
cima para baixo e impede a realimentação. Assim, não há feedback8 que tem
especial importância no gerenciamento de pessoas na medida em que permite o
reforço e reconhecimento dos pontos positivos e o redirecionamento dos demais,
além de ser um precioso instrumento de motivação.
À guisa de conclusão, num setor sem gestão,
(...) as pessoas realizam suas tarefas olhando para o seu umbigo, sem
entender ou questionar a contribuição que precisam dar à organização e
muitos processos inúteis são realizados sem que haja questionamento sobre
a sua necessidade.9
A gestão estratégica busca dar esse direcionamento. Todos os processos de
trabalho objetivam a consecução de um fim único e se alinham a ele, gerando o
7
8
9
Benchmark, no glossário apresentado por Chiavenato e Sapiro ‘é o padrão de excelência que deve ser
identificado, conhecido, copiado e ultrapassado. Poder ser interno (de outro departamento, por
exemplo) ou externo (uma empresa concorrente).’ .CHIAVENATO, I.; SAPIRO, Adão. Planejamento
Estratégico. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 402.
A importância do feedback é sintetizada por ROBBINS, Harvey; FINLEY, Micahel: Feedback – comunicação,
avaliação mútua e a manutenção de uma contagem de pontos- é algo poderoso. Um feedback bom e
contínuo é o combustível de uma equipe pronta para se desenvolver. In: Por que as equipes não
funcionam. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 137.
MARANHÃO, Mauriti; MACIEIRA, Maria Elisa. O processo nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Qualitymark,
2004, p. 34.
Coleção Administração Judiciária
101
atingimento das metas estabelecidas. Para que se alcance às metas delimitadas se
faz necessária a medição que se opera através do estabelecimento de indicadores.
Analisados os indicadores, verificam-se os objetivos alcançados e se retroalimenta
o sistema.
1.4. Criando um Clima
São imprescindíveis para a gestão estratégica a comunicação e o
comprometimento. A mudança organizacional é decorrência da gestão estratégica.
Para que a mudança organizacional ocorra, permitindo o avanço das estratégias
fixadas, impõe-se à criação de um clima favorável. Conforme já salientado, as
organizações públicas, em geral, são herméticas e seus membros resistentes a
qualquer mudança, já que esta pode implicar em diminuição de centros de poder.
Renato Nalini aponta a dimensão do tempo do Judiciário, como um dos
fatores desfavoráveis para a implementação das mudanças. O Poder Judiciário está
voltado para o passado. Segundo Nalini, o Poder Legislativo foi concebido para agir
contemplando o futuro, o Poder Executivo administra o futuro, enquanto o
Judiciário tem como função primordial reconstituir a ordem das coisas, vulnerada
pelo descumprimento da lei10, fato que contribui para a dificuldade na
implementação de mudanças.
A comunicação permanente surge como elemento imprescindível para a
superação destes limitadores. Além de permanente, a comunicação deve ser geral
e centrada nos objetivos estratégicos da organização, planos de ação, indicadores e
avaliação. Aqui a comunicação interna é essencial.
As reuniões mensais entre o magistrado e os membros da equipe são
excelentes oportunidades de alinhamento. Outro exemplo simples seriam reuniões
mensais entre escrivães (chefes dos cartórios) e o juiz-diretor do foro ou, ainda,
reuniões semestrais ou anuais entre todos os magistrados e todos os servidores.
Nestas oportunidades, as informações são atualizadas e é possível identificar quais
10
Op. cit. p. 18.
Eliane Garcia Nogueira
102
são os processos de trabalho críticos, proporcionando o realinhamento do esforço
de gestão. Permitem, também, a análise e solução de variantes incontroláveis,
como, por exemplo, o afastamento por doenças, redirecionando-se pessoas para o
atendimento de determinada atividade. Aos poucos se cria uma sintonia que
reverte em benefícios para todos os envolvidos.
O
comprometimento
das
pessoas
também
é
essencial
para
o
desenvolvimento da gestão estratégica. Como despertar o comprometimento das
pessoas é questão tormentosa e objeto de inúmeros estudos passados e
contemporâneos. Há uma confluência de entendimentos11 no sentido de que o
comprometimento surge quando é desenvolvida nas pessoas a consciência de sua
participação na consecução dos objetivos da organização. É necessário que o líder
desperte na sua equipe essa consciência. Como dito alhures, o sistema
organizacional atual do Poder Judiciário, oportuniza que seus membros se percam
na consecução dos processos de trabalho e esqueçam de sua primordial função. O
porteiro, o atendente, o oficial escrevente, o oficial de justiça, o escrivão e até o
magistrado, enroscados nos processos sem fim, e em um sistema engessado e
burocratizado, vão perdendo de vista o sentido do trabalho que desempenham.
Assim, o atendente desconhece sua importância na cadeia produtiva. Daí, não se
empenha tanto quanto poderia. O oficial de justiça vê um mandado a cumprir
apenas como mais um, deixando de lado sua importância de ‘mensageiro’ do juiz e
de representante do Poder Judiciário para os cidadãos. O escrivão, por sua vez,
tende a se concentrar na produção e se esquece da importância do gerenciamento
das atividades. O oficial escrevente cumpre mais uma audiência e esquece o
quanto aquela audiência é importante para uma pessoa que espera a solução de
seu problema com muita ansiedade. O magistrado, muitas vezes, açodado pela
carga de trabalho crescente, descuida do gerenciamento da vara e não tem
atitudes de liderança que poderiam representar muito para a equipe e para a
consecução de melhores resultados. E, neste ciclo, não há culpados. Há falta de
foco tão-somente. Relembrar e posicionar o foco gera o comprometimento.
11
Neste sentido Paulo Roberto Motta apontando que na prática moderna as tarefas são definidas com
amplitude e flexibilidade, enriquecidas com mais responsabilidades e variedade, com base em equipe e
menos especializações rígidas. Apostila .Formação de Liderança. Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 85.
Coleção Administração Judiciária
103
Valorizar o talento das pessoas, incentivando-as a desenvolver todo o seu potencial
é essencial para criar o comprometimento. O magistrado, como líder de sua vara,
tem essa oportunidade.
Concluindo,
a estratégia da organização, quando coerente, consistente e bem
comunicada, é um dos melhores agentes de mudanças e poderoso
veículo para criar o ambiente que desperta nas pessoas a vontade
sincera de dar a sua contribuição, positiva e devidamente colimadas,
assumindo por inteiro as suas responsabilidades nos processos.12
12
Op. cit. p. 48.
Eliane Garcia Nogueira
104
2 GESTÃO DE PESSOAS
2.1 Importância do Tema – Motivação
Hodiernamente as organizações vêm dando especial atenção à gestão de
pessoas. Ciosas da importância das pessoas para a obtenção dos resultados positivos,
as organizações estão investindo cada vez mais nas pessoas, daí a freqüente
abordagem de temas como liderança, espírito de equipe, treinamento etc.
O Poder Judiciário se caracteriza por ser um Poder essencialmente prestador
de serviços. O produto final do Judiciário é a prestação jurisdicional, ou em outras
palavras, a entrega de uma solução ao conflito dos cidadãos. Os principais
responsáveis pela eficiência e eficácia dos serviços prestados são os integrantes do
Poder Judiciário. Não se descura para os avanços e inovações tecnológicas, também
essenciais para o incremento de melhoria dos serviços prestados, entrementes, o
investimento nas pessoas que compõem a organização também é essencial para o
alcance da excelência na prestação dos serviços judiciários.
Para o sucesso do desenvolvimento da gestão estratégica de uma
organização, o investimento nas pessoas é essencial. São as equipes que alcançarão
os resultados estabelecidos. As pessoas fazem a diferença de uma organização. O
sucesso dos objetivos estratégicos traçados será atingido pelas pessoas que
compõem a organização. Daí a necessidade da comunicação e comprometimento.
Mas isto não é suficiente. O sistema de gestão deve ter em vista, também, as
pessoas que compõem a organização, propiciando treinamento constante em busca
da excelência na prestação dos serviços e a motivação para o desempenho cada
vez melhor das atividades.
Num primeiro momento, é necessário que as pessoas saibam, com
exatidão, o que deve ser feito. Para isso é indispensável ensinar, treinar. As
pessoas precisam saber de sua função na instituição, o que devem especificamente
fazer e como deve ser feito. Assim, educação e treinamento são essenciais para
Coleção Administração Judiciária
105
atingir a excelência na prestação de serviços13. As pessoas devem estar conscientes
de sua função e de sua responsabilidade no resultado final da organização. Esta
atuação propicia qualidade.
Necessário frisar que este treinamento deve preceder a posse dos
servidores no cargo e, após, ser contínuo, a fim de acompanhar tanto alterações
legislativas, como mudanças em processos de trabalho e inovações tecnológicas.
Não há esta cultura de treinamento constante na área judiciária. Ao revés, aos
solavancos, vai-se tentando acompanhar as mudanças que chegam à frente.
Em nível de micro gestão do Judiciário, o investimento em treinamento
preparatório deveria ser aumentado. De extrema importância, também, seria a
criação de um manual com as especificações do que deveria ser feito propiciando
amplo conhecimento dos processos de trabalho e outras rotinas cartorárias aos
servidores que assumem suas funções ou, ainda, para aqueles que mudam de setor.
Revela-se que cada setor tem procedimentos específicos e tal circunstância exige
treinamento adequado. Atualmente o que há, nesse sentido, é a Consolidação
Normativa Judicial14, a qual é muito genérica e desatualizada e não trata dos
processos de trabalho, sendo mais voltada para o elenco das atribuições dos cargos.
No mesmo viés segue o treinamento para o atendimento, que não vem sendo
objeto de atenção, relegando-se o atendimento ao cliente a uma feição
secundária.
Outro componente essencial na gestão de pessoas é a motivação. O bom
desempenho de uma instituição está intrinsecamente lastreado na motivação de
seus integrantes. Como se traz motivos para ação? Historicamente o trabalho foi
visto como algo penoso, um mal irremediável e contrário ao prazer, à exceção das
civilizações grega e romana onde o trabalho estava vinculado ao comunitário, ou
seja, o cidadão tinha seu reconhecimento ligado a sua contribuição social. Na
sociedade pós-moderna, com claro viés individualista, onde o sucesso e
13
Segundo Aristóteles a excelência moral é produto do hábito. A natureza nos dá a capacidade de recebêla, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da
Gama Kury. 3 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. p. 35.
14
PORTO
ALEGRE.
Consolidação
Normativa
Judicial.
(2007).
Disponível
em:
<
http://www.tj.rs.gov.br/legisla/CNJCGJ_Setembro_2007_Prov_21_2007.pdf> Acesso em 10 de setembro
de 2007.
Eliane Garcia Nogueira
106
reconhecimento estão calcados nas conquistas individuais e não do grupo, a
situação é diversa. O trabalho está em contraposição ao prazer. No contexto atual,
portanto, a motivação está ligada ao indivíduo e seus interesses. Este é o aspecto
interno da motivação.
De outro norte, não podem ser desprezados os fatores externos que
também contribuem para a motivação, ou seja, o papel da organização perante seu
pessoal também produz motivação. Há, portanto, uma mescla de fatores externos e
internos. Esta é a idéia de motivação hodiernamente. Paulo Motta aponta para a
existência de três teorias acerca da motivação: a teoria das necessidades cujo
princípio básico é que o ser humano possui, sempre, uma necessidade a ser
satisfeita e tal vai direcionar seu comportamento; a teoria da intencionalidade
onde se apregoa que os indivíduos possuem objetivos e expectativas e agem
intencionalmente para alcançá-los e a teoria do aprendizado social onde o
comportamento humano é simplesmente uma função de suas conseqüências.
Finaliza, o autor, seu estudo afirmando que todos os conhecimentos proporcionados
pelas três correntes devem ser utilizados:
Nesse sentido, todas as dimensões trazidas pelos conhecimentos
sistematizados nas três correntes teóricas devem ser consideradas, ou
seja, (1) objetivos desafiadores que mobilizem o indivíduo e o ajudem a
preencher suas expectativas; (2) gestão de recursos humanos que inclua
visualização clara da carreira, promoção, aperfeiçoamento,
gratificações e prêmios individuais e coletivos; e (3) consideração sobre
necessidade e aspirações individuais.15
A motivação, então, depende da visão que a pessoa tem da instituição
agregada a um benefício pessoal. E qual o papel da organização para buscar
motivação? Mostrar para o indivíduo o valor que ele tem para a organização e a
relevância social da tarefa por ele desempenhada. No âmbito do Poder Judiciário
isto é muito fácil de ser feito em razão da natureza do serviço prestado. É função
constitucional do Poder Judiciário a distribuição da justiça. Esmiuçando-se surgem
vários exemplos que demonstram, nitidamente, a importância da tarefa
desempenhada: o fornecimento de medicação; a internação hospitalar em casos de
15
Apostila. op.cit., p. 86.
Coleção Administração Judiciária
107
emergência; a prisão; a busca e apreensão de pessoas; a concessão de guarda de
menores; a adoção; a fixação de pensão alimentícia e daí sucessivamente. Ocorre
que, em geral, os servidores desconhecem que sua tarefa está intrinsecamente
ligada ao resultado final. De outro lado, há uma supervalorização da decisão do
juiz, a qual, sem dúvida, é de suma importância, quer pela carga decisória, quer
pelo grau de responsabilidade que encerra, entrementes, ela não se operacionaliza
por mágica. Uma audiência decisiva para uma família, somente ocorre com a
participação de inúmeras pessoas. É uma cadeia produtiva responsável pela
concretização das decisões do juiz. Nesse viés, é preciso ressaltar que a decisão do
juiz e a eficácia e eficiência da atuação judicante tem pouca valia se não for
acompanhada de uma equipe da mesma forma eficaz e eficiente. Exemplo desse
fato é a sentença. Pode o juiz estar cumprindo o prazo legal ao sentenciar,
entretanto, a decisão pode demorar meses para ser publicada, não gerando
qualquer efeito prático para a parte que aguarda que o Judiciário lhe alcance a
solução do seu caso. Frisa-se que para parte pouco importa que o juiz tenha
cumprido com o prazo de dez dias se não há condições de tornar concreta a
decisão. A visão deve ser pela efetividade de uma decisão e não pela burocracia
simplória de cumprimento de prazo. Para efetividade, imprescindível é o trabalho
da equipe toda.
Despertar cada membro da equipe acerca da importância da tarefa e dar a
respectiva valorização são fatores decisivos para gerar motivação. É importante que a
pessoa se sinta responsável pelos resultados e receba o retorno do líder acerca do
esforço feito, identificando sua contribuição para a efetividade alcançada.
Três ações da organização são citadas como imprescindíveis para a
motivação: “alinhamento, engajamento e avaliação.”
16
O alinhamento está intimamente ligado à comunicação interna da
empresa, isto é, dizer às pessoas quais são as linhas mestras da Alta Administração:
sua visão, missão, valores, objetivos estratégicos, enfim, o planejamento
estratégico daquela organização. Cientes disso as pessoas saberão qual o caminho a
16
MARANHÃO, Mauriti. ISO série 9000 (versão 2000). Manual de Implementação. 7 ed. Rio de Janeiro:
Qualitymark, 2005, p. 07.
Eliane Garcia Nogueira
108
percorrer. O engajamento é o comprometimento das pessoas com a instituição,
tópicos já examinados acima. O engajamento depende dos benefícios dos liderados
e da atuação do líder. A efetiva liderança desenvolve o comprometimento. O líder
desenvolve uma relação de confiança e reciprocidade com os liderados, criando um
ambiente propício para o desenvolvimento das atividades da organização. Os
integrantes de uma equipe têm de se sentir responsáveis pelos resultados,
conscientes de sua imprescindibilidade para o alcance das metas. Então, primeiro,
é preciso saber o que faz a instituição, para onde ela quer ir. Depois, o
comprometimento com seus objetivos e metas, através da atuação hábil do líder.
Enfim, a avaliação do desempenho.
De um lado, esta avaliação permite o reconhecimento das pessoas pelo
trabalho desenvolvido, retroalimentando a motivação. De outro, oportuniza a
adequação e treinamento. A avaliação não pode ser vista como ferramenta punitiva.
Sua função é de medição para análise dos resultados alcançados. A organização deve
ter meios para reconhecer os resultados positivos bem assim estrutura organizacional
para treinamento buscando reverter os resultados negativos.
A motivação congrega fatores externos e internos e, por isso, as
recompensas devem ser materiais ou não. Qual o peso das recompensas materiais
em contraposição com os outros tipos de recompensa, poder-se-ia perguntar,
sobretudo no âmbito do Poder Judiciário onde as recompensas são limitadas.
Estudos e pesquisas apontam para a importância das recompensas materiais,
sinalando que apenas ¼ dos funcionários são motivados por fatores intrínsecos
como autorealização.
Segundo Paulo Motta17:
Há pessoas que são motivadas intrínsecamente para determinados tipos
de tarefas e que vão obter desempenho elevado, independentemente
da natureza e da quantidade de recompensa material. A maioria das
pessoas, no entanto, vive na mesma expectativa das recompensas
materiais. Na pesquisa de Rose, apenas ¼ dos entrevistados revelou
que trabalha por outras razões – fatores intrínsecos- como satisfação e
sentido de concretização (como em McClelland). Dirigentes igualmente
mostram ser bônus, salários e prêmios mais importantes que qualquer
17
Apostila, op. Cit. p.83
Coleção Administração Judiciária
109
outro fator, inclusive da expressão pessoal de si mesmo no trabalho.
Mas dinheiro aparece como o fator motivacional mais importante para a
grande maioria. Possivelmente, mesmo as pessoas que trabalham por
satisfação e alegria não dispensariam salário e bônus para transformar a
sua ocupação em meramente voluntária. Dinheiro também traz certa
conotação de independência, além de fornecer maior bem-estar para o
próprio e para a sua família.
A partir destas conclusões, aparece, com nitidez, a necessidade de um
plano de carreira que estabeleça a possibilidade de premiação por desempenho, o
que inexiste atualmente no Poder Judiciário Estadual. Da forma como está
estruturada a carreira, um servidor se submete a um concurso público e não tem
qualquer incentivo pelo desempenho. Desimporta se trabalhou mais ou menos, se
seu desempenho foi superior ao do colega. Não há degraus na carreira. Não há
gratificação por desempenho de função. Não há possibilidade de escolha pelo líder
para cargos de direção. Enfim, a estrutura engessa e impossibilita a premiação e o
reconhecimento. Com esta estrutura alimenta-se a idéia de desnecessidade de
empenho na medida em que o colega ao lado faz muito menos e ganha o mesmo.
Porque ter um desempenho superior? Um círculo vicioso se cria e o líder tem
poucas armas para combatê-lo.
Outro ponto que merece destaque é a forma de seleção dos candidatos. As
provas de seleção são, na maioria, objetivas e buscam aferir tão-somente a
capacidade cognitiva do candidato. Não há avaliação do perfil do candidato para o
desempenho da função. Não raro, pessoas com formação em áreas diversas formam
o quadro dos servidores do Judiciário, ingressando no serviço público por conta da
limitação do mercado de trabalho. Passados os anos de estágio probatório entram
em letargia, totalmente insatisfeitos com o caminho escolhido. Compõem quadro
funcional por anos a fio, sem coragem de voltar para o mercado.
Corolário lógico: desmotivação. É necessário que se caminhe em sentido
oposto, em alinhamento com os estudos e pesquisas sobre a questão.
À guisa de conclusão, as práticas contemporâneas são, no sentido de uma
combinação, de reconhecimento, com celebração clara dos resultados alcançados,
aliados à concessão de prêmios, que não precisam ser altos, mas distribuídos da
forma mais equânime possível, em benefício da equipe, já que há uma tendência
Eliane Garcia Nogueira
110
natural das pessoas entenderem que a distribuição de prêmios foi injusta e não
considerou algumas circunstâncias. O prêmio financeiro e o elogio reforçam
comportamentos positivos e levam as pessoas a repeti-lo. As organizações
contemporâneas despertaram para a importância da celebração dos resultados
alcançados seja por meio do reconhecimento, seja pela concessão de prêmios.
Por epílogo, dependendo da avaliação da organização, a questão
motivacional pode ser encarada como estratégica. Em organizações como o Poder
Judiciário, essencialmente prestador de serviços, a motivação tende a ser vista
como essencial e estratégica.
2.2 Liderança
Como já
dito, a mudança organizacional caminha junto com a gestão
estratégica. O líder é o condutor das mudanças. É indispensável sua participação
direta e contínua no processo de mudança organizacional.
As revoluções tecnológica e administrativa da sociedade pós-moderna vêm
exigindo líderes com habilidades bem diferentes das tradicionalmente requisitadas.
A escolha do líder, em regra, se dava pelas condições técnicas ou pela capacidade
de mandar. Esta era a visão tradicional que não se sustentou diante das inúmeras
transformações do mundo. Hoje, o líder precisa desenvolver habilidades
interpessoais e obter os resultados através dos outros. Não basta mais dedicação e
esforço. Exige-se aprendizagem e inter-relacionamento constantes. A função do
líder, então, extrapola a técnica.
Importante gizar que a liderança é uma habilidade que pode ser adquirida
por qualquer pessoa. Não é um talento específico. Consiste em fazer descobrir nas
pessoas o poder que elas têm. Para tal, o líder deve ter uma visão clara de sua
missão na organização e se conhecer. Stephen R. Covey aponta para os quatro
papéis do líder18:
18
COVEY, Stephen. O 8º Hábito Da Eficácia à Grandeza. Rio de Janeiro: Elsevier. 2005. p. 113.
Coleção Administração Judiciária
111
Modelar – dar bom exemplo; descobrir caminhos – determinação
conjunta do trajeto; alinhar – estabelecer e gerenciar sistemas para
manter o rumo e fortalecer – focar o talento nos resultados, não nos
métodos, então sair do caminho das pessoas e ajudá-las quando isso for
solicitado.
O líder usa o poder dos liderados, constrói consensos a partir de
negociações, criando comprometimento, se integra à equipe, buscando objetivos
comuns e faz alianças.
A liderança requer atitude, participação, comunicação e envolvimento
com a equipe. Ela é evolutiva e vai se construindo.
Enfim, em um conceito simples e esclarecedor:
O verdadeiro líder é essencialmente um indivíduo capaz de investir
tempo e energia no futuro de sua organização e, principalmente, no de
seu pessoal. A essência da liderança não está em obter poder, mas em
colocar poder nos outros para traduzir suas intenções em realidade e
sustenta-las ao longo do tempo. Líderes são pessoas comuns capazes de
transmitir grande poder aos liderados. Capacitam as pessoas a exercer
todo o seu potencial, dando-lhes confiança para perseguir um fim
comum e estimulando-lhes a iniciativa. Os líderes desenvolvem
entusiasmo, auto-estima e ideais entre os liderados.19
A liderança no Poder Judiciário, em geral, é tratada de forma amadora. A
maioria dos líderes assume funções de direção sem qualquer conhecimento sobre
liderança. Não há treinamento e o aprendizado é feito por acerto e erro. As
habilidades dos líderes não são desenvolvidas. Não há um interesse da organização
pública no desenvolvimento das habilidades do líder porque ela está calcada na
crença de que sua área de atuação é tão específica que o líder, para ser bom,
apenas necessita dominar profundamente sua área de atuação. Acredita-se que
lições de outras áreas são inúteis e inaplicáveis.
No caso específico do Poder Judiciário tem-se, ainda, outra idéia. É a que
decorre da autoridade do cargo. Assim, crê-se que a autoridade do cargo ocupado
pelo juiz é suficiente para que as pessoas ajam conforme é esperado. Ocorre que,
como visto, as organizações contemporâneas exigem muito mais. Não é suficiente o
19
Op. cit. Apostila. p. 99
Eliane Garcia Nogueira
112
conhecimento profundo da técnica. E as pessoas não se dedicam tanto quanto
poderiam se agem tão-somente por força da autoridade do líder. Deixam de inovar,
participar ativamente na busca dos objetivos da organização, transformam o
ambiente de trabalho num campo de batalha de conflitos interpessoais, prestam
atendimento de baixa qualidade, enfim, os resultados são limitados. Ademais,
outros fatores extrapolam o apelo da autoridade. Não raro os liderados podem
desenvolver mecanismos de maquiagem da atividade, sem obter resultados.
Executam os processos de trabalho sem agregar valor.
Outra dificuldade no exercício da liderança, pelos magistrados, decorre do
tradicional distanciamento da equipe. Historicamente, a fim de mostrar
imparcialidade, os juízes se distanciam das pessoas, inclusive da equipe de
trabalho. É uma crença de que a distância significa imparcialidade. Tal
distanciamento acaba sendo alargado e ocorre, também, no ambiente interno.
Necessário frisar que este tipo de situação também atinge várias organizações.
Por elucidativa vale a citação de Paulo Motta, referindo-se à generalidade
das organizações:
A distância social é a alienação individual da cultura organizacional, ou
seja, a prática de evitar participar da experiência coletiva de sua
organização. Apesar de ser totalmente impossível, já que freqüenta o
mesmo contexto organizacional, o dirigente tenta desenvolver uma
experiência única dissociada de seu meio, a não ser nas tarefas
profissionais em que sua presença é essencialmente requerida. Dessa
forma, evita participar de qualquer atividade paralela, social ou de
celebrações diversas, ou mesmo de algumas reuniões de trabalho com o
pessoal interno, para evitar se mesclar demasiadamente com os
subordinados. Por outro lado, quando se reúne com seus funcionários,
exige algum tipo de formalidade ou solenidade não-usual para tentar
imagem diferenciada de seu meio. 20
Este cenário é muito comum no âmbito do Poder Judiciário. Preciso que se
diga que a liderança exige aproximação, estabelecimento de objetivos comuns e
criação de alianças. Impossível influenciar pessoas sem relacionamento verdadeiro.
A distância gera ações diversas do líder e da equipe. O líder acaba por achar que
20
Op. cit. Apostila. p. 93.
Coleção Administração Judiciária
113
sabe fazer melhor e acaba culpando os seus liderados. A experiência comum leva
ao enfrentamento das mais variadas questões que envolvem os processos de
trabalho e leva o líder a “vestir os sapatos” dos liderados. Destarte, estará mais
capacitado para avaliar o desempenho da equipe. Os liderados, por sua vez,
estarão cientes disso e restarão limitados a realizar qualquer maquiagem no
desempenho de suas tarefas e mais, estará o líder legitimado a avaliar porque
conhece e experienciou.
A gentileza, a persistência e a dedicação também são imprescindíveis. O
líder não se constrói sem persistência e dedicação. Einstein, perguntado sobre o
sucesso de suas criações, referia que 1% decorria da inspiração e 99% de transpiração.
O trabalho com afinco é característica do líder já que as vitórias são breves.
Conclui-se que o investimento no desenvolvimento de habilidades
gerenciais ajudará a obtenção dos objetivos estratégicos da organização.
2.3 Juiz-Líder
A participação do juiz é essencial no desenvolvimento das atividades da
vara. Além de estabelecer as metas estratégicas, deve acompanhar a evolução do
trabalho desenvolvido para atingi-las. Sua participação nas reuniões mensais é
essencial para demonstrar seu comprometimento e fazer o reconhecimento das
ações já implementadas num trabalho constante de motivação. Importante gizar
que nessas reuniões mensais os problemas vão sendo apresentados e as soluções
vão surgindo. É importante que todos participem e que o ambiente esteja propício
para a discussão de todas as pendências. Dessa forma, algumas crenças vão sendo
destruídas e novas idéias e modelos aparecem. A reunião também é uma grande
oportunidade para as pessoas clarearem seu papel nas instituições, qual vem sendo
sua contribuição e o que precisam fazer para a equipe atingir suas metas. Nessas
oportunidades, ouvir também é fundamental. Mas essa escuta deve ser qualificada.
Eliane Garcia Nogueira
114
Permitir que o outro fale primeiro. Ficar atento. Não interromper. Esperar para
fazer comentários.21
Como já mencionado, a aproximação é essencial para o exercício da
liderança. Paulo Motta cita como habilidades de interação a serem trabalhadas
pelos líderes e que se coadunam com a atividade desenvolvida pelo juiz:
a) Criar comunicação aberta e livre: a interação deve ser constante e não
limitada a ocasiões especiais com horário marcado;
b) Planejar em conjunto: o planejamento e o acompanhamento das
atividades é constante;
c) Ser realista: não esperar perfeição ou presumir a inexistência de
problemas;
d) Reconhecer o valor das pessoas: através de elogios, reconhecimentos,
respeitando e honrando os membros da equipe. É importante fixar-se nos aspectos
positivos das pessoas e mostrar isso a elas;
e) Não idealizar as pessoas: a mudança requer motivações internas e um
conjunto
de
fatores
externos.
Assim,
tentativas
dos
líderes
em
mudar
comportamentos e pessoas costumam ser desgastantes e inócuas, tornando-se
essencial aprender a convier com as pessoas como elas são e reforçar a busca de
resultados comuns;
f) Conceder autoridade de decisão e de ação: estabelecendo-se
previamente um acordo sobre controle e supervisão;
g) Valorizar relações próximas: tratando as pessoas com respeito e
gentileza. O líder deve reconquistar diariamente as pessoas;
h) Confiar nas pessoas: a liderança depende da confiança que é devolvida
pelo liderado. Com confiança a equipe tende a ousar e inovar mais;
i) Praticar a proximidade: participando da vida organizacional.22
21
No livro “25 maneiras de valorizar as pessoas”, Rio de Janeiro: Sextante, 2007, p. 91, de John C. Maxwell
e Lês Parrott, são listados seis obstáculos mais comuns para a escuta eficiente: 1.distrações como
telefones, tv etc; 2.atitude defensiva-na medida em que as pessoas se defendem se importam menos
com o que o outro diz; 3. mente fechada; 4.projeção- atribuir pensamentos e sentimentos ao outro
impede a percepção de como o outro se sente; 5. suposições- o julgamento antecipado priva a escuta; 6.
orgulho- a presunção deixa pouco espaço para a opinião do outro.
22
Op. cit. Apostila, p. 94.
Coleção Administração Judiciária
115
2.4 Juiz-Líder e Conflitos
No Poder Judiciário, assim como em qualquer outra organização, os
conflitos são inevitáveis. É preciso ponderar que no serviço público alguns
componentes propiciam o surgimento dos conflitos. A estabilidade, a ausência de
um plano de carreira, a mitigação da possibilidade de reconhecimento e premiação
e a dissociação entre a atividade desempenhada e a importância para o bem
comum, são alguns exemplos. Ocorre que os conflitos devem ser vistos pelo juizlíder como uma oportunidade de buscar a colaboração das pessoas. Em geral, os
conflitos são reprimidos pela autoridade ou ignorados sob uma aparência de
normalidade. Os conflitos devem ser tratados pelo líder. Na medida em que
enfrentados e tratados haverá uma redução da tensão interna e um aprofundamento
do conhecimento da equipe porque se conhecerá suas aspirações e perspectivas, o
que é muito importante para o crescimento e desenvolvimento da equipe.
A solução dos conflitos também revela a interdependência dos processos
de trabalho e aponta para a necessidade constante da cooperação. Exemplo dessa
interdependência é a relação simbiótica entre as atividades desenvolvidas pelo
gabinete do juiz e a atividade cartorária, sob responsabilidade dos servidores.
Assim, quanto mais esclarecedores e detalhados forem os despachos do juiz, mais
fácil será o seu direcionamento e cumprimento da decisão. Da mesma forma,
quanto mais treinados e esclarecidos os membros do cartório acerca do
cumprimento de atos ordinatórios (que independem de determinação do juiz),
menor será o número de conclusões desnecessárias. Outro exemplo típico é a nãolocalização dos processos judiciais no balcão pelo atendente. Trata-se de situação
extremamente constrangedora e que fragiliza a imagem da vara. A pessoa que está
fazendo o atendimento ao usuário é obrigada a confessar a não-localização do
processo pedido, sinalando que será procurado pela equipe e que o cliente terá que
retornar outro dia. Na maioria das vezes a não-localização do processo decorre do
descuido na recolocação no lugar de origem após alguma consulta ou cumprimento.
Estes
exemplos
poderiam
ser
multiplicados,
comprovando
que
a
interdependência dos processos de trabalho é clara no âmbito do Poder Judiciário.
Eliane Garcia Nogueira
116
Em assim sendo, as chances de conflito e tensão aumentam, tornando necessária a
visualização deste contexto e a tomada de decisões no sentido da cooperação.
Dito isso, surge a questão: Qual a postura do juiz-líder diante desses
conflitos inevitáveis? O caminho sem dúvida é tortuoso e não se socorre de uma
fórmula racional. As soluções são construídas no dia-a-dia, nas reuniões mensais e
durante a interação constante. O caminho apontado por Paulo Motta é elucidativo:
Ao enfrentar conflitos, o gestor deve, na primeira instância, identificar
interesses comuns e formas de ceder para se negociar as primeiras
dimensões aceitáveis. Mais adiante, deve avançar na busca de formas
mais permanentes de colaboração: criando espaços ou situações em
que as diferenças possam ser mais bem compartilhadas e confrontadas;
buscando convergências e integração; instituindo a visão de conflito
como desafio permanente; e trabalhando com alternativas de soluções
em que todos podem ganhar. A participação de funcionários na gestão é
um caminho eficaz nessa direção.23
O juiz-líder, além de resolver constantes conflitos de interesses sociais,
no exercício da jurisdição, também enfrenta os conflitos internos e busca a
cooperação e integração de sua equipe de trabalho. O trabalho é, portanto, duplo.
Poderá surgir, ainda, a preocupação com o controle. Já está arraigado, na
estrutura judiciária, um padrão de supervisão rígida e hierárquica. Necessário frisar
que as relações, hodiernamente, estão mais democráticas, da família às
instituições. Não há como seguir caminho oposto. A concepção de chefia também
mudou. Deve ser compartilhada e calcada no comprometimento. O líder é um
facilitador e não controlador. As inovações dependem de liberdade. A liberdade
exige valores, objetivos e métodos prévios. Portanto, a iniciativa e a liberdade não
são ilimitadas. Cinge-se ao estabelecimento prévio de objetivos. Os desvios, por
conseguinte, são facilmente detectados pelos membros da equipe.
De outro norte, a participação legitima a autoridade e produz lealdade.
Costuma-se dizer que a autoridade está mais naqueles que obedecem do que
naquele que manda. Com a participação, todos agem em prol de objetivos comuns
previamente definidos e se sentem num barco só e todos, inclusive o líder, estão
23
Op.Apostila, p. 60
Coleção Administração Judiciária
117
em constante aprendizado, abertos a novas proposições e inovações para o
enfrentamento das constantes mudanças.
2.5 Juiz-Líder e Motivação
Outra questão surge: Como motivar os servidores a participar da gestão da
vara? Muitas vezes o quadro que se vê é de alienação. Os gestores, apesar de
reclamarem a passividade dos servidores, continuam agindo por pressão de
autoridade para obter o mínimo de produtividade e resultados e, como dito
alhures, pouco interferem na solução dos conflitos internos, aumentando o nível de
estresse do ambiente de trabalho. De outro lado, têm-se servidores passivos,
submissos, infantilizados (tudo depende do juiz), descomprometidos, com baixa
produtividade e com pouca preocupação com relação ao seu desempenho
organizacional, acabando por culpar a organização por sua frustração e
acomodação. Forçoso admitir que o círculo se completa: autoridade x submissão.
A satisfação com o trabalho aumenta o comprometimento e, por
conseqüência, a produtividade. O líder deve ser o canalizador dos interesses dos
membros da equipe e apontar os interesses comuns. O interesse na participação,
em geral, é pragmático, isto é, está ligada a benefícios imediatos. Também há o
interesse de que a organização cresça e se fortifique porque assim seus benefícios
são preservados, aliados à importância de sua tarefa para a organização. É o
orgulho pelo trabalho. Assim, são motivadores: o dinheiro seja bônus individual ou
coletivo, a liberdade no trabalho e o reconhecimento. Neste ponto, o Poder
Judiciário encontra limitadores. A inexistência de um plano de carreira bloqueia a
possibilidade de premiação e limita o reconhecimento, na medida em que não são
dadas, ao juiz, ferramentas para tal. O único reconhecimento possibilitado é a
portaria de louvor, que conta com anotação na ficha funcional. Necessário dizer
que esta ferramenta é utilizada com muita economia. O interessante seria no final
de cada ano, por exemplo, a realização de um encontro de confraternização ou de
uma reunião final para a entrega de portaria aos servidores ou à equipe toda. Não
Eliane Garcia Nogueira
118
há, no Judiciário, a cultura do reconhecimento, o que reforça a acomodação. Da
mesma forma a liberdade no trabalho. Diante da submissão, encontra-se a
dificuldade em flexibilizar horários, por exemplo. A liberdade no trabalho requer
maturidade e comprometimento, os quais, muitas vezes, inexistem. Enfim, as
ferramentas motivadoras à disposição são extremamente limitadas e mesmo as
existentes são pouco utilizadas. É premente a mudança desse quadro já que a
motivação é essencial.
A motivação pressupõe participação. O juiz-líder deve instigar a
participação de todos da equipe. É preciso ponderar que a atividade judicante é
diferente da atividade administrativa da vara. O juiz tem conhecimentos jurídicos
ao ingressar na carreira, porém, desconhece a maioria dos processos de trabalho de
uma vara judicial, ainda que tenha exercido a advocacia. Pouco se sabe do que
acontece do lado de dentro do balcão, ou seja, no ambiente interno do Poder
Judiciário. Os advogados, inclusive, têm dificuldades em conhecer nossa realidade
bem como os tortuosos caminhos burocráticos que cercam a atividade judiciária.
Assim, o juiz, apesar de já pertencer ao Poder Judiciário, também pouco
conhecimento tem do mundo administrativo de uma vara judicial. O domínio destes
conhecimentos se dá de forma gradual. O juiz primeiro se detém na área judicante e,
apenas num segundo momento, volta seus olhos para a seara administrativa.
Acredita-se que, se desde o princípio a participação do juiz, na esfera administrativa,
for instigada, e houver investimento para tal, mais fácil ficará o conhecimento desta
realidade. Da mesma forma, oportunizar-se-á a visualização e solução dos problemas
administrativos e, com isso, a obtenção de melhores resultados.
Assim como o juiz, os servidores devem participar. Ninguém melhor que os
servidores para apontar soluções para erros dos processos de trabalho, para inovar
e propor alternativas de fazer a mesma tarefa de forma diversa. Muitas vezes o juiz
possui talentos desperdiçados, esquecidos e o que é pior, desconhecidos. Um
servidor com conhecimento de informática pode ajudar a gerenciar indicadores de
desempenho. A servidora graduada em comunicação pode ter excelentes idéias
para incrementar e melhorar a comunicação externa e reforçar a imagem
institucional. Uma pedagoga, ou mesmo, antiga professora, pode ser muito bem
Coleção Administração Judiciária
119
aproveitada na coordenação dos estagiários e, daí, sucessivamente. O líder que
conhece sua equipe pode melhor delegar atribuições e o mais importante, instiga
talentos em prol dos objetivos comuns, gerando participação.
O aproveitamento das idéias de um maior número de pessoas é sempre
melhor que submeter toda a equipe à idéia de um só: do juiz ou do escrivão. A
participação muda o quadro de dependência, submissão e apatia. Na administração
das grandes empresas privadas a participação tem sido considerada pelos
empregados tanto quanto a remuneração porque ela permite o desenvolvimento do
potencial dos membros da equipe e as pessoas precisam e querem se sentir
importantes e parte da organização. Com a participação transmuda-se submissão e
frustração em autonomia e valorização.
O clima organizacional também tende a melhorar com a participação. O
relacionamento interpessoal se desvenda na medida em que as pessoas participam
e expõem o que pensam, propiciando mais clareza às relações. Algumas ilusões de
preferências também se diluem, diminuindo a pressão interna e todos passam a
ter, inclusive o líder, maior respeito às idéias e proposições de todos.
O juiz-líder deve estar aberto para o novo e compromissado com o futuro.
Ter visão e caminhar para o futuro. Não ter o fracasso como referência e estar
ciente da temporariedade do sucesso. Ser pro ativo, otimista, entusiasta e
persistente. Ter consciência de seus pontos fracos e fortes. Se conhecer bem como
a organização a que pertence. Criar oportunidades para o auto-desenvolvimento de
sua equipe. Procurar os problemas e buscar soluções. Ouvir ativamente. Participar
constantemente. Interagir. Reconhecer desempenho. Experienciar com a equipe.
Sem dúvida esta é uma visão diversa da que temos acerca de dirigir e gerenciar
uma vara, mas é uma alternativa comprovadamente acertada.
Eliane Garcia Nogueira
120
3 PROCESSOS DE TRABALHO
3.1 Eficiência no Setor Público
Cada vez mais a sociedade exige do Poder Judiciário a eficiência. A
exigência foi tal que a eficiência transformou-se em princípio constitucional,
através da Emenda Constitucional n. 19/98. Estabelece o artigo 37 da Constituição
Federal24: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.” Consoante
ressaltado
por
Edílson
Pereira
Nobre
Júnior25,
a
inserção
da
eficiência
administrativa precedeu a emenda constitucional supramencionada. Exemplo disso
é o Decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, que tratou da Administração
Pública Federal, referindo-se especificamente à eficiência administrativa no artigo
26, inciso III.
No que pertine aos serviços públicos, o Código de Defesa do Consumidor
também exigia a eficiência, artigo 22 in verbis: Os órgãos públicos, por si ou suas
empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.26
Entrementes, devido à importância do tema para a Administração Pública,
inseriu-se a eficiência como princípio constitucional. Assentado isso, urge a
definição de eficiência. A eficiência é a relação entre recursos e resultados. Na
organização eficiente as pessoas executam com precisão suas tarefas. É o fazer
certo. Ao fazer certo, evita-se o re-trabalho e a realização de tarefas que não
agregam valor. Salta aos olhos a ligação da eficiência e economia. Nesse viés,
impende salientar que o dever de prestar contas, inserido também pela Emenda
Constitucional n. 19/98, se coaduna com o conceito de eficiência. Com efeito,
24
op. cit. p. 31.
NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. Administração Pública e o Princípio Constitucional da Eficiência. In:
Revista da AJURIS. Porto Alegre: Editora, Set/ 2006. p. 50.
26
COLECIONADORES Saraiva de Legislação. Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 16 ed. São Paulo:
Saraiva, 2006.
25
Coleção Administração Judiciária
121
estabelece o parágrafo único do artigo 70 da Constituição Federal27: Prestará
contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize,
arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou
pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de
natureza pecuniária. Enfim, a eficiência é a otimização dos nossos recursos para
alcançar os melhores resultados.
Já o conceito de eficácia requer o planejamento de atividades e dos
resultados. Vai ainda mais longe, exige que os resultados sejam alcançados.
Planejar atividades pressupõe a escolha certa. Não há no plano da eficácia
vinculação com a forma de executar os processos. A ligação da eficácia se dá com
os resultados. Nessa linha de raciocínio, necessário frisar que os resultados
somente são atingidos com a escolha certa (eficácia) e com o fazer certo, sob
restrição de custos (eficiência). Forçoso concluir que os dois conceitos pressupõem
a gestão dos processos na medida em que se planeja, fixam-se objetivos e controlase a execução, e esta, deve ser pautada pelo custo mais baixo.
Apesar de imposição constitucional o setor público resiste à idéia de
eficiência administrativa. Aliás, o setor público, em geral, é refratário à mudanças.
Talvez a maior dificuldade de adequação a uma nova forma de administrar, decorra
daí. Tradicionalmente as organizações públicas não agem pró ativamente. Quando
os problemas aparecem tratam os efeitos, deixando à margem as causas. Dessa
forma os problemas se repetem e o clima organizacional é de sobressaltos
constantes.
Neste contexto não há espaço para planejamento e avaliação porque as
energias da organização ficam constantemente voltadas “a apagar incêndios”. É
uma espécie de reincidência administrativa. Os gestores públicos parecem
enlevados por um pensamento mágico de que as situações críticas, uma vez
solvidas, não voltarão a acontecer e, após uma crise, se preparam para um longo
período de calmaria e bonança.
De outro lado, há uma espécie de descaso com os pequenos problemas,
sejam eles operacionais, de infra-estrutura ou de relacionamento interpessoal.
27
op. cit. p. 47.
Eliane Garcia Nogueira
122
Exemplo disso é a quantidade de bens e equipamentos danificados que não são
repostos porque não há iniciativa para tal. Assim, lá ficam as cadeiras
estragadas, o ar-condicionado que não funciona, a janela emperrada e daí
sucessivamente. Não há um cuidado com o ambiente de trabalho, nem mesmo
para o básico. O nível de tolerância aos problemas é altíssimo, ao contrário do
que ocorre na maioria das empresas privadas. Em outras palavras, a idéia
generalizada da sociedade de que o serviço público não funciona bem é
compartilhada pelos servidores públicos.
Também é fácil verificar uma nítida tendência à acomodação. No setor
público não se trabalha com conceitos como lucro e competitividade. A ameaça
não é premente. Não se perde espaço no mercado. A estabilidade dos servidores
públicos, aliada à ausência de um plano de carreira que motive o quadro
funcional, também corrobora para a formação deste quadro. Enfim, vários
elementos convergem para uma estagnação e envelhecimento dos processos de
trabalho.
Resultado deste contexto: muitas vezes faz-se mais do que precisa ser
feito e se é desidioso com o essencial gerando re-trabalho, prejuízos, descrédito e
insatisfação da população.
O Poder Judiciário também enfrenta algumas dessas resistências. Não
raras vezes fica-se entre carimbos e formalidades desnecessárias e pouca atenção é
dispensada ao atendimento do cliente. Prova disso é a ausência de uma cultura de
pesquisa
de
satisfação
e
de
treinamento
específico
para
atendimento.
Historicamente o Poder Judiciário se viu como imune às críticas da sociedade,
situação própria de um período ditatorial. Com a democratização e liberdade de
imprensa fica-se sujeito à avaliação da população e despreparados para os efeitos
do aumento da cidadania, que reverteu em aumento gigantesco da demanda. Todos
estes fatores levam à necessidade de mudança. O cenário atual é crítico e o
prospectivo também. A eficiência e eficácia na prestação dos serviços revertem em
melhoria da imagem institucional e, como conseqüência, mais legitimação e
fortalecimento. Certo é que se enfrentam limitações orçamentárias que brecam
Coleção Administração Judiciária
123
algumas iniciativas e projetos. Porém, também é certo que há um largo espaço
para a mudança de cultura institucional.
Á guisa de conclusão, a mudança de rumo, com observância da eficiência e
do atendimento das necessidades do cliente e não da organização, legitima e
fortalece o Poder Judiciário e por isso, a gestão dos processos é tão importante.
3.2 Conceito de Processos
Existem várias definições de processos. “Uma série de etapas criadas para
produzir um serviço ou um produto”, é a definição apresentada por Geary A.
Rummler e Alan P. Brache, em Melhores Desempenhos das Empresas.28
Os membros do Poder Judiciário têm dificuldade em trabalhar a idéia de
processos porque ela muitas vezes se confunde com os processos que tramitam nas
varas. O processo de trabalho que se está tratando é aquele que dá origem a um
serviço, por exemplo, o macroprocesso prestar jurisdição. Em qualquer vara, seja
ela especializada ou não, é possível verificar uma grande rede de processos e estes
são interligados entre si, e com processos de outros setores e varas. Assim para
prestar a jurisdição (macroprocesso) passamos por processos operacionais como a
distribuição do processo, a autuação do processo, a conclusão ao juiz, a expedição
de mandado de citação, a juntada da contestação, a expedição de notas, a
intimação de partes e testemunhas (se houver audiência) e administrativos como a
cobrança de autos, o controle dos prazos, até chegar à decisão. Têm-se, então,
uma entrada (petição inicial), um processo de transformação e uma saída
(decisão). Esta é a idéia de processo de trabalho.
O controle do processo de transformação terá nítida ligação com os
resultados. Cada processo de trabalho, então, influencia os resultados e daí a
necessidade de acompanhamento constante.
28
RUMMLER, Geary; PRACHE, Alan P. Melhores Desempenho das Empresas. Makron Books, 1994.
Eliane Garcia Nogueira
124
3.3 Mapeamento dos Processos de Trabalho
Tecidas as considerações acerca da importância dos processos de trabalho
para a instituição, exsurge a necessidade de mapear os principais processos de
trabalho da organização. Sem o mapeamento a organização está tomando decisões
às cegas. Apenas com a definição dos processos e análise do andamento destes é
possível verificar a organização no conjunto.
Primeiramente, se faz
necessário verificar quais e quantos são os
processos de trabalho. Insta frisar que não há uma regra para tal, porém, é
indicado que sejam mapeados os processos de acordo com uma prioridade. É
necessário que se focalize os processos críticos, alinhados com a visão estratégica
da organização. Para exemplificar: suponha-se que o objetivo estratégico de uma
vara cível, alinhado à visão estratégica do Tribunal, é diminuir o tempo de
tramitação dos processos. Após análise dos processos, verifica-se que a demora
maior, ou gargalo, está entre o despacho do juiz e a elaboração da nota de
expediente. Este processo de trabalho deve ser assinalado como crítico e, então, é
mapeado e elaborado um plano de ação para a melhoria.
Os processos não devem ser vistos em si e por si, mas estreitados e
vinculados com a estratégia da organização. Caso contrário, haverá um desperdício
de tempo, energia e dinheiro que não trarão benefícios iminentes para a
organização. Impõe-se frisar que o processo concretiza a estratégia e, assim, deve
ser gerenciado e avaliado.
A seleção dos processos a serem trabalhados vai ao encontro da estratégia
e da criticidade do processo, sendo a avaliação feita caso a caso.
3.4 Mapeamento X Tecnologia da Informação
A tecnologia da informação é indispensável para as organizações. Ela está
ligada aos processos de trabalho. O ideal é que se mapeiem, primeiramente, os
processos de trabalho, antes da informatização. Dessa forma, a tecnologia da
Coleção Administração Judiciária
125
informação reverterá em benefício aos processos de trabalho permitindo sua análise
e medição. Muitas organizações descuram dessa medida básica e a inclusão da
tecnologia da informação pouco acrescenta ao desempenho final da organização.
No Poder Judiciário Estadual, observa-se que os mapas estatísticos não
apresentam todos os processos de trabalho, o que impossibilita uma análise segura
do andamento de um cartório ou, ainda, que seja detectado um gargalo ou ponto
de estrangulamento. Para exemplificar, o mapa estatístico não apresenta todos os
pontos mortos do processo, ou seja, o intervalo entre um processo de trabalho e
outro. Assim, o juiz pode prolatar a sentença no prazo estabelecido no Código de
Processo Civil, dez dias, mas a publicação da sentença poderá demorar mais de um
mês, retardando o atendimento da expectativa do usuário, qual seja, o conhecimento
da decisão. Pode-se alegar que atualmente as decisões são lançadas na internet.
Entrementes, ainda, assim, este tempo morto terá um peso para o macroprocesso
prestar a jurisdição, já que ele obsta a abertura de prazo para recurso.
Outro processo de trabalho não suficientemente claro nos mapas
estatísticos é a juntada. Assim, verifica-se que em muitos cartórios este é um
processo de trabalho que comumente atrasa. Fácil notar, por conseguinte, que o
incremento das ferramentas tecnológicas ligadas à tecnologia da informação deve ter
em vista os processos de trabalho. Do contrário, pouco ajudará no resultado final.
Thomas Davenport29 aponta nove categorias de oportunidades de
utilização da tecnologia da informação para a melhoria dos processos: automação –
com a eliminação ou diminuição do trabalho humano de um processo; informação –
congregação de informações para permitir a compreensão de um processo;
seqüência – modificar a seqüência do processo ou permitir o paralelismo;
acompanhamento - monitoração da situação e objetos do processo; analítico –
melhorar a análise da informação para a tomada da decisão; geográfico – permitir a
coordenação dos processos à distância; integração – coordenar tarefas e processos;
intelectual – captação e distribuição de bens intelectuais e desintermediação –
eliminação de intermediários num processo.
29
DAVENPORT, Thomas. Reengenharia de Processos. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus. 1994. p. 60
Eliane Garcia Nogueira
126
No caso específico do Poder Judiciário Estadual a informatização dos
processos de trabalho não atingiu estas proposições. Os aspectos, analíticos,
intelectual, seqüencial e até mesmo informativo restaram deficientes. Partiu-se do
sistema atual, que foi traduzido e informatizado. A ênfase não estava nos processos
de trabalho, alinhados numa visão estratégica, mas a preocupação maior foi com
automatização de dados.
O momento atual exige uma mudança de visão, ou seja, de uma mudança
da utilização da tecnologia da informação em benefício da eficácia e eficiência.
Senão, a ferramenta é cara e não cumpre com sua função precípua.
A
informatização
trouxe
benefícios,
como
a
possibilidade
de
acompanhamento à distância, maior segurança acerca dos dados e andamentos
processuais, virtualização de alguns atos e um controle mais efetivo. Entrementes,
no que tange à tomada de decisões estratégicas e para detectar gargalos e tempos
mortos, pouco contribuiu.
Em conclusão, se é estrategicamente necessário conferir mais celeridade
no andamento dos feitos, a tecnologia da informação deve proporcionar, no
mínimo, a identificação dos pontos críticos.
3.5 Como Melhorar os Processos de Trabalho: melhoria contínua
Os processos de trabalho tendem a entrar em uma rotina. É do ser
humano a busca pela zona de conforto. Todos tendem à acomodação. A rotina,
até certo ponto, é importante porque oportuniza a consolidação de um processo
de trabalho, período que será variável de acordo com a complexidade do
processo. Entretanto, ela pode apresentar seu viés destrutivo quando o processo
de trabalho passa a não ser mais avaliado e, via de conseqüência, deixa de ser
constantemente aperfeiçoado.
Há situações ainda mais graves: Quando os processos de trabalho não são
mais questionados porque em algum ponto foram tidos como eficazes. Nestes
casos, o envelhecimento do processo é certo bem como sua ineficácia é uma
Coleção Administração Judiciária
127
questão de tempo. O espaço para crítica e inovação desaparece e o processo de
trabalho passa a valer por si, em desalinho à estratégia da organização.
O papel da organização é desenvolver um sistema que detecte quando a
rotina se tornou prejudicial e, por outro lado, oferecer estímulos para mudanças
constantes em direção à melhoria contínua da organização. O ciclo PDCA é um dos
métodos mais utilizados pelas organizações e indica o caminho genérico para
desenvolver os processos de trabalho com qualidade. O nome do ciclo sintetiza a
metodologia: plain (planejar) + do (fazer) + check (checar) + action (ação). Em
rápidas palavras, o ciclo PDCA significa planejar, executar, avaliar e corrigir. O uso
do método PDCA possibilita o afastamento dos “achismos” e das análises
subjetivas, passando-se para a verificação concreta da situação da organização. O
PDCA nos assegura a visibilidade da organização, do ponto de vista interno. É um
termômetro de erros, apontando para a necessidade de mudança de rumos.
O primeiro passo é planejar, através da fixação dos objetivos, escolha de
método, indicadores e recursos. O segundo passo é executar. A execução não se
cinge apenas à realização do processo, já que pressupõe, também, a educação e o
treinamento das pessoas responsáveis pelo processo. O terceiro passo é avaliar, o
que se dá através dos indicadores de desempenho e, por fim, corrigir os processos
que apresentaram indicadores insatisfatórios.
Aplicando-se o PDCA no processo de trabalho, na conclusão dos processos
para o gabinete do juiz, elimina-se processos
que seriam encaminhados ao
gabinete do juiz desnecessariamente, isto é, processos que seriam remetidos ao
gabinete do juiz e que dependiam de mero impulso cartorário ou que deveriam ter
sido encaminhados para execução de outro processo de trabalho. Nesse sentido, o
objetivo da equipe é diminuir o número de conclusões desnecessárias, utilizando-se
o PDCA. Observam-se os seguintes passos:
a) Planejar: fixação de objetivos, metas, métodos e indicadores:
- objetivo: diminuir o número de conclusões desnecessárias;
- meta: reduzir em 30% o número de conclusões desnecessárias em um ano;
- método: treinamento de toda a equipe e padronização;
- recursos: reuniões e ordem de serviço;
Eliane Garcia Nogueira
128
- indicador de desempenho: Número de conclusões desnecessárias (NCD)
dividido por número de conclusões, coletado mensalmente.
b) Executar: realizar reunião de sensibilização com a equipe; realizar
treinamento da equipe pelo escrivão acerca das hipóteses de impulso oficial do
processo conforme estabelecido na Consolidação Normativa; elencar os principais
casos de equívoco e afixar no mural do cartório ou distribuir a listagem para cada
servidor; elaborar ordem de serviço padronizando outros casos de impulso do
processo pelo cartório.
c) Avaliar: os membros do gabinete mapeiam os casos não conformes
identificando as causas e responsável. Aplica-se o indicador de desempenho e os
resultados são apresentados na reunião mensal da equipe.
d) Atuar corretivamente: as ações não conformes são apresentadas e é
reforçado o treinamento, incluídos os casos na listagem entregue ou modificada a
ordem de serviço.
Trata-se de exemplo bastante simples e que serve para ilustrar a singeleza
do método. Todos os processos de trabalho podem ser submetidos ao ciclo PDCA,
daí sua importância e larga utilização.
Necessário frisar a existência de outros métodos e ferramentas para a
implantação de melhorias nos processos de trabalho como a estrela decisória, o
diagrama de causa e efeito, o 5W2H, o GUT e outros30. A escolha da ferramenta
dependerá de decisão do líder bem assim da melhor adaptação da equipe.
Numa perspectiva de melhoria contínua, depois de eleitos os processos
críticos e buscando o alinhamento com a visão estratégica da organização,
inúmeras ferramentas podem ser utilizadas. O mais importante após a escolha e a
definição dos problemas é o acompanhamento e avaliação constantes. Este é o
melhor método para evitar o envelhecimento dos processos de trabalho.
30
São largamente utilizadas as ferramentas 5W2H e a matriz GUT. O 5W2H é uma espécie de check list
para garantira segurança da operação escolhida. Assim, os 5W significam em inglês: What (o que deve ser
feito?); Who (quem vai implementar?); Where (onde?); When (quando?) e Why (por que). Os 2H
correspondem a: How (como?) e How much (quanto custa?). Ao responder estas perguntas se está
traçando um plano de ação para solucionar um problema ou promover uma melhoria. A matriz GUT serve
para apontar a gravidade, urgência e tendência de cada problema ou situação. Cada um recebe uma nota
de 5 a 1, de ordem decrescente de importância, a partir dos critérios gravidade, urgência e importância.
Após as notas são multiplicadas e os problemas mais graves são aqueles cujas notas se aproximem do
valor máximo de 125 e serão tratados com prioridade.
Coleção Administração Judiciária
129
3.6 Indicadores de Desempenho
Fixada a importância da melhoria contínua dos processos de trabalho,
exsurge a necessidade de um estudo detalhado dos indicadores de desempenho que
servirão para a avaliação dos processos de trabalho.
Trata-se de uma máxima da Administração: gerenciar o que é medido. As
medidas são as bases para a tomada de decisões e direcionamento de rumos.
Permitem, ao gestor, detectar os pontos falhos dos processos, fazer comparações e
reconhecer o trabalho desenvolvido pelos membros da equipe.
Grande parte das organizações, sobretudo as do setor público, têm
dificuldade em medir. Há uma resistência natural à medição e comparação. Crê-se
que medir não é prioritário e que a percepção é suficiente para uma efetiva
avaliação dos serviços prestados. Daí a grande dificuldade em apresentar números
para a sociedade.
No caso do Poder, acaba por prestar contas da seguinte forma: número de
processos iniciados X número de processos findos. Trata-se de uma apresentação
simplista e insatisfatória para a sociedade, bem como para o Poder Judiciário. A
sociedade, por seu turno, não consegue visualizar, com clareza, a produtividade do
Judiciário e o imenso rol dos serviços prestados. Os membros do Poder, por sua
vez, têm suas inúmeras atividades reduzidas a um número absoluto. O serviço
prestado pelo Poder Judiciário é muito mais amplo e complexo e merece um
retrato mais fiel. É preciso que se mostre o que é feito e quanto é feito.
Consoante a última pesquisa realizada, em nível nacional, pelo Conselho
Nacional de Justiça31, o Rio Grande do Sul aparece como sendo um dos estados com
maior produtividade. Mas, como já dito, isso é muito pouco. Surgem outras
questões: Será que o Judiciário está produzindo em sua capacidade máxima? Ou, ao
revés, é possível continuar nesse ritmo frenético sem prejuízo da qualidade dos
serviços prestados? De outro lado, é intuitivo que é muito pouco mostrar tãosomente processos iniciados e findos. A atividade do Poder Judiciário é muito mais
31
Pesquisa Justiça em números, disponível no site www.cnj.gov.br, acessado em 20.09.07.
Eliane Garcia Nogueira
130
ampla. Quantas audiências são feitas anualmente? Quantos acordos? Quantos
processos cumpridos? Quantos mandados? Quantas pessoas atendidas? E por aí vai.
No afã de produzir bem e cada vez mais, são deixados de lado
instrumentos gerenciais que poderiam auxiliar muito. A atividade administrativa
não pode ser amadora ou empírica. Deve estar calcada na técnica para que possa
apontar para dados seguros e permitir a medição do desempenho da instituição,
salvaguardado o princípio constitucional da eficiência. Consoante dito alhures, ser
eficiente é fazer o trabalho certo com custo justo. Sem indicadores de desempenho
fica muito difícil esta constatação.
Ainda nessa linha argumentativa, muitos magistrados e servidores se
ressentem da ausência de reconhecimento do trabalho desenvolvido por parte da
sociedade bem como daqueles que estão próximos como advogados e partes.
Ocorre que, em geral, há um total desconhecimento acerca dos serviços prestados.
Os parcos números são para consumo interno e ainda com restrições já que não se
tem a cultura de comparações entre varas e comarcas. Ora, sem mostrar o quanto
é feito como se pode obter reconhecimento? Na mesma medida, como se obter o
apoio dos atores da cena jurídica quando se torna imprescindível a criação de
novas vagas e comarcas?
É corrente nos meios de comunicação e na sociedade em geral, a idéia de
que os servidores públicos pouco fazem. Este argumento somente encontra eco no
ostracismo e imobilismo do serviço público. É imperiosa uma política de
comunicação para mostrar o que é feito a fim de reverter este cenário. Para
mostrar, precisa-se medir. A técnica é imprescindível para esta aferição. Contra
fatos não há argumentos. Os números são difíceis de serem rebatidos e somente
aceitam contra-argumentos racionais.
Os Indicadores de Desempenho nada mais são do que o conjunto de dados
objetivos. Para cada processo de trabalho desenvolvem-se indicadores de
desempenho que retratam, em termos quantitativos, o andamento daquele processo.
Servem para balizar os resultados demarcados. Assim, primeiro, é estabelecido o
objetivo e depois o indicador. Para esmiuçar: imagine-se que o objetivo seja a
diminuição do acervo de uma vara em 10% em um ano. O indicador será o número de
Coleção Administração Judiciária
131
processos que pertencem ao acervo mês a mês. Suponha-se que o objetivo seja
aumentar o número de processos findos por conciliação em ações de cobrança. O
Indicador de Desempenho (ID) será número de ações findas por conciliação, dividido
pelo número de ações de cobrança que ingressaram. Se a idéia é melhorar a
resolutividade dos acordos judiciais, o ID será o número de acordos homologados,
dividido pelo de acordos descumpridos no período e, daí, sucessivamente.
Os indicadores têm larga abrangência, podem ser estratégicos ou
operacionais. O ideal é que os indicadores operacionais guardem estreita
vinculação com os estratégicos. O alinhamento é indispensável para a consecução
dos objetivos da organização. Nesta linha, se um dos objetivos estratégicos de uma
vara é diminuir o tempo de tramitação dos processos em 20%. Além da medição do
tempo de tramitação x número de processos iniciados deve-se desdobrar os
indicadores de desempenho, medindo cada processo de trabalho, desde a autuação
até a audiência de instrução e julgamento ou publicação da sentença.
A gestão está fundamentada nos indicadores e permite a tomada de
decisão racional. Eles também permitem que todos os membros da equipe
visualizem o andamento dos processos de trabalho, a proximidade dos resultados e
sua contribuição no processo. Boa prática disso são quadros de preenchimento
semanal dos processos de trabalho que vão reverter no ID.
Os indicadores espelham a situação da organização em determinado
momento, o que é extremamente oportuno, sobretudo se se considerar o mundo
atual de constantes transformações. Detectada pelo indicador de desempenho uma
dificuldade, é possível corrigir a rota, evitando-se maiores danos.
Esta realidade também faz parte do Poder Judiciário. A legislação
deficiente e algumas decisões administrativas, do Poder Executivo, muitas vezes
dão origem a uma verdadeira enxurrada de novas ações. Exemplo recente desse
fato são as ações, buscando as diferenças da poupança no período do Plano Bresser
e Plano Verão. Foram despejadas no Judiciário do Rio Grande do Sul mais de 200
mil ações, praticamente em uma semana. Tal situação por óbvio insta a mudança
de rumo e a necessária adequação de várias equipes de trabalho com visível
alteração no tempo de tramitação dos processos de trabalho.
Eliane Garcia Nogueira
132
Por fim, frisa-se que o estabelecimento de indicadores de desempenho
restringe a volta à zona de conforto, tendência de muitas organizações, sobretudo
aquelas resistentes à mudança. Quanto mais incisiva é a mudança, maior é a
tentação ao retorno à situação anterior. Os indicadores, enfim, são auto-limitações
da organização com o fim precípuo de mantê-la estimulada e focada.
Como a organização ou unidade escolhe os indicadores? Não há regras para
a escolha dos indicadores. Eles devem ser desafiadores e estimulantes, na medida
certa. Se forem muito ousados e não forem alcançados, podem gerar frustração.
Aqui, mais uma vez, é de suma importância a participação do líder para achar o
equilíbrio entre a sobrecarga e a monotonia, observando os membros da equipe e
desafiando-os na medida da competência de cada um. É importante, também, que
a escolha flua de uma negociação das partes. Consoante já salientado, os
responsáveis pelos resultados são todas as pessoas envolvidas no macroprocesso,
assim, natural que participem da escolha dos indicadores.
Existe uma ferramenta que pode auxiliar na escolha dos indicadores de
desempenho: o Fator 1032. A meta fixada é aumentada ou diminuída em 10%.
Suponha-se que a meta de uma equipe é reduzir o tempo de espera para
atendimento. A medição apontou para oito minutos, em média. Tem-se a seguinte
equação 8 - 0,10 X 8 = 7,2 minutos. De outra banda, se a meta é aumentar o
número de autuações por dia. A medição apontou para 10 autuações/dia. Tem-se,
então, o seguinte cálculo 10 + 0,10 X 10 = 11.
Importante ponto a ser ressaltado, ainda, é o que respeita aos Fatores Críticos
de Sucesso. Eles são fundamentais para que os processos de trabalho funcionem e, via
de conseqüência, para que os resultados sejam atingidos. No lugar de conceituar
fatores críticos de sucesso, para compreensão imediata, apontam-se alguns exemplos.
No desenvolvimento do planejamento estratégico da Comarca de Santa Maria – Rio
Grande do Sul foram eleitos os seguintes fatores críticos de sucesso: suficiência de
recursos humanos frente à demanda crescente, treinamento qualificação e valorização
permanente das pessoas, qualidade de vida no trabalho e gerenciamento dos processos
32
TAKASHINA, Newton Tadachi. Indicadores da Qualidade e do Desempenho. Rio de Janeiro: Editora
Qualitymark, 1999.
Coleção Administração Judiciária
133
de trabalho. Como se pode ver, os fatores críticos de sucesso não se traduzem em
metas ou objetivos, mas atributos para o alcance dos resultados pretendidos. Eles
determinam a medida para a organização atingir seus resultados.
Os Fatores Críticos de Sucesso são limitadores do desempenho e via de
conseqüência, dos objetivos propostos. Ressaltada sua importância surge a
necessidade de implementação dos Fatores Críticos de Sucesso.
Eliane Garcia Nogueira
134
4 ESTUDO DE CASO: GESTÃO ESTRATÉGICA DE UMA VARA CÍVEL
4.1 Introdução
Feito o estudo acerca da importância da adoção de um sistema de gestão
na condução da atividade judiciária, apresenta-se a aplicação de algumas técnicas
gerenciais em alinhamento ao Plano de Gestão pela Qualidade do Poder Judiciário
do Rio Grande do Sul33 e aos objetivos estratégicos da Comarca de Santa Maria,
estabelecidos no planejamento estratégico, quais sejam: valorização das pessoas,
qualificação da infra-estrutura, comunicação, gerenciamento dos processos de
trabalho e integração com a sociedade.
Frise-se que o acompanhamento das atividades cartorárias teve início em
dezembro de 2004. Entrementes, os dados apresentados são de 2005 tendo em vista
que a informatização, que possibilitou a coleta dos dados, ocorreu em agosto de 2005.
O ponto inicial para a implementação de um sistema de gestão na vara foi
a comunicação entre o juiz e os servidores. O método foi bastante simples e
consistiu na realização de reuniões mensais de avaliação acerca do andamento dos
trabalhos. Nestas oportunidades foi possível verificar os atrasos consideráveis de
determinados processos de trabalho. Constatou-se, ainda, que este atraso estava
comprometendo o macroprocesso. Também foi a oportunidade de verter as
dificuldades de relacionamento interpessoal da equipe e as chamadas “agendas
ocultas”34 dos membros da equipe.
33
34
As políticas para qualidade são: (a)Para o Poder Judiciário – preparar a Instituição para as demandas da
sociedade moderna; (b) Para clientes – fornecer um serviço de qualidade excelente; (c) Para
fornecedores – trabalhar em parceria com advogados, agentes do Ministério Público e partes; (d) Para
magistrados e servidores – propiciar condições ambientais e estruturais adequadas e favoráveis ao
desenvolvimento dos serviços; valorizar o papel fundamental que cada pessoa exerce na prestação dos
serviços da Justiça; apoiar e incentivar o aperfeiçoamento contínuo de todas as pessoas envolvidas no
processo produtivo da Instituição; (e) Para a sociedade – atender às suas expectativas, realizando um
trabalho ágil; incentivar magistrados e servidores no envolvimento com questões sociais, especialmente,
aquelas ligadas ao Judiciário, para o desenvolvimento da cidadania e o aprimoramento da democracia.
Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br.>
Agendas ocultas são as necessidades e metas individuais que na maioria das vezes não são apresentadas à
equipe. Harvey Robbins e Michael Finley sinalizam para a importância da revelação das agendas ocultas
para construir confiança. Sinalam: Quaisquer que sejam as metas pessoais, precisamos saber quais são
para lidar com elas, ou ao menos reconhecê-las, como equipe-talvez até para torná-las metas de
realizações da equipe. Op. cit. p. 23.
Coleção Administração Judiciária
135
Constatados os processos de trabalho que estavam em situação crítica
(publicação de notas de expediente e cumprimento), foram fixados os objetivos e
as metas. A ferramenta utilizada foi 5W2H. Necessário frisar que algumas vezes
foram realizados mutirões para dar conta da demanda represada. Nestes casos, os
membros do gabinete também participavam fato que reforçou os laços da equipe e
diminuiu distâncias.
O trabalho em equipe foi estimulado através do acompanhamento
constante dos indicadores de desempenho. Através deste acompanhamento era
possível verificar a interdependência dos processos de trabalho, surgindo a
necessidade do trabalho em equipe para atingir as metas propostas. Nesse viés,
refira-se que as metas foram estabelecidas por consenso após algumas
reuniões.
Os principais processos de trabalho (autuação, juntada, cumprimento,
expedição e publicação de notas de expediente, certificação, cobrança de autos,
cumprimento de mandados) eram acompanhados mensalmente. Verificado algum
atraso na reunião de avaliação, mudava-se a estratégia de atuação.
No início do trabalho, durante seis meses aproximadamente, a resistência
dos membros da equipe à mudança era flagrante. Em todas as reuniões eram
citados como impedimentos à implementação da mudança organizacional: número
insuficiente de servidores; o tempo limitado de permanência dos estagiários; a
ausência de tempo para treinamento dos estagiários; que a regularização das notas
de expediente ‘afogaria’ o balcão, impedindo o atendimento e ausência de
reconhecimento por parte de advogados, partes e alta administração.
Nessa linha, dois pontos foram de suma importância para a abertura para
a mudança: a alteração do layout e o empenho dos membros do gabinete e do
juiz na permanência dos estagiários e voluntários. Estas duas medidas simples e
de custo baixo foram o pontapé inicial do processo de mudança. Diante dos
resultados que decorreram destas duas ações foi aberto um canal para aceitação
do novo e para a inovação. Talvez este pontapé inicial tenha sido o ponto mais
difícil do caminho.
Eliane Garcia Nogueira
136
4.2 Identificação do Órgão
3ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE SANTA MARIA – ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
E-mail: [email protected]
4.3 Nome do Trabalho
Gestão Estratégica de uma Vara Cível
4.4 Nome do Responsável e Equipe
Eliane Garcia Nogueira, Juíza de Direito, Diretora do Foro; Fabiane
Szcepanski, Escrivã; Janete Noal Coradini, Oficial Ajudante; Ivana Salete
Brasiliense Marinho, Assessora; Luciana Aguiar Nunes, Luciano Jacques, Marta
Carlesso, Oficiais Escreventes; Maristela Laurindo De Lima, Auxiliar; Vanessa
Scremin Schiefelbein e Paula Zamberlan, estagiárias.
4.5 Delimitação da Ação
Desenvolvimento de um plano de gestão estratégico para uma vara cível,
de uma comarca de entrância intermediária, que, em alinhamento com o Plano de
Gestão pela Qualidade do Judiciário do RS, contempla ações voltadas ao bem-estar
das pessoas da Vara (clientes internos), à satisfação de seus clientes externos; e à
melhoria de seus produtos e serviços.
4.6 Objetivos
•
Alcançar a excelência dos serviços prestados pela Vara, a partir de
sua efetiva administração por parte do gestor;
Coleção Administração Judiciária
•
137
Buscar a celeridade processual, a partir da agilização das rotinas e da
padronização de procedimentos cartorários;
•
Desenvolver uma cultura de valorização do cliente, a partir do
estímulo constante a seu especial atendimento e do ouvir a sua voz
através da realização sistemática de pesquisas de satisfação
(advogados, ministério público, defensoria pública, procuradorias);
•
Desenvolver um ambiente de qualidade propício à eficiência do
serviço, através da construção de um espírito de equipe e da
melhoria do relacionamento interpessoal e de sua capacitação;
•
Gerenciar a Vara a partir de formulações estratégicas e de forma
prognóstica.
4.7 Metas
•
Diminuir o acervo de processos da vara em 5%;
•
Reduzir em 50% o prazo dos processos de trabalho em situação crítica
(elaboração da nota de expediente e cumprimento) no primeiro ano,
e 80% no segundo ano;
•
Medir o índice de satisfação dos clientes externos;
•
Manter os estagiários voluntários por período superior a três meses;
•
Melhorar o índice de satisfação da equipe;
•
Reduzir em 50% as conclusões desnecessárias.
4.8 Desenvolvimento
4.8.1 Identificação do Problema
A ausência de uma efetiva administração da Vara e de preocupação com o
cliente, foram problemas constatados a partir da identificação de uma série de
deficiências, detectadas a partir de reuniões mensais de avaliação. Havia
Eliane Garcia Nogueira
138
considerável atraso no andamento dos processos e o relacionamento interpessoal
era problemático, refletindo-se através de inúmeros afastamentos dos servidores,
discussões e baixo rendimento. Este contexto apontou para inexistência de
gerenciamento da vara bem como gestão de pessoas. Além disso, havia sido perdida
a razão da atividade-fim da instituição: prestação jurisdicional eficiente, eficaz,
efetiva e com especial atenção ao cliente.
4.8.2 Análise das Principais Causas
•
Ausência de conhecimento das técnicas de administração;
•
Descomprometimento com a efetiva gestão;
•
Inexistência de padronização de procedimentos;
•
Ambiente de trabalho inadequado;
•
Inexistência de objetivos e metas;
•
Ausência de espírito de equipe.
4.8.3 Plano de Ações
4.8.3.1 Foco no Cliente Externo
4.8.3.1.1 Pesquisa de Satisfação
A primeira pesquisa foi feita logo que ocorreu a mudança do layout a fim de
aferir a modificação. Outra foi realizada posteriormente em atendimento ao plano de
gestão da Comarca e teve maior abrangência na medida em que foi enviada à O.A.B.,
Defensoria Pública, Ministério Público e Procuradorias (em anexo).
A partir dos dados colhidos foram efetivadas modificações, como a forma
de atendimento, através de fichas e com o auxílio de estagiários. Não foi possível
uma comparação direta de dados considerando que segunda pesquisa teve outra
tabulação por sua amplitude já que aplicada em todos os setores.
Coleção Administração Judiciária
139
4.8.3.1.2 Atendimento do Balcão
Considerando os dados levantados na pesquisa e as constantes reuniões,
foi alterado o sistema de atendimento ao balcão. É consabido que a atividade de
atendimento é desgastante para o servidor na medida em que lhe exige tempo,
disposição e paciência. De outro lado, é o espelho do cartório e se traduz no
contato mais direto da sociedade com o Poder Judiciário. Assim, foi buscada
modificação urgente com foco no cliente, deliberando-se por estabelecer o
atendimento através de rodízio, por hora. Desta forma, o servidor responsável
mantém maior tranqüilidade e presta um melhor atendimento.
4.8.3.2 Foco nas Pessoas (cliente interno)
4.8.3.2.1 Rotinas de Reuniões Mensais de Avaliação
As reuniões mensais foram incorporadas à rotina da vara que hoje as
considera imprescindíveis. Os encontros são precedidos de pauta e todos podem
incluir assuntos. A ata é feita no sistema de rodízio por cada um dos integrantes da
equipe. Tem duração de uma hora e meia e é realizada durante o expediente
interno a fim de evitar interrupções. Em regra principiam com a análise dos
resultados, passando por estabelecimento de novas metas para o próximo mês e
após são tratados os mais variados assuntos. As reuniões foram quinzenais, quando
em andamento planos emergenciais.
4.8.3.2.2 Reuniões de Confraternização
A fim de criar e manter o espírito de equipe do grupo, bem como estreitar
laços,
foram
marcadas
reuniões
de
confraternização
de
final
de
ano,
comemorações de aniversários ou café da manhã precedendo reunião. Também foi
criado um mural para colocação de fotos e reportagens de interesse de todos.
Eliane Garcia Nogueira
140
4.8.3.2.3 Escalas para Férias e Licenças
Criação de escalas para fixação de férias e licenças objetivando o constante
desenvolvimento das atividades, evitando concomitância de afastamento.
4.8.3.2.4 Valorização dos Estagiários e Voluntários como Auxiliares
Foi criado um programa voltado para os estagiários e voluntários: “Estágio
Programado”. Em linhas gerais, o programa tem o seguinte funcionamento: as
vagas para o estágio ou trabalho voluntário serão abertas duas vezes ao ano,
respectivamente nos meses de fevereiro/março e julho/agosto. Feita a seleção
pelo servidor responsável, serão realizadas entrevistas dos candidatos mediante
agendamento. Na entrevista, o servidor-entrevistador repassará ao candidato, os
objetivos do estágio, informará sobre a importância da assiduidade, levantando
dados sobre a disponibilidade do entrevistado para que se processe a adequação às
vagas existentes. Dará as primeiras informações acerca da instituição e questionará
o candidato acerca de seu desenvolvimento acadêmico.
Após a entrevista, o estagiário ou voluntário será recepcionado no Cartório
pelo responsável que dará as orientações necessárias e entregará os Procedimentos
Operacionais Padrão (POP) e a programação do Estágio Programado, para leitura
atenta. Será disponibilizado local próprio para o desempenho das atividades do
estagiário ou voluntário.
O
juiz
fará
uma
entrevista
com
os
estagiários
ou
voluntários,
proporcionando um contato primeiro. Serão realizadas reuniões mensais entre o
juiz, servidor designado e assessor ou secretário do juiz, oportunizando a troca de
experiências, contato entre todos os estagiários, voluntários e com o juiz. Trata-se
de mecanismo importantíssimo para a consecução de um dos objetivos do projeto
que é a permanência do estagiário ou voluntário no Cartório ou Setor.
São realizadas reuniões para troca de experiências entre os estagiários do
gabinete e estagiários do Cartório e voluntários bem como convite para que outro
Coleção Administração Judiciária
141
juiz, de outra área ou com conhecimento específico em determinada matéria,
possa expor para os estagiários.
O estágio ou trabalho voluntário é dividido em várias fases, de acordo com
os principais processos de trabalho, culminando com o auxílio ao juiz, em gabinete.
O tempo de permanência em cada uma delas é de aproximadamente três meses,
variando conforme o desempenho e número de vezes por semana o estagiário ou
voluntário comparece. A evolução nas fases da programação do estágio será
monitorada pelo servidor responsável através da análise da ficha de desempenho. O
aproveitamento do estagiário no gabinete seguirá os requisitos expostos na
programação. No final de cada período será feita pesquisa entre os estagiários e
voluntários, visando análise do desenvolvimento do estágio programado.
4.8.3.2.5 Ambiente de Trabalho
A mudança do layout foi uma das primeiras alterações implementada com
o novo sistema de gestão da vara. A dificuldade do atendimento foi detectada a
partir das reuniões mensais do Cartório. Em virtude da publicação diária de nota de
expediente com cerca de oitenta processos, verificou-se aumento substancial no
movimento do balcão, dificultando não só o atendimento, mas a execução de
outras tarefas, pelo “quase” tumulto em determinadas situações. Diante desse
quadro, além do “atendente”, outros servidores acabavam prestando atendimento,
prejudicando, via de conseqüência, o cumprimento, autuações, etc.
Os servidores, por sua vez, ficavam desmotivados e acabavam se
envolvendo em todas as situações do atendimento, gerando resistência à atividade.
Além disso, os processos estavam em estantes “espalhadas” pelo Cartório,
dificultando a procura, o que ocasionava demora.
De outro lado, as partes e advogados ficavam impacientes. Não dispunham
de local para manusear os autos ou para mera espera. Com o auxílio de uma
arquiteta, em trabalho voluntário, foram planejadas as alterações. Os processos
ficaram em sala própria. Criou-se outra sala exclusiva para o atendimento com
Eliane Garcia Nogueira
142
cadeiras, mesa para manuseio dos processos, revistas e água e uma outra sala para
o desenvolvimento das atividades operacionais.
Foi adotado o programa 5S após a apresentação da sua formatação por um
servidor, em uma das reuniões mensais. A seguir, marcou-se dia e hora para a
implementação. A revisão é feita anualmente.
4.8.3.3 Foco nos Processos
4.8.3.3.1 Mapeamento e Acompanhamento das Rotinas Cartorárias
A partir da elaboração de um mapa dos principais processos de trabalho,
passou-se a monitorar o andamento com o intuito de diminuir os tempos mortos do
processo. Pretendeu-se avaliar o tempo dos processos e identificar atividades
críticas, buscando a celeridade processual. Uma vez identificados os processos de
trabalho críticos (notas de expediente e cumprimento de processos) foram
estabelecidas metas para o saneamento.
A técnica escolhida foi 5W2H.
4.8.3.3.2 Padronização dos Procedimentos
A elaboração de uma ordem de serviço para padronizar procedimentos (em
anexo) e efetivar os despachos ordinatórios visando eliminar as conclusões
desnecessárias.
4.9 Métodos e Técnicas Adotadas no Desenvolvimento das Ações
a) Identificação e análise constante das rotinas cartorárias críticas através
do preenchimento de planilha que contém o mapeamento das principais atividades
cartorárias;
Coleção Administração Judiciária
143
b) Realização de reuniões mensais previamente marcadas e organizadas
com ata e pauta, com avaliação do cenário, solução de problemas imediatos e
análise prognóstica do andamento da vara;
c) Fortalecimento e desenvolvimento das lideranças através da tomada
conjunta de decisões em que os membros da equipe são motivados a propor
soluções inovadoras e específicas para sua área de atuação. Motivação para
delegação de atividades, inclusive para os estagiários, sob supervisão;
d) Participação efetiva dos membros do gabinete nas atividades da equipe,
integrando mutirões e abarcando atividades típicas do cartório;
e) Realização de pesquisa de satisfação (externa e interna);
f) Criação do Estágio Programado.
4.10 Resultados e Benefícios Alcançados
Os resultados do trabalho que principiou em 2004 podem ser analisados
através de alguns dados estatísticos que serão a seguir expostos, mas também
aparecem no relacionamento interpessoal e na criação do espírito de equipe.
Os servidores trabalham visando metas e se preocupam com o
desenvolvimento total da atividade forense. As lideranças da equipe foram
desenvolvidas através da busca de soluções pela equipe, passando-se para decisões
mais ricas e atitudes comprometidas. É de se ressaltar que três servidores do
cartório receberam portaria de louvor pelo envolvimento no plano de gestão da
Comarca, demonstrando seu efetivo comprometimento.
A mudança do layout e o atendimento por rodízio e com fichas trouxeram
benefícios para o público externo e para o público interno que se diz plenamente
satisfeito com a alteração, elencando como benefícios o aumento da concentração
para o cumprimento das atividades cartorárias e a diminuição do desgaste pelo
sistema de rodízio diário. Importante ressaltar que o modelo foi aprovado pela
O.A.B. local e foi adotado em outras varas e, inclusive, foi o modelo adotado pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na remodelação feita na Comarca.
Eliane Garcia Nogueira
144
As
reuniões mensais também propiciaram
a comunicação
interna,
permitindo a toda equipe o conhecimento dos projetos, decisões e metas, de forma
linear e ao mesmo tempo. Através das atas é possível verificar os objetivos traçados e
metas alcançadas, permitindo um controle efetivo da gestão da vara e do trabalho
desenvolvido pelos membros da equipe. A participação do juiz reforça a importância
da reunião e permite a análise conjunta da atuação do cartório e gabinete.
As pesquisas de satisfação apresentaram um primeiro diagnóstico da
satisfação do cliente, apontando para a necessidade de adequações, sobretudo,
quanto à forma e local de atendimento. A partir disso, a adoção de medidas
simples como a utilização de fichas para o atendimento, sala própria para
atendimento, terminal próprio e sistema de rodízio, melhorou o atendimento. Além
disso, essas medidas serviram para despertar a equipe para a importância a ser
dispensada a essa atividade.
Na pesquisa interna, realizada 11 de dezembro de 2006, mapeamos
pontos positivos e negativos. Dentre os primeiros foi apontada por cinco dos oito
participantes a reunião mensal de avaliação; quatro manifestaram a união; cinco
referiram interação; três o ambiente positivo; um a criatividade; um a flexibilidade
e novas idéias e cinco a racionalização dos trabalhos. Dentre os pontos negativos:
um referiu a necessidade de maior envolvimento da administração superior; um
pediu despachos mais específicos; um a sensação de andar em círculos e um o
individualismo de alguns. A análise de tais resultados aponta para a aprovação do
novo sistema de gerenciamento da vara.
A gestão voltada para resultados e metas permitiu a visualização do
trabalho desenvolvido pela equipe e uma maior tranqüilidade na medida em que os
problemas são identificados e solucionados ainda que num contexto de excessiva
carga de trabalho e reduzido número de servidores. Tais aspectos foram apontados
por quase a totalidade dos membros da equipe na pesquisa interna de satisfação.
O mapeamento das atividades críticas principiou em dezembro de 2004 e o
quadro era difícil, com atrasos de mais de 180 dias. As metas estabelecidas foram
atingidas, sem prejuízo das demais atividades.
Coleção Administração Judiciária
145
O programa do estágio também apresentou resultados positivos. A
permanência média de estagiários e voluntários, antes da implantação do
programa, era de 90 dias. Com o desenvolvimento do projeto, seis estagiários
permaneceram mais de um ano auxiliando nas atividades cartorárias, tendo havido
o aproveitamento de três deles em gabinetes de outros juízes e três no gabinete da
vara. Os estagiários e voluntários passaram a sentirem-se membros da equipe,
implementando-se
o
clima
favorável.
Neste
ano,
o programa
obteve
o
reconhecimento da Alta Administração e foi recomendado para aplicação por todos
os juízes do Rio Grande do Sul.
O envolvimento do juiz e dos membros do gabinete fortaleceu a liderança
e o espírito de equipe. Todas as atividades foram planejadas e realizadas com a
participação do gabinete, o qual, inclusive, abarcou funções típicas do cartório,
como a movimentação dos processos, em prol da celeridade e efetividade. Os
despachos receberam maior atenção a fim de proporcionar notas claras e diminuir
o fluxo no balcão. A procura de processos em gabinete bem como o atendimento de
advogados que buscavam processos que estavam conclusos, passou a ser efetuada
pelo gabinete. A recíproca foi constatada na medida em que em junho de 2005 o
número de conclusões desnecessárias atingia mais de 20% e, em junho de 2007 este
índice baixou para 1,6%.
As confraternizações reforçaram essa nova sistemática de trabalho e foram de
extrema importância para o fortalecimento do grupo, ressaltando-se o café da manhã
coletivo antes da reunião mensal, numa preparação para o trato de assuntos comuns.
Enfim, a gestão de pessoas e a adoção de algumas técnicas de
gerenciamento cartorário resultaram na melhoria dos serviços internos e externos.
4.11
Comparação, Através de Dados Estatísticos, de Maneira a Comprovar a
Eficácia das Ações no Alcance dos Objetivos
O demonstrativo abaixo dá conta do número de movimentos cartorários
efetuados no sistema durante o mês. Pode-se notar uma evolução considerável: em
Eliane Garcia Nogueira
146
janeiro de 2005 ficava abaixo dos cinco mil movimentos e, em março de 2006, ficou
próximo dos vinte mil movimentos. É de referir, ainda, que a evolução é constante,
com exceção dos meses de férias e licenças dos servidores (janeiro, fevereiro e
julho).
Seqüência1
2005
Seqüência2
2006
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
0
JA N
FEV
MA R
A BR
MA I
JUN
JUL
A GO
SET
OUT
NOV
DEZ
Gráfico 1: Demonstrativo da evolução 2005/2006
A seguir o mapeamento das atividades cartorárias críticas: notas de
expediente e cumprimento. O critério da tabela levou em consideração o número de
dias de atraso. Assim, em 31 de dezembro de 2004, estavam sendo elaboradas as
notas de expediente de início de agosto do mesmo ano. Importante notar que foi
constatada uma queda na produção após junho de 2005 e tal fato decorreu da
implantação do novo sistema de informatização, em julho de 2005. A implantação foi
extremamente trabalhosa e consistiu na etiquetação de todos os processos, alteração
de localizador, treinamento e adaptação de todo o pessoal. Além disso, os prazos
ficaram suspensos por quinze dias e o retorno às atividades foi bastante difícil.
Tabela 2: Mapeamento das atividades críticas (notas de expediente)
Notas de
Expediente
jun/04
dez/04
jun/05
dez/05
jun/06
dez/06
178
22
88
3
1
Variação no
tempo (em dias)
Fonte: NOGUEIRA, Eliane Garcia. 2007.
Coleção Administração Judiciária
147
Variação no tempo (em dias)
200
150
100
50
0
dez/06
set/06
jun/06
mar/06
dez /05
s et/05
jun/05
mar/05
dez/04
set/04
jun/04
Variação no tempo (em dias)
Gráfico 2: Demonstrativo da variação no tempo
Tabela 3: Mapeamento das atividades críticas (cumprimento)
Cumprimentos Jun/04
dez/04
jun/05
dez/05
jun/06
dez/06
178
32
88
29
20
zVariação no tempo
(em dias)
Fonte: NOGUEIRA, Eliane Garcia. 2007.
V a ria ç ã o no t em po (em dia s )
200
150
100
V a riaç ão no tempo (e m d ias )
d e z /0 6
s e t/0 6
ju n /0 6
m a r /0 6
d e z /0 5
s e t/0 5
ju n /0 5
m a r/0 5
d e z /0 4
s e t/0 4
0
ju n /0 4
50
Gráfico 3: Variação no tempo (em dias)
O número de processos em tramitação da vara somente apresenta dados
seguros a partir de dezembro de 2005, quando da implantação do sistema Themis,
conforme tabela a seguir:
Eliane Garcia Nogueira
148
Tabela 4: Demonstrativo do número de processos em tramitação – 2005/2007
Mês e ano
Nº de processos
Dezembro 2005
9.567
Junho 2006
10.113
Dezembro 2006
9.714
Junho 2007
8.345
Fonte: NOGUEIRA, Eliane Garcia. 2007.
Abaixo o resultado da pesquisa de satisfação do cliente externo.
Tabela 5: Pesquisa de Satisfação Externa: Período de Realização:
1º/02/2005 até 1º/04/2005
Avalia
A
-ções
Informa-
%
A sua
solici-
%
O
tempo
%
de
funcio-
ção que
tação
de
entrega
nário
você
de
espera
(retorno)
foi
busca foi
serviço
no
de sua
eficien-
fornecida
foi
balcão
solicita-
te no
de forma
atendi-
foi
ção foi de
atendi-
forma
mento
da de
O tempo
%
O
%
Acumu-
%
lado
forma
Ruim
3
5%
3
5%
6
10%
4
7%
1
2%
17
6%
Regu-
2
3%
4
7%
5
8%
5
8%
3
5%
19
6%
lar
Bom
8
13%
7
12%
13
22%
13
22%
6
10%
47
16%
Muito
47
78%
46
77%
36
60%
38
37%
50
83%
217
72%
60
100%
60
100%
60
100%
60
60
100%
300
100%
Bom
Fichas
Fonte: NOGUEIRA, Eliane Garcia. 2007.
Coleção Administração Judiciária
149
CONCLUSÃO
A opção pela gestão operacional com foco nas questões estratégicas
possibilita a melhoria e eficiência dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.
Volta-se para a satisfação do cliente externo; para a gestão de pessoas; para o
planejamento regular das atividades cartorárias e para a observância de metas são
decisões estratégicas que encaminham para a excelência dos serviços oferecidos.
Em tempos de críticas sem fim ao Poder Judiciário e de cortes
orçamentários constantes, aliados ao crescimento assustador da demanda, a
decisão do Poder Judiciário deve ser estratégica. São imprescindíveis a análise do
cenário externo e a preocupação com a satisfação do cliente, a qualificação e
fortalecimento da equipe, aliados à adoção de técnicas gerenciais como a
constante medição dos resultados e o gerenciamento de toda a vara para a
definição de metas específicas. O conjunto de todas estas opções estratégicas,
somado ao avanço tecnológico planejado, aponta para uma saída em busca da
melhoria dos serviços prestados pelo Poder Judiciário.
Importante ressaltar a fundamental participação do juiz no gerenciamento
estratégico,
exercendo
a função
de
gestor.
Aliás,
tal
viés
vem
sendo
paulatinamente exigido do juiz na medida em que também desempenha o papel de
gestor público. O cuidado com a coisa pública passa pela administração efetiva do
patrimônio e serviço públicos.
A liderança do juiz é essencial em todo este
processo de mudança e modernização em busca da tão clamada efetividade da
justiça.
O desenvolvimento de uma política séria de gestão de recursos humanos
também adquire suma importância diante dos vetores expostos. O treinamento e
desenvolvimento do capital intelectual dos servidores da justiça são essenciais para
a melhoria dos serviços prestados. Também a criação e implementação de um
plano de carreira que motive o pessoal e atente para atividades de atendimento ao
cliente, priorizando-as.
O amadorismo deve ceder lugar à técnica, seja com a especialização de
juízes e servidores na área de gestão, seja com a utilização de profissionais da área
Eliane Garcia Nogueira
150
mediante supervisão. O que não se justifica é o isolamento reinante em
contradição a todo o movimento da sociedade que busca a congregação de
conhecimentos para o melhor desempenho da atividade-fim.
O princípio da eficiência, além de se incorporar ao ordenamento jurídico
deve ser praticado incessantemente. Uma gestão voltada para resultados é o
caminho do futuro. Transformar-se-á em exigência da sociedade. As peças
orçamentárias passarão a ter esta perspectiva. O Poder Judiciário deve sair na
frente e trilhar este caminho desde já. Eficiência se alcança com administração e
esta se dá em todos os níveis, desde a administração das varas até a administração
do Tribunal.
A participação da alta administração neste processo de mudança
organizacional é salutar. Entrementes, se ainda não conscientes os administradores
desta necessidade, a mudança de atitude deve se operar na base, com as
ferramentas que se tem à disposição, aproveitando-se as oportunidades de
melhoria para, num movimento espiral, atingir a cúpula e, através dos resultados,
convencer acerca da necessária mudança.
O caminho não é retilíneo e único. Longe disso. A caminhada precisa ser
iniciada, sujeita a solavancos, pressões e mudanças de rota, mas em constante
movimento em busca de melhorias. Apesar de comum aos seres humanos a
acomodação, a criticidade de alguns momentos leva ao movimento frenético. E o
momento é crítico para o Poder Judiciário e a mudança premente.
A mudança, entrementes, deve ser refletida e reverter em efetivo
fortalecimento do Poder Judiciário, com o intuito de garantir-se a democracia e a
defesa dos direitos dos cidadãos, inclusive contra abusos do Estado. Dalmo Dallari35
já advertiu sobre a necessidade de que essas mudanças representem o verdadeiro
aperfeiçoamento do Judiciário:
Com isso, pretende-se contribuir para um debate sincero e objetivo
sobre as transformações a serem introduzidas no sistema judiciário,
neste momento em que se fala muito em mudança. É importante que
haja ampla discussão, para que sejam apoiadas as propostas que
representarem verdadeiro aperfeiçoamento. Em sentido contrário,
35
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 7.
Coleção Administração Judiciária
151
deve-se opor firme resistência às que, usando os argumentos da
modernização e dinamização, ignoram que o Judiciário deve ser um
serviço para todo o povo, e querem que prevaleçam cúpulas dóceis e
submissas que procuram neutralizar os juízes, a fim de que eles não se
oponham às investidas injustas dos poderes político e econômico.
A gestão da Vara, com foco nos objetivos estratégicos da instituição, gera
movimento constante em busca da melhoria, propiciando a oxigenação das pessoas
e da estrutura. O movimento alinhado e com propósitos certos é essencial para o
fortalecimento da imagem institucional. A satisfação da sociedade é o fim último
dos serviços prestados pelo Poder Judiciário. Quanto mais satisfeita estivar nossa
sociedade, mais legitimando o Poder Judiciário. Legitimado e forte o Judiciário,
assegurada estará sua independência.
Eliane Garcia Nogueira
152
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Editora Universidade de Brasília, 1992.
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Campus, 2004.
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Consumidor. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
COVEY, Stephen. O 8º Hábito Da Eficácia à Grandeza. Rio de Janeiro: Elsevier.
2005.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva. 1996.
DAVENPORT, Thomas. Reengenharia de Processos. 5 ed. Rio de Janeiro: Campus.
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NOBRE
JÚNIOR,
Edílson
Pereira.
Administração
Pública
e
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Princípio
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2006. p. 50.
Coleção Administração Judiciária
153
PORTO ALEGRE. Consolidação Normativa Judicial. (2007). Disponível em: <
http://www.tj.rs.gov.br/legisla/CNJCGJ_Setembro_2007_Prov_21_2007.pdf>
Acesso em 10 de setembro de 2007.
ROBBINS, Harvey; FINLEY, Micahel: Feedback – comunicação, avaliação mútua e
a manutenção de uma contagem de pontos- é algo poderoso. Um feedback bom
e contínuo é o combustível de uma equipe pronta para se desenvolver. In: Por
que as equipes não funcionam. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
RUMMLER, Geary; PRACHE, Alan P. Melhores Desempenho das Empresas. Makron
Books, 1994.
TAKASHINA, Newton Tadachi. Indicadores da Qualidade e do Desempenho. Rio de
Janeiro: Editora Qualitymark, 1999.
Eliane Garcia Nogueira
154
ANEXOS
ANEXO A: FOTOS
Figura 1: Novo layout da sala de atendimento do Cartório da 3ª Vara Cível, do
Foro da Comarca de Santa Maria-RS
Coleção Administração Judiciária
155
Figura 2: Novo layout do cartório da 3ª Vara Cível do Foro da Comarca de Santa
Maria-RS
156
Eliane Garcia Nogueira
Planejamento Estratégico em
Comarca de Porte Médio – Santa Maria –
Poder Judiciário do Rio Grande do Sul
VANDERLEI DEOLINDO
158
Vanderlei Deolindo
159
RESUMO
DEOLINDO, Vanderlei. Planejamento Estratégico em Comarca de Porte Médio –
Santa Maria – Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Monografia. Fundação Getúlio
Vargas – Direito Rio – Projeto de Mestrado em Administração Judiciária – Porto
Alegre, RS, 2007.
Numa exposição prático-teórica, o autor explica a realização de um Planejamento
Estratégico em uma Comarca de porte médio do Poder Judiciário do Rio Grande do
Sul, em Santa Maria, cidade com cerca de 300.000 habitantes, localizada a 300 km
de Porto Alegre, na Região Central do Estado. Depois de explicar a estrutura
jurisdicional e administrativa do Poder Judiciário e da Justiça local, a partir de
conceitos teóricos, destaca a importância do processo de elaboração de um
Planejamento Estratégico pelas Direções de Foro, analisando os cenários, os pontos
fortes e pontos fracos da organização, oportunidades e ameaças do meio ambiente,
de forma a estabelecer objetivos estratégicos, indicadores e ações que contribuem
para a melhoria da eficiência dos serviços judiciários prestados à Sociedade. Busca
anotar que a legitimação do Poder Judiciário como Poder de Estado decorre da
qualidade dos serviços alcançados aos usuários e jurisdicionados, representados por
resultados firmados em indicadores seguros, visando ao aumento da credibilidade
da justiça, a qualidade de vida no trabalho das pessoas da organização e,
consequentemente, o combate à morosidade judicial.
Palavras-chaves: Planejamento Estratégico. Poder Judiciário. Direção do Foro.
Comarca de porte médio. Santa Maria. Rio Grande do Sul.
mediação; arbitragem.
160
Vanderlei Deolindo
Coleção Administração Judiciária
161
1 INTRODUÇÃO
1.1 OBJETIVOS
1.1.1 OBJETIVO GERAL
Analisar o Planejamento Estratégico elaborado na Direção do Foro da
Comarca de Santa Maria, RS, com vistas a servir de referência para as Comarcas de
porte médio do Poder Judiciário.
1.1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1)
Evidenciar a importância de uma mudança de cultura, voltada para o
desenvolvimento de técnicas gerenciais visando à eficiência dos serviços
prestados à sociedade;
2)
Destacar a necessidade de se exercer a liderança de pessoas, como fator
fundamental para o processo de mudança;
3)
Relacionar as práticas gerenciais da Comarca de Santa Maria com as
recomendações dos critérios do Programa Nacional de Gestão Pública e
Desburocratização - GESPÚBLICA;
4)
Ressaltar a importância da gestão estratégica como instrumento de mudança,
particularmente no que tange à internalização de valores para a “organização
do comportamento das pessoas e, portanto, dos resultados”, desse modo
facilitando o alinhamento de esforços e, por conseqüência, do crescimento
do vetor resultante;
5)
Identificar a análise do Planejamento Estratégico realizado na Comarca de
Santa Maria-RS;
6)
Propor ações complementares para a formação do sistema de Planejamento
Estratégico.
Vanderlei Deolindo
162
1.2 O PODER JUDICIÁRIO E SUA ADMINISTRAÇÃO:
Esse tópico mostra-se importante especialmente àqueles que desconhecem
a estrutura da Justiça Brasileira. Aos operadores e estudantes do direito,
certamente se afigura elementar, porém necessário para que na sequência se
avance na identificação das dificuldades administrativas que interferem na
eficiência dos serviços prestados pelo sistema judicial. Nessa linha, verifica-se que
o Poder Judiciário constitui-se em Poder de Estado, conforme
o art. 2º. da
Constituição Federal. O art. 92 da mesma Carta Magna estabelece que são órgãos
do Poder Judiciário: I- o Supremo Tribunal Federal; I-A- o Conselho Nacional de
Justiça; II- o Superior Tribunal de Justiça; III- os Tribunais Regionais Federais e os
Juízes Federais; IV- os Tribunais e Juízes do Trabalho; V- os Tribunais e Juízes
Eleitorais; VI- os Tribunais e Juízes Militares; VII- os Tribunais e Juízes dos Estados
e do Distrito Federal e dos Territórios.
Ao Supremo Tribunal Federal compete processar e julgar as matérias
previstas no art. 102 da Constituição Federal. Ao Conselho Nacional de Justiça
compete o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do
cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, ainda, o exercício das
atribuições previstas no parágrafo terceiro do art. 103-B da Constituição Federal.
Já ao Superior Tribunal de Justiça compete processar e julgar as matérias previstas
no inciso I do art. 105 da Constituição Federal. Aos Tribunais e Juízes Federais
compete processar e julgar as matérias previstas nos arts. 108 e 109 da
Constituição Federal, respectivamente.
Aos Tribunais e Juízes do Trabalho,
compete processar e julgar as causas previstas no art. 114 da Constituição Federal.
Aos Tribunais e Juízes Eleitorais compete processar e julgar matérias de natureza
eleitoral, definidas em lei, segundo o art. 121 da Constituição Federal. Aos
Tribunais e Juízes Militares compete processar e julgar os crimes militares
definidos em lei, segundo o art. 124 da Constituição Federal.
Finalmente, os Tribunais e Juízes dos Estados, segundo o art. 125 da
Constituição Federal, são competentes para processar e julgar todas as demais
Coleção Administração Judiciária
163
matérias não abarcadas pelas justiças antes mencionadas, nos termos dos arts. 94 e
95 da Constituição Estadual e o Código de Organização Judiciária local.
Nota-se, assim, que o Poder Judiciário Brasileiro é de caráter nacional,
sendo os processos distribuídos segundo competências previstas na Constituição
Federal.
Não há vínculo de
subordinação hierárquica,
jurisdicional
ou
administrativa entre as Justiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar ou dos
Estados. Apenas são organizadas individualmente, nos termos da Constituição
Federal.
Consoante o art. 99 da Constituição Federal, ao Poder Judiciário é
assegurada autonomia administrativa e financeira. A administração do Poder
Judiciário, portanto, dentro das respectivas estruturas e nos dois graus da Justiça
dos Estados, se desenvolve com autonomia e independência, realizada pelos
próprios Juízes, segundo modelos empíricos de gestão.
Importa esclarecer que os Diretores de Foro, na Justiça Estadual, em
regra, se esforçam para executar as atribuições mencionadas no art. 74 do COGE,
adiante destacado, garantido ao Tribunal de Justiça a centralização dos demais
serviços e políticas administrativas.
As gestões dos Foros são conduzidas, em geral, com denodo e respeito aos
interesses públicos, própria da formação moral e jurídica dos magistrados em geral,
particularmente os que ocupam os cargos de administração. Merece realce esse
particular, pois as críticas ao Poder Judiciário nos últimos anos têm sido tão
intensas que parece que a organização vem sendo muito mal gerida.
Não é
verdade. Dos serviços públicos prestados à população brasileira, os oferecidos pela
Justiça ainda são dos de melhor qualidade.
Reclama-se muito da morosidade,
problema maior como já referido, porém, entre outras causas, decorrente de um
sistema processual obsoleto para a realidade do momento, fruto de um sistema
legislativo multiplicador de freios na agilização da Justiça, com algumas exceções
nos últimos tempos, e de um Poder Executivo reiteradamente descumpridor de
obrigações sociais estabelecidas na Constituição e nas Leis, resistente ao
cumprimento das decisões judiciais e campeão de litigiosidade em todos os níveis
da Justiça Brasileira. Esse sistema submete forçosamente o Poder Judiciário, o
Vanderlei Deolindo
164
Ministério Público, a Advocacia e outros órgãos auxiliares da Justiça, como as
Polícias Civil e Militar, a uma série de entraves jurídicos que alongam
demasiadamente os processos.
Ao Poder Judiciário, no pleno exercício de sua autonomia administrativa,
compete gerir a sua parcela de culpa para a morosidade, combatendo-a através de
melhorias constantes visando a melhorar a eficiência na prestação dos serviços.
Essa legiferação exacerbada, associada à reiterada litigiosidade e frequente
descumprimento de decisões pelo próprio poder público, bem evidencia a
imperiosidade de se manter a independência administrativa e financeira do Poder
Judiciário, destacando a sua condição de Poder de Estado (não de governo) voltado
à defesa dos interesses sociais, vinculado aos interesses dos dirigentes de
momento.
Como bem ensina Luiz Flávio Gomes1, em sua obra “A Dimensão da
Magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito”, editora Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1997: “A secular tradição de colocar a Administração da
Justiça ao lado da ação administrativa governamental deve ser substituída
radicalmente pela idéia de total autonomia administrativa e financeira de cada um
dos poderes públicos, permitindo-se com isso, já muito tardiamente, a
concretização real da base lógica e racional da doutrina da separação dos poderes
que consiste na possibilidade efetiva (não só formal) de um controle recíproco
entre eles”.
Consolidando essa independência administrativa e financeira, firmado nos
Princípios Constitucionais da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e
Eficiência, estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal, a Justiça da Comarca
de Santa Maria, RS, está procurando melhorar continuamente a eficiência dos
serviços prestados à sociedade, como adiante será destacado.
No Estado gaúcho, o Poder Judiciário é dividido em dois graus. O primeiro
grau é subdividido em Comarcas, que corresponde a um ou mais municípios,
conforme o Código de Organização Judiciária, nos termos do art. 2º, 3º e 4º., do
Código de Organização Judiciária, in verbis:
1
GOMES, Luiz Flávio, A Dimensão da Magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito,
1ª. Ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 83.
Coleção Administração Judiciária
165
Art. 2° O território do Estado, para os efeitos da administração da Justiça
comum, divide-se em distritos, municípios, comarcas e comarcas integradas.
§ 1° Cada comarca, que será constituída de um ou mais municípios, terá a
denominação do município onde estiver sua sede.
§ 2° O Tribunal de Justiça, para os efeitos de comunicação de atos
processuais e de realização de diligências e atos probatórios, poderá reunir duas ou
mais comarcas para que constituam uma comarca integrada, desde que próximas as
sedes municipais, fáceis as vias de comunicação e intensa a movimentação
populacional entre as comarcas contíguas. O Conselho da Magistratura, por ato
normativo, disciplinará a matéria.
§ 3° A comarca de Porto Alegre, para os efeitos da divisão judiciária e
distribuição, compreende o Foro Centralizado e os Foros Regionais, estes com a
competência prevista no art. 84, XIV e XV, e com jurisdição sobre a área delimitada
por ato do Conselho da Magistratura.
§ 4° Em cada comarca far-se-á, em livro próprio, o registro de sua
instalação, da entrada em exercício e afastamento definitivo dos Juízes, bem como
de outros atos relativos ao histórico da vida judiciária, enviando-se cópias dos atos
ao Tribunal de Justiça.
Art. 3° A criação de novas comarcas dependerá da ocorrência dos
seguintes requisitos:
a) população mínima de vinte (20) mil habitantes, com cinco (5) mil
eleitores na área prevista para a comarca;
b) volume de serviço forense equivalente, no mínimo, a trezentos (300)
feitos, ingressados anualmente;
c) receita tributária mínima igual à exigida para a criação de municípios
no Estado.
Parágrafo único. O desdobramento de juízos, ou a criação de novas varas,
poderá ser feito por proposta do Tribunal de Justiça, quando superior a seiscentos
(600) o número de processos ajuizados anualmente.
Art. 4° As comarcas são classificadas em três entrâncias (o número de
entrâncias foi reduzido pela Lei n° 8.838/89), de acordo com o movimento
Vanderlei Deolindo
166
forense, densidade demográfica, rendas públicas, meios de transporte, situação
geográfica e outros fatores sócio-econômicos de relevância.
§ 1° A classificação das comarcas do Estado é a que consta do Quadro
Anexo n° 1, com a indicação dos municípios que as integram.
§ 2° As comarcas de difícil provimento serão fixadas por ato do Conselho
da Magistratura, fazendo jus à gratificação de 15% (quinze por cento) sobre o
vencimento de seu cargo os magistrados no exercício da função (redação dada pela
Lei n° 11.848/2002).
§ 3º O Conselho da Magistratura revisará anualmente, no primeiro
trimestre, a lista das comarcas de difícil provimento, sem prejuízo da possibilidade
de alteração a qualquer momento, havendo interesse da administração ( § 3º
acrescentado pela Lei n° 11.848/2002).
O segundo grau de jurisdição é constituído pelo Tribunal de Justiça,
composto por 125 Desembargadores, competente para processar e julgar as
matérias previstas no art. 95 da Constituição Estadual, em especial os recursos
advindos das decisões proferidas no Primeiro grau.
As Comarcas do Estado do Rio Grande do Sul são gerenciadas pelos
Diretores de Foro, Magistrados que atendem à jurisdição dos milhares de processos
que tramitam em suas Varas, em média 4.500, segundo o Relatório Anual do TJRS2,
aliado a múltiplas atribuições na Direção do Foro, essas preponderantemente de
caráter administrativo, previstas no art. 74 do Código de Organização Judiciária,
que pela importância do tema merece transcrição integral:
Art. 74. Aos Juízes de Direito, no exercício da Direção do Foro, compete
privativamente:
I - apreciar os pedidos de homologação de acordos extrajudiciais,
independentemente de prévia distribuição e de termo, para constituição de título
executivo judicial (Lei Federal n° 7.244, de 07.11.84, art. 55);
II - designar, quando for o caso, servidor para substituir o titular de outro
serviço ou função ou para exercer, em regime de exceção, as atribuições que lhes
forem conferidas;
2
Relatório Estatístico Anual do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, dezembro de 2005, p. 179.
Coleção Administração Judiciária
167
III - organizar a escala de substituição dos Juízes de Paz, dos Oficiais de
Justiça e, ainda, dos Escrivães que, fora do expediente normal, devam funcionar
nos pedidos de habeas-corpus;
IV - abrir, numerar, rubricar e encerrar os livros de folhas soltas dos ofícios
da Justiça, proibido o uso de chancela; nas comarcas providas de mais de uma
vara, esta atribuição competirá a todos os Juízes, mediante distribuição;
V - visar os livros e autos findos que devam ser recolhidos ao Arquivo
Público;
VI - tomar quaisquer providências de ordem administrativa, relacionadas
com a fiscalização, disciplina e regularidade dos serviços forenses, procedendo,
pelo menos anualmente, à inspeção nos cartórios;
VII - requisitar, aos órgãos policiais, licenças para porte de arma,
destinadas aos serviços da Justiça;
VIII - cumprir as diligências solicitadas pelas Comissões Parlamentares de
Inquérito, desde que autorizadas pelo Presidente do Tribunal de Justiça;
IX - atender ao expediente forense e administrativo e, no despacho dele:
a) mandar distribuir petições iniciais, inquéritos, denúncias, autos,
precatórias, rogatórias e quaisquer outros papéis que lhes forem encaminhados e
dar-lhes o destino que a lei indicar;
b) rubricar os balanços comerciais na forma da Lei de Falências;
c) expedir alvará de folha-corrida, observadas as prescrições legais;
d) praticar os atos a que se referem as leis e regulamentos sobre serviços
de estatística;
e) aplicar, quando for o caso, aos Juízes de Paz e servidores da Justiça, as
penas disciplinares cabíveis;
f) gerir as verbas que forem autorizadas à comarca, destinadas a despesas
pequenas de pronto pagamento e gastos com material de consumo, serviços e
outros encargos, prestando contas à autoridade competente;
X - processar e julgar os pedidos de Justiça gratuita, formulados antes de
proposta a ação;
Vanderlei Deolindo
168
XI - designar servidor da Justiça para conferir e consertar traslados de
autos para fins de recurso;
XII - dar posse, deferindo o compromisso, aos Juízes de Paz, suplentes e
servidores da Justiça da comarca, fazendo lavrar ata em livro próprio;
XIII - atestar, para efeito de percepção de vencimentos, a efetividade
própria e a dos Juízes de Direito das demais varas, dos Pretores e dos servidores da
Justiça da comarca;
XIV - indicar para efeito de nomeação, Juízes de Paz e suplentes, por
intermédio do Tribunal de Justiça;
XV - conceder férias aos servidores da Justiça, justificar-lhes as faltas,
decidir quanto aos pedidos de licença, até trinta (30) dias por ano e informar os de
maior período;
XVI - expedir provimentos administrativos;
XVII - requisitar o fornecimento de material de expediente, móveis e
utensílios necessários ao serviço judiciário;
XVIII - determinar o inventário dos objetos destinados aos serviços da
Justiça da comarca, fazendo descarregar os imprestáveis e irrecuperáveis, com a
necessária comunicação ao órgão incumbido do tombamento dos bens do Poder
Judiciário;
XIX - propor a aposentadoria compulsória dos Juízes de Paz e dos
servidores da Justiça;
XX - requisitar por conta da Fazenda do Estado, passagens e fretes nas
empresas de transporte para servidores da Justiça, em objeto de serviço, bem
como para réus ou menores que devam ser conduzidos;
XXI - comunicar, imediatamente, à Corregedoria-Geral da Justiça, a
vacância de cargos ou serventias da Justiça;
XXII - remeter, anualmente, no primeiro trimestre, ao Conselho da
Magistratura, relatório do movimento forense e da vida funcional dos servidores da
Justiça na comarca, instruindo-o com mapas fornecidos pelos cartórios;
XXIII - solicitar, ao Conselho da Magistratura, a abertura de concursos para
o provimento dos cargos de Justiça da comarca, presidindo-os;
Coleção Administração Judiciária
169
XXIV - nomear servidor ad hoc nos casos expressos em lei;
XXV - providenciar na declaração de vacância de cargos;
XXVI - opinar sobre o estágio probatório dos servidores, com antecedência
máxima de cento e vinte (120) dias;
XXVII - opinar sobre pedido de licença de servidores para tratar de
interesses particulares e concedê-la até trinta (30) dias, em caso de urgência,
justificando a concessão perante o Presidente do Tribunal de Justiça;
XXVIII - cassar licença que haja concedido;
XXIX - verificar, mensalmente, o cumprimento de mandados, rubricando o
livro competente;
XXX - comunicar ao Conselho da Magistratura a imposição de pena
disciplinar;
XXXI - presidir as Comissões de Inquérito, quando designado, e proceder a
sindicâncias;
XXXII - fiscalizar os serviços da Justiça, principalmente a atividade dos
servidores, cumprindo-lhe coibir que:
a) residam em lugar diverso do designado para sede de seu ofício;
b) se ausentem, nos casos permitidos em lei, sem prévia transmissão do
exercício do cargo ao substituto legal;
c) se afastem do serviço, durante as horas de expediente;
d) descurem a guarda, conservação e boa ordem que devem manter com
relação aos autos, livros e papéis a seu cargo, onde não deverão existir borrões,
rasuras, emendas e entrelinhas não ressalvados;
e) deixem de tratar com urbanidade as partes ou de atendê-las com
presteza e a qualquer hora, em caso de urgência;
f) recusem aos interessados, quando solicitarem, informações sobre o
estado e andamento dos feitos, salvo nos casos em que não lhes possam fornecer
certidões, independentemente de despacho;
g) violem o sigilo a que estiverem sujeitas as decisões ou providências;
h) omitam a cota de custas ou emolumentos à margem dos atos que
praticarem, nos próprios livros ou processos e nos papéis que expedirem;
Vanderlei Deolindo
170
i) cobrem emolumentos excessivos, ou deixem de dar recibo às partes,
quando se tratar de cartório não oficializado, ainda que estas não o exijam, para o
que devem manter talão próprio, com folhas numeradas;
j) excedam os prazos para a realização de ato ou diligência;
l) deixem de recolher ao Arquivo Público os livros e autos findos que
tenham sido visados para tal fim;
m) neguem informações estatísticas que lhes forem solicitadas pelos
Órgãos competentes e não remetam, nos prazos regulamentares, os mapas do
movimento de seus cartórios;
n) deixem de lançar em carga, no protocolo, os autos entregues a Juiz,
Promotor ou advogado;
o) freqüentem lugares onde sua presença possa afetar o prestígio da
Justiça;
p) pratiquem, no exercício da função ou fora dela, atos que comprometam
a dignidade do cargo;
q) negligenciem, por qualquer forma, no cumprimento dos deveres do
cargo;
XXXIII - efetuar, de ofício ou por determinação do Corregedor-Geral, a
correição nos serviços da comarca, da qual remeterá relatório à Corregedoria,
juntamente com os provimentos baixados, depois de lavrar, no livro próprio, a
súmula de suas observações, sem prejuízo das inspeções anuais que deverá
realizar;
XXXIV - solucionar consultas, dúvidas e questões propostas por servidores,
fixando-lhes orientação no tocante à escrituração de livros, execução e
desenvolvimento dos serviços, segundo as normas gerais estabelecidas pela
Corregedoria-Geral da Justiça;
XXXV - conhecer e decidir sobre a matéria prevista no inciso VII, primeira
parte, do artigo anterior;
XXXVI - exercer outras atribuições que lhes forem conferidas em lei ou
regulamento.
Coleção Administração Judiciária
171
Parágrafo único. O Juiz de Direito Diretor do Foro poderá delegar parte
das atribuições acima previstas a outro magistrado. A delegação, acompanhada de
concordância do magistrado indicado, será submetida ao Corregedor-Geral da
Justiça (introduzido pela Lei n° 10.720/96).
1.3 A JUSTIFICATIVA PARA A REALIZAÇÃO DE UM PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO:
Analisando o âmbito geral do Poder Judiciário Estadual frente ao cenário
nacional e internacional, uma pergunta resume bem uma preocupação futura: Para
aonde estamos indo? Qual o caminho a percorrer, considerando tantas adversidades
que estão ocorrendo nos últimos tempos? Como estará o Poder Judiciário daqui a
dez, quinze ou vinte anos? O número de processos ajuizados aumenta aos milhares
a cada dia, as pessoas estão exercendo a cidadania como jamais outrora, demandas
de massa, direitos do consumidor, criminalidade e sentimento de impunidade
crescente, ordens judiciais descumpridas, sobretudo os precatórios, funcionários
desmotivados pela ausência de Plano de Carreira, ausência de uma política de
comunicação que demonstre à população em geral o trabalho incessante do Poder
Judiciário,
credibilidade
questionada
perante
a
opinião
pública,
Lei
de
Responsabilidade Fiscal freando a capacidade de investimento da Organização
eminentemente composta de pessoas, aliado a proibição constitucional de
privatização de Varas, sistemáticas dificuldades políticas junto ao Poder Executivo
Estadual para definição orçamentária, comprometendo a independência e
autonomia do Poder Judiciário. Enfim, qual o Planejamento Estratégico para os
próximos anos que a Alta Administração do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul
reserva para os membros da organização e para a sociedade? Existe a possibilidade
de uma pausa para refletir-se conjuntamente esses assuntos? Esse tema é
considerado prioridade?
São perguntas que ainda não encontram respostas.
Lamentavelmente, a várias gestões, as “soluções” estão sendo desenvolvidas no
calor dos acontecimentos, de acordo com o entendimento dos gestores do
Vanderlei Deolindo
172
momento, leia-se, sem planejamento estratégico elaborado com a ampla
participação dos membros da organização.
A forma ideal de um Planejamento Estratégico é que ele seja desenvolvido
a partir da Alta Administração do Poder Judiciário Estadual.
Estabelecidos os
objetivos estratégicos, as Diretorias do Tribunal e as Comarcas passam a alinhar os
seus em conformidade com os do escalão superior. É o estabelecimento top down,
sem perder de vista que o processo de comunicação deve se dar nos quatro
sentidos. A fragilidade de estratégias macro é uma das grandes dificuldades do
Judiciário.
Diante da inexistência de direcionadores estratégicos no âmbito
estadual, a Comarca de Santa Maria passou a definir os seus,
Então, voltando ao plano de uma Comarca de porte médio, enquanto não
acontece o Planejamento Estratégico de iniciativa da cúpula do Poder Judiciário
Estadual, nota-se que são imensas as dificuldades enfrentadas pelos Magistrados
para conciliar as funções jurisdicionais e bem desempenhar as atribuições
administrativas
antes
mencionadas,
além
de
outras
sugeridas
pela
boa
administração pública, em especial o Programa Nacional de Gestão Pública e
Desburocratização – GESPÚBLICA3, elaborado pela Secretaria de Gestão do
Ministério do Planejamento, cujos princípios ainda não foram contempladas no
Código de Organização Judiciária.
O modelo gerencial geralmente adotado é empírico, “a posteriori”, como
ensina Kant em sua Obra “Os Pensadores”4, ou seja, baseado na experiência
pessoal de Magistrados que desenvolvem esforços para administrar os serviços
prestados pelas pessoas da organização. Salvo raras exceções, o gerenciamento
por um ano, prorrogável por mais um, que é o mandato de Diretor de Foro, é
desatrelado de técnica de gestão que permita uma melhor eficiência na prestação
dos serviços à população. Há uma dependência à centralização tradicionalmente
exercida pelo Tribunal de Justiça, não há política de valorização de pessoas, de
enfrentamento das dificuldades relativas aos problemas de infra-estrutura, a
3
4
Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização – GESPÚBLICA, edição 2007, Brasília-DF,
editado pela Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento.
KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Vol I, tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger, 4ª.
ed., São Paulo, Nova Cultural, 1991, p. 25.
Coleção Administração Judiciária
173
comunicação interna e externa se apresenta precária, não há gerenciamento dos
processos de trabalho e a integração com a sociedade se mostra deficiente.
Essas constatações verteram do Planejamento Estratégico que está sendo
realizado na Comarca de Santa Maria, RS. A sobrecarga de trabalho e o curto
mandato dos Diretores de Foro, aliados à falta de formação gerencial e a até então
costumeira desmobilização das lideranças, fizeram com que os Magistrados e
Servidores desenvolvessem uma gestão compartilhada que se estendesse no tempo,
envolvendo um cada vez maior número de pessoas com consciência de que é
preciso pensar antes de agir, e pensar além dos mandatos dos gestores do
momento.
O quadro de dificuldades que vigia até meados de 2003, e que vem
melhorando continuamente, somado à experiência que as pessoas da referida
Comarca vem passando, justifica a abordagem voltada ao presente estudo.
A elaboração de um Planejamento Estratégico evidencia a preocupação da
Comarca em tornar-se melhor olhando para o futuro. Aproveita-se de experiências
e ensinamentos desenvolvidos no setor privado, aplicando-os ao setor público, já
pensando em possível concorrência que se avizinha e, sobretudo, visando a prestar
melhores serviços à população que mantém a estrutura através de impostos. A
análise sistemática dos pontos fortes e fracos da organização e das oportunidades e
ameaças do meio ambiente, de forma a estabelecer objetivos estratégicos,
indicadores e ações que possibilitem, no caso do Poder Judiciário, o aumento do
grau de satisfação da sociedade, tornam o Planejamento Estratégico um
importante instrumento para a construção de um Judiciário melhor para todos,
mais eficiente em favor da Sociedade.
Segundo Idalberto Chiavenatto e Arão Sapiro, citando Drucker, na Obra
“Planejamento Estratégico – Fundamentos e Aplicações”5, ensinam que “O
Planejamento
estratégico
é
um
processo
de
formulação
de
estratégias
organizacionais no qual se busca a inserção da organização e de sua missão no
ambiente em que ela está atuando. Para Drucker, “planejamento estratégico é o
5
CHIAVENATTO, Idalberto, e SAPIRO, Arão, Planejamento Estratégico – Fundamentos e Aplicações ,
Elsevier editora Ltda, 6ª. Tiragem, Rio de Janeiro, 2004, p. 39.
Vanderlei Deolindo
174
processo contínuo de, sistematicamente e com o maior conhecimento possível do
futuro
contido,
tomar
decisões
atuais
que
envolvem
riscos;
organizar
sistematicamente as atividades necessárias à execução dessas decisões e, através
de uma retroalimentação organizada e sistemática, medir o resultado dessas
decisões em confronto com as expectativas alimentadas.”
A elaboração do Planejamento Estratégico, com o envolvimento do maior
número possível de pessoas, contribui para a identificação de uma série de
problemas e alternativas visando a soluções, em especial evidencia a necessidade
de ações voltadas ao desenvolvimento eficiente da gestão, que começa com uma
mudança de cultura acerca da missão da Magistratura e dos Servidores da Justiça
que compõem a estrutura organizacional.
Coleção Administração Judiciária
175
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 A COMARCA DE SANTA MARIA – RS
2.1.1 LOCALIZAÇÃO E ESTRUTURA
Localizada na região central do Estado do Rio Grande do Sul, a Comarca de
Santa Maria abrange os municípios de Santa Maria, com cerca de 258.834
habitantes, Itaara, com 5.103 habitantes, São Martinho da Serra, com 3.272, e
Silveira Martins, com cerca de 2.332 habitantes6.
Na cidade de Santa Maria, além
da Justiça Estadual, estão localizadas a Justiça Federal, a Justiça Militar Federal, a
Justiça Militar Estadual, e a Justiça do Trabalho. Também existe um Tribunal de
Arbitragem, estabelecido há mais de 10 anos, onde tramitam cerca de 2.500
processos, atendidos por 8 árbitros. Atuam na Comarca cerca de 1.500 advogados,
segundo informação prestada pela Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil.
No Poder Judiciário Estadual tramitam mais de 70.000 ações, sendo que
mais de 40.000 só nas quatro Varas Cíveis7. São as causas denominadas comuns,
crimes em geral, execuções criminais, atos infracionais, questões de família,
inventários e arrolamentos, questões tributárias envolvendo o Estado e Municípios
da Comarca, ações indenizatórias, cobranças, despejos e tantas outras envolvendo
o interesse de particulares. O número de processos que tramita na Justiça Estadual
corresponde a cinco vezes mais do que a soma de todas as justiças antes
mencionadas, conforme informações repassadas pelas respectivas Justiças neste
mês de setembro de 2007.
O Foro da Justiça Estadual está localizado em um prédio de sete andares,
na esquina das Alamedas Buenos Aires e Montevidéu, Bairro Nossa Senhora das
Dores.
Trabalham no Foro 17 Magistrados, sendo 13 Juízes de Direito e 04
Pretores, além de 150 servidores. Somam-se, ainda, cerca de mais 150 pessoas,
entre estagiários remunerados, não remunerados e profissionais voluntários, de
6
7
Resumo Estatístico do Rio Grande do Sul, publicado pela FEE - Fundação de Economia e Estatística,
Porto Alegre, RS, 19 de setembro de 2007
Relatório Anual da Comarca de Santa Maria, edição 2006, Direção do Foro.
Vanderlei Deolindo
176
diversas áreas do conhecimento, que atuam em programas de responsabilidade
social.
2.1.2 SITUAÇÃO CRÍTICA - PROBLEMAS
Até meados do ano de 2003, a Direção do Foro vinha sendo exercida por
somente um Magistrado, nos termos do Código de Organização Judiciária., modelo
até hoje adotado na grande maioria das Comarcas de porte médio do Estado. Ao
Diretor do Foro, como destacado no final do item
1.1, além do exercício das
funções jurisdicionais próprias da Vara em que continuava lotado, competia-lhe
exercer as múltiplas atribuições administrativas. Nessa condição, acompanhado de
quatro servidores, cabia-lhe processar e julgar os feitos de competência da Direção
do Foro, como notificações e contra-notificações, retificações de registros
imobiliários e de registros civis, processamento de cartas precatórias, investigações
de paternidade oficiosas, dirimir os conflitos inter-pessoais comuns de uma
organização onde trabalham mais de 300 pessoas, processar e julgar procedimentos
administrativos relativos a hierarquia e disciplina, e, ainda, era responsável pela
administração de todos os serviços prestados à população, inclusive os das Varas
onde continuava atuando, responsável por toda a jurisdição.
As dificuldades eram imensas, pois era humanamente impossível exercer
com eficiência tantas atribuições, repita-se, somado às funções jurisdicionais da
Vara onde continuava atuando, despachando milhares de processos, proferindo
centenas de decisões interlocutórias e sentenças todos os meses, além da
realização de audiências com a oitiva de dezenas de pessoas, somado ao
atendimento diário de partes e advogados.
Essas dificuldades contribuíam para a ineficiência dos serviços em geral.
Cada Vara adotava procedimentos próprios de atendimento ao público, de
encadeamento dos processos de trabalho, não havia o costume de realizar reuniões
ordinárias dos setores nem entre os setores de trabalho para compartilhamento de
experiências . A comunicação interna era precária, sendo raras as situações onde
Magistrados se reuniam com servidores para identificar os problemas enfrentados
Coleção Administração Judiciária
na prestação dos serviços.
177
Pouco ou quase nada se sabia do que estava sendo
realizado por outras Varas da mesma Comarca. O interrelacionamento precário
entre Magistrados e servidores, e entre os próprios servidores, se refletia no
relacionamento com o público externo. Não havia política de comunicação.
A
relação com a imprensa era limitada. A representação da Comarca nos eventos
sociais
ocorria
eventualmente,
sendo
Magistrados a eventos importantes.
comum
o
não-comparecimento
de
Quase tudo era motivo para reclamações
generalizadas, atribuindo-se as culpas ao Tribunal de Justiça. No aspecto
disciplinar, eram comuns atrasos exagerados, de vários meses até mais de ano, no
cumprimento de mandados por alguns oficiais de Justiça.
Eram intimados para
informar o não-cumprimento, e não sobrevinha qualquer certidão, ou era lavrada
uma certidão generalizada, sem maiores dados, em flagrante evidência de que o
serviço estava sendo mal feito ou não estava sendo feito. Chegou-se ao cúmulo de
um Oficial de Justiça ser preso em flagrante diante do desatendimento de ordem
judicial para justificar o não-cumprimento de mandado após meses com o mandado
em carga. Alguns servidores não atendiam a convocações para reuniões,
demonstrando absoluto desleixo ao cumprimento das ordens superiores. Atuavam
na Direção do Foro somente os servidores rejeitados pelas Varas, que não
trabalhavam bem nos Cartórios, constituindo-se a Direção num “sumidouro”8 de
maus funcionários. Os métodos de trabalho eram realizados como sempre foram,
havendo uma resistência marcante em relação a mudanças, enfim, o quadro era
extremamente preocupante.
2.2 O PRINCÍPIO: LIDERANÇA E VONTADE PARA MUDAR
Qualquer processo de mudança que se estabeleça em uma organização não
prescinde da liderança da pessoa ou pessoas que dela fazem parte. O sistema
judicial, com base na Constituição Federal e na Lei, confere aos seus Juízes o papel
de gestores das Varas onde atuam, dos Foros em que são Diretores, ou ainda dos
8
Expressão militar que corresponde a um buraco profundo cavado dentro de uma trincheira para jogar
eventuais granadas que sejam lançadas pelo inimigo antes dos segundos que antecedem a explosão.
Vanderlei Deolindo
178
Tribunais de Justiça onde são Presidentes, como é o caso do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, onde o Presidente é eleito pelos demais Desembargadores para
um mandato de dois anos.
Em nenhum dos casos a Constituição Federal, Leis ou
regulamentos exigem ou apresentam fórmula para estimular ou transformar os
gestores em líderes, até porque essa qualidade depende em muito da consciência
do próprio gestor, do seu grau de comprometimento frente aos destinatários dos
serviços prestados, a accountability, associada à adoção de critérios de prestação
de contas.
A liderança constitui-se em atributo inarredável em qualquer organização
de sucesso, seja pública ou privada. E nesse particular, importa registrar que se foi
a época em que se considerava líder aquele que dispunha de poder para subjugar
os demais, ou mesmo a associação a grandes personalidades da história. Menos
ainda a liderança advém de dimensão mágica, de que a utilização hábil de algumas
qualidades inatas é capaz de transformar pessoas, chefes ou dirigentes, em grandes
e respeitáveis líderes.
Segundo o Professor Paulo Roberto Motta9, em seu curso Formação de
Liderança, “Líderes são pessoas comuns que aprendem habilidades comuns, mas
que no seu conjunto formam uma pessoa incomum.
O exercício efetivo da
liderança pouco ou nada tem a ver com o domínio de habilidades raras; as
habilidades de liderança podem ser apreendidas pelo ensinamento e pela
experiência de vida”.
Essa referência ao Eminente Professor merece destaque objetivando
teorizar algumas linhas relativas à liderança, qualidade essencial que pode ser
desenvolvida por pessoas comuns, desde que estejam dispostas a melhorar o
ambiente onde vivem e trabalham.
Maior relevo assume o tema quando se relaciona com os atributos que se
espera da Magistratura, distanciando-se do conceito tradicional, pois se foi a época
em que o Magistrado ficava adstrito à jurisdição, processando e julgando os seus
processos em Gabinete. Muito se houve que o papel de “administrar os processos e
9
MOTTA, Paulo Roberto, Formação de Liderança, Apostila do Projeto de Mestrado Profissional em Poder
Judiciário, Rio Grande do Sul, 2006, p. 89.
Coleção Administração Judiciária
179
os cartórios é do Escrivão, cabendo ao Juiz apenas cuidar de suas audiências, seus
despachos e sentenças”. Outras vezes não se houve, mas se vê essa prática,
evidenciando um equívoco silencioso que compromete a eficiência dos serviços
prestados pelo Poder Judiciário, responsabilidade inarredável de todas as pessoas
que compõem a organização, em especial de seus Juízes, dirigentes e membros de
Poder de Estado.
Anda nesse rumo as palavras do Eminente Magistrado Renato Nalini, em
sua Obra “A Rebelião da Toga”10, quando, ao desenvolver reflexões a cerca do
julgador do século XXI, ensina que “ousaria acrescentar que o tecnicismo jurídico
já se encontra superado e que o juiz em exercício deveria municiar-se,
prioritariamente, de técnicas de gestão para melhor servir-se do aparato
legislativo, doutrinário e jurisprudencial com que o sistema o proveu.”
E voltado para uma gestão norteada pela Liderança, o Professor Paulo
11
Motta
ainda ensina que “os dirigentes devem adotar a perspectiva de conhecer,
ouvir e prestar atenção à opinião e à experiência de outros; ampliar os horizontes
mentais participando, lendo e conversando não só assuntos diretamente
relacionados ao trabalho, mas também a outros temas capazes de provocar a
curiosidade e ajudar a desenvolver a perspectiva globalista e de interdependência
dos problemas administrativos.
É preciso, ainda, avaliar a própria experiência,
para retirar dela ensinamentos tão ou mais preciosos do que os aprendidos nos
textos da experiência alheia. A habilidade da liderança se desenvolve na medida
em que o dirigente permite que novas idéias penetrem e amadureçam em sua
mente.”
Seguindo o entendimento de que a liderança é uma função gerencial,
naturalmente se conclui que a eficácia da gerência depende em parte do exercício
efetivo da liderança. Objetivando concentrar a atenção na tentativa de propor
alternativas de comportamento que transformem dirigentes em líderes, o mesmo
Professor sintetiza seis proposições:
10
11
NALINI, José Renato, A Rebelião da Toga, 1ª. ed. , Campinas, São Paulo, Millennium Editora, 2006, p.
167.
MOTTA, Paulo Roberto, Formação de Liderança, Apostila do Projeto de Mestrado Profissional em Poder
Judiciário, Rio Grande do Sul, 2006, p. 89/90.
Vanderlei Deolindo
180
1)
Mudanças nos estilos de liderança gerencial afetam a eficácia da
organização, mesmo considerando-se fatores não-controláveis externos às empresas
e que impõem limites gerenciais diversos.
2)
A
liderança
constitui
um
fenômeno
grupal
em
que
o
compartilhamento do poder gerencial e a promoção do poder dos liderados são
mais eficazes do que a prática da gerência na perspectiva individualista e
heróica.
3)
A eficácia da gerência depende da habilidade de liderança de
influenciar a percepção de liderados sobre objetivos e tarefas organizacionais,
além de promover novas fontes de satisfação no trabalho.
4)
A liderança efetiva e compartilhada requer a mudança das
expectativas dos liderados, tradicionalmente construída na idéia de que o líder irá,
por si só, comandar e se responsabilizar pelos destinos da organização.
5)
A eficácia da liderança gerencial é altamente dependente do
estabelecimento de relações cooperativas com os liderados e caracterizadas por
confiança mútua e lealdade.
6)
A liderança efetiva gera comprometimento e entusiasmo entre os
liderados para o alcance dos objetivos comuns.
O sistema gerencial no Poder Judiciário é eminentemente presidencialista,
firmado na pessoa do gestor durante um determinado mandato. Assim ocorre com
o Presidente do Tribunal de Justiça e também com o Diretor do Foro em todas as
Comarcas, seja de entrância inicial, intermediária ou final, nestas duas últimas
onde atuam vários Magistrados. Jurisdicionalmente, ou seja, no julgamento dos
processos de sua competência e jurisdição, o Juiz é independente e soberano,
somente vinculado ao Direito norteado pela Constituição Federal e a sua
consciência.
Já administrativamente, existe um dirigente nomeado legalmente
para exercer determinadas atribuições, como destacado anteriormente. E é desse
dirigente que se espera o exercício da gestão com liderança, liderando a todas as
pessoas, inclusive os demais líderes da organização, que momentaneamente não
estão exercendo cargo dirigente.
Coleção Administração Judiciária
181
O autor John C. Maxwell, em sua obra “As 21 Irrefutáveis Leis da
Liderança”
12
, registra que “a eficácia pessoal e da organização é proporcional à
força da liderança”. Assiste razão ao Eminente escritor, mormente em se tratando
de organizações moldadas em sistema presidencialista.
Se a liderança de uma
pessoa é grande, o limite da organização é alto. Se não é, então a organização é
limitada.
Em épocas de dificuldades, as organizações naturalmente buscam nova
liderança. Quando o País passa por tempos difíceis, elege um novo Presidente.
Quando um time continua a perder, contrata um novo técnico. O mesmo acontece
nas grandes empresas e organizações públicas.
Esse fenômeno natural também ocorreu na Comarca de Santa Maria.
Ressurgiu a vontade de mudar diante do quadro crítico de problemas destacado
anteriormente, com evidente desmobilização das lideranças assoberbadas pela
carga imensa de trabalho. Houve consenso dos Magistrados da Comarca de que era
necessária uma mudança nos rumos da Direção de Foro, profunda, começando pela
atitude do novo Diretor que viria a assumir com liberdade para exercer liderança
juntamente com os demais Juízes, que se comprometeram a compartilhar o
exercício de atribuições da Direção.
Foram editadas Portarias de Delegação,
objetivando possibilitar que o Diretor encontrasse tempo para se dedicar à gestão
do Foro com eficiência, enfrentando os problemas existentes e conduzindo a
Comarca para uma nova fase. Nasceu naquele momento a gestão compartilhada da
Direção do Foro de Santa Maria, RS.
2.3 O PLANO DE GESTÃO
O ideal numa organização quase bicentenária, é que sempre exista um
Plano de Gestão a ser elaborado e desenvolvido pelo gestor eleito para
desempenhar as atribuições de Presidente, ou no caso ora em análise, de Diretor
12
MAXWELL, Jonh C., As 21 Irrefutáveis Leis da Liderança, traduzido por Alexandre Martins, 1ª. edição,
Rio de Janeiro, Ed. Thomas Nelson Brasil, 2007, p. 28.
Vanderlei Deolindo
182
de Foro.
Tal planejamento, em regra, irá contemplar ações imediatas, que se
desenvolverão dentro do mandato para enfrentar as necessidades atuais ou
próximas.
Nessa caminhada, também se mostra indispensável ações iniciais ou
intermediárias que preparem a realização de ações futuras, que venham a se
estender além do mandato, que somente poderão ser devidamente planejadas se
forem objeto de um Planejamento Estratégico, que analise cenários, identifique
pontos fortes e fracos, ameaças e oportunidades, fixe valores que nortearão a visão
e missão e, ao final, defina os objetivos estratégicos e as ações correspondentes
para atingi-los. Nesse caso, a cada mandato já se contaria com um Planejamento
Estratégico e ao gestor caberia a elaboração e desenvolvimento de um plano de
gestão alinhado com os objetivos estratégicos já definidos antes de seu mandato,
podendo ser ajustados quando necessário, com a participação das pessoas da
organização, não de forma individual, empírica ou arbitrariamente.
Na comarca de Santa Maria, considerando a situação crítica de problemas
antes mencionada, e à inexistência de Plano de Gestão ou Planejamento
Estratégico, houve a opção imediata de primeiro, após a avaliação da Comarca,
sistematizar projetos isolados, adequando-os a novas ações que deram origem ao
Primeiro Plano de Gestão da Comarca de Santa Maria, biênio 2005/2006. Entre
essas ações, num total de 25, estava o Planejamento Estratégico. Este, que uma
vez finalizado, culmina por originar a readequação do Plano de Gestão ou dos
Planos de gestão que se sucederem nos anos seguintes.
Com o apoio prestado por um professor voluntário, Dr. Adalberto
13
Schimidt , da Universidade Federal de Santa Maria, passou-se à avaliação da
Comarca conforme os “Critérios de Excelência do Nível 1 do Programa Nacional de
Qualidade”, editado pelo Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização
– GESPÚBLICA. Sobreveio a longa avaliação, realizada por todos os setores do Foro,
contando com a participação de Magistrados e Servidores, quando foram analisados
os critérios de Liderança, Estratégias e Planos, Cidadãos, Clientes, Sociedade,
Informações e Conhecimento, Pessoas, Processos e Resultados. O modelo adotado
13
Os Professores Alberto Schimidt e Juarez Ventura, ambos da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria,
há anos assessoram os Magistrados na gestão da Comarca, ultimamente no Planejamento Estratégico,
cujos gráficos utilizados na sequência são de suas autorias.
Coleção Administração Judiciária
183
pelo referido programa constitui-se em um modelo de gestão pública focado em
resultados e orientado para o cidadão.
Permite avaliações comparativas de
desempenho entre organizações públicas brasileiras e estrangeiras e mesmo com
empresas e demais organizações do setor privado.
Se analisados em bloco os Critérios da Liderança, Estratégias e Planos, e
Cidadãos e Sociedade, podem ser denominados de “Planejamento”. Por meio da
liderança forte da alta administração, que focaliza as necessidades dos cidadãos
destinatários da ação da organização, os serviços/produtos e os processos são
planejados, conforme os recursos disponíveis, para melhor atender esse conjunto
de necessidades.
O segundo Bloco, relativo ao Critério das Pessoas e Processos, representa a
“execução” do planejamento. Nesse espaço, concretiza-se a ação que transforma
objetivos e metas em resultados. São as pessoas, capacitadas e motivadas, que
operam esses processos e fazem com que cada um deles produza os resultados
esperados.
O terceiro bloco, Resultados, representa o “controle”, pois serve para
acompanhar o atendimento à satisfação dos destinatários dos serviços e da ação do
Estado, o orçamento e as finanças, a gestão das pessoas, a gestão de suprimentos e
das parcerias institucionais, bem como o desempenho dos serviços/produtos e dos
processos organizacionais.
O quarto bloco, Informação e Conhecimento, representa a “inteligência da
organização”.
Nesse bloco são processados e avaliados os dados e os fatos da
organização (internos) e aqueles provenientes do ambiente (externos), que não
estão sob seu controle direto, mas, de alguma forma, podem influenciar o seu
desempenho. Esse bloco dá à organização a capacidade de corrigir ou melhorar
suas práticas de gestão e, consequentemente, seu desempenho.
O critério Liderança aborda como está estruturado o sistema de liderança
da organização, ou seja, sua composição e funcionamento. Discorre sobre o modo
como a Alta Administração, a partir das macroorientações de Governo, atua
pessoalmente para definir e disseminar entre os colaboradores os valores, as
políticas e orientações estratégicas, considerando as necessidades de todas as
Vanderlei Deolindo
184
partes interessadas, orientando-as na busca do desenvolvimento institucional, do
seu desenvolvimento individual, estimulando a iniciativa e a criatividade e
estabelecendo uma cultura da excelência que permeie toda a organização.
O
critério liderança também aborda como a alta administração analisa criticamente o
desempenho global da organização e como as práticas relativas ao sistema de
liderança são avaliadas e aperfeiçoadas.
O Critério Estratégias e Planos analisa como a organização, a partir de sua
visão de futuro, formula suas estratégias e as desdobra em planos de ação de curto
e longo prazos. Versa, particularmente, sobre o modo como a organização utiliza
as informações sobre os usuários e sobe o seu próprio desempenho para estabelecer
as estratégias, de forma a assegurar o alinhamento e a implementação delas com
vistas ao atendimento de sua missão e à satisfação das partes interessadas.
O
critério também aborda como é definido e implementado o sistema de medição do
desempenho global da organização. Aborda, ainda, como as práticas relativas à
formulação, desdobramento/operacionalização das estratégias e ao planejamento
da medição do desempenho são avaliadas e aperfeiçoadas.
O Critério Cidadãos e Sociedade examina como a organização, no
cumprimento de suas competências institucionais, identifica os usuários de seus
serviços/produtos e conhece suas necessidades, antecipando-se a elas, no
cumprimento de suas competências institucionais.
Examina, também, como
divulga seus serviços/produtos e ações para reforçar a sua imagem institucional e
como a organização estreita o relacionamento com os seus usuários, mede e
intensifica a satisfação deles. Esse critério examina, ainda, como a organização
aborda as suas responsabilidades perante a sociedade e as comunidades
diretamente afetadas pelas suas atividades e serviços/produtos e como estimula a
cidadania. Examina, também, como as práticas relativas ao conhecimento mútuo,
ao relacionamento com os usuários e à interação com a sociedade são avaliadas e
aperfeiçoadas.
O Critério Informação e Conhecimento verifica como a organização
gerencia as informações e os indicadores de desempenho mais importantes da
organização e dos seus referenciais comparativos e como é feita a gestão do
Coleção Administração Judiciária
conhecimento na organização.
185
Aborda, também, como as práticas relativas à
gestão das informações da organização, a gestão das informações comparativas e a
gestão do conhecimento são avaliadas e aperfeiçoadas.
O Critério Pessoas observa como a organização prepara e estimula as
pessoas para desenvolverem e utilizarem seu pleno potencial em alinhamento com
as estratégias da organização. Também aborda os esforços para criar e manter um
ambiente que conduza à excelência no desempenho, à plena participação e ao
crescimento individual e institucional. Discorre, ainda, sobre a forma como as
práticas relativas ao sistema de trabalho, à capacitação e desenvolvimento e à
qualidade de vida são avaliadas e aperfeiçoadas.
O Critério Processos aborda os principais aspectos do funcionamento
interno da organização, entre os quais se inclui a estruturação de seus processos
com base em suas competências legais, a definição de seus serviços com foco nas
necessidades dos cidadãos, a implementação e a operacionalização de seus
processos finalísticos, de apoio, orçamentários e financeiros e os relativos aos seus
fornecedores. Versa, portanto, sobre a forma como os principais processos da
organização
são
definidos,
estruturados,
implementados,
gerenciados
e
aperfeiçoados, para obter melhor desempenho e para melhor atender às
necessidades dos cidadãos. Aborda, ainda, como as práticas relativas à gestão de
processos finalísticos, de apoio, orçamentários e financeiros e relativos aos
fornecedores são avaliadas e aperfeiçoadas.
O Critério Resultados analisa a evolução do desempenho da organização
relativamente: à satisfação de seus cidadãos, considerando o atendimento ao
universo potencial de cidadãos; à melhoria de seus serviços/produtos e dos
processos organizacionais; à satisfação, bem-estar, educação e capacitação das
pessoas; à gestão dos fornecedores; ao cumprimento das metas e aplicação dos
recursos orçamentários e financeiros. Trata, também, dos níveis de desempenho
em relação aos referenciais comparativos pertinentes.
Realizada a avaliação conforme os critérios antes mencionados, cujos
resultados serão objeto de trabalho específico para fins de Mestrado, houve
comoção geral diante do quadro negativo verificado. Nesse momento originou-se a
Vanderlei Deolindo
186
vontade inarredável de proceder aos ajustes necessários a situar a Comarca dentro
de índices razoáveis. Essa busca contínua tem sido desenvolvida até os dias atuais,
incorporando-se à cultura da Comarca. Como dito, sobrevieram 25 ações imediatas,
que passaram e estão sendo desenvolvidas até os dias atuais.
Foram definidas as ações, a forma de realização, as pessoas responsáveis e
os prazos de desenvolvimento. O primeiro Plano de Gestão foi dividido em quatro
áreas, reunindo as respectivas ações, sumariamente descritas:
1) Área de Melhoria e Padronização:
1.1. Implantação de ciclos de palestras para atualização e treinamento do corpo
funcional;
1.2. Formulação, coleta e sistematização de variados indicadores locais;
1.3. Criação e implantação da Central de Estágios;
1.4. Criação da Mostra de Práticas Setorizadas;
1.5. Realização do “workshop” da Comarca;
1.6. Reuniões semestrais entre o Diretor do Foro, Magistrados e Servidores;
1.7. Reuniões trimestrais entre o Diretor do Foro e Magistrados;
1.8. Reuniões mensais entre o Diretor do Foro e as Chefias de Cartórios;
1.9. Realização de pesquisa de satisfação de clientes e caixa de sugestões;
1.10. Elaboração de manual de rotinas cartorárias;
1.11. Criação do Grupo de Melhoria e Padronização;
2) Área Institucional:
2.1. Elaboração de Planejamento Estratégico da Comarca;
2.2. Sedimentação da Responsabilidade Social através do Centro de Atendimento
Terapêutico e Social (CATES) – Programa Justiça Integral;
2.3. Elaboração de Informativo Bimestral, direcionado ao público interno e
externo;
2.4. Realização de ciclo de palestras e eventos em Universidades locais;
2.5. Realização de ciclos de palestras e eventos em Escolas das Cidades da
Comarca;
Coleção Administração Judiciária
187
2.6. Implantação de programação de visitas das Escolas ao Foro de Santa Maria;
2.7. Implantação de Programa para sistematização, cadastramento e controle de
prestações sociais alternativas (cestas básicas) e prestação pecuniária aplicadas em
processos e termos circunstanciados;
2.8. Sedimentação do Programa de Coleta Seletiva de lixo reciclável no interior do
Foro.
3) Área de Pessoal e Qualidade de Vida:
3.1. Realização de pesquisa de clima anual;
3.2. Realização de ciclos de palestras e eventos diversos sobre qualidade de vida e
saúde física e mental;
3.3. Instalação do “Galpão Crioulo” no terreno do Foro.
4) Área de Informática:
4.1 Implantação do uso do sistema de correio eletrônico;
4.2 Criação da Página da Comarca de Santa Maria na Internet;
4.3 Implantação da Comissão de Informática.
Nesse período, foram múltiplos os resultados alcançados, que vem
aproximando a Comarca de Santa Maria de um nível razoável de excelência segundo
os critérios de excelência no serviço público. Como mencionado anteriormente, os
resultados serão analisados com mais vagar em trabalho em nível de Mestrado que
será elaborado posteriormente. Por ora, merece registro de uma forma geral os
importantes resultados já alcançados, conforme as palavras da Juíza de Direito
Eliane Garcia Nogueira, Diretora do Foro, em artigo encaminhado para a Mostra
Nacional de Práticas de Gestão, organizada em Brasília na Associação dos
Magistrados Brasileiros, por ocasião da seleção das práticas publicadas no ENAJE –
Encontro Nacional de Juízes Estaduais, realizado em setembro de 2007, no
Maranhão:
Vanderlei Deolindo
188
“FATORES DE SUCESSO E RESULTADOS: O empenho incessante da Direção
do
Foro,
acompanhado
de
outros
Magistrados
e
Servidores
que
foram
gradativamente se somando a esse processo. O apoio prestado pelas Universidades
locais, que cederam profissionais para a realização de palestras, além de outros
profissionais autônomos que se dispuseram a prestar colaboração à Direção do
Foro, especialmente o suporte técnico do Professor Alberto Schimidt, vinculado à
Universidade Federal de Santa Maria, que assessorou a Direção na avaliação da
Comarca conforme o Nível 1 do Plano Nacional de Qualidade e na elaboração do
Plano de Gestão. Finalmente, o apoio prestado pelo Escritório de Qualidade do
Tribunal de Justiça do Estado, originando estímulo ao público interno. Após a
implantação do Plano já assumiram outros Diretores, mas o modelo de gestão
instituído e o apoio gerencial prestado pelo Comitê de Gestão da Comarca (15
pessoas, sendo três Magistrados e doze servidores), conta com a aprovação dos
Magistrados e Servidores da Comarca. Em dezembro de 2005 foi realizada pesquisa
interna sobre o plano de gestão, com aprovação de 89% dos servidores e
magistrados, havendo 98% de manifestação favorável pela continuidade do Plano
na Comarca.
A organização da Comarca proporcionou ganhos institucionais e
materiais. Entre os últimos, podemos citar: a única Comarca do interior que conta
com “Datashow” para apresentação de palestras; edificação de um galpão crioulo
para a confraternização dos servidores e magistrados; obras para a conclusão do
sexto andar do Prédio do Foro; decoração das áreas comuns com vasos e plantas;
adoção de um novo “layout” dos cartórios, com sala de atendimento para partes e
advogados, entre outros. Os ganhos institucionais são ainda maiores. As palestras
motivacionais, semana de saúde, palestras jurídicas ministradas pelos magistrados
e comemorações como Dia da Justiça e participação em Feiras, alavancaram o
moral do corpo funcional da Comarca, propiciando um engajamento ainda maior
aos objetivos do plano. Notamos, ainda, uma revigoração da imagem do Poder
Judiciário na Comarca. Os indicadores permitiram desmistificar a propalada
morosidade. Passamos a ter noção de tempo de tramitação dos processos, número
de atendimentos e quantidade de decisões proferidas. Várias reportagens foram
Coleção Administração Judiciária
189
feitas pela imprensa escrita, inclusive com destaque na capa e, ainda, entrevistas
com juízes e servidores no rádio e televisão. Os resultados das pesquisas de clima e
de satisfação apontaram as nossas deficiências e o caminho a ser trilhado para a
melhoria contínua dos serviços forenses, abrindo-se um importante canal de
aproximação dos servidores com os Juízes e do público com o Poder Judiciário. A
rotina de reuniões entre o Diretor do Foro e os escrivães, trouxe solução linear e
rápida aos problemas comuns e proporcionou uma visão da Comarca como um todo.
A reunião com todos os juízes e servidores também foi canal importante de
democratização do Poder. Melhoramos a comunicação interna. Todas as
informações e convocações são enviadas por e-mail, pela Direção do Foro. As
alterações legislativas e questões administrativas também são remetidas a todos,
proporcionando o conhecimento amplo e simultâneo, a exemplo das organizações
privadas. Em síntese, a visão é otimista, embora algumas vezes assustadora, pela
quantidade de mudanças que ainda devem ser feitas, e conseqüentes resistências,
e as limitações que muitas vezes nos cercam, principalmente orçamentárias ou
decorrentes da rigidez de rubricas, dificultando a realização de palestras,
treinamento e aperfeiçoamento. Entrementes, a principal mudança já ocorreu: é o
despertar, isto é, o olhar diferente sobre aquilo que fizemos e sobre a importância
de nossa atividade; a busca incessante por melhorias; a noção de corpo do Poder
Judiciário, tendo em vista objetivos comuns, fugindo da visão mecanicista; a
necessidade de líderes e não chefes; o valor da aproximação, do reconhecimento e
de um bom ambiente de trabalho; a preocupação com o “cliente” e, sobretudo, a
lembrança da importância de alcançar a justiça a todos que nos procuram. Uma vez
desperto, o homem já não é mais o mesmo. Não mais se acomoda, se conforme, se
subjuga, se limita. Ele vê, ouve, reflete e age diferente. É um caminho, sem
volta.”
Como bem assevera a Eminente Magistrada, a principal mudança, ou o
principal resultado já foi alcançado na Comarca, “o despertar” para a adoção de
uma nova cultura de gestão do Poder Judiciário local.
Vanderlei Deolindo
190
2.4 UMA DAS AÇÕES – PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
Visando a realização de ações firmadas em decisões presentes mas com implicações
futuras, passou-se à elaboração do Primeiro Planejamento Estratégico de uma
Comarca de porte médio do interior do Rio Grande do Sul. O primeiro passo foi a
Direção do Foro divulgar o trabalho que vinha sendo realizado e, num segundo
momento, convidar Magistrados e convocar uma representação de servidores
dedicados de cada Vara do Foro. Foram designadas reuniões semanais, todas as
terças-feiras
pela
manhã,
das
8h30min
às
10h30min,
aproximadamente,
preservando-se o horário de atendimento ao público externo, que inicia às
10h30min. Cerca de 40 pessoas, em regra sempre os mesmos servidores para não
perderem o rumo das análises, passaram a freqüentar as reuniões para elaboração
do Planejamento Estratégico da Comarca. Foi instituída uma lista de presenças,
para controle do cumprimento das convocações. As oficinas de trabalho contavam
com a orientação do Prof. Alberto Schimidt e Juarez Ventura14, ambos da
Universidade Federal de Santa Maria e sempre havia uma representação de
14
Autores dos gráficos.
Coleção Administração Judiciária
191
Magistrados. Durante os trabalhos, procurava-se garantir a opinião de todos,
estimulando a participação dos mais tímidos. Outras vezes realizava-se trabalhos
em grupos, formado por componentes de setores diferentes, ao quais preenchiam
cartazes de sugestões, que depois eram afixadas lado a lado na parede e, em
conjunto, sistematizadas, conforme veremos na seqüência.
2.4.1. ANÁLISE DO AMBIENTE EXTERNO E INTERNO
Em primeiro lugar, passou-se a analisar o ambiente externo, os fatores
ambientais que afetam a vida da organização.
Trata-se de um diagnóstico
estratégico externo que procura antecipar “oportunidades” e “ameaças” para a
concretização da “visão”, da “missão” e dos “objetivos” do Poder Judiciário local.
Corresponde à análise de diferentes dimensões do ambiente que influenciam as
organizações. Estuda também as dimensões setoriais e competitivas.
Com base
nisso, a turma de Magistrados e Servidores foi dividida em grupos de oito pessoas,
Vanderlei Deolindo
192
num total de cinco grupos, que depois de alguns encontros, resultou na
sistematização das seguintes oportunidades e ameaças:
DIAGNÓSTICO ESTRATÉGICO EXTERNO:
A) Oportunidades: Fatores externos positivos observados na Comarca.
1)
Acessibilidade à mídia;
2)
Possibilidade de Comunicação direta com o usuário;
3)
Nível cultural da Cidade estimula o aperfeiçoamento do Judiciário;
4)
Acesso à Internet;
5)
Respeito à Instituição;
6)
Possibilidade da realização de convênios e parcerias com entidades culturais e
o Judiciário (estagiários, OAB, etc.);
B) Ameaças: Fatores externos negativos observados na Comarca e que exigem
ajustes de gestão.
1)
Imagem negativa do Judiciário na Mídia;
2)
Descumprimento de obrigações por outros Poderes;
3)
Omissão de outras esferas;
4)
Desconhecimento do papel do Judiciário pela Sociedade;
5)
Falta de representatividade política no Congresso e Assembléia Legislativa;
6)
Lei de Responsabilidade Fiscal;
7)
Decisões políticas;
8)
Crise moral na sociedade;
9)
Falta de visão administrativa do Tribunal de Justiça;
10) Deficiência do setor de informática;
11) Insuficiência de recursos tecnológicos.
Coleção Administração Judiciária
193
Esse trabalho inicial, fruto de muitas reflexões, evidenciou a importância
de se reservar algum tempo para se pensar metodicamente o Poder Judiciário,
identificando que existem muito mais ameaças externas do que oportunidades. Foi
uma experiência gratificante para todos os participantes, que conseguiram,
durante os encontros, se desvencilhar das preocupações decorrentes do incessante
volume de trabalho nas Varas, e realizar um trabalho de diagnóstico externo
evidenciando preocupações presentes e futuras.
DIAGNÓSTICO ESTRATÉGICO INTERNO:
A exemplo da forma adotada para a análise do ambiente externo, os
grupos de trabalho realizaram uma análise do ambiente interno.
Essa fase
corresponde ao diagnóstico da situação da organização diante das dinâmicas
ambientais, relacionando as suas forças e fraquezas, condições internas que afetam
os
resultados
organizacionais,
como
capacidade,
recursos,
habilidades
e
competências, criando as condições para a formulação de estratégias que
representam o melhor ajustamento da organização no ambiente em que atua.
Assim, foram identificados os “pontos fortes” e os “pontos fracos” do Poder
Judiciário local.
A) Pontos Fortes:
1)
Busca por uma melhoria contínua;
2)
Crescimento do compromisso local com a qualidade;
3)
Busca de alternativas para solucionar problemas de trabalho;
4)
Criatividade dos servidores;
5)
Organização do sistema de trabalho: tem uma estrutura bem enxuta nos
procedimentos de trabalho e outros;
6)
Encontro de servidores (troca de experiências que devem ser feitas através de
sugestões;
Vanderlei Deolindo
194
7)
Vinda de palestrantes proporcionando uma melhor qualidade de vida: como
médicos, psicólogos e outros;
8)
Estrutura material, com exceção em relação aos Assistentes Sociais e
Psicólogos;
9)
Comprometimento dos servidores com a produtividade;
B) Pontos Fracos:
1)
Resistência a mudanças;
2)
Mobiliário ergonomicamente inadequado;
3)
Salas inadequadas da equipe de apoio (Psicologia e Assistentes Sociais);
4)
Espaço físico inadequado;
5)
Falta de Integração entre Juízes e Servidores;
6)
Falta de treinamento e aperfeiçoamento;
7)
Falta de plano de carreira;
8)
Falta de avaliação de desempenho funcional;
9)
Ausência de incentivo à qualificação profissional;
10) Falta de preparo dos líderes;
11) Falta de comunicação interna;
12) Comprometimento insuficiente de alguns com o processo de mudança;
13) Comprometimento interno insuficiente de alguns com a qualidade do trabalho;
14) Compartilhar experiências e métodos;
15) carência de servidores;
16) Falta de padronização dos processos de trabalho;
17) Falta de modelo administrativo-gerencial eficiente;
18) Individualismo;
19) Falta de integração social do corpo funcional;
20) Falta de política institucional de administração;
Foi observado, conforme a relação acima, que os pontos fracos do Poder
Judiciário local correspondiam a mais do que o dobro dos pontos fortes,
Coleção Administração Judiciária
195
evidenciando uma situação no mínimo preocupante. Considerando que o alinhamento
dos diagnósticos externos e internos produz as premissas que alicerçam a construção de
cenários, os grupos de trabalho passaram a um exercício de prospecção, estabelecendo
hipóteses, suposições, conjecturas até definir um cenário.
2.4.2 CENÁRIOS
Os cenários não são adivinhações. São expectativas baseadas nas análises
ambientais antes mencionadas, indicando se o futuro será favorável ou
desfavorável.
Importam ao processo decisório estratégico. Segundo Idalberto
Chiapenatto e Arão Sapiro, em Planejamento Estratégico15, “nos dias de hoje, a
questão não é executar certas coisas, mas decidir as coisas certas a serem
executadas e que venham a ser promissoras no futuro. Estabelecer um curso de
ação, mover pelos assuntos estratégicos para alcançar os horizontes da organização
e abrir novas perspectivas. A partir dos cenários, é possível se preparar para eles e
tomar decisões que façam futuro. Algumas das decisões que se toma hoje serão
boas para quaisquer futuros imaginados. Outras farão sentido somente para um ou
outro quadrante. Ao identificar implicações para cada cenário, pode-se ter alguma
confiança para buscar os melhores planos. As decisões que fazem sentido somente
para um ou outro cenário são perigosas e podem ser armadilhadas. O poder dos
cenários é permitir que nos preparemos e possamos entender as incertezas e o que
elas podem significar. Os cenários nos ajudam a aprimorar as respostas para os
futuros possíveis e focalizar as respostas assim que surgem no horizonte novas
possibilidades.”
Definida essa noção, e com base nas reflexões realizadas durante a análise
dos ambientes, os grupos de trabalho passaram a definir o cenário da Comarca
local, que assim foi redigido:
15
CHIAVENATTO, Idalberto, e SAPIRO, Arão, Planejamento Estratégico – Fundamentos e Aplicações ,
Elsevier editora Ltda, 6ª. Tiragem, Rio de Janeiro, 2004, p. 175.
Vanderlei Deolindo
196
“A constatação de muitos pontos fracos e muitas ameaças externas
formam um cenário desfavorável, o qual se pode reverter através do
desenvolvimento da comunicação interna e externa, da padronização
dos métodos de trabalho e da valorização dos recursos humanos.
Compete ao Tribunal de Justiça o desenvolvimento de políticas
urgentes, a fim de reverter o quadro futuro que se anuncia, para o
combate à discrepância entre a elevada demanda e os escassos recursos
humanos; à capacitação e sensibilização de seus integrantes pondo fim
ao estigma da resistência às mudanças e implementando uma gestão de
qualidade, consolidada numa administração organizacionalmente
moderna.”
2.4.3 VALORES
Na seqüência, o grupo elaborador do Planejamento Estratégico passou a
reflexões procurando definir quais os “valores” que os membros do
Judiciário local consideravam fundamentais.
Poder
Os “Valores” se constituem num
conjunto de crenças e Princípios que orientam as atividades da Organização.
Assim, foram apontados os seguintes:
- honestidade
- imparcialidade
- Ética
- Respeito pelo indivíduo
- Moral.
Houve certa dificuldade inicial em apontar imediatamente os valores, que
mesmo existentes no dia a dia, não eram claramente identificados como
patrimônio já incorporado no agir das pessoas. Foram definidos no momento em
que sobreveio a compreensão de que eles se constituem em crenças essenciais que
devem ser lembradas, regendo todos os comportamentos administrativos e que a
organização considera incorporada ou pretende ver incorporada a sua cultura.
Coleção Administração Judiciária
197
2.4.4 VISÃO
A visão expressa o estado que a organização deseja atingir no futuro.
Apresenta a intenção de propiciar o direcionamento dos rumos da Instituição. Pode
servir também como fonte inspiradora, um chamamento que estimule e motive as
pessoas a verem realizada com sucesso a missão declarada.
Depois de várias sugestões e análises de textos relativos à visão, definiu o
grupo que a visão estratégica no momento deveria ser a seguinte:
“Ser referencial de excelência na prestação de serviço jurisdicional,
visando qualidade de vida no trabalho e satisfação da sociedade.”
O grupo optou por manter a expressão serviço jurisdicional, considerando
todos os serviços prestados pelo Poder Judiciário local, inclusive os que ainda não são
objetos de processos. Foi dada ênfase à qualidade de vida no trabalho, item sempre
salientado pelos Servidores em geral. Finalmente, o objetivo maior da organização, a
satisfação da sociedade, que abrange uma série de valores esperados por aqueles que
necessitam
de
serviços
judiciários
como
celeridade,
eficiência,
eficácia,
imparcialidade, ética, moral, enfim, Justiça, no sentido mais amplo do termo.
2.4.5 MISSÃO
A missão responde à pergunta: Por que existimos? É o elemento que traduz
as responsabilidades e pretensões da organização junto ao ambiente. Ela define a
razão de ser da Instituição, o seu papel na Sociedade. Ela é, claramente, uma
definição que antecede o diagnóstico estratégico.
Assim, restou definida a Missão da Comarca de Santa Maria:
“Prestar serviços judiciários objetivando prevenir e solucionar conflitos
sociais, de forma imparcial, eficaz e com qualidade.”
Houve a opção por prestação de “serviços judiciários” pelo mesmo motivo
relativo à visão, isto é, por entender que se trata de uma expressão mais ampla do que,
Vanderlei Deolindo
198
por exemplo, prestação jurisdicional, mais apropriada para processos em andamento.
São várias as situações onde a estrutura de serviços do Judiciário é acionado sem que
exista um processo judicial envolvendo a parte interessada. Assim ocorre com o
fornecimento de certidões e informações em geral. Também constou a expressão
“prevenir” conflitos sociais, e não somente solucionar ou dirimir conflitos sociais,
considerando que é papel do Judiciário ir além do que estabelecem os textos legais. O
grupo de trabalho entendeu que a missão do Poder Judiciário é mais ampla, vai além,
não é de somente dizer o direito no caso concreto, limitando-se a condenar ou absolver
o réu, julgar procedente ou improcedente o pedido, sempre nos estritos termos legais.
Entendeu-se que está mais do que na hora do Poder Judiciário se antecipar aos
problemas que originam e constituem os processos, desenvolvendo várias ações que
previnam a demanda. Como exemplo merece registro as palestras em escolas, bairros
e Universidades; implementação da comunicação externa para que a população seja
esclarecida acerca de direitos e obrigações; desenvolvimento de programas de Justiça
terapêutica, voltado para o atendimento de vítimas de violência doméstica e\ou abusos
sexuais, e réus autores de crimes em decorrência de dependências químicas,. Enfim,
projetos assistenciais que aproximem o Judiciário da Sociedade e despertem outras
organizações de que é preciso uma mudança profunda de cultura para o enfrentamento
dos problemas sociais, entre eles a crescente demanda processual que sobrecarrega o
Poder Judiciário, em prejuízo da própria Sociedade.
A prestação dos serviços de forma imparcial, eficaz e com qualidade, bem
evidencia que o Grupo deu ênfase a fatores que considera basilares e
diferenciadores na prestação dos serviços pela Justiça oficial.
2.4.6 FATORES CRÍTICOS DE SUCESSO
Definidas a Visão e a Missão, o Grupo passou aos “Fatores Críticos de
Sucesso”, que são as condições fundamentais que precisam ser satisfeitas para que
a organização tenha sucesso no ambiente. São as atividades-chave do negócio que
precisam ser bem feitas para que a organização possa atingir os seus objetivos.
Sem eles, os objetivos não são alcançados.
Coleção Administração Judiciária
199
Assim, restaram definidos os seguintes Fatores Críticos de Sucesso:
•
Suficiência dos recursos humanos frente à demanda crescente;
•
Treinamento, qualificação e valorização permanente de pessoas;
•
Qualidade de vida no trabalho;
•
Gerenciamento de processos de trabalho.
2.4.7 LINHAS ESTRATÉGICAS
Ultrapassada a fase da identificação dos fatores críticos de sucesso, foi
atingido o momento de definição das linhas estratégicas.
São os princípios
orientadores e canalizadores das decisões e do desencadeamento das ações.
•
Valorização das pessoas;
•
Qualificação da infra-estrutura;
•
Comunicação;
•
Gerenciamento dos processos de trabalho
•
Integração com a sociedade.
Depois de muitas ponderações de todos os participantes, finalmente
sobrevieram as linhas estratégicas, identificando os caminhos a serem trilhados,
tidos por fundamentais para a melhoria da organização local como um todo. Foram
necessários vários encontros, muitas reflexões e debates, frutos de resistências
naturais em qualquer organização, para que se chegasse às linhas estratégicas.
Como pregou Henry Emerson Fosdick, citado por Stephen R. Covey16, “Nenhum
cavalo chega a lugar algum antes de ser domado. Nenhum vapor ou gás movimenta
qualquer coisa até ser confiando. Nenhuma catarata gera luz e força antes de ser
focada, dedicada e disciplinada.”
16
COVEY, Stephen R., O 8º. Hábito – Da Eficácia à Grandeza, 7a, ed., tradução de Maria José Cyhlar
Monteiro, Rio de Janeiro, Elsevier Editora Ltda, 2005, p. 229.
Vanderlei Deolindo
200
2.4.8 OBJETIVOS ESTRATÉGICOS
É a fase do processo de Planejamento Estratégico necessária para
transmitir a Missão e a Visão de Futuro aos níveis inferiores da organização. Uma
pergunta sintetiza bem o significado dos objetivos estratégicos: O que fazer?
Dentro de cada Linha Estratégica, o Grupo passou a definir “o que fazer”, os
objetivos propriamente ditos, na ordem seguinte:
Linha Estratégica:
Objetivos Estratégicos:
1. Valorização das Pessoas
1.1. Qualificar o servidor;
1.2. Reivindicar Plano de Carreira;
1.3. Proporcionar cursos internos de
relacionamento interpessoal;
1.4. Explorar o potencial dos servidores;
1.5. Implementar ações de saúde;
1.6. Implementar e exigir uma política de
treinamento interno e externo (Plano de
Desenvolvimento de Pessoas).
2. Qualificação da Infra-
2.1. Melhorar a estrutura cartorial;
-Estrutura:
2.2. Desenvolver o Planejamento ergonômico,
com adequação do mobiliário;
2.3. Modificar o layout das Varas e/ou demais
setores;
2.4. Sugerir o desenvolvimento do sistema de
informática;
2.5. Reivindicar número de funcionários
proporcional ao número de processos,
postulando a alteração do COGE;
Coleção Administração Judiciária
3. Comunicação:
201
3.1. Melhorar a comunicação interna e externa;
3.2. Criar comissão de comunicação;
3.3. Criar página na Internet;
3.4. Ordinarizar o Boletim interno;
4.Gerenciamento dos Processos
De trabalho:
4.1.Padronização das rotinas
cartorárias;
4.2. Padronização dos programas de
estágio;
5. Integração com a Sociedade:
5.1. Estimular a conciliação;
5.2. Fortalecer os Programas de
Responsabilidade social;
2.4.9 INDICADORES
São relações que permitem uma avaliação da performance global ou
parcial da organização, através da medição de atributos ou resultados, com o
objetivo de comparar esta medida com resultados esperados, anteriores, ou ainda,
com resultados de terceiros.
Os Professores Mauriti Maranhão e Maria Elisa Bastos Macieira, na obra
O Processo Nosso de Cada Dia – Modelagem de Processos de Trabalho17,
salientam que a maioria das pessoas e das organizações insistem em
administrar com base na intuição, no bom senso, deixando de se utilizar de um
dos importantes instrumentos gerenciais para manter o controle sobre os
processos de trabalho. Defendendo que somente se pode gerenciar aquilo que
é medido, salientam que “as medidas são a fonte mais segura e insuspeita para
tomar decisões consistentes.
17
Por outro lado, o feeling e a sensibilidade são
MARANHÃO, Mauriti, e MACIEIRA, Maria Elisa Bastos, O Processo Nosso de Cada Dia – Modelagem de
Processos de Trabalho, Rio de Janeiro, Qualitymark Editora Ltda, 2004, p.69.
Vanderlei Deolindo
202
atributos de natureza essencialmente subjetiva e, portanto, de cunho
meramente emocional. Sem dúvida, esses atributos são também indispensáveis
para chegarmos às decisões acertadas. Todavia, são as medidas que agregarão
o caráter mais racional e objetivo às decisões. São as medidas realizadas que
permitem as comparações e, em boa parte, instrumentalizam o gestor para
reconhecer e atribuir aos responsáveis o mérito devido, pelo bom ou pelo mau
resultado alcançado.”
No Poder Judiciário ainda não existe a cultura de gestão firmada em
indicadores seguros, que demonstrem realmente os resultados de modo a permitir
um gerenciamento mais eficiente e eficaz. Indicadores como “o tempo de
tramitação dos processos”, além de outros nesse particular, relativos ao
atingimento de metas no desenvolvimento dos processos de trabalho, “o índice de
satisfação dos servidores” e “o índice de satisfação da sociedade” merecem
constante aferição para efetivo alcance da missão estabelecida pelo Poder
Judiciário.
2.4.10 PLANOS DE AÇÃO
Os planos de ação correspondem às ações a serem realizadas para o
alcance de cada um dos objetivos estratégicos definidos na etapa anterior. Indica
o rumo para podermos realizar os objetivos estratégicos.
No Plano de Ação,
relaciona-se a Linha Estratégica, o Objetivo Estratégico, a meta ou o indicador de
resultado, a(s) pessoa(s) responsável (eis). Na seqüência, identifica-se
a ação
propriamente dita (o que fazer), o prazo estabelecido para a sua execução
(quando), as técnicas a serem desenvolvidas (como será feito) e finalmente, o
custo estimado para a sua realização.
A planilha abaixo bem identifica o Plano de Ação a ser desenvolvido para
cada um dos objetivos estratégicos.
Coleção Administração Judiciária
203
2.4.11 IMPLANTAÇÃO E CONTROLE – PDCA
É um método utilizado para a manutenção (padronização) e a melhoria dos
processos de trabalho.
Conforme destacado pelo Prof. Mauriti Maranhão18, foi
desenvolvido inicialmente, na década de 30, pelo professor e estatístico americano
Walter Shewhart, defendendo em seus estudos a necessidade de os administradores
utilizarem no seu trabalho o ciclo Specify-Product-Inspect, isto é, EspecificarFazer-Inspecionar. Depois, um de seus alunos, W.E. Deming, que se tornou famoso
por
orientar
o
desenvolvimento
da
qualidade
japonesa
no
pós-guerra,
complementou o ciclo de Shwhart, agregando mais uma fase, originando o ciclo
PDCA.
As ações previstas podem ser adotadas em cada um dos processos da
empresa, porque está associado ao planejamento, à implementação, ao controle e
à melhoria de um produto ou serviço.
18
MARANHÃO, Mauriti, e MACIEIRA, Maria Elisa Bastos, O Processo Nosso de Cada Dia – Modelagem de
Processos de Trabalho, Rio de Janeiro, Qualitymark Editora Ltda, 2004, p.145.
Vanderlei Deolindo
204
O nome desse ciclo - P-D-C-A -, deriva de palavras em inglês e que dizer:
a) planejar (plan): Estabelecimento de objetivos e processos necessários
para fornecer resultados, de acordo com os requisitos dos usuários e das políticas
da organização.
b) fazer (do): Momento de por em prática o planejamento.
Ou seja,
treinar e executar os processos.
c) checar (check): Monitoramento através de medições e avaliações dos
processos e produtos executados em relação às políticas, aos objetivos e aos
requisitos propostos.
d) ação (action): Atuar corretivamente sobre a diferença identificada. Se,
nas fases anteriores, não houve diferença entre o que foi planejado e o que se fez,
esta etapa do PDCA deve ser utilizada para padronizar o processo. Caso contrário,
será necessário executar ações específicas para promover a melhoria do
desempenho do processo.
Coleção Administração Judiciária
205
3 CONCLUSÃO
O presente trabalho anda longe de pretender a instituição de um modelo
inédito ou a reengenharia dos processos de trabalho, como ensina Thomas H.
Davenport19, já que os estudos relativos a Planejamento Estratégico encontram
suporte em várias obras e vem sendo amplamente difundido no meio empresarial, e
em menor ritmo no setor público. Certamente afigura-se elementar pela singeleza
àqueles que já pensam estrategicamente o Poder Judiciário. De qualquer sorte,
constitui-se numa primeira tentativa visando a despertar o interesse pelo assunto
aos que, notando que o Poder Judiciário precisa melhorar a sua eficiência de forma
geral, buscam algumas noções de como iniciar um processo de enfrentamento dos
problemas comuns em nível de Direção de Foro, em especial em comarcas de porte
médio.
Certamente a abordagem não alcança diretamente os desajustes
administrativos que ocorrem no âmbito das Varas, nos Cartórios abarrotados de
processos, alguns seguindo métodos de trabalho ultrapassados.
Já é de conhecimento público que a morosidade judicial se constitui no
maior mal da Justiça Brasileira. Muitos são os fatores que contribuem para essa
morosidade. Multiplicidade de leis que estabelecem procedimentos complexos e
recheados de recursos; Poder Judiciário neófito em gestão e carente de estrutura
humana e material; cultura da litigiosidade, começando pela própria Universidade,
que, respeitada raras exceções, prepara profissionais para o embate, para a
litigiosidade, em detrimento da cultura da mediação, da conciliação e da
arbitragem; advogados que muitas vezes patrocinam demandas temerárias,
voltados para o atendimento de seus interesses pessoais, em detrimento da
realização da justiça;
Juízes e servidores forjados numa cultura refratária,
distante dos princípios de gestão administrativa, fundamentais para o bom
andamento dos processos, enfim, uma série de motivos que contribuem para o
alongamento dos processos no tempo.
19
DAVENPORT, Thomas H., Reengenharia de Processos – Como inovar na empresa através da tecnologia
da informação, 5ª. ed., tradução de Waltensir Dutra, Rio de Janeiro, editora Campus, 1994, p. 12.
Vanderlei Deolindo
206
Acredita-se que a morosidade somente será devidamente enfrentada se
forem desenvolvidas ações de macro-gestão, vindas de Brasília, partindo do
Conselho Nacional de Justiça, passando pela Alta Administração dos Tribunais,
pelas Direções de Foro e Chefias das Varas. Não basta somente a padronização dos
processos de trabalho no âmbito das Varas, assim como não basta uma pseudoreforma do Judiciário apenas em linhas gerais na Constituição Federal. A realização
de um Planejamento Estratégico, firmado em profundas reflexões sobre a Justiça
brasileira e local, em qualquer âmbito da Justiça, desde o STF e STJ, passando por
todos os Tribunais e chegando nas Direções de Foro e Varas, permite enxergar que
muito precisa ser desenvolvido. Esse planejamento, no entanto, permite que os
membros de um determinado setor, identifiquem os problemas em geral e em
particular, definindo ações que estejam ao seu alcance para melhorar a situação
presente, prevendo-se as implicações futuras.
No âmbito das Direções de Foro também se pode contribuir, e muito, para
o enfrentamento da morosidade judicial. A identificação das necessidades das
pessoas da organização, o despertar delas para o desenvolvimento de ações que
reflitam em favor da qualidade de vida no trabalho, a elevação da motivação e a
perspectiva de reconhecimentos e ascensão profissional, instituindo-se uma política
local de valorização de pessoas, certamente contribuirá para a soma de forças
visando o atingimento de metas que venham a ser fixadas no desenvolvimento dos
trabalhos em Cartório. A infra-estrutura local muitas vezes pode ser melhorada,
desde que as pessoas reservem algum tempo para ouvirem umas às outras,
apontando as necessidades e sugerindo alternativas para o enfrentamento dos
problemas. O estímulo à comunicação interna e externa depende, e muito, da
habilidade dos Magistrados em direção de foro. Ainda são raras as situações onde
Magistrados se reúnem ordinariamente com os servidores. O acúmulo de trabalho,
embora real, não pode ser desculpa para não se humanizar os ambientes,
oportunizando uma gestão participativa.
A tendência é que ocorra um
compartilhamento das ações, aumentando o grau de envolvimento de um número
cada vez maior de pessoas.
A comunicação externa merece toda a atenção,
exigindo a habilidade dos magistrados para que as informações locais, sejam
Coleção Administração Judiciária
207
administrativas ou jurisdicionais, em sendo interessantes a ponto de serem
transformadas em matéria-prima para notícias, cheguem ao conhecimento do
público externo da forma mais clara possível, a fim de que sejam valorizados os
serviços prestados.
Importa lembrar, em tempos de democracia e crescente
controle dos serviços públicos, que não basta trabalhar muito, como se trabalha no
Judiciário.
Também é fundamental que se dê publicidade ao trabalho que se
realiza, para que se alcance o efetivo reconhecimento da Sociedade.
Esse envolvimento das pessoas da organização com a gestão do foro em
geral termina estimulando o crescente interesse por melhorias contínuas.
Estabelece-se
o
gerenciamento
mais
eficaz
dos
processos
de
trabalho,
padronizando-se rotinas cartorárias e trabalhando-se em cima de metas.
Como
dito, a participação das pessoas tende a ser voluntarioso, no sentido de se atingir
os objetivos previamente traçados. A integração da organização com a Sociedade,
tanto pela melhor prestação de serviços, como pela comunicação, estimula a
participação em eventos que aproximam os trabalhadores da justiça com o povo em
geral, melhorando a auto-estima e indicando reconhecimento ao elevado grau de
participação social.
Em conclusão, o combate à morosidade do sistema judicial deve ser
desenvolvido não apenas com a perseguição de metas em termos de extinção de
processos em tempo menor, o que é salutar e merece louvor. Mas para que os
resultados sejam alcançados com qualidade, se incorporem e se firmem no tempo à
rotina de trabalho das pessoas, é necessário que sejam desenvolvidas várias ações a
serem definidas pelas respectivas Comarcas em Planejamento Estratégico, de
forma a que, articuladas e mediante controle permanente, alcancem resultados
firmados em indicadores que permitam um efetivo gerenciamento. Acredita-se que
é dessa maneira, planejando estrategicamente, desenvolvendo uma cultura de
melhoria contínua no trato dos processos de trabalho, estimulando a participação
cada vez maior de Magistrados e Servidores nas atividades de gestão do Foro,
implementando a comunicação, tornando o dia-a-dia no ambiente de trabalho mais
agradável e com qualidade de vida, que se estimulará a todos e se alcançará
resultados satisfatórios à Sociedade, a razão da existência do Poder Judiciário.
208
Vanderlei Deolindo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Fundamentos e Aplicações, Elsevier editora Ltda, 6ª. Tiragem, Rio de Janeiro,
2004.
COVEY, Stephen R., O 8º. Hábito – Da Eficácia à Grandeza, 7a, ed., tradução de
Maria José Cyhlar Monteiro, Rio de Janeiro, Elsevier Editora Ltda, 2005.
DALLARI, Dalmo de Abreu, O Poder dos Juízes, 1ª. ed., São Paulo, Editora Saraiva,
1996.
DAVENPORT, Thomas H., Reengenharia de Processos – Como inovar na empresa
através da tecnologia da informação, 5ª. ed., tradução de Waltensir Dutra, Rio de
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KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, Vol I, tradução de Valério Rohden e Udo
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Modelagem de Processos de Trabalho, Rio de Janeiro, Qualitymark Editora Ltda, 2004.
MAXWELL, Jonh C., As 21 Irrefutáveis Leis da Liderança, traduzido por Alexandre
Martins, 1ª. edição, Rio de Janeiro, Ed. Thomas Nelson Brasil, 2007.
MOTTA, Paulo Roberto, Formação de Liderança, Apostila do Projeto de Mestrado
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NALINI, José Renato, A Rebelião da Toga, 1ª. ed. , Campinas, São Paulo,
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Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização – GESPÚBLICA, edição
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Relatório Anual da Comarca de Santa Maria, edição 2006, Direção do Foro.
Relatório Estatístico Anual do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, dezembro
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Resumo Estatístico do Rio Grande do Sul, publicado pela FEE - Fundação de
Economia e Estatística, Porto Alegre, RS, 19 de setembro de 2007.
Constituição da República Federativa do Brasil, São Paulo, ed. Saraiva, 2007.
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, site do TJRS.
Código de Organização Judiciária do Rio Grande do Sul, site do TJRS.
Apoio:
Escola Superior da Magistratura
CENTRO DE PESQUISA
“JUDICIÁRIO, JUSTIÇA E SOCIEDADE”.
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