interfaces com a epistemologia de W. O. Quine

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1
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: INTERFACES COM A
EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE.
Maria de Jesus dos Santos
Teresina (PI)
2011.
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: INTERFACES COM A
EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE.
Maria de Jesus dos Santos
Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e
Epistemologia da Universidade Federal do Piauí
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Filosofia sob orientação do professor
doutor Gerson Albuquerque de Araújo Neto.
Teresina (PI)
2011
3
MARIA DE JESUS DOS SANTOS
A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: INTERFACES COM A
EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE
Dissertação apresentada ao programa de mestrado
em Ética e Epistemologia da Universidade Federal
do Piauí (UFPI), como exigência parcial para
obtenção do Título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Gerson Albuquerque Araújo Neto
Aprovada em: 03/10/2011
Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Gerson Albuquerque Araújo Neto
Orientador
__________________________________________
Bortollo Valle
1º Examinador
__________________________________________
Maria Cristina de Távora Sparano
2ª examinado
4
AGRADECIMENTOS
Ao professor doutor Gerson Albuquerque de Araújo Neto pela orientação paciente,
pelas sugestões precisas e pela convivência quase sempre pacífica.
À professora doutora Maria Cristina Távora Sparano pelas contribuições no exame de
qualificação.
Ao professor Helder Buenos Aires de Carvalho pela dedicação incansável ao MEE.
A todos os professores do mestrado em ética e epistemologia.
À minha família que com seu amor incondicional e sincero me faz melhor e mais
corajosa a cada dia, ao meu pai (in memorian) por me ensinar a não me conformar com
o simples e com o fácil.
Aos parceiros da vida: Francisco, Gilson, Socorro Gomes, Raimunda Rodrigues pela
amizade sincera.
Aos amigos do mestrado: Deyvide, Luis Fernando, Osvaldino, Geraldo, Hellen, João
Caetano e André pelo aprendizado mútuo, pela parceria intelectual.
A Deus por ser fonte inspiradora e permanecer comigo quando nem eu mesmo sabia
aonde estava.
A SEDUC, pela liberação integral das atividades docentes, o que possibilitou a
realização deste trabalho.
RESUMO
5
Este trabalho consiste num estudo da filosofia da ciência de Thomas Kuhn, a partir
da revisão das principais categorias que lhe compõe, do confronto de sua teoria com as
ideias dos filósofos da ciência que vigoram em sua época e de aproximações entre seu
empreendimento e a epistemologia de W. O. Quine. Pretendemos demonstrar o caráter
revisional presente no pensamento kuhniano tendo como ponto de partida a análise de
sua obra prima de 1962: A estrutura das revoluções científicas. Esperamos evidenciar
que Thomas Kuhn ao construir e revisar sua filosofia perpetrará elementos relevantes
que indicam um afastamento das teorias da ciência de seu tempo e, ao mesmo tempo faz
aparecer subsídios que sugerem uma proximidade com a epistemologia quineana.
Demonstraremos a partir desta apreciação como ocorrem estas aproximações, que serão
apresentadas aqui sob a forma de interfaces filosóficas. Ambicionamos confirmar a
relevância da filosofia da ciência de Thomas Kuhn, que deve aparecer neste trabalho
como uma iniciativa substancialmente influente em nossos dias. Esperamos com essa
iniciativa atualizar o debate epistemológico da segunda metade do século XX.
Palavras-chave: Filosofia da ciência, Epistemologia, Thomas Kuhn, W. O. Quine,
Interface filosófica.
6
ABSTRACT
This work consists in a study of the philosophy of science Thomas Kuhn, from the
revision of the main categories that you compose, the confrontation of his theory with
the ideas of philosophers of science that exist in his time and of approaches between
your company and the epistemology of W. O. Quine. What if you want to demonstrate
is the revision character present in thought kuhniano having as starting point to the
analysis of his masterpiece of 1962: the structure of scientific revolutions. Expected
evidence that Thomas Kuhn to build and revise his philosophy perpetrate relevant
elements that indicate a move away from the theories of science of his time, and at the
same time brings up subsidies that suggest closeness with quineana epistemology.
Expected highlight from this assessment as occur these approximations, which will be
presented here in the form of philosophical interfaces. We intend to confirm the
relevance of the philosophy of science Thomas Kuhn, who must appear in this work as
an initiative substantially influential in our days. We also update the epistemological
debate of the second half of the 20th century.
Keywords: Science of philosophy, Epistemology, Thomas Kuhn, W. O. Quine,
Philosophical interface.
7
OBRAS DE THOMAS S. KUHN:
A estrutura das revoluções científicas -1962
Reflexões sobre meus críticos - 1970, 2006
Posfácio -1970
Reconsideração acerca dos paradigmas -1974
Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa -1970
Tensão essencial - 1977
O caminho desde a estrutura - 2000
Obras de W. O. Quine:
Dois dogmas do empirismo - 1951
Palavra e objeto (capítulos I, II, III) - 1960
Epistemologia naturalizada - 1969
Falando sobre objetos - 1975
The web of belief (rede de crenças) - 1970
Relatividade ontológica - 1975
8
LISTA DE ABREVIATURAS:
ERC – A estrutura das revoluções científicas
TE – Tensão essencial
CDE – O caminho desde a estrutura
LDPP – Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................09
2 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: UMA NOVA FIGURA
EPISTEMOLÓGICA ........................................................................................................14
2.1 Comunidade Científica ..................................................................................................17
2.2 Paradigma ......................................................................................................................23
2.3 Ciência Normal ..............................................................................................................30
2.4 Revoluções Científicas .................................................................................................37
2.5 Incomensurabilidade......................................................................................................43
3 CINCO TESES DA EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE ....................................51
3.1 Um breve comentário sobre W. O. Quine .....................................................................51
3.2 A epistemologia de W. O. Quine...................................................................................53
3.3 Tese I: os dois dogmas do empirismo ...........................................................................54
3.4 Tese II: aprendizagem de uma linguagem .....................................................................63
3.5 Tese III: indeterminação da tradução e inescrutabilidade da referência ......................67
3.6 Tese IV: holismo semântico e holismo e epistemológico .............................................74
3.7 Tese V: epistemologia naturalizada ...............................................................................79
4 INTERFACE FILOSÓFICA ENTRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE
THOMAS KUHN E A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE....................................84
4.1 Entrecruzamentos conceituais entre Thomas Kuhn e W. O. Quine .............................. 84
4.2 Tópicos objetivos da interface: aproximações e distanciamentos .................................93
4.3 A aprendizagem de uma linguagem e a aprendizagem de uma ciência ........................ 94
4.5 Incomensurabilidade e indeterminação da tradução ......................................................99
4.6 Thomas Kuhn é um epistemólogo natural nos moldes quineanos? .............................. 102
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................116
10
INTRODUÇÃO
No início do século XX já havia se consolidado o modelo de ciência advindo da
racionalidade moderna, aquele arquétipo que principia com Francis Bacon, Isaac Newton,
Renée Descartes passa por David Hume e Immanuel Kant e se concretiza no iluminismo do
século XVIII. O empirismo lógico – neopositivismo- ratifica de algum modo o positivismo
do século XIX e se estabelece como o novo protótipo epistemológico do começo do século
XX. Na Filosofia da Ciência Karl Popper propagava uma nova lógica para pesquisa
científica, adotando um critério falseacionista e, nessa atmosfera epistemológica surge a
filosofia kuhniana em defesa de uma imagem de ciência normal e paradigmática.
Em 1962, Thomas Kuhn lança sua obra prima A estrutura das revoluções científicas
onde apresenta para o ocidente, numa perspectiva descritivo-normativa1, uma nova
abordagem de ciência. É característica substancial desta epistemologia a ênfase dada à
ciência normal e ao caráter revolucionário do progresso científico e, o destaque aos
distintivos sociológicos e históricos que as comunidades científicas possuem.
Thomas S. Kuhn é um filósofo da ciência que iniciou sua carreira acadêmica como
físico. Em seguida, quando ainda estava no doutorado, foi indicado para ministrar uma
cadeira de história da ciência e a partir disso se conduziu para a filosofia da ciência. Quando
adentrou as discussões acerca da história da ciência descobriu que possuía vários juízos e
preconceitos a respeito da natureza da ciência e de seu desenvolvimento e, seria necessário
desfazer-se de muitos deles. Em suas experiências como Júnior Fellow da Society da
universidade de Harvard Thomas Kuhn teve a oportunidade de aprofundar suas ideias e
compreender que as narrativas tradicionais acerca da ciência não tinham conferido relevância
à sua história. Algum esforço nesse sentido deveria ser empreendido.
Como o ambiente da física e da história da ciência não forneceu para este pensador, os
elementos suficientes para suas inquietações (uma delas, que ele mesmo ressalta era o desejo
intenso de saber o que é ser verdadeiro) e, como entendeu que esse desejo não era algo que se
alcançasse pela física, o passo seguinte foi abraçar as questões filosóficas para melhor
compreender a natureza da ciência.
Após o lançamento de sua obra prima inaugura-se uma perspectiva epistemológica que
irá contrapor-se aos ditames da filosofia da ciência tradicional. Essa nova filosofia tem como
1
Esta é uma questão que requer um tratamento mais ajuizado. Thomas Kuhn na obra “O caminho desde a
estrutura”, onde é apresentada uma entrevista, uma espécie de autobiografia, assume que seu esforço
epistemológico possui características descritivas e também normativas, sabemos das implicações deste
assentimento e deveremos tratar dessas questões de modo específico em outras partes deste trabalho.
11
constitutivo uma descrição das práticas científicas que confere grande valor aos seus aspectos
externos sem deixar de dar créditos aos internos. Seu empreendimento visa apresentar uma
explicação das mudanças conceituais que ocorrem no ambiente científico e traz como
principal atrativo a adição de caracteres históricos, sociológicos e psicológicos no modo de se
produzir crenças bem como na maneira de se compreender, produzir e apresentar a ciência.
A ciência e seu desenvolvimento, as razões e a fórmula do seu sucesso e progresso são
apresentadas nas obras de Thomas Kuhn de uma forma diametralmente oposta a de seus
predecessores e contemporâneos2. Essa radicalidade advém do seu envolvimento com a
história da ciência e da vivência de práticas científicas cotidianas experimentadas como
físico. Contudo, são perceptíveis heranças epistemológicas multivariadas nesta teoria.
Sua análise se inicia pela história das idéias científicas e em seguida se deixa afetar por
questões científicas e filosóficas. Interessa-se ainda pela psicologia da percepção, dedicandose com mais obstinação aos estudos da teoria da forma, a Gestalt, esta aparece em alguns
momentos compondo sua teoria. Assume também uma preferência particular pela leitura da
obra do médico e epistemólogo Ludwik Fleck de quem ele diz herdar muitas ideias.
Em 1977 Thomas Kuhn publica o texto Tensão Essencial que tem como objetivo
capital retomar algumas ideias filosóficas já aludidas na obra prima de 1962, porém com
novos olhares. Consta em sua bibliografia uma série de obras menores (em volume, não em
conteúdo) dentre as quais podemos citar Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?
Fruto de um colóquio de filosofia da ciência em 1965, o Posfácio da obra de 1962 que
apareceu somente em 1970, Considerações acerca dos paradigmas de 1974, Reflexões sobre
meus críticos (ensaios escritos entre 1965 e 1969), este aparece também reeditado na obra
kuhniana de 2000. De 1945 até 1999 sua produção foi intensa, lista-se mais de 100 escritos3.
Em O caminho desde a estrutura, obra lançada em 2000, quatro anos após sua morte e
traduzida para o português em 2006, compilam-se e se reformulam ensaios de 1970 a 1993.
Constatamos que neste texto Thomas Kuhn faz uma retomada geral, uma espécie de inspeção
em toda sua teoria. Em nossa avaliação, aparece ali com mais clareza a proximidade da
2
Consideramos nessa afirmativa especificamente o empreendimento dos positivistas lógicos e a teoria da
ciência de Karl Popper.
3
Iremos utilizar nesta pesquisa as seguintes publicações: “A estrutura das revoluções científicas” da
editora Perspectiva, 2006 e a publicação do Posfácio anexa nesta mesma publicação. “Lógica da
descoberta ou psicologia da pesquisa?” In a “Crítica e o desenvolvimento do conhecimento”, org. por
Imre Lakatos e Alan Musgrave, Tradução: Otávio Mendes Cajado, 1970. “A tensão essencial”, Lisboa:
Edições 70, 1989. “O caminho desde a estrutura”, Editora UNESP, São Paulo, 2006.
12
epistemologia de W. O. Quine que ora investigamos. Embora os outros escritos também
tenham sido tomados para se rastrear uma possível influência da doutrina quineana4.
Notamos que a aspiração de Thomas Kuhn era realizar um exercício filosófico profícuo
acerca da ciência e o ecletismo de influências das quais ele se cerca nos ajudam a formar a
crença de que seu interesse era explanar um modus operandis da ciência que possuísse
características dessemelhantes ao que já vigorava. Pretendemos explicitar e delimitar no
decurso desta pesquisa os elementos relevantes que compõem esta estrutura alternativa de
ciência. Nosso principal objetivo é demonstrar a novidade instituída no modo de ver e
descrever a ciência, todavia, deveremos também indicar uma marca herdada por ele de outra
epistemologia. Recorreremos a estas marcas para tentar resolver lacunas explicativas em seu
empreendimento e ou com a pretensão de justificar com maior rigor seus argumentos.
Na primeira seção deste trabalho apresentaremos uma interface interna da filosofia da
ciência kuhniana, onde serão evidenciadas as principais categorias deste sistema históricofilosófico fazendo aparecer o revisionismo tão recorrente neste empreendimento. Será
apresentado o compromisso com um fundamento histórico para ciência e o imbricamento
desta com fatores subjetivos e sociais. Este exercício se efetivará na forma seguinte:
tomaremos inicialmente as categorias kuhnianas “paradigma”, “comunidade científica”,
“ciência normal”, “revoluções científicas” e “incomensurabilidade”, no formato conceitual
que possuem na obra a Estrutura das Revoluções Científicas de 1962 e em seguida se
examinará seus novos conteúdos e consequentemente seus novos usos em obras
intermediárias5; e, finalmente, atualizaremos o teor conceitual das categorias na obra O
caminho desde a estrutura. Assim sendo estabeleceremos uma rota de investigação com
início em 1962 e fim em 2000.
Ao investigarmos o sistema kuhniano, através da análise de seus principais elementos
conceituais, surgir impreterivelmente, como já advertimos, o caráter revisional desta teoria.
Percebemos que não há no autor desta abordagem de ciência nenhum constrangimento em
ressignificar cada um dos termos impetrados a esta filosofia em 1962, deste modo, ao
seguirmos uma linha do tempo, no interior dessa estrutura teórica, esperamos demonstrar
como ocorre em cada um dos textos analisados a reconstrução, o refinamento e até o
4
Esclarecemos que como estamos usando uma publicação da obra de 1962 feita em 2006 e nela está
contido seu Posfácio; como a publicação da obra de 2000 que usaremos também é de 2006, nas citações
iremos identificar as obras na forma seguinte: A estrutura das revoluções científicas (2006 a), Posfácio
(2006 b), O caminho desde a estrutura (2006 c).
5
Estamos considerando aqui os textos: Posfácio da obra de 1962 publicado em 1970, o texto de 1965,
“Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?” Publicado em 1970, a obra de 1977, “Tensão
essencial”, que traz importantes artigos dentre eles o “Reconsideração acerca dos paradigmas”;
consideramos ainda uma importante réplica “Reflexões sobre meus críticos”, publicada em 1970.
13
‘desvirtuamento’ das proposições apresentadas originalmente na obra A Estrutura das
revoluções científicas. Nossa proposta é explanar o processo de atualização conceitual
operada por Thomas Kuhn em sua filosofia da ciência e planejamos fazê-lo através da
descrição e da análise das categorias já mencionadas.
A apresentação da epistemologia kuhniana perfaz-se aqui, mediante a revisão e o
aprofundamento de seus elementos relevantes, tarefa que supomos cumprir quase que
integralmente nas seções iniciais desta pesquisa. Nosso engajamento nesse estudo tem como
fito perpetrar uma apreciação da estrutura conceitual da obra de Thomas Kuhn, mas
entendemos que não podemos negligenciar o exame de influências e relações
epistemológicas que permitiram o alavancar deste empreendimento histórico-filosófico.
Assim, avaliamos ser também de grande valia nos debruçar sobre alguns elementos que
marcaram a construção e a reconstrução dessa iniciativa filosófica. Para tanto na segunda
parte desta análise faremos uma apresentação da epistemologia de W. O. Quine visando, a
partir desta demonstração, responder se algum argumento dos que compõem suas teses têm
interferência na filosofia de Thomas Kuhn, ou seja, daremos ênfase às questões quineanas
que supostamente se aproximam do empreendimento kuhniano.
Destacaremos na segunda seção: os dois dogmas do empirismo, o problema da
aprendizagem de uma linguagem, a indeterminação da tradução, a tese do holismo semântico
e epistemológico e a questão da epistemologia naturalizada. Não descartamos a possibilidade
de haver em outras teses quineanas elementos que também possam está próximo do que
defende Thomas Kuhn, nesse sentido nossa escolha pode ser considerada caótica e até
arbitrária, contudo fomos governados pelo sentimento de proximidade conceitual que víamos
surgir nas primeiras leituras que fizemos destas teorias.
Na terceira e última parte deste trabalho optamos por dar destaque a uma interface
aproximativa e assim sendo examinaremos a relação entre as filosofias quineana e kuhniana.
Entendemos que haja verdadeiramente muitas heranças que auxiliam na formulação de todo
arcabouço teórico de Thomas Kuhn, mas nesse estudo queremos demonstrar esta afinidade
porque julgamos que tenha um valor significativo para o debate epistemológico
contemporâneo. Destarte, na última seção esperamos comprovar com mais tenacidade como
ocorrem as relações conceituais entre estas concepções filosóficas.
Esperamos poder demonstrar na parte final desta análise, pelo levantamento das ideias
contidas nas obras kuhnianas e quineanas, que existem diversos traços que nos possibilitarão
confirmar tal afinidade. Em algumas obras de Thomas Kuhn as marcas podem aparecer como
14
espectros, em outras é possível descrever com riqueza de detalhes as provas de que
precisamos para confirmar nossas conjecturas acerca desse liame conceitual.
Demarcaremos a interface diretamente nas obras estudadas, quando se trouxer as
passagens onde Thomas Kuhn faz referência direta a W. O. Quine, onde ele assume que o
mentor da crítica aos dogmas do empirismo lhe influenciou e o convenceu em muitos
aspectos. Mas demarcaremos, nós mesmos, os sinais existentes nos textos kuhnianos que
assinalam a presença desta influência quineana. Temos certeza que não se esgotará aqui os
pontos de entrecruzamentos entre estas filosofias, nosso percurso é limitado pelo tempo e
pelo caráter da própria pesquisa, mas pretendemos prestar contas ao máximo dessa interface.
Revisando a literatura filosófica, lemos e relemos em diversos trabalhos acadêmicos, em
livros, artigos e outros, sobre o confronto entre Thomas Kuhn e Karl Popper; Thomas Kuhn e
Imre Lakatos; W. O. Quine e Rudolf Carnap, contudo entendemos que a relação entre as
ideias de Thomas Kuhn e as de W. O. Quine não tenha sido ilustrada ainda de forma
satisfatória. Nossa pretensão é explicitar alguns pontos de conjunção, sem negar as
disjunções; queremos ressaltar um conjunto de aproximações sem deixar de reconhecer
possíveis divergências. Aspiramos por este outro viés legitimar de forma mais categórica
nossas convicções de que a filosofia da ciência que escolhemos como objeto de análise é
ainda relevante e muito expressiva; apesar de todo exame crítico que enfrentaram ao longo
destes anos, as ideias contidas nesta filosofia possuem mérito epistemológico. Com esse fim,
concluiremos este trabalho elencando as ocorrências de alguns embricamentos, aproximações
e afastamentos entre a teoria kuhniana e a quineana.
15
2 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: UMA NOVA
FIGURA EPISTEMOLÓGICA.
Nesta seção apresentamos algumas das principais ideias da filosofia da ciência de
Thomas S. Kuhn. A exposição tem como fito a descrição e, a revisão das categorias basilares
que dão estrutura à filosofia kuhniana. Começamos descrevendo cada uma destas categorias
conforme se encontra disposta na obra prima de 1962 A estrutura das revoluções científicas.
Apresentamos em seguida uma interface onde colocamos face a face às questões mais
relevantes trazidas neste texto de 1962 com obras subsequentes como seu Posfácio publicado
em 1970, Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa? Tensão essencial e O caminho
desde a estrutura. Também tratamos, para fins de esclarecimento e contraste, de alguns
pontos contidos nas posições filosóficas de Margaret Masterman, John Watkins, Karl Popper
dentre outros. O objetivo que nos norteia é elaborar uma revisão da filosofia da ciência
kuhniana reafirmando seu caráter alternativo frente às doutrinas mais clássicas que dominam
a nossa tradição filosófica.
Pretendemos aqui elencar e discutir os elementos fundantes dessa filosofia da ciência.
Para tanto, daremos especial destaque à rota da ciência, a sua práxis ordinária e aos seus
caracteres revolucionários; ressaltaremos que na visão de Thomas Kuhn a efetividade da
ciência se delineia conforme duas perspectivas, uma interna e outra externa; a pretensão é
demonstrar o que são paradigmas científicos, como ocorre sua construção, qual o modo de
adesão a eles e como essa categoria se modifica nas diferentes obras kuhnianas.
Apresentaremos também os argumentos que são empregados para se arquitetar a tese da
incomensurabilidade entre paradigmas científicos. Deverá ficar igualmente evidente o que
são, nessa teoria, as comunidades científicas, a ciência normal e, o que se entende por
revoluções científicas.
Prevenimos que o traço revisionista, frequentemente assinalado no empreendimento
kuhniano aqui é necessariamente assumido. Se o próprio autor perpetra esta prática sem
reservas, não tememos trazer em nosso estudo esta particularidade. Em nosso trabalho este
exercício se fará presente especialmente nesta seção. Acreditamos que essa característica
revisional de seus textos se deve primeiramente ao impacto que suas ideias proporcionaram à
filosofia da ciência em vigência na sua época, provocando o julgamento de muitos
pensadores; incitando alguns ataques e consequentemente algumas réplicas. E segundo, a
16
revisão ocorre pela disposição e abertura que Thomas Kuhn apresenta em responder aos seus
críticos (talvez porque as críticas que lhe fizeram fossem, na sua maioria, pertinentes),
acatando algumas orientações, descartado outras, mas, sobretudo, dialogando com aqueles
que ele considerava pares admiráveis no ambiente da epistemologia na segunda metade do
século XX.
Está presente nas obras estudadas algo que podemos denominar como uma espécie de
“questões disputadas”, uma que Thomas Kuhn trava consigo mesmo, recapitulando e
reformulando as categorias que dão base ao seu sistema teórico e outras que ele realiza com
importantes pensadores de seu tempo; estas contendas aparecerão de maneira subliminar
nesta seção.
O que é objetivamente o empreendimento kuhniano? Que imagem de ciência advém
dele? Que figura epistemológica surge a partir das noções impostas por Thomas Kuhn à
filosofia da ciência? Esperamos arregimentar aqui algumas respostas para estas interrogações
e demonstrar através da interface entre suas obras, os argumentos que respondem a estas
indagações.
Como já afirmamos a imagem de ciência kuhniana é uma figura epistemológica que se
delineia pela interface entre diferentes obras. A ciência, seu desenvolvimento, as razões do
seu sucesso e progresso estão demonstrados na filosofia de Thomas Kuhn de uma forma
paradigmaticamente oposta a de seus predecessores e contemporâneos. Mas o que significa
fazer tal assentimento? Quais os elementos que seriam rejeitados dos cânones tradicionais e
quais inovações seriam adicionados a sua epistemologia que a colocaria como antagônica e
ou alternativa as demais? Que transformações seriam efetivadas por sua filosofia da ciência
que a tornaria tão diversa de outras correntes de pensamento na contemporaneidade?
A estrutura kuhniana, como seu mentor mesmo a apresenta, possui uma imagem que
advém dos parâmetros da nova historiografia6. Sua epistemologia possui teses de caráter
descritivo, que se prendem a práxis da ciência. Contudo, em algumas passagens de sua obra
se comprovam afirmações, avisos, de que suas teses são ainda normativas, o que se prefigura,
no nosso entendimento, uma questão espinhosa para ser explicitada. Se sua filosofia da
ciência ainda resguardar padrões normativos pode entrar em choque com muitas orientações
6
Thomas Kuhn assume essa influência da nova historiografia em diversas passagens, mas é importante
que nos lembremos de algumas questões referentes a esta doutrina. Primeiro devemos apontar para a
polissemia que envolve essa categoria e para dificuldade de saber a qual linha Kuhn estaria se dirigindo e
se agregando. Supomos que ele se apegue teoricamente mais proximamente ao pensamento de Ortega y
Gasset quando defende a chamada teoria da história, cujo papel é o de estudar a estrutura, leis e
condições da realidade histórica. E segundo, que ele se vincule sempre ao modelo de ciência como o
apresentado pelo médico e epistemólogo Ludwik Fleck.
17
que regulam a nova fórmula de se fazer história. E se ele pretende de fato compatibilizar
descritivismo e normatividade, talvez Thomas Kuhn não seja um discípulo obediente da
doutrina que diz defender (a nova historiografia não se assume como normativa).
Suas generalizações acerca da ciência “dizem respeito à sociologia ou a psicologia
social dos cientistas, ainda assim algumas conclusões pertencem tradicionalmente à lógica ou
à epistemologia” (KUHN, 1962, p. 22). Utilizando-se de todo esse entrelaçado de influência
esta filosofia procura demonstrar: a) a insuficiência das diretrizes metodológicas da ciência
(presentes na epistemologia vigente) que acreditam “ditarem por si só, uma única conclusão
substantiva para as várias espécies de questões científicas” (KUHN, 2006a, p. 22); b) os
caracteres e a significância da ciência normal e c) a ciência paradigmática através de
episódios marcantes de sua própria história.
Ambicionamos aqui evidenciar que na filosofia da ciência de Thomas Kuhn há uma
ciência normal que se constitui na tarefa que os cientistas executam numa determinada
comunidade científica. Esta última é composta por homens da ciência que estabelecem um
paradigma, seguem-no e o ensinam aos neófitos7. O paradigma (em seu sentido forte) se
impõe como um dogma8 que se sobrepõe arbitrariamente sobre aqueles que atuam em
laboratórios de pesquisa e nas universidades, em um determinado período histórico. Contudo,
os paradigmas não servem o tempo todo, pelo menos integralmente, eles entram em crise e
podem mesmo serem desprezados. Ocorrem, em consequência desse processo, as chamadas
revoluções científicas que fazem emergir novos paradigmas, incompatíveis com seus
antecessores. Isso tudo implica o que será nomeado de incomensurabilidade entre
paradigmas, no que se refere às suas estruturas conceituais.
Os elementos em destaque acima são selecionados por nós como aqueles que constituem
a base estrutural da filosofia da ciência de Thomas Kuhn e passam agora a serem examinados.
Colocaremos um a um, face a face, no interior das obras escritas entre 1962 e 2000 e esperamos a
partir deste exercício conseguir provar suas atualizações, ajustamentos, ressignificações. O que
pretendemos é demonstrar o caráter arrojado da teoria kuhniana frente a outras interpretações da
ciência.
7
Neófitos aqui são os indivíduos iniciantes numa ciência, segundo Thomas Kuhn eles são ensinados para
aderir e compartilhar o paradigma vigente em sua área de atuação; eles são bons leitores dos principais
manuais de sua área e aprendem a solucionar quebra cabeças de acordo com estes manuais.
8
O termo dogma possui uma força conceitual na obra kuhniana de 1962, mas esta força diminui
consideravelmente até a obra de 2000. Anote-se ainda que Karl Popper em seu importante artigo “A
ciência normal e seus perigos” criticará com veemência essa perspectiva de ciência dogmática
apresentada por Thomas Kuhn.
18
2.1 - Comunidade Científica – o lócus histórico e social de construção da
ciência.
A comunidade científica como aparece em A estrutura das revoluções científicas
(nomeada a partir de agora na forma abreviada de ERC) é o recinto da práxis científica; o
espaço humano onde se efetiva o modus operandis da ciência, e, a superestrutura onde se
concretiza a ciência normal e consequentemente onde ocorre toda a pesquisa que implicará
na produção do conhecimento científico:
A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade cientifica pense
ter adquirido respostas seguras para perguntas como as seguintes: quais as
entidades fundamentais que compõem o universo? Como interagem essas
entidades umas com as outras e com os sentidos? Que questões podem ser
legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser
empregadas na busca de soluções? (KUHN, 2006a, p. 23).
É nessa comunidade, onde se dá a emergência das descobertas científicas e de tudo que
sobrevêm delas: a formação de crenças, a fabricação do paradigma exemplar, os métodos e
técnicas a serem manipulados, os desacordos, os consensos, os conflitos, o jogo de poder, o
estabelecimento das regras para adesão ao paradigma e todos os procedimentos que garantem
a vigência deste. É ali também onde ocorrem as crises, se detectam anomalias e onde se faz
os ajustamentos na ciência.
Como é descrita em 1962, comunidade científica é uma entidade social extremamente
particular que possui uma natureza completamente diversa de qualquer outro tipo de
comunidade. Esta comunidade sobrevive de um paradigma e este depende igualmente dela.
Explicada numa estrutura circular, essa relação encontra-se exposta na forma seguinte: “um
paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma
comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 2006b, p.
221). Entretanto, no Posfácio desta obra publicado em 1970, considerado por nós como uma
segunda revisão teórica elaborada por Thomas Kuhn9, já se corrige essa circularidade e é
possível se verificar daí em diante uma versão amenizada do que seja comunidade científica:
9
A primeira revisão é realizada no colóquio de filosofia da ciência realizado em Londres em 1965. As
atas desse colóquio transformaram-se em livro com publicação em 1970. Dali é possível retirar uma série
de reflexões entre Kuhn e os muitos filósofos presentes. Nessa oportunidade este autor já começa a
discutir e rever alguns pontos de sua filosofia.
19
Uma comunidade científica é formada pelos praticantes de uma especialidade
científica. Estes foram submetidos a uma iniciação profissional e a uma educação
similares, numa extensão sem paralelos na maioria das disciplinas. Neste
processo absorveram a mesma literatura técnica e dela retiraram muitas das
mesmas lições (...) em geral cada comunidade possui um objeto de estudo
próprio (KUHN,
2006b, p. 222).
Posterior a esta inspeção e mutação do termo comunidade científica se constata o
surgimento de algo diferenciado, derivado dela, mas com menos abrangência, menor força
conceitual e epistemológica. Há também a remoção da circularidade. O que se evidenciará a
partir de tal alteração está mais próximo de “comunidades científicas” onde o plural se
justifica pelo novo contorno desenhado por Kuhn. Ao alegar o termo “especialidade
científica”, como está feito acima, somos conduzidos a admitir que comunidades científicas
convivam, cada uma operando de acordo com um corpo de crenças, com objetos e objetivos
exclusivos.
Julgamos que essa mudança de percepção quanto à comunidade científica acontece de
maneira mais categórica devido à revisão de outra categoria do esquema conceitual kuhniano,
que é o paradigma, e, se dar também pela negação da vinculação circular paradigmacomunidade científica.
Analisado demasiadamente pelos seus críticos, paradigma é um tópico da
epistemologia kuhniana que exige profunda re-elaboração, daremos atenção a ele numa outra
seção deste trabalho. Por enquanto é oportuno realçar somente a circularidade apontada por
muitos críticos e assinalar que esta circularidade é reconhecida e modificada gradualmente
por Thomas Kuhn e, que a partir de 1970 ocorre consequentemente uma cisão entre estas
duas variáveis de sua teoria; constatamos que se amortece o grau do vínculo e se altera a
própria forma do vínculo entre as comunidades e paradigma. Examinemos nessa passagem
do Posfácio como se dá certa reviravolta conceitual referente a este problema:
As comunidades podem e devem ser isoladas sem recurso prévio aos paradigmas
e em seguida estes podem ser descobertos através do escrutínio do
comportamento dos membros de uma comunidade dada (KUHN, 2006b, p. 222).
Haveria então, sucedendo a esta nova compreensão, a defesa clara de “comunidades
científicas” sem um paradigma a priori, este permanece existindo, mas brotaria concomitante
20
ao processo organizativo da própria comunidade, e, sua estrutura comunitária seria
organizada numa espécie de escalonamento “a comunidade mais global é composta por todos
os cientistas ligados às ciências naturais, em um nível inferior estariam os principais grupos
científicos profissionais: físicos, químicos, astrônomos, zoólogos” (KUHN, 2006b, p. 223); a
forma estrutural que define uma comunidade científica contribui para tornar possível o
funcionamento efetivo do empreendimento científico e, assim sendo este tipo de grupo se
legitimaria pelo grau de especialização de seus membros. O que determinaria sua
estruturação e organização seria: “possuir a mais alta titulação, participar de sociedades
profissionais, ler periódicos especializados” (KUHN, 2006b, p. 223). Isto se constituiria em
condição suficiente para fazer funcionar as comunidades científicas.
No Posfácio, 1970 comunidades científicas existem e coexistem, consequentemente
não se admite que haja cientista operando ou tomando decisões isoladas, de acordo com suas
convicções e intuições. Ainda que sua pesquisa seja a mais apropriada para investigar um
fenômeno específico, que seja um pesquisador muito responsável, que possua uma postura
adequada e que tenha altos índices de resolutividade de casos, não se reconhece que o
cientista possa tomar decisões independentes, o consenso é forçoso no interior desse tipo de
comunidade. Somente a comunidade de especialistas tem o poder de decisão. Há um
conjunto de valores, nem sempre harmônicos que deverão convergir e ser compartilhados
para que determinada comunidade opere com o sucesso desejado e leve o grupo a considerar
um conjunto de argumentos como melhor que o outro. É um processo persuasivo o que
ocorre no interior das comunidades científicas, todavia, a convergência (o consenso) é
condição necessária nesse recinto.
Outro item imprescindível desta estrutura comunitária seriam seus processos de
comunicabilidade. A comunicação se estabeleceria através de redes formais e informais onde
seriam distribuídas, comunicadas e levadas a reconhecimento público as descobertas
científicas. Mesmo estando em diferentes espaços geográficos, espalhados pelo mundo a
fora, reinaria sobre os membros de uma comunidade científica, ao menos no período de
ciência normal, uma espécie de unanimidade teórica que lhes faria unificar vocabulários,
interesses, objetos de investigação, procedimentos metodológicos e, o mais formidável, este
espírito lhes imporia os problemas relevantes e as alternativas razoáveis para resolvê-los. As
estratégias de comunicabilidade traçadas e utilizadas numa comunidade se constituiriam
deste modo, num artifício estratégico que possibilitaria a tessitura das idéias, das descobertas,
das invenções de todos os partícipes desta seleta comunidade. Em geral, na visão kuhniana os
cientistas duma comunidade científica se entendem, ainda que algumas vezes discordem.
21
É certo que a filosofia da ciência e seus empreendedores tenham se empenhando
historicamente em compreender preferencialmente o contexto de justificação dos
conhecimentos e verdades científicas e que a discussão sobre as comunidades científicas não
seja relevante para muitos. A tradição impetrou e defendeu um afastamento abissal entre os
contextos de descoberta e de justificação, prestigiando este último e relegando toda e
qualquer discussão sobre o primeiro para as ciências empíricas. Foi e permanece sendo
pouco importante examinar e desvendar o plano, as estruturas de onde emergem ou onde se
“fabricam conhecimentos científicos” 10. Isto tudo tem conduzido epistemólogos a pensar tão
somente sobre a validade, a simplicidade, a clareza, o alcance, o grau de resolutividade e a
abrangência de cada um dos postulados, leis e corolários da ciência.
Na base de todas as investigações epistemológicas e também científicas o contexto
de justificação tem sido consequentemente o mais reverenciado; defende-se um estatuto
privilegiado para o conhecimento científico que ressalta essa estratégia positivista; só há
legitimidade e aceitação, por parte da tradição, daquele tipo de conhecimento que não
reconhece e até rejeita a história como forjadora de verdades. Não se tem problematizado e
levado a sério os modos como se arquitetam o conhecimento. Os cientistas são idealizados
como seres despregados do mundo e de seus grupos; são pensados como inventores de um
novo mundo, objetivo e imparcial. Méritos cognitivos individuais são supostamente aceitos e
frequentemente incentivados quando se privilegia apenas o contexto de justificação de
verdades científicas. Este tipo de regalia dada ao contexto de justificação infirma a
efetividade das comunidades científicas.
A teoria ora estudada parece não ignorar nem rejeitar nenhum dos elementos partícipes
do contexto de justificação arrolados acima, além disso, não encontramos em Thomas Kuhn a
intenção clara de desobedecê-los. Entretanto, observamos que no interior do empreendimento
epistemológico kuhniano foi adicionado a categoria “comunidade científica” com a pretensão
de tornar relevante o contexto de descoberta de crenças e assim valorizar também os fatores
subjetivos presentes na ciência, tanto na fabricação de verdades como na escolha entre teorias
rivais:
O meu ponto é, portanto, que toda escolha individual entre teorias rivais- numa
comunidade cientifica dada- depende de uma mistura de fatores objetivos e
subjetivos, ou de critérios partilhados ou individuais, visto que os últimos não
parecem em geral na filosofia da ciência, meu realce sobre eles fez que a minha
10
Esta expressão é utilizada por Alan Chalmers na obra “Science and its fabrication” de 1990, traduzida
para o português em 1994 com o título “A fabricação da Ciência”.
22
crença nos primeiros não tivesse sido percebida pelos meus críticos (KUHN,
1989, p.389).
A investigação kuhniana repta a tradição e opta por outro trajeto. Direciona-se para
um caminho transversal ao que se costumava fazer na filosofia da ciência. Ou seja, Thomas
Kuhn examina aspectos negligenciados historicamente e ainda pouco explorados na
epistemologia visando realçar o contexto de descobrimento, de fabricação e de produção das
verdades científicas; nessa nova estrutura os elementos da história, da psicologia e até da
sociologia passam a ganhar relevância e a aparecer como imbricados com a práxis científica.
Com este deslocamento de rota Thomas Kuhn analisa um solo esquecido por Neopositivistas
e pouco frequentado por Karl Popper, Lakatos, Watkins e outros. Investigar o contexto de
descoberta da ciência nas décadas de cinquenta e sessenta, como se faz nessa abordagem, é
desempenhar uma atividade de segundo grau; naquele momento histórico este ainda era um
exercício filosófico considerado ilícito na epistemologia.
Os neopositivistas e até Karl Popper conferem valor somente as discussões acerca do
contexto de justificação do conhecimento científico, Karl Popper chega a declarar “a miséria
do historicismo” e a propalar a idéia de um conhecimento objetivo. No entanto, como se
comprova na vasta produção kuhniana nada o inibiu. A prova disso são passagens como a
que temos abaixo onde se pode constatar sua intrepidez:
Começarei por perguntar como é que os filósofos da ciência puderam
negligenciar, durante tanto tempo, os elementos subjetivos que, garantem eles,
entram regularmente nas escolhas teóricas reais feitas pelos cientistas
individuais? Por que razão estes elementos lhe parecem apenas um índice de
fraqueza humana, e não um índice da natureza do conhecimento científico?
(KUHN, 1977, p. 389).
Havia nessa filosofia uma pretensão manifesta de elucidar também os fatores
exteriores à ciência, ou seja, compreendia-se que os elementos externos que tornam a ciência
possível, legítima são igualmente importantes e assim sendo é cogente o uso de estratégias
que caracterizem e ressaltem sua estrutura comunitária, bem como é forçoso evidenciar a
força criadora e inventiva desta, tanto no que se refere a sua prática normal como também na
erupção dos momentos de crise e na transformação das diretrizes de pensamento e
consequentemente do paradigma. Julgamos que somente deste modo era plausível justificar o
novo desenho que se remodela para a ciência; a assimilação de critérios subjetivistas na
ciência só parece possível se junto a isso ocorrer uma adesão ao que se caracterizou aqui
como comunidade científica. Podemos com isso inferir que as comunidades científicas são
23
como elemento-parte da teoria kuhniana, o que engendra o funcionamento de todo o resto e
aquilo que definitivamente reafirma sua preocupação com o contexto de descoberta de
crenças. Thomas Kuhn parece realmente crer que a coletividade na ciência seja um bem
epistêmico.
Uma compreensão histórica da ciência, quando se escolhe respeitar critérios
subjetivistas, irá exigir certos ajustamentos teóricos- metodológicos e um deles é
impreterivelmente a confiança na efetividade de comunidades científicas. Ou seja, é
necessário dar-se créditos a esta estrutura para que se tenha como produto a firme noção da
interferência da história no conhecimento científico.
Contudo, é pertinente lembrar que no uso corrente do termo comunidade, seja ela
científica ou de qualquer outra espécie, é-lhe dado como sinônimo “algo formado por homens
que possuem um sistema comum de valores, de interesses, de crenças”, de tal modo que as
considerações aqui erigidas podem ter implicações éticas, sociais, morais e políticas, isto é, a
filosofia da ciência kuhniana pode trazer a tona elementos que transcendem ao campo
epistemológico, todavia seu foco de investigação se conserva no recinto da epistemologia.
Em O Caminho desde a estrutura, 2000, (apresentada a partir de agora como CDE) é
possível se apreender uma modernização conceitual da categoria comunidade científica bem
mais abreviada. Notamos que esta se converterá em comunidade linguística e nessa nova
acepção lhe será concedido um uso refinado: “Mudanças nas expectativas a respeito dos
referentes de um termo para espécie são (...) mudanças em seu significado, de tal modo que
apenas uma variedade limitada de expectativas pode ser acomodada em uma única
comunidade linguística” (KUHN, 2006c, p. 283). Uma comunidade linguística é aquela que
por um tempo determinado se apropria de um conjunto de palavras para poder dizer sobre um
conjunto limitado de coisas. Esta comunidade, como lida como questões de evidências e fatos
deve contar com a possibilidade de a médio ou longo prazo ir fazendo alterações
significativas em seu léxico, estas mudanças são imprescindíveis e haverão momentos em
que elas podem implicar num estrangulamento:
Os períodos em que uma comunidade linguística realmente emprega termos
superpostos para espécies acaba em uma de duas maneiras: ou um toma
inteiramente o lugar do outro, ou a comunidade se divide em duas, um processo
não dessemelhante à especiação e que é, como sugeri mais tarde, a razão para a
especialização cada vez maior das ciências (KUHN, 2006c, p. 285).
Vista sob este ângulo comunidade linguística é o subproduto de um tipo de
incomensurabilidade linguística que ainda sobrevive na estrutura teórica kuhniana.
24
Observamos que nesta perspectiva atualizada como aparece em CDE comunidade
linguística, revisada no presente, indica tão somente a reunião de certos indivíduos que não
pertencem ou possuem uma “linhagem especial”
11
mas que diferentemente estão preparados
ou em estágio de preparação numa especialidade científica e que comungam um léxico
específico fazendo dele a legenda para suas investigações, criações e inventos. Logo, ao ser
re-significada comunidade científica só deve ser compreendida como um tema linguístico,
nada além disso.
Seria esta conversão uma ratificação do processo de vinculação definitivo que ocorrerá
entre a filosofia da ciência de Thomas Kuhn e os postulados semânticos? Acreditamos que
sim, e, percebemos que pelo exercício de aproximar deliberativamente ciência e linguagem,
esta categoria padeceu de uma radical mutação. Uma comunidade linguística, conforme se
entende aqui, é somente um grupo privativo de peritos que cria, domina e emprega um léxico
comum e que se utiliza dele como referência para efetivar suas práticas ordinárias por um
curto período de tempo, haja vista a proliferação das especialidades da ciência nos dias de
hoje; o tipo de glossário exclusivo, partilhado nesta comunidade, possibilitará que se opere
com algum grau de concordância e harmonia conceitual.
É assim, com este novo perfil que deverá ser entendido atualmente o que antes era
denominado de comunidade científica. Como está manifesto, há nesse tópico da teoria
kuhniana, uma perda conceitual irremediável, abrupta. Outrora comunidade científica se
assemelhava a uma religião por sua estrutura dogmática, hoje é um grupo de especialistas que
compartilha um dicionário técnico.
2.2- Paradigma – conceito chave da filosofia de Thomas Kuhn.
A introdução do termo paradigma ao discurso epistemológico projeta Thomas
Kuhn para um grau considerável de ineditismo. Como é apresentada e defendida em ERC, a
categoria paradigma força o rompimento da filosofia da ciência ora examinada com muitas
iniciativas antes realizadas nesta área de investigação.
Conforme está publicado em ERC paradigma pode ser proferido e interpretado de
maneira extensa. Selecionaremos a seguir algumas passagens onde se pode verificar esta
extensão. Alguns críticos, dentre eles Margaret Masterman, alegam uma variância de sentido,
11
Thomas Kuhn utiliza-se essa expressão de forma irônica em sua obra “O caminho desde a estrutura”,
2006c, p. 175.
25
uma polissemia cercando esse termo e disso trataremos posteriormente, por ora verificaremos
como ocorre sua exposição e qual seu papel epistemológico na estrutura teórica kuhniana em
1962.
Em sua primeira aparição na ERC o termo paradigma se assemelha as “realizações
científicas que serviram por algum tempo para definir implicitamente os problemas e
métodos legítimos de um campo de pesquisa para gerações posteriores de praticantes da
ciência” (KUHN, 2006a, p. 30), estas “realizações científicas” devem se estabelecer como
fortes e inovadoras o suficiente para conseguir agrupar e coligar muitos cientistas, ao tempo
em que também devem ter o poder de afastar o praticante de uma ciência de qualquer outra
linha de pesquisa.
Como arquétipo característico de paradigma, nessa forma conceitual, cita-se a mecânica
newtoniana que por um período específico da história da física foi um tipo de realização
científica que permitiu a coesão de um grupo de operadores da ciência e ao mesmo tempo
beneficiou sua separação de qualquer outro parâmetro.
Em algumas passagens da ERC, mais notadamente no capítulo a rota para ciência
normal, o conceito de paradigma equivale a “realizações científicas” e noutras aparece como
sinônimo de “tradições de pesquisa” e de “corpo de crenças comuns”. Um exercício que
muito nos chama atenção é vincular ainda em 1962 a categoria paradigma a um campo de
estudo. Ao se percorrer estas linhas kuhnianas é possível capturar esta novidade, observe: “o
novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do campo de estudo” (p.39) e
novamente “desde a antiguidade um campo de estudos após o outro tem cruzado a divisa
entre o que o historiador poderia chamar de sua pré-história como ciência e sua história
propriamente dita” (p. 41), nessa outra passagem isso se explicita com maior claridade:
Quando um cientista pode considerar um paradigma como certo, não tem mais
necessidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo
de estudo começando pelos primeiros princípios e justificando o uso de cada
conceito introduzido (KUHN, 2006a, p. 40).
Se paradigma nesta ocasião já está conceituado como “campo de estudo” podemos
inferir que nessa acepção já é possível ser confundido com uma área científica ou com
alguma especialidade desta. Se for assim, identificamos ainda em 1962 uma distância e um
arrefecimento substancial do seu conteúdo primeiro e um prenúncio de seu uso mais recente.
Um uso ainda menos extenso do termo poder ser verificado quando ele se conecta ao
conceito de teoria, “para ser aceito como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas
26
competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os
quais pode ser confrontada” (KUHN, 2006a, p. 38), ou seja, num período de pré-ciência há
um leque de teorias circulando como pretensas solucionadoras de problemas (puzzles), mas
uma delas, pelo menos para um grupo, sobrepõe-se sobre as demais.
Ao equiparar paradigma a teoria se empreende um uso minimamente dilatado do termo
se comparado a “tradição de pesquisa”, contudo, ainda é mantido o objetivo inicial, qual seja
resguardar a ideia reguladora e norteadora que tanto se quis conservar na essência do que seja
um paradigma. De certa maneira uma teoria, uma lei ainda é um imperativo que neste sentido
rege alguns procedimentos científicos, e sugere de qualquer jeito um modus faciendis, o que
blindaria de certo modo a proposta kuhniana. Entretanto não queremos negar as dificuldades
que existem em se nivelar categorias que invariavelmente tem aplicações e usos bem
diferentes.
Independente da polissemia que lhe envolve, paradigma passa a ser, de 1962 em diante,
o protagonista da filosofia kuhniana e, será designado e empregado como o conceito-chave
em torno do qual se articulam todos os outros componentes desta nova epistemologia.
Comunidade científica, ciência normal e incomensurabilidade, dentre outros, passam a
ganhar vida e sentido devido ao seu embricamento com essa categoria-mor de Thomas Kuhn.
Como um “motor primeiro” paradigma, apresentado nesta versão forte, é um daqueles
elementos expressivos, determinantes, que produzem o movimento, a forma e o conteúdo de
uma estrutura teórica.
Porque Thomas Kuhn parece realmente ter cometido tantos deslizes quanto a este
quesito? Entendemos que sua pretensão naquela época era construir e lançar uma inovação na
imagem de ciência e para tanto, cometer certos exageros ou algumas escorregadelas no uso
conceitual de paradigma, acabou sendo uma estratégia alternativa. Algumas vezes na história
este é um traço característico de quem quer apresentar mudanças. Aceitamos este modo de
ver e agir naquela ocasião, ao menos no que se refere ao termo paradigma, considerando três
aspectos: primeiro a plausibilidade, a pertinência e a magnitude do seu empreendimento
naquela ocasião histórica. Segundo, por constatar que Kuhn posteriormente toma conta desta
categoria, revisando e reformando seu conceito em oportunidades subsequentes, dando-lhe
um uso polido, circunscrito e às vezes até desistindo dele. Terceiro, porque consideramos ser
mais razoável se cometer alguns equívocos quando se tem como objetivo realizar alterações
substanciais numa estrutura do que permanecer numa zona de conforto, rezando em doutrinas
epistemológicas vigentes, mesmo discordando delas.
27
A presunção kuhniana de 1962 era arrojada, havia a pretensão de dar impulso ao debate
filosófico e histórico da ciência e se tinha em vista impactar a epistemologia da época, uma
vez que esta permanecia firmemente unida a elementos lógico-empírico-verificacionistas.
Notamos que quando se adiciona noções fortes como a de paradigma e incomensurabilidade
ao debate epistemológico o anseio é apresentar uma imagem de ciência compatível com a
história da ciência e descrevê-la numa estrutura que permaneça crível, plausível e autêntica,
apesar dos sinais subjetivos. Atividade que muitos pensadores dizem ser impossível.
Esta abordagem da ciência tem finalidades diferentes da que já vinha sendo efetivada
na filosofia, a primeira delas é seu objetivo epistemológico que se evidencia no vigor das
investigações sobre o conhecimento científico, sobre o estatuto da ciência e sobre seu
famigerado progresso e ainda na sua análise das estruturas interna e externa da ciência;
assegura-se uma ciência normal e ao mesmo tempo se vislumbra episódios revolucionários.
A segunda finalidade é histórica, que possibilitará a compreensão de uma relação ciênciatempo. Tempo de continuidades, tempo de rupturas e tempo de descontinuidades na ciência.
A própria ERC é um bom exemplo de estrutura paradigmática (parafraseando seu autor)
porque lança mão de um conjunto de conceitos incomensuráveis com outras versões de
filosofia, estes seus conceitos comporão um quadro novo para o que passa a ser designado de
ciência e, o corpo de crenças que compõem esse quadro se contrapõe aos estilos mais
correntes de se descrever e interpretar a ciência na contemporaneidade.
Margareth Masterman, linguista e filósofa britânica que analisou e criticou o uso abusivo
do termo paradigma em ERC, indicou algumas imprecisões e forte polissemia na sua
aplicação. Apesar de considerar Thomas Kuhn um dos mais notáveis filósofos da ciência do
nosso tempo, ela realiza um estudo de sua obra de 1962 que dependendo da interpretação que
se faça poderá ecoar como uma crítica severa, mas talvez não seja o caso. Em seu artigo A
natureza de um paradigma aparece dois problemas que qualificamos como relevante:
a- A autora considera a obra de 1962 cientificamente clara e filosoficamente obscura
(MASTERMAN, 1970, p. 73);
b- E considera também o uso da categoria paradigma - dita central na estrutura
conceitual de Kuhn - polissêmico, desordenado e de natureza bem distinta
(MASTERMAN, 1970, p. 75).
O primeiro problema indicado ocupa objetivamente somente as primeiras linhas de seu
paper, mas encontra-se subliminarmente imbricado ao segundo problema. A obscuridade
filosófica detectada como problema “a” parece está justamente na efetividade do problema
28
“b”, o que nos remete inicialmente a dizer que há em Masterman apenas um problema ou que
se houverem dois, encontram-se bem acoplados.
Trataremos do argumento contido no problema “b”, tomado por nós como mais
proeminente e assim arriscaremos compreender e dirimir também o problema “a”. Como já
dissemos outrora Mastermam indica uma multiplicidade conceitual nas definições de
paradigma dadas por Thomas Kuhn, “de acordo com minha contagem, ele empregava a
palavra “paradigma” em pelo menos vinte e um sentidos diferentes” (MASTERMAN, 1970,
p. 75).
Não queremos nos tornar aqui masternianos, longe disso, mas achamos por bem
rememorar em detalhes os usos da palavra paradigma assinalados pela autora: uso 1realização científica universalmente reconhecida, uso 2- mito, uso 3- filosofia ou constelação
de perguntas, uso 4- manual, obra clássica, uso 5- como tradição, como modelo, uso 6realização científica, uso 7- analogia, uso 8- especulação metafísica bem-sucedida, uso 9dispositivo aceito na lei comum, uso 10- fonte de instrumento, uso 11- ilustração normal, uso
12- expediente ou tipo de instrumentação, uso 13- baralho de cartas anômalo, uso 14- fábrica
de máquinas-ferramentas, uso 15- figura de gestalt que pode ser vista de duas maneiras, uso
16- conjunto de instituições públicas, uso 17- modelo aplicado a quase-metafísica, uso 18princípio organizador, uso 19- ponto de vista epistemológico geral, uso 20- novo modo de
ver, uso 21- algo que define ampla extensão de realidade12.
Esta multiplicidade de definições conforme o entendimento de Masterman é aleatória, o
que leva esta estudiosa a tentar ordenar ou racionalizar o seu uso. Tentando resolver a
questão ela aglomera os vinte e um usos em três grupos e indica para cada um destes grupos
um tipo de paradigma, reduzindo assim essa categoria kuhniana a três conceitos ou
perspectivas. Surgem com isso um paradigma sociológico, um paradigma metafísico e um
paradigma de construção. Seriam parte do paradigma sociológico os usos 1, 6, 16, 9.
Constituiriam o paradigma metafísico os usos 2, 8, 5, 20, 18, 21 e participariam do paradigma
de construção os usos 4, 10, 11, 7, 12, 13, 14, 17.
A esperteza dessa sutil divisão garante a esta autora alguns créditos, mas ela mesma se
questiona quanto a sua plausibilidade, e assume sua imprecisão:
É evidente que nem todos esses sentidos sejam incompatíveis entre si: alguns
podem elucidar outros. Sem embargo, dado a diversidade, é obviamente razoável
perguntar: haverá alguma coisa comum entre todos? Haverá, filosoficamente
12
Esta exposição pode ser encontrada de forma detalhada na obra de Margaret Masterman “A natureza de
um paradigma”, 1970, p.75-78.
29
falando, alguma coisa definida ou geral acerca da noção de paradigma que Kuhn
está tentando esclarecer? (MASTERMAN, 1970, p. 78)
Quanto às indagações acima, nosso estudo revela-se positivo, mesmo que as resposta
kuhnianas só possam ser dadas através da reformulação do conceito de paradigma.
Apesar de gastar tempo numa análise demorada Masterman se apresenta como kuhniana
e em algumas linhas de seu texto faz uma oposição austera a pensadores como Popper.
Noutras linhas ela aponta o empreendimento kuhniano como um “simples guia geral” (p.73),
útil à ciência. Em seguida faz prescrições do tipo: “a ciência mais ou menos como Kuhn a
descreve é também a ciência como deve ser exercida” (MASTERMAN, 1970, p. 74).
Consideramos seu estudo pertinente, ao menos em parte, mas notamos que algumas questões
ficam em aberto e que se levantam problemas herméticos que nos permite lhe dedicar o
mesmo rótulo que ela destinou a Thomas Kuhn – obscura. Entretanto devemos reconhecer
que o problema da polissemia nessa teoria é real e que destacar os aspectos metafísicos do
paradigma como foi feito por essa linguista é algo relevante e pode nos servir posteriormente
nesse estudo.
Entretanto, nossa leitura de Mastermam é inquietante, ela batiza de obscura a obra de
Thomas Kuhn, porque esta no seu entendimento requer um exercício apurado de
interpretação, ou porque tem resultado em interpretações nem sempre similares. Ela se diz
cientista e imagino que só assim seja possível reconhecê-la, pois na história dos
empreendimentos filosóficos não há um texto sequer que contenha uma objetividade
suficiente para blindar suas interpretações. É evidente que filosofia nunca foi literatura nem
poesia, mas a dificuldade para interpretar Kant, Espinosa, Hegel, Heidegger não lhes faz
menos filosóficos, ao contrário, talvez seja essa mesma a natureza da filosofia, mas
Masterman não conseguiu enxergar isso, é uma cientista.
No texto Reflexão sobre meus críticos, 1970 já é possível perceber a recepção de
Thomas Kuhn a algumas críticas de Masterman, verificamos que ele acata parte de sua
análise redefinindo de alguma maneira o que pretendia dizer com paradigma em 1962 e, o
que passa a dizer sobre paradigma após essa reflexão já é fruto de uma revisão. Reconstruído
no Posfácio também de 1970, paradigma fica mais próximo de “matriz disciplinar” e efetivase como: a) generalizações simbólicas, mais gerais e flexíveis; b) como compromissos
ontológicos, analogias, grupo de valores, modelos considerados legítimos numa dada
30
comunidade científica; c) exemplares compartilhados, aplicações-protótipos a serem testados
em casos particulares13.
Nesse processo de atualização conceitual, notamos também que no texto de 1974
Reconsiderações acerca dos paradigmas se encontra mais uma ressignificação do que seja
um paradigma, ele aparece apenas com dois sentidos específicos:
Qualquer que seja o número de usos de “paradigma” no livro dividem-se em dois
conjuntos, que exigem nomes diferentes e discussões separadas. Um sentido de
paradigma é global, abarcando todos os empenhamentos partilhados por um
grupo científico; outro isola um gênero particularmente importante de
empenhamento, e é assim um subconjunto do primeiro (KUHN, 1974, p.354).
Ao continuarmos o exercício de colocar as obras kuhnianas face a face, localizamos
em CDE uma nova atualização (e última em vida). Aqui, na nossa avaliação, há uma
reviravolta conceitual aguda “dada uma taxonomia lexical, o que chamo agora, na maioria
das vezes, simplesmente de um léxico, há toda uma gama de diferentes enunciados que
podem ser feitos, bem como um leque de teorias que podem ser desenvolvidas” (KUHN,
2006c, p. 119). E para arrematar toda esta polissemia Thomas Kuhn conclui:
Minha tese até agora foi a de que as ciências naturais de qualquer período são
fundamentadas em um conjunto de conceitos que a geração corrente de
praticantes herda de seus predecessores imediatos. Esse conjunto de conceitos é
um produto histórico, embasado na cultura em que os praticantes correntes são
iniciados durante o processo de aprendizado, e acessível a não-membros somente
por intermédio das técnicas hermenêuticas pelas quais historiadores e
antropólogos chegam a compreender outros modos de pensamento. Algumas
vezes tenho falado disso como a base hermenêutica para a ciência de um
determinado período, e vocês podem notar que tem semelhança considerável a
um dos sentidos daquilo que chamei de paradigma. Embora raramente empregue
esse termo hoje em dia, tendo perdido por completo o controle sobre ele
(KUHN, 2006c, p. 271).
Em 1962 os caracteres que definem o que seja verdadeiramente um paradigma são:
possuir força atrativa que conecte um grupo de pesquisadores; ser circunscrito ou limitado o
suficiente para poder orientar a pesquisa que a ele sucede; permanecer aberto o suficiente
para deixar problemas para serem desvelados posteriormente; em obras subsequentes,
especialmente no Posfácio e em Reconsideração sobre os paradigmas de 1974,
observaremos uma transfiguração de paradigma, onde este já é apresentado com outros
distintivos e certamente com outros objetivos. Por fim em CDE paradigma é um léxico.
13
Conferir os detalhes desta exposição no Posfácio, 2006b, p. 229-231.
31
Reconhecemos que pelo exercício de polimento que se realiza no termo paradigma
Thomas Kuhn tenta se esquivar do ambiente das abstrações, da mera axiomatização e segue
na direção das realizações concretas e empíricas da prática científica. Como bem alertou
Masterman a filosofia da ciência kuhniana ocupa-se de questões vivas da ciência. No entanto
é realmente difícil se compatibilizar os usos do termo paradigma, e, devemos assumir que
este é realmente um filho pródigo, uma ovelha desgarrada desta teoria. E, como a teoria
kuhniana passa a aportar quase todas as discussões nas tramas da linguagem, questionamos se
acomodar ou salvaguardar paradigma como um “léxico” seria genuinamente uma saída
linguística ou somente a confirmação deste desgarrar-se.
2.3 - Ciência Normal – o ordinário que produz o extraordinário.
Para Thomas Kuhn a categoria ciência normal designa a práxis científica inspirada em
pesquisas já firmadas, realizada em um determinado período de tempo, ou seja, o exercício
ordinário, cotidiano e prático realizado em laboratórios de institutos de pesquisa ou de
instituições de ensino acadêmico que tem como parâmetros um quadro conceitual já
consolidado. Na ERC, na seção “rota para ciência normal” pode-se ratificar esse
entendimento:
Ciência normal significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais
realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante
algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando
os fundamentos para sua prática posterior. Embora raramente na sua forma
original, hoje em dia essas realizações são relatados pelos manuais científicos
elementares e avançados. Tais livros expõem o corpo da teoria aceita, ilustram
muitas (ou todas) as suas aplicações bem sucedidas e comparam essas aplicações
com observações e experiências exemplares (KUHN, 2006a, p.29).
Entre os manuais que desempenham a função de guiar a ciência normal encontram-se
em destaque na ERC: a Física de Aristóteles, O Almagesto de Claudio Ptolomeu, os
princípias e a óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier, a
geologia de Lyell, estes “serviram por algum tempo para definir implicitamente os problemas
e os métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes
da ciência” (KUHN, 2006a, p. 29), a ciência normal atualizou no seu fazer cotidiano estes
manuais como o ‘padrão a ser seguido’. Como estes modelos tradicionais passaram a
designar algo como “dinâmica aristotélica", “astronomia ptolomaica ou copernicana”, etc, e
32
foram tomados como exemplar, de geração a geração, Thomas Kuhn passa a referir-se a eles
como paradigmas.
Ciência normal possui assim, em 1962, um elo condicional com o paradigma por que
este, aqui entendido como tradição de pesquisa, é o parâmetro que lhe garante movimento
prático e operacional; o paradigma é o seu fundamento.
Nesta filosofia da ciência se enxerga tempos ou fases distintas na ciência. Notamos que a
ciência se efetiva através de algumas etapas que se justapõem umas as outras; ela efetua um
movimento habitual, normal seguido de revoluções, e é na sua temporada de normalidade que
se concretiza sua verdadeira essência, é ali que ocorre seu desenvolvimento mais significante
“é amiúde contestando observações ou ajustando teorias que se desenvolve o conhecimento
científico. Contestações e ajustamentos são uma parte comum da pesquisa normal” (KUHN,
1970b, seção III).
Ao reconstituir a rota da ciência neste estudo imaginamos ser possível cunhar com
segurança o que seja de fato ciência normal e sua complementaridade à ciência
extraordinária. Não podemos perder de vista que na abordagem de Thomas Kuhn só há
ciência revolucionária se houver ciência normal; só se pode destruir uma tradição se ela
existir e, sua existência se dá pela efetividade da ciência normal. Apresentaremos a seguir
dois estudos de casos elaborados pelo próprio autor na ERC que rastreará ao mesmo tempo
toda a rota da ciência normal e consequentemente seu trajeto como ciência paradigmática.
Vejamos os casos abaixo:
Caso I – O caso da óptica física - encontramos na ERC um relato bastante reproduzido pelos
historiadores da ciência e frequentemente tomado pelos filósofos da ciência como objeto de
análise, a saber, o caso da óptica física. Em linhas gerais podemos reconstituí-lo como segue:
os estudiosos da óptica física referem-se a “Luz” de acordo com: seu tempo, sua tradição de
pesquisa, as ferramentas que possuem em mão e os conceitos que dominam e consideram
pertinentes em seu horizonte de pertencimento. Thomas Kuhn nos lembra de que no século
XVIII imperava a óptica de Newton e de acordo com a ela a “Luz" era um corpúsculo de
matéria, e isto era ensinado e utilizado como parâmetro por todos os praticantes desta ciência
(ou pelo menos pela maioria deles) em seus afazeres triviais e ordinários, mas isso teve sua
validade revogada. No século XIX obedecendo aos ensinamentos de Fresnel e Young,
ensinava-se que a “Luz” era um movimento ondulatório e transversal e esta verdade foi
positivada, tornando-se o princípio norteador das pesquisas ópticas naquele período, o
cientista normal aderia ao padrão conceitual que dali advinha e assim realizava suas tarefas,
levantando problemas e buscando soluções dentro dessa atmosfera teórica. Por fim,
33
atualmente nos manuais deste campo de estudo notamos que a “Luz” é um composto de
fótons, entidades quântico-mecânicas de ondas e outras partículas. Essa verdade passa a
vigorar após o modelo estabelecido por Planck e Einstein e possui uma vigência austera ainda
em nossos dias14.
O caso acima descrito nos remete para a compreensão prática do que se almejava
defender como ciência normal. Temos aí demonstrado como uma ciência se desenvolve
depois de arquitetar seu primeiro paradigma, e essa descrição histórica (de etapas justapostas)
fortalece nosso conhecimento objetivo de cada uma das categorias kuhnianas aqui estudadas.
A história da física óptica é um bom exemplo de rota de descontinuidade paradigmática uma
vez que apresenta períodos justapostos de ciência normal, onde em cada período se aplica um
aparato conceitual diferente para se referir a uma categoria equivalente.
O cientista nessa rota de desenvolvimento, após a apreensão de uma base conceitual e da
elaboração de um discurso, faz uma aplicação prática, uma transferência da linguagem
apreendida para o mundo, através dos exercícios práticos realizados no interior da ciência
normal.
Caso II - O caso da eletricidade. Acompanhemos a exposição feita por Thomas Kuhn:
A história da pesquisa elétrica na primeira metade do século XVIII proporciona
um exemplo concreto de como a ciência se desenvolve antes de adquirir seu
primeiro paradigma universalmente aceito. Durante aquele período houve tantas
concepções sobre a natureza da eletricidade quanto havia experimentadores
importantes nesse campo, homens como Hauksbee, Gray, Desaguliers, Du Fay,
Nollet, Watson, Franklin e outros. Todos os seus inúmeros conceitos de
eletricidade tinham algo em comum- eram parcialmente derivados de uma ou
outra versão filosófica mecânico-corposcular que orientava a pesquisa científica
na época, além disso, eram todos componentes de teorias científicas reais,
teorias que tinham sido parcialmente extraídas de experiências de observações e
que determinaram em parte a escolha e a interpretação de problemas adicionais
enfrentados pela pesquisa. Entretanto, embora todas as experiências fossem
elétricas e a maioria dos experimentadores lesse os trabalhos um dos outros suas
teorias não tinham mais do que uma semelhança de família (KUHN, 2006a,
p. 33).
Ao contrário do que fora exibido no caso da óptica física, temos em nossa frente agora
uma rota inversa de ciência, ou seja, um caso exemplar de um campo de estudo antes dele
construir e estabelecer seu primeiro paradigma. Verificamos que há uma variedade de léxico
concorrendo e sendo aplicado ao mesmo tempo, que há consensos quanto ao que estudar e
14
Essa apresentação é de inspiração kuhniana e pode ser encontrada na íntegra em “A estrutura das
revoluções cientificas”, 2006a, p. 31 ss.
34
parece existir até certa comunicabilidade quanto à tarefa e as aquisições de cada um,
entretanto ocorre o que vulgarmente podemos nomear como um “cada um por si”, não há
nada que se assemelhe a uma unidade ou um acordo teórico. Há uma multiplicidade de
modelos operando concomitantemente.
A não-adesão a um corpo de crenças comum admite que alguns cientistas vagueiem
criando uma rota própria, uma prática bem particular, algumas vezes inócua, outras vezes
estéril e improdutiva. Não se reconhece os caracteres da ciência normal nesse período de préciência, e, o que pode ser rastreado nessa intermitência são apenas sinais de um fazer difuso,
carente de objetividade.
Jonh Watkins15 faz objeções severas à teoria kuhniana, especificamente ao que foi
alcunhado de ciência normal. Em seu paper Contra a ciência normal Watkins investe contra
essa categoria da epistemologia kuhniana sem clemência. Pontuamos alguns destes
julgamentos para perguntarmos sobre sua pertinência e para averiguar se Thomas Kuhn se
salva deles.
Watkins inicia seu texto afirmando: “A estrutura das revoluções científicas, é um livro
famoso, com o qual me acho razoavelmente familiarizado” (WATKINS, 1970, p.33-34). Em
seguida começa os ataques: “a forma como ele a apresenta (referindo-se a confrontação que
Kuhn faz com Popper)
16
não é tão séria quanto poderia ser” (WATKINS, 1970, p. 34) e
segue durante todo o texto questionando sobre a legitimidade da ciência normal. Constatamos
que a crítica é elaborada através de perguntas, das quais destacamos algumas:
Por que Kuhn afirma que a ciência normal, tal como se opõe ao que ele
denomina ciência extraordinária, constitui a essência da ciência? A ciência
normal pode ser como Kuhn a descreve? Pode ela dar origens à ciência
extraordinária (WATKINS, 1970, p.41).
Estas indagações são todas respondidas e defendidas por Kuhn ao longo de sua vida,
contudo, apesar de preparar esse rol de interrogações importantes Watkins infelizmente não
se preocupa em respondê-las com palavras próprias, e, o que se constata em suas linhas é
mais um confronto entre as idéias popperianas e kuhnianas, com uma tendência explícita a
defender o ponto de vista de Karl Popper.
15
Filósofo da ciência que entre outras investigações procura fazer um confronto entre as idéias
popperiana e kuhnianas. O paper aqui examinando pode ser encontrado na quarta ata do colóquio de
filosofia da ciência em Londres, no ano de 1965, publicado no Brasil com o título de “A critica e o
desenvolvimento do conhecimento” em 1970.
16
Grifo nosso.
35
Observamos ainda que Watkins se sirva de algumas questões já levantadas no texto
kuhniano do mesmo colóquio de 1965, Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?17.
Destacamos sua retomada da categoria “Teste”, a recuperação e defesa da chamada “Ciência
Extraordinária” e, a indicação de que Thomas Kuhn limita-se a pôr de lado o critério
falseacionista e a propor um critério alternativo de “solução de enigmas”. Em resumo o texto
de Watkins faz a seguinte relação:
Bem, as linhas podem coincidir, mas elas dividem o material de maneiras
opostas. O que é genuinamente ciência para Kuhn mal chega a ser ciência para
Popper, e o que é genuinamente científico para Popper mal chega a ser ciência
para Kuhn (WATKINS, 1970, p. 38).
E através dessa relação ele quer demonstrar a oposição e o conflito entre o que ambos
nomeiam de ciência normal e ciência extraordinária, afirmando que Thomas Kuhn
desenvolveu “uma espécie de aversão filosófica pelas revoluções científicas e perguntando
(com palavras popperianas) por que ele estaria tão enamorado da laboriosa e não-crítica
ciência normal?” (WATKINS, 1970, p. 41) 18.
Percebemos uma disposição explícita em Watkins em investir contra as ideias kuhnianas
e ao mesmo tempo entendemos que ele se amparava em posições já defendidas por Karl
Popper em suas obras, não há, portanto uma novidade em suas investidas. Algumas
passagens de Watkins podem ser consideradas ingênuas ou revelam que este autor não estava
tão familiarizado com a ERC como assegurou:
Um modo de contestar (a ciência normal é claro) seria apontar para exemplos
históricos contrários, isto é, para longos períodos de história científica em que
não emergiu nenhum paradigma claro e durante o qual estiveram ausentes os
19
típicos sintomas da ciência normal (WATKINS, 1970, p. 44) .
Identificamos nestas asseverações um erro ou o uso de má fé por parte de Watkins,
porque avaliamos que Thomas Kuhn é bastante claro ao defender na ERC, nos capítulos II,
III, IV que numa fase de pré-ciência, anterior à consolidação de um paradigma, onde
17
Esse texto publicado em 1970 se constitui num trabalho importante onde Thomas Kuhn topifica uma
série de expressões que compõem a filosofia de Popper, averiguando seu sentido, pertinência e criticando
alguns usos conceituais com os quais ele não comunga. Nessa oportunidade há um confronto e um
distanciamento das ideias popperianas apresentadas sob a forma de mudança de Gestalt.
18
Grifo nosso.
19
Itálico nosso.
36
concorrem várias teorias, não se efetiva uma prática normal na ciência. Como pode alguém
tão íntimo de um texto não ter lido essas linhas?
É ainda perceptível na crítica de John Watkins a forma como ele se prende aos exageros
kuhnianos, percebemos isso quando ele se refere à incompatibilidade e à adesão a um
paradigma. Identificamos nele uma postura de estrangulador, todavia, quando se move, ele
mesmo, para apresentar alternativas filosóficas aos problemas que ele mesmo levanta, não o
faz com o rigor de sua crítica. Contudo, no Posfácio de 1970 e em CDE em 2000 atenuam-se
os exageros cometidos. Thomas Kuhn abranda de alguma maneira sua posição considerando
o julgamento e as anotações feitas por John Watkins. Porém, cabe antecipar que não são
substanciais as alterações quanto à ciência normal.
Karl Popper também censura radicalmente a prática de ciência normal como a aqui
defendida. Em seu texto de 1965, A ciência normal e seus perigos, também retirado das atas
do quarto colóquio de filosofia da ciência realizado em Londres, ele admoesta Thomas Kuhn
de várias maneiras:
A ciência normal, no sentido de Kuhn existe. É a atividade do profissional nãorevolucionário, ou melhor, não muito crítico: dos estudiosos da ciência que
aceita o dogma dominante do dia, que não deseja contestá-lo; e que só aceita
uma nova teoria revolucionária quando quase toda a gente está pronta para
aceitá-la- quando ela passa a esta moda, com uma candidatura antecipadamente
vitoriosa a que todos, ou quase todos, aderem (POPPER, 1970, p. 64-65).
E continua sua crítica de forma intrépida “o cientista normal, descrito por Kuhn, foi mal
ensinado. Foi ensinado com espírito dogmático, é uma vítima da doutrinação” (Popper, 1970,
p. 65) e por fim, direciona sua crítica para os novos critérios instaurados pelo autor de ERC
“é surpreendente e decepcionante a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia (...) a fim de
informar-se das metas da ciência e do seu progresso” (POPPER, 1970, p.71).
Algumas perguntas são frequentemente direcionadas a ciência normal, algumas delas
são: o que lhe compõem, e, se ocorre progresso no seu interior? Na teoria kuhniana são
concebidas três formas de desenvolvimento científico não-cumulativo no interior da ciência
normal, o primeiro quando há a correção de conhecimento aparente sobre um dado do mundo
sensível, visando à identificação e a eliminação do erro por meio de uma regulação da
ciência, o segundo quando há revoluções destrutivas (no modo popperiano), quando se
destrói substituindo, e terceiro quando é concebido um novo tipo de conhecimento,
inconciliável com o que já existia; quando há a modificação de uma estrutura lexical
37
envolvendo uma mudança conceitual20. Ocorrendo desta forma não se pode falar de
progresso, contudo ele pode ocorrer de outras maneiras.
Na temporada de ciência normal são descobertas novas entidades, havendo uma adição de
conhecimento; objetos familiares podem ser vistos com uma luz diferente e a aceitação de um
novo atributo de um objeto requer o abandono do objeto velho; dados numéricos podem gerar
uma mudança de entendimento de mundo21. Tudo isso pode sobrevir do cerne da ciência
normal, e isto é o que deve ser chamado de progresso, há “ganhos” diários na ciência que se
dão desta maneira, por isso o assentimento kuhniano de que haja verdadeiramente progresso
na ciência normal. Contudo notamos que há uma sutileza nessa acepção de progresso o que
lhe faz quase invisível.
Em CDE Thomas Kuhn revisa as observações elaboradas a respeito de possíveis
equívocos cometidos por ele, mas é categórico ao manter quase que intocável a noção de
ciência normal, essa é uma categoria que não padece de muitas mutações. Vemos isso em
suas próprias asseverações: “por sua natureza as revoluções não podem constituir o todo da
ciência: necessariamente, alguma coisa diferente deve intercalar-se entre elas”evidentemente, a ciência normal (KUHN, 2006c, p. 169)
22
, confia-se que esse mesmo
sentimento, com essa mesma intensidade já estava contido no texto de 1962.
Nessa passagem ele é ainda mais incisivo: “uma vez que a ciência que chamo de normal
é, precisamente, a pesquisa dentro de um referencial, ela pode ser apenas o reverso de uma
moeda cujo anverso são as revoluções” (KUHN, 2006c, p.169), entendemos que aqui se
procura resolver dois problemas de uma só vez, retoma-se a importância da ciência normal
nos mesmos moldes de 1962 e mais precisamente se satisfaz a inquietação quanto ao
processo de alternância entre ciência normal e ciência revolucionária. Enfrenta mais uma vez
os críticos que teimam em reafirmar que sua única ocupação é a ciência normal.
Quanto às críticas proferidas por Karl Popper e seus discípulos, dentre eles John
Watkins,23 de que o principal problema da ciência normal é que cientista normal foi um “ser
mal ensinado” e “pouco crítico”, Thomas Kuhn lhes rebate dizendo:
20
Este entendimento encontra-se na importante obra sobre a teoria kuhniana escrita por Paul Hoyninge
Huene “Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s philosophy of science” p. 199, 1993.
21
Consideramos mais uma vez Paul Hoyninge Huene em “Reconstructing science revolutions: Thomas
S. Kuhn´s philosophy of science” p. 202, 1993.
22
Grifo nosso.
23
Estas críticas encontram-se detalhadas no texto de Popper “A ciência normal e seus perigos” e no texto
de Watkins “contra a ciência normal”, ambos retirados das atas do colóquio de filosofia da ciência de
1965, organizados por Lakatos e Musgrave com o título “A crítica e o desenvolvimento do
conhecimento”, publicado em 1970.
38
A influência de um referencial sobre a mente de um cientista talvez não possa ser
explicada meramente como o resultado de ter sido ele “mal ensinado”, (...), é
preciso viver com os referenciais, e explorá-los, antes de poder rompê-los, mas
isso não implica que os cientistas não devam ter como objetivo um perpétuo
rompimento de referenciais, não importa quão inatingível seja esta meta,
“revoluções permanentes” poderiam ser o nome de um importante imperativo
ideológico (...). Popper e seu grupo sustentam que o cientista deveria tentar
sempre ser um crítico e um proliferador de teorias alternativas. Insisto na
desejabilidade de uma estratégia alternativa que reserve tal comportamento para
ocasiões especiais (KUHN, 2006c, p. 170).
Os desacordos permanecem e são óbvios, mas é evidente a escolha que se faz de
continuar descrevendo uma estação de ciência normal onde ocorre o que se pode nomear de
‘essência mesma’ da ciência. Compreendemos
que a preferência é dar mais relevância à ciência normal, o que não implica necessariamente
na negação dos períodos de revolução. Estes períodos de insurreição existem, são derivados
da ciência normal, forçam a ruptura de paradigmas, trazem consigo algumas
incomensurabilidades, mas são apenas extraordinários na história da ciência. E assim sendo,
somos compelidos a concluir que as críticas, apesar de rigorosas não coagem Thomas Kuhn a
desistir dessa questão tão polêmica de seu empreendimento.
2.4 - As revoluções científicas segundo Thomas Kuhn: trocas conceituais e
reviravolta paradigmática na ciência.
Apesar de alguns epistemólogos da ciência24 afirmarem que Thomas Kuhn tenha ficado
tão deslumbrado com a ciência normal a ponto de desenvolver uma espécie de repugnância
pelo caráter revolucionário na ciência, em nossa análise julgamos que estas críticas sejam
extremadas e assim sendo não concordamos nem no que se refere ao deslumbramento
tampouco à repugnância. Reconhecemos a ênfase dada aos períodos de normalidade da
ciência, perfilhamos igualmente que este seja o período privilegiado de sua filosofia, mas
ainda estamos certos de que as “revoluções científicas”
25
se constituem na questão
norteadora do empreendimento kuhniano.
24
25
Karl Popper, John Watkins.
Esta expressão foi cunhada originalmente por Alexandre Koyré, filósofo francês de origem russa que
escreveu sobre história e filosofia da ciência.
39
Quem se constituiria em sua principal inspiração filosófica e qual seria seu mote
norteador senão a inquietação com as revoluções no ambiente científico?
Que tipo de
investigação lhe interessaria senão compreender como ocorrem estas revoluções no recinto
da ciência e que valor teria sua epistemologia que não fosse o de examinar e interrogar sobre
a natureza das mudanças na ciência?
Nossa crença de que a preocupação kuhniana seja frequentemente com o aspecto
revolucionário da ciência foi elaborada muito rapidamente. Sem contar com o rótulo da capa,
já nas primeiras leituras das linhas de sua obra prima, ERC, encontram-se explícitas suas
intenções. Em algumas passagens este filósofo historiador é taxativo ao se pronunciar: “foi a
descoberta da natureza enigmática das revoluções o que me trouxe, em primeiro lugar, a
história e à filosofia da ciência. Quase tudo que escrevi desde então trata delas”(KUHN,
2006c, p 169). O que os críticos podem dizer desta afirmativa? Que interpretações podem ser
derivadas a partir desse assentimento? É possível um exercício hermenêutico que consiga
abandonar a intenção de um autor? Se analisarmos objetivamente o conteúdo da afirmativa
acima se perceberá que seu objetivo é claro, a não ser que o intérprete use de má fé.
Em ERC podemos localizar concretamente o alicerce que necessitamos para confirmar
nossas crenças de que os críticos da ciência normal tenham sido parciais ao querer questionar
suas intenções quanto ao caráter revolucionário da ciência. Quem daria a sua obra prima um
título pouco relevante? Quem destinaria cinco capítulos específicos de uma obra para abordar
uma temática pouco significativa? Aos que desconhecem, os capítulos 8, 9, 10, 11 e 12, de
ERC são destinados a tratar do problema das revoluções na ciência. Ali se questiona sobre a
natureza e a necessidade das revoluções científicas; apresentam-se as revoluções científicas
como mudanças de concepção de mundo; fala-se sobre a invisibilidade desse tipo de
revolução; indica-se como ocorre a resolução das revoluções e, demonstra-se como se dá o
progresso através das revoluções.
Ao questionar sobre a natureza e a necessidade das revoluções científicas Thomas Kuhn
retoma algumas questões relevantes: o que são as revoluções científicas e qual sua função no
desenvolvimento científico? Por que chamar de revolução uma mudança de paradigma? E
por último uma pergunta intrépida: face às grandes e essenciais diferenças que separam o
desenvolvimento político do científico, que paralelismos poderão justificar a metáfora que
encontra revoluções em ambos?26Acreditamos que todas estas questões já foram tocadas
26
Pode-se conferir esta passagem na íntegra na obra “A estrutura das revoluções científicas”, 2006a, p.
125.
40
neste estudo, contudo, o paralelismo indicado entre revoluções na política e na ciência,
parece exigir ainda alguma explanação.
Thomas Kuhn alega que frequentemente na política, quando um grupo está
inconformado com a efetividade do sistema implantado, com as resposta aos problemas e às
demandas com as quais, a priori, este sistema se comprometeu a enfrentar, há um sentimento
crescente de insatisfação, há revoltas, gerando uma crise e consequentemente uma posterior
mudança de regime. No seu entendimento na ciência ocorre um movimento semelhante
quando um grupo restrito de cientista se rebela com um paradigma vigente que deixou de
funcionar, mesmo que circunstancialmente, na investigação de um fenômeno. Na ciência,
quando o paradigma não consegue responder a um aspecto da natureza, seja ele simples ou
complexo, há insatisfação e crise produzindo inevitavelmente a troca gradual deste
paradigma.
Concluímos que há, conforme concebe esta teoria, vários elementos que possibilitam
uma analogia entre ciência e política:
Tanto no desenvolvimento político como no científico, o sentimento de
funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para
revolução (...) as revoluções políticas visam realizar mudanças nas instituições
políticas, mudanças essas proibidas por estas mesmas instituições que se quer
mudar. Consequentemente, seu êxito requer o abandono parcial de um conjunto
de instituições em favor do outro, (...) tal como a escolha entre duas instituições
políticas em competição, a escolha entre paradigmas em competição demonstra
ser uma escolha entre modos incompatíveis de vida comunitária (KUHN, 2006a,
p.126).
Ao finalizar a seção sobre a natureza das revoluções Thomas Kuhn conclui que é sempre
complexa a escolha entre um paradigma e outro, que é ao mesmo tempo complicado se optar
sobre quais problemas são mais relevantes para serem resolvidos, por isso para deliberar a
respeito de tal embate é imprescindível que se recorra a critérios externos aos da ciência
normal (o que envolve padrões e valores), daí a importância de se pensar as revoluções
científicas nos moldes como as que ocorrem na área política.
Quando discute sobre as revoluções científicas como mudança de concepção de mundo
faz uma alerta que um juízo apressado sobre a mudança entre paradigmas pode implicar na
falsa impressão, ou sensação extremada de que os cientistas passam a viver e a operar em
outro planeta, ou algo do tipo: um novo paradigma gera um novo mundo. De fato, Thomas
Kuhn acredita que haja mudanças substanciais e que os compromissos dos cientistas são
enormemente modificados com a substituição de um paradigma; este argumento tem como
41
justificação epistêmica uma mudança nos moldes do que ocorre na teoria psicológica da
forma, a gestalt. Ocorre na ciência um processo similar a uma variação da gestalt. Daí ser
possível se inferir que quando Newton nomeia algo de “movimento” ele o faz vendo algo
diferente do que via o velho Aristóteles. Um cientista, no período posterior às revoluções
científicas, com um novo paradigma, altera sua percepção, vê de maneira diferente.
Ponderamos que não muda objetivamente o mundo, mas a forma de compreendê-lo.
Sobre o caráter invisível das revoluções científicas é possível destacar que a princípio a
existência e o significado destas são frequentemente disfarçados, mas há um estágio onde
elas definitivamente aparecerão, é quando ocorre de fato o abandono e a substituição da base
conceitual que vigorava, quando há a troca e a invenção de novos maquinários, quando as
técnicas de resolução de problemas são totalmente modificadas.
Torna-se
imprescindível
que
nos
lembremos
como
se
tem
apresentado
o
progresso através das revoluções (paradigma- ciência normal – crise – substituição), devemos
reconhecer a natureza peculiar desse tipo de progresso e a ruptura que está implicada nele,
nesta compreensão só existem ganhos se houver perdas, não há necessidade de
´cumulatividade` epistêmica. Todavia há na visão de Thomas Kuhn uma reformulação
substancial na noção de progresso que se não for apreendida na integra tornará difícil a
assimilação do que ele deseja afirmar. Quando afirma que há mais progresso na ciência
normal que na ciência revolucionária, é para outra espécie de progresso que ele está
apontando, um tipo especial onde ordinariamente haverão ganhos quantitativos e
cumulativos, estes não ocorrem com as revoluções científicas, mas tão somente na ciência
normal. Se radicalizarmos as ideias kuhnianas, na ciência só haverá um progresso mínino e
este não está vinculado à ciência revolucionária.
Estamos certos que nesta teoria, ao se descrever o desenvolvimento do conhecimento
científico se almejava evidenciar a forma usual como ele tem sido narrado e, nos achados de
Thomas Kuhn, este desenvolvimento tem sido costumeiramente relatado sob a forma de
revoluções. São os episódios revolucionários que têm impressionado os filósofos da ciência,
especialmente Karl Popper. Contudo, deslocar o foco do problema, ou conferir importância a
outros elementos, como por exemplo, valorar positivamente uma práxis ordinária, não é
comprometer-se necessariamente com a refutação das revoluções, tampouco desprezar os
problemas que lhe envolvem. A teoria kuhniana ainda abraça a ideia de que haja na ciência
períodos revolucionários, mas só lhe compreende como advindos ou derivados da ciência
normal, está é condição para aqueles.
42
Em CDE as revoluções são repensadas e re-concebidas e, a ciência normal é reafirmada.
Cremos que as noções de ruptura e descontinuidade conceitual, ainda que sejam entre as subáreas de uma ciência ou entre suas especialidades como ditas nesta obra revisionista,
guardam, ao menos de forma diet,o caráter revolucionário apontado outrora.
Para reformular o que sejam as revoluções Thomas Kuhn inicia reafirmando que:
A mudança revolucionária é definida, em parte, por sua diferença com respeito à
mudança normal, e a mudança normal, com já dito, é o tipo que resulta em
crescimento, acréscimo, adição cumulativa ao que era antes concebido (KUHN,
2006c, p. 24).
Na primeira parte de CDE há uma série de considerações e ajustes acerca das
revoluções, o que nos induz a advogar e justificar sobre sua relevância na filosofia que ora
investigamos. Permanece insistentemente em Thomas Kuhn uma evidente e esperançosa
crença em um tempo de normalidade na ciência e esta confiança se espalha como rastro de
pólvora em seus escritos. A certeza disso está fundamentada em assertivas como a que temos
a seguir:
As leis científicas, por exemplo, são usualmente produtos de processo normal: a
lei de Boyle ilustra o que está envolvido nisso. Seus descobridores já dispunham
anteriormente dos conceitos de pressão e volume dos gases, bem como dos
instrumentos requeridos para determinar suas magnitudes. A descoberta de que,
para uma dada amostra de gás, o produto da pressão pelo volume era constante,
sob temperatura constante, simplesmente levou a um acréscimo ao conhecimento
de modo como se comportam essas variáveis previamente disponíveis. A
esmagadora maioria dos avanços científicos é desse tipo cumulativo normal
(KUHN, 2006c, p. 24).
Mas há importantes considerações acerca das revoluções, embora tomem um
caminho diametralmente diverso e que sejam valoradas de outra forma:
As mudanças revolucionárias são diferentes e bem problemáticas. Elas envolvem
descobertas que não podem ser acomodadas nos limites dos conceitos que
estavam em usos antes de elas terem sido feitas. A fim de fazer ou assimilar uma
tal descoberta, deve-se alterar o modo como se pensa, e se descreve, algum
conjunto de fenômenos naturais (KUHN, 2006c, p. 24-25).
As novas ideias sobre as revoluções em CDE são arquitetadas a partir de alguns estudos
de casos. Thomas Kuhn, como todo bom filósofo da ciência se serve deste equipamento
43
metodológico com o fito de evidenciar os detalhes do que deseja explanar. Destarte, efetua-se
uma descrição de três exemplos de mudanças revolucionária e em seguida procura elucidar
criticamente três características que este três modelos têm em comum.
No primeiro exemplo de revolução demonstra de forma abreviada a transição da física
aristotélica para a física newtoniana, dizendo da dificuldade de compreender Aristóteles com
os óculos de hoje, identificando que seja uma falha se tentar fazer um julgamento sobre o
trabalho de Aristóteles, levantando seus equívocos e limitações tendo como base a nosso
quadro conceitual contemporâneo; o significado de um termo como “movimento” para ele e
para seus seguidores não era o mesmo para Newton e Galileu nem o é para nós, há uma
incomensurabilidade (linguística) entre eles. Thomas Kuhn adverte sobre a necessidade de
uma interpretação holística das teses de Aristóteles, avisando que se lhe tomarmos de
maneira separada aleijamos o empreendimento daquele filósofo27.
No segundo modelo de revolução Thomas Kuhn nos traz o ano de 1800, quando
Alessandro Volta descobre a pilha elétrica, esta descoberta traz consigo uma série de
mudanças e ajuste, especialmente a respeito do que se entendia por “célula”, que respondem
às expectativas daquele cientista e de seus seguidores por um período razoável, mas que em
determinado momento começa a chocar-se com outras leis como, por exemplo, a lei de Ohm;
no entendimento de Thomas Kuhn, na transição para a aceitação desta última irá ocorrer algo
não-cumulativo28.
Já no terceiro modelo a revolução é ilustrada mediante a explicitação do trabalho
realizado por Max Planck ligado à origem da teoria quântica sobre o chamado “problema do
corpo negro”, acompanhemos esta narrativa:
Planck apresentou uma primeira solução para o problema do corpo negro em
1900, usando um método clássico desenvolvido pelo físico austríaco Ludwig
Boltzmann. Seis anos mais tarde, um erro pequeno mas crucial foi encontrado
em sua derivação, e um de seus elementos principais teve de ser reconcebido.
Quando isto foi realizado, a solução de Planck não apenas, de fato, funcionou,
mas também rompeu radicalmente com a tradição. Por fim, essa ruptura
difundiu-se e causou a reconstrução de boa parte da física (KUHN, 2006c, p. 37).
Thomas Kuhn ressalva que nos dois primeiros modelos de revolução a mudança se dar
pela forma que categorias como “movimento” e “célula” se ligam à natureza (KUHN, 2006c,
p. 40) e que no terceiro modelo há uma mudança efetiva nas palavras. Antes de 1909 quando
Planck se referia ao “tamanho E da célula” lhe nomeava como “elemento de energia”, depois
27
28
Conferir o relato de Thomas Kuhn em “o caminho desde a estrutura, 2006c, p. 28-30.
Ibidem
44
começou a falar da mesma coisa lhe chamando de “quantum” e é com esta designação que
ele é conhecido até hoje. Contudo, arremata: “o que caracteriza as revoluções não é, portanto
simplesmente uma mudança no modo como os referentes são determinados, mas uma
mudança ainda mais restrita” (KUHN, 2006c, p.42). A mudança na ciência é equiparada a
uma revolução na linguagem, dizendo que ela altera não somente os critérios pelos quais os
termos se ligam a natureza, mas, por extensão, o conjunto de objetos ou situações a que estes
termos se ligam. E conclui “se estou certo, a característica principal das revoluções
científicas é que elas alteram o conhecimento da natureza intrínseco à própria linguagem”
(KUHN, 2006c, p.44), logo, a pergunta pelo que são as revoluções científicas, só pode ser
respondida agora por Kuhn se as relacionarmos com a linguagem.
Entendemos que a suavização do termo revoluções científicas ocorre de maneira lógica e
coerente com todo o exercício de reformulação que se opera neste sistema teórico. Percebe-se
que se Thomas Kuhn desfigura uma categoria, por exemplo, a incomensurabilidade,
atenuando seu poder conceitual numa estrutura, consequentemente irá alterar o entendimento
e a aplicabilidade do que sejam as revoluções. É perceptível a congruência, e até uma
organicidade na teoria kuhniana ao manter íntegra a imagem holística de que as categorias
não têm sentido isoladas, mas sempre articuladas num todo. Notamos sua preocupação em
resguardar uma coesão interna em sua filosofia da ciência quando verificamos que o
arrefecimento de uma categoria implica diretamente no abrandamento das outras.
Logo, é mais adequado que de agora em diante se passe a nomear revoluções científicas
como revoluções linguísticas, entendendo que as revoluções transfiguram-se igualmente
numa questão de linguagem. Pode-se conferir o desenvolvimento deste problema quando se
focaliza uma especialidade científica e se verifica em seu corpo um conjunto novo e
específico de conceitos lhe dando contorno, delineando tecnicamente como determinado
fenômeno pode ser interpretado e descrito. Nos domínios novos de uma outra estrutura
linguística, de uma matéria científica nova, os velhos conceitos não conseguem aguentar o
peso de todas as descobertas. O problema das revoluções científicas, assumindo este caráter,
pode também está entrecruzado como as demandas concernentes ao campo da linguagem, o
que avaliamos seja um aleijamento do que antes fora apregoado e que causou, naquela
ocasião tanto alarde ao debate sobre a ciência.
2.5 - Incomensurabilidade - mudança conceitual que impossibilita o uso contínuo
de categorias internas à ciência sem uma constante revisão.
45
Esta categoria ocupa uma posição de relevo na filosofia da ciência em estudo.
Incomensurabilidade é, incontestavelmente, a grande inovação dessa estrutura filosófica e ao
mesmo tempo se constitui em seu “calcanhar de Aquiles”. Em 1962 o impacto deste
elemento kuhniano é ruidoso. Descrever teorias científicas como incomensuráveis, afirmar
que o progresso da ciência é descontínuo e multidirecional, dizer que o que há são
justaposições entre paradigmas científicos, é perturbar os cânones epistemológicos
tradicionais provocando reações adversas.
Incomensurabilidade é uma categoria da matemática que afixa a impossibilidade de se
nivelar grandezas, medidas, potências, volumes, áreas, diametralmente opostas. A verdade x
de que s é p, invariavelmente é incomensurável com a Verdade y de que esse mesmo s seja q.
Vista sobre este ângulo, a incomensurabilidade presume elementos dessemelhantes, díspares
e sua natureza é impedir que estes elementos sejam fundidos, confundidos ou reduzidos e
acoplados arbitrariamente uns aos outros. Qualquer exercício nessa direção é inválido e não
crível no recinto das ciências matemáticas.
Em 1962 Thomas Kuhn e Paul Feyerabend29 fazem o transporte desse termo para o
ambiente da filosofia da ciência. Entendemos que esse tipo de operação precisa contar com
um certo grau de tolerância epistemológica uma vez que um conceito sempre carrega consigo
algo de seu peso original, e este peso pode não corresponder ao novo uso que lhe será
conferido; talvez por isso ao se ancorar na filosofia da ciência– incomensurabilidade- tenha
causado tanta contestação.
Imediatamente após o seu lançamento, a tese desses autores torna-se importante no âmbito
da filosofia e da historiografia da ciência, ora como empreendimento espantoso, admirável
ora como um feito irracional, execrável. Poucos tiveram a prudência de analisar
razoavelmente este argumento ou de buscar um meio termo no entendimento do que seria a
incomensurabilidade nesse campo.
Paul Feyerabend e Thomas Kuhn partem de argumentos diferentes para trazer à tona o
conceito incomensurabilidade; Feyerabend procura desmotivar qualquer tipo de pesquisa
científica que possua como base fundamental os métodos canônicos advindos e reproduzidos
desde Descartes e propõe um tipo de pluralismo ou “anarquismo metodológico” que tem
como fundamento uma diversidade incomensurável de estratégias no trabalho científico.
Thomas Kuhn, por sua vez, opta por um novo modo de ver a ciência e escolhe a história da
física como padrão para sua tese da incomensurabilidade entre paradigmas.
29
Paul Feyerabend é um importante filósofo da ciência autor da imponente obra “Against method”
(Contra o método) lançada em 1975.
46
Conferimos relevância ao trabalho de Paul Feyerabend, mas nos interessamos aqui
especialmente pela discussão acerca da incomensurabilidade erigida do pensamento de
Thomas Kuhn e passamos doravante a examiná-la. Ao assumirmos a análise da teoria
kuhniana verificamos imediatamente que incomensurabilidade é um de seus artefatos que
mais carecem de justificação, daí o esforço filosófico presente em obras posteriores a 1962
para tentar salvaguardá-la.
Em ERC pode-se encontrar uma versão forte da incomensurabilidade kuhniana, ou seja,
como está ali explicitada esta categoria possui um vigor que impressionou e impactou
estudiosos de diversas áreas do conhecimento. Ao que nos parece, seu próprio defensor
quando vai lhe revisar teme sua dimensão. Sua notação original afirma o seguinte: dois
paradigmas (modelos, tradições) rivais não são comensuráveis de uma forma racional e
objetiva. Esta noção de incomensurabilidade pode ser localizada em quase todas as linhas
kuhnianas de 1962, quando não explícita pelo menos de maneira subliminar. No capítulo seis
de ERC- as crises e a emergência das teorias científicas- verifica-se com exatidão, a partir de
três exemplos, os argumentos a favor da efetividade dessa tese na ciência, sigamos o
primeiro:
O caso particularmente famoso de mudança de paradigma: o surgimento da
astronomia copernicana, quando de sua elaboração, durante o período de 200 a.C
a 200 d.C, o sistema precedente, o ptolomaico, foi admiravelmente bem sucedido
na predição da mudança de posição das estrelas e dos planetas, nenhum outro
sistema antigo saíra-se tão bem: a astronomia ptolomaica é ainda hoje
amplamente usada para cálculos aproximados; no que concerne aos planetas, as
predições de Ptolomeu eram tão boas como as de Copérnico. Porém quando se
trata de uma teoria científica, ser admiravelmente bem sucedida não é a mesma
coisa que ser totalmente bem sucedida (KUHN, 2006a, p. 95 ss).
Outro argumento defensivo da incomensurabilidade é rastreado no exemplo abaixo:
Passemos agora a um segundo exemplo bastante diferente: a crise que precedeu a
emergência da teoria de Lavoisier sobre a combustão do oxigênio. Nos anos que
seguiram a 1770 muitos fatores se combinaram para gerar uma crise na química,
os historiadores não estão de acordo nem sobre a natureza, nem sobre a sua
importância relativa, mas dois fatores são aceitos como sendo de primeira
magnitude: o nascimento da química pneumática e a questão das relações de
peso (KUHN, 2006a, p.97 ss ).
E por último, o mais importante argumento kuhniano pela incomensurabilidade entre
paradigmas na obra de 1962:
47
Examinemos agora um terceiro e último exemplo – a crise na física do fim do
século XIX- que abriu caminho para a emergência da teoria da relatividade. Uma
das raízes dessa crise data do fim do século XVIII, quando diversos estudiosos
da filosofia da natureza, especialmente Leibniz, criticaram Newton por ter
mantido uma versão atualizada da concepção clássica do espaço absoluto. Esses
filósofos embora nunca tenham sido completamente bem sucedidos, quase
conseguiram demonstrar que movimentos e posições absolutos não tinham
nenhuma função no sistema de Newton. Além disso, foram bem sucedidos ao
sugerir o atrativo estético considerável que uma concepção plenamente
relativista de espaço ou movimento teria no futuro (KUHN, 2006a, p. 100).
Deste modo, ao se apreender o que seja um processo incomensurável na ciência,
especialmente na física, como vemos acima, devemos aprender, conforme nos incita Thomas
Kuhn que na ciência os caracteres de linearidade, continuidade, acúmulo, são atenuados e que
consequentemente se deve recompor a noção de progresso, aqui ele não é unidirecional. O
que se evidencia nesse novo modo de ver a ciência é uma figura epistemológica restaurada,
composta de justaposições entre paradigmas. Estabelece-se assim, em 1962, um estilo
alternativo de se descrever, explicar e praticar ciência:
Em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a
percepção que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve
aprender a ver uma nova forma (gestalt) em algumas situações com as quais já
está familiarizado. Depois de fazê-lo, o mundo de suas pesquisas parecerá, aqui e
ali, incomensurável com o que habitava anteriormente. Esta é outra razão pela
qual escolas guiadas por paradigmas diferentes estão sempre em ligeiro
desacordo (KUHN, 2006a, p. 148).
A finalidade basilar dessa defesa da incomensurabilidade na ERC parece ser enfrentar
questões relevantes como a mudança conceitual entre paradigmas, a redução de uma teoria a
outra (como era comum nas filosofias da ciência em vigência) e mais especificamente, sua
preocupação se dava com a forma como era realizada o ajuste de uma teoria em crise à sua
sucessora. O problema que consequentemente emergirá dessa discussão é a querela em torno
do progresso científico, “ Kuhn diz ocorrer- o progresso- não somente por adição, mas
também por subtração (negação de legitimidade científica aos problemas e Standards de
outros paradigmas” (MARTINS, 1993, p.68) que sendo entendido dessa maneira, implicará
em perdas e ganhos no desenvolvimento das ciências.
Outra questão relevante que emerge da discussão sobre a incomensurabilidade é o debate
a respeito da insuficiência dos critérios objetivos na escolha entre teorias científicas, o que
resultará num outro dilema epistemológico que é a subdeterminação entre teorias. As teorias
científicas estão subdeterminadas quando não há critérios objetivos para efetivar sua escolha
diante de um conjunto de dados. Em alguns momentos na ciência os dados observacionais
48
podem conduzir a duas ou mais construções teóricas incomensuráveis; decidir nessas
ocasiões é um processo que transcende à objetividade. Esta é uma dificuldade frequente para
filosofia da ciência e Thomas Kuhn não se escusou de enfrentá-lo.
Finalmente analisamos que em 1962, incomensurabilidade pode mesmo ter sido usada
como álibi por Thomas Kuhn para poder apresentar a ciência como um fato histórico, uma
vez que esse elemento, apesar de ter sido o principal alvo dos seus críticos, foi também o que
mais favoreceu a adição de subsídios históricos a sua epistemologia e, para o bem ou para o
mal, possibilitaram um new style no entendimento e descrição do que seja ciência.
Em CDE foi possível atualizar com precisão a ressignificação feita nesse conceito.
Antecipamos, contudo, que este exercício se inicia imediatamente após seu lançamento na
ERC devido o impacto ocasionado por sua introdução à filosofia da ciência daquela época.
O capítulo dois de CDE – “comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade”
parece possuir os argumentos suficientes para demonstrarmos que incomensurabilidade passa
por um refinamento austero que culminará no conceito de “incomensurabilidade local” e, por
conseguinte terá um caráter circunscrito, bem distante daquele ‘fenômeno conceitual’ de
1962.
Para esse processo de depuração do termo incomensurabilidade destacamos um primeiro
passo:
Cada um de nós (Kuhn e Feyerabend) estava especialmente preocupado em
mostrar que os significados de termos e conceitos científicos– “força” e ‘massa”,
por exemplo, ou “elemento” e “composto”- com frequência mudavam de acordo
com a teoria na qual eram empregados. E cada um de nós afirmava que , quando
tais mudanças ocorriam, era impossível definir todos os termos de uma teoria no
vocabulário de outra (...) tudo isso ocorreu em 1962. Desde então, os problemas
da variação de significado foram amplamente discutidos, mas ninguém de fato
enfrentou por completo as dificuldades que nos levaram a falar em
incomensurabilidade (KUHN,
2006c, p. 48)30.
Como já foi aludido em ERC incomensurabilidade tinha um peso demasiadamente
agudo, e, do mesmo modo foi o nível da crítica a ela direcionado. Houve exageros parte a
parte, de Thomas Kuhn e dos seus críticos, o primeiro pode ter sido descuidado e os críticos
porque foram demasiadamente severos:
30
Grifo nosso.
49
A maioria das discussões, ou todas, sobre a incomensurabilidade dependeram da
hipótese, literalmente correta, mas em geral interpretada de modo exagerado, de
que se duas teorias são incomensuráveis, então elas devem estar enunciadas em
linguagens mutuamente intraduzíveis (KUHN, 2006c, p.49).
Foram imponentes e radicais as críticas relativas a esse conceito, o que forçou Thomas
Kuhn a tarefa de durante toda a vida dar conta do que seria mesmo uma teoria ou um
paradigma incomensurável (o que não foi uma empreitada simples). Não nos arriscamos a
dizer nesse estudo se este filósofo conseguiu sair de todas as encruzilhadas em que se
implicou, contudo reconhecemos seu esforço em proporcionar a elucidação de suas ideias.
Sucede uma nova colocação do problema, entretanto estimamos que não se trate de uma
grande reviravolta no pensamento kuhniano, avalia-se que seja um novo esclarecimento ou
um preenchimento das lacunas deixadas em 1962. A crítica indicava uma igualdade
problemática entre incomensurabilidade e comparabilidade de teorias, Thomas Kuhn refaz o
argumento tentando rechaçar as censuras:
Recordem de onde veio o termo “incomensurabilidade”. A hipotenusa de um
triângulo retângulo isósceles é incomensurável relativamente a qualquer um dos
catetos do triângulo, assim como a circunferência de um círculo o é com respeito
ao raio do círculo, no sentido de que nenhuma unidade de comprimento pela qual
ambos os elementos do par possam ser divididos, sem deixar resto, um número
inteiro de vezes. Não há, portanto, nenhuma medida comum. Mas falta de
medida comum não torna impossível uma comparação. Pelo contrário,
magnitudes incomensuráveis podem ser comparadas até qualquer grau de
aproximação que se requeira (KUHN, 2006c, p.50).
Essa reconsideração atualiza de alguma maneira o conceito e ao mesmo tempo enfrenta o
problema de se relacionar incomensurabilidade e comparabilidade. É possível que tenha
havido um exagero dos críticos em afirmar que Thomas Kuhn defendia a incomparabilidade
entre teorias, não localizamos isso de forma objetiva na obra de 1962.
O arremate da questão é feito quando se assume que “aplicado ao vocabulário conceitual
usado numa teoria científica e em seu entorno, o termo “incomensurabilidade” funciona
metaforicamente” (KUHN, 2006c, p. 50) e, dissolvido definitivamente numa perspectiva
semântica quando assegura categoricamente “a expressão nenhuma medida comum” passa a
ser “nenhuma linguagem comum” (KUHN, 2006c, p. 50). Para dirimir de vez a querela
percebemos, além disso, que o termo incomensurabilidade aparece em 2000 sempre aspejado,
o que já denota um uso rigorosamente diferente.
50
Se ainda permaneciam algumas incertezas, incomensurabilidade definitivamente não
implica sob nenhum aspecto incomparabilidade:
A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é, assim a afirmação de
que não há uma linguagem, neutra ou não, em que ambas as teorias, concebidas
como conjuntos de sentenças, possam ser traduzidas sem haver perdas ou
ganhos(KUHN, 2006c, p. 50).
Assim sendo, perguntamos: os leitores de ERC teriam dado a incomensurabilidade um
sentido mais forte do que o devido? Será? Thomas Kuhn parece exigir uma moderação na
interpretação e no uso desse termo que ele mesmo não o fez na sua aplicação original.
Podemos metaforizar dizendo que o pai gerou um filho forte e pode ter perdido seu controle.
A criatura que já nasceu robusta, ganhou corpo e se desenvolveu impedindo o domínio do
criador. O que fazer agora? Haverá remédio que sane essa disseminação desgovernada?
Como dar freio a um conceito?
Damos-nos conta que Thomas Kuhn passa a defender somente uma versão módica do
termo, abraçando, no nosso entender, somente uma perspectiva linguístico- semântica:
“chamarei essa versão modesta de “incomensurabilidade local”. Até o ponto em que
incomensurabilidade constitui uma tese referente à linguagem, à mudança de significado, sua
forma local é - agora - minha versão original” (KUHN, 2006c, p. 51).
Se assim funcionar (como parece que funciona) perguntamos se incomensurabilidade
passa a pertencer também aos ditames de uma teoria do significado; se Thomas Kuhn teria
assumido de vez à semântica na filosofia da ciência? Sugerimos que sim. Mas precisamos
analisar alguns argumentos quineanos para ancorar melhor esse nosso assentimento.
Conclusão:
Foi constatado que cada um dos elementos que deram corpo a teoria kuhniana são ao
longo do tempo e conforme vai aparecendo uma nova fala ou escrito, atravessados por uma
navalha que lhe extirpa o grau dos significados que lhes compunha quando lançados em
1962. Comunidade científica é agora comunidade linguística, revoluções científicas
transvertem-se
em
revoluções
linguísticas,
incomensurabilidade
passa
a
ser
incomensurabilidade local, paradigma é exclusivamente um léxico e, ciência normal, diante
do arrefecer das demais categorias não pode mais ser a mesma, mantém a mesma
denominação, mas é do mesmo modo alterada dada a diminuição da extensão dos seus pares.
51
Destarte, a interface interna das obras kuhnianas proporciona uma imagem subtraída das
categorias do seu quadro conceitual. Temos a sensação de que se o próprio autor tomasse
cada um de seus elementos para uma avaliação e lhe aplicasse uma nota dez em 1962, a cada
lançamento de uma nova obra, a cada dito, a nota iria decaindo substancialmente pela
redução da extensão de cada uma das categorias.
São notórias as saídas para a linguagem e consideramos plausíveis haja vista a severidade
das críticas e o desejo deste autor em atingir o reconhecimento filosófico de suas teses,
contudo não estamos certos se todas as estratégias de aprimoramento são objetivadas a ponto
de salvaguardar algum vestígio do que antes era defendido. Insinuamos inclusive que haja
algumas fissuras nessa estrutura. Não chegamos a instilar a existência de ‘dois Thomas
Kuhn’ como se tem feito correntemente com os autores que tiveram a oportunidade de
assumir os equívocos cometidos e arriscaram corrigi-los, mas reconhecemos que o processo
de reconstrução nessa estrutura teórica foi significativamente agudo, intenso.
Quanto à estratégia de integrar ciência e linguagem, entendemos que influenciado pela
“guinada linguística” 31 muitos filósofos foram levados a justificar seus sistemas dentro deste
círculo, e Thomas Kuhn querendo legitimar com mais vigor suas idéias acompanhara a moda
vigente.
Averiguaremos a seguir algumas teses de W. O. Quine visando responder se Thomas
Kuhn, ao abraçar a linguagem lhe teria tomado por empréstimo algumas ideias ou se apenas
vê muitos problemas de forma similar e ele.
31
Expressão defendida pelos filósofos J. L. Austin, Jürgen Habermas, J. Searle dentre outros, que
assumem cada vez mais o caráter linguístico, pragmático e intersubjetivo do conhecimento e da verdade,
e se afastam das metafísicas tradicionais.
52
3 CINCO TESES DA EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE.
A epistemologia de W. O. Quine é composta de um conjunto de teses e argumentos
acerca da linguagem, do significado, da ciência, da matemática e da lógica. A forma
instigante e inovadora como este pensador trata cada uma destas questões lhe garante um
lugar de destaque na filosofia contemporânea. Neste tópico apresentaremos cinco teses de sua
epistemologia e em seguida buscaremos um entendimento acerca de seus significados. Nessa
oportunidade nos ocupamos apenas de alguns aspectos desta teoria. Os itens que serão
explicitados são: os dois dogmas do empirismo, a aprendizagem de uma linguagem, holismo
semântico e epistemológico, indeterminação da tradução e epistemologia naturalizada. Em
todos os casos o objetivo é explicar como estas teses estão articuladas no interior da
epistemologia quineana.
A partir do estudo das teses acima listadas temos a pretensão de evidenciar pontos de
entrecruzamento entre esta epistemologia e a filosofia da ciência de Thomas Kuhn, o que será
realizado na terceira e última parte deste trabalho. Ambicionamos aprofundar de maneira
categórica cada um dos elementos que compõem a filosofia da ciência kuhniana já arrolados
no capítulo primeiro desta análise. Para tanto faremos a partir de agora a explanação de
elementos proeminentes do esquema teórico quineano para em seguida averiguarmos que
tipo de relação é possível se fazer entre estes sistemas filósofos.
Destarte, a explicitação dessas teses nessa seção serve como ponto de referência para
que possamos em seguida, no final deste estudo pontuar mais objetivamente as ocorrências
de embricamentos nestes sistemas de pensamento. Pretendemos examinar se no processo de
construção e re-construção de sua filosofia Thomas Kuhn busca se justificar, de alguma
maneira, em subsídios da epistemologia quineana, por isso escolhemos descrever a partir de
agora os argumentos desta epistemologia que julgamos terem algum tipo de afinidade com o
modelo kuhniano de ciência.
3.1 - Um breve comentário sobre W. O. Quine.
Fortemente influenciado pelo pragmatismo clássico de Charles Sanders Peirce e John
Dewey e defensor de um ponto de vista holista advindo de Pierre Duhen, Williard Von
53
Orman Quine é considerado por muitos como um filósofo admirável, extremamente
produtivo, talvez o mais importante das Américas no século XX. Estudiosos brasileiros
apontam W. O. Quine como o grande expoente da filosofia do nosso continente32.
W. O. Quine foi um pensador de vida movimentada, comenta-se que este filósofo
conheceu mais de cem países chegando a morar em algum deles, inclusive no Brasil. Aqui,
durante o ano de 1944 ele escreveu uma importante obra O sentido da nova lógica, em
português, que lhe serviu entre outras coisas para exercitar a língua portuguesa que muito lhe
impressionava.
Este filósofo doutorou-se em filosofia em Harvard sob a orientação de Whitehead. Sua
tese versava sobre O principia mathemática de Bertrand Russell. Esteve por alguns anos na
Europa onde teve a oportunidade de conviver com a atmosfera cultural da época e de
trabalhar com importantes pensadores. Ainda no velho mundo conheceu os trabalhos de
Gödel, importante matemático e defensor da teoria dos conjuntos. Conheceu igualmente Von
Newman, Reichenbach e Ayer. Contudo o Círculo de Viena e sua doutrina do empirismo
lógico, especialmente a filosofia de Rudolf Carnap é que marcarão decisivamente a trajetória
filosófica de W. O. Quine33.
Em 1936, após a primeira guerra e, diante do quadro político que se desfralda na
Europa, retorna aos EUA e torna-se um notável professor em Harvard onde já havia sido
excelente aluno. Ali ficara vinculado até sua morte.
Verificamos uma produção bibliográfica vasta que ajudou W. O. Quine a firmar-se
como uma referência da filosofia analítica da linguagem no novo mundo. Entre suas obras
destacam-se os artigos Two Dogmas of empiricism de 1951, lançado oficialmente em 1953,
Epistemologia Naturalizada (1969), seu importantíssimo livro Word and object (1960)
traduzido para a língua portuguesa em 2010 com o título Palavra e objeto, O sentido da nova
lógica, escrito no Brasil (em 1944), The Roots of reference (1974), Web of belief, dentre
outros.
A leitura das obras quineanas se tornaram ferramentas indispensáveis aos que desejam
uma compreensão rigorosa de problemas referentes à filosofia analítica da linguagem, à
semântica e à pragmática. Somos advertidos sobre o caráter sistemático da obra de W. O.
Quine, alguns entendem que nessa filosofia haja uma unidade de pensamento e que assim
deve se interpretar sua epistemologia:
32
Estamos nos reportando nessa afirmativa a estudiosos como Sophia Stein, Vera Vidal e Marcos Bucão.
Sobre isso conferir o artigo de Sophia Stein intitulado Williard Von Orman Quine, elaborado a pedido
do Centro de Estudos em Filosofia Americana – CEFA.
33
54
Já enunciamos que uma boa compreensão do pensamento quiniano supõe de se
dê conta do aspecto sistemático de sua filosofia. Questões de epistemologia (qual
a relação entre palavra e objeto, entre nosso discurso sobre o mundo e o próprio
mundo, entre a evidência sensorial e nossa teria de mundo?), de lógica (como
destacar o valor verdade de uma sentença?), de ontologia (que entidades
assumimos como existentes em nosso discurso?), de filosofia da linguagem (
qual o estatuto ontológico dos significados lingüísticos? Que critérios justificam
a distinção: sentenças analíticas e sintéticas? São respondidas dando origem a um
sistema filosófico abrangente ( VIDAL, 1989, p. 43).
Conforme a perspectiva acima apresentada, as teses de W. O. Quine só teriam força,
coerência e significado se engendradas numa tecitura sistemática onde uma tese entre em
conexão lógica com a outra. Não nos interessamos aqui em tomar partido quanto à
sistematicidade de seu empreendimento, o que pretendemos é compreender os cinco
elementos já aludidos acima e ao mesmo tempo investigar sua relação com a filosofia
kuhniana.
3.2 - A epistemologia de W. O. Quine.
Esta concepção filosófica se estrutura a partir do desenvolvimento de teses bem diversas
e procuram dar conta de muitos problemas epistemológicos em vigência em nosso tempo.
Aqui escolhemos pontuar algumas teses que evidenciam sua preocupação com a linguagem,
com a ciência, com o significado por considerá-las relevantes para nosso estudo.
Examinaremos ainda, por necessidade, a tese da epistemologia naturalizada. Alertamos
antecipadamente que nossa opção por explanar somente as questões mencionadas acima não
deve encobrir a amplitude e a profundidade do seu empreendimento filosófico.
Nossa escolha destas teses se deu mediante leituras introdutórias desta epistemologia, o
que por vezes pode parecer um tanto arbitrário, mas isso diminui quando se alude que, este
conjunto de teses pode se acoplar de maneira holística, e que tratando de uma, as outras
também serão levadas a sério. Pode haver elementos quineanos fora do que abordaremos aqui
que também se conecte a filosofia da ciência de Thomas Kuhn, não ignoramos tal
possibilidade. Optamos por este recorte por considerá-lo suficiente para este momento.
Serviremos-nos de agora em diante de boa parte do pensamento quineano contido nas
obras já anunciadas. Pretendemos elucidar teses fundantes desta epistemologia e que por
hipóteses, conjeturamos estarem entrelaçadas de alguma maneira com a filosofia de Thomas
55
Kuhn. Por questões metodológicas e visando uma explicação mais particularizada
apresentaremos de forma separada cada uma das teses escolhidas.
3.3 – Os dois dogmas do empirismo.
Supomos que alguns mandamentos filosóficos, uns tradicionais, outros mais recentes,
foram particularmente inspiradores de W. O. Quine para que realizasse sua impactante crítica
aos dogmas do empirismo. Observando a citação abaixo notaremos que muitos dos seus
elementos se constituem em alvos a serem revisado por este pensador:
Um juízo analiticamente verdadeiro é aquele em que um conceito de seu
predicado está contido em seu sujeito, ou tal que sua negação é contraditória
(Kant). Uma proposição analiticamente verdadeira é ou uma verdade lógica, ou é
redutível de uma verdade lógica por meio de definições em termos puramente
lógicos (Frege). Um enunciado analiticamente verdadeiro é verdadeiro apenas
em virtude do significado de seus termos (positivistas lógicos). ‘Analítico’ é
geralmente usado de maneira equivalente a ‘analiticamente verdadeiro’. A
negação de uma verdade analítica é analiticamente falsa. ‘Sintético é geralmente
usado de modo equivalente a ‘nem analiticamente verdadeiro nem analiticamente
falso’ (HAACK, 2002, p. 315).
Todos estes pressupostos pautados acima, em linhas gerais pertencem à tradição
epistemológica e conseguiram ao longo dos anos dá conta dos problemas referentes ao
conhecimento, contudo, passam a ser aqueles conteúdos aos quais W. O. Quine irá deflagrar
suas críticas.
David Hume, segundo entende W. O. Quine, quis demonstrar que tradicionalmente
existem dois objetos da razão humana: as “relações de ideias” e as “questões de fato”. Estas
asseverações podem ser constatadas num clássico de humeano:
Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se
naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de idéias e de fatos. Ao primeiro
tipo pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética e, numa
palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. (...)
Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são determinados da
mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de
natureza igual à precedente. O contrário de um fato qualquer é sempre possível,
pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a
mesma facilidade e distinção, como se ele estivesse em completo acordo com a
realidade. (...) Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se
na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os
dados de nossa memória e de nossos sentidos (HUME, 1973, Secção IV, § 1).
56
Conforme este entendimento de Hume as “relações de idéias” são justificadas por elas
mesmas, logo se pode dizer que são “analíticas”. Contudo as “relações de idéias”, por não
possuírem como conteúdo as experiências, se constituem somente numa pequena parte do
conhecimento humano e assim sendo não conseguem por si só formular um conhecimento
acerca do que seja a natureza. Para que se formule um conhecimento adequado os objetos da
razão devem está profundamente marcado pelas “questões de fato”, ou seja, somente os
enunciados destas últimas, por possuírem uma relação causal com a experiência estão em
condições de justificar nossas crenças. Os enunciados advindos das “questões de fato” são os
que se denomina de “sintéticos” e, para Hume só existe conhecimento quando se liga as
ideias através de uma relação causal dada de forma sintética.
Outro elemento instigador do julgamento quineano é a reafirmação da tradição feita por
Rudolf Carnap bem como a defesa que este filósofo do “círculo de Viena” faz do
convencionalismo na linguagem:
Carnap, enquanto defende a divisão entre enunciados analíticos e sintéticos,
elabora uma noção de enunciado analítico ‘convencional’ (Carnap 1934), que lhe
permite manter a divisão tradicional entre enunciados necessários e contingentes
– sempre, claro, pressupondo que não haja enunciados necessários sintéticos ou
“a posteriori”, porém, evitando qualquer afirmação de que os primeiros sejam
intrinsecamente necessários. São, segundo Carnap, analíticos “por convenção”
(STEIN, 2003, p. 185).
Conforme irá problematizar W. O. Quine, a antiga divisão analítico/sintético, a defesa
carnapiana do reducionismo, e a sobrevivência de enunciados analíticos por pura convenção
devem ser revisados. A partir desse cenário é anunciada a necessidade de se expurgar da
tradição filosófica estes equívocos e reivindicar que os dois dogmas do empirismo sejam
inicialmente repudiados e passem por uma rigorosa revisão. E assim, bem intrépido, inicia
uma apreciação rígida destes.
Em 1951 W. O. Quine abre seu ensaio Two dogmas of empiricism com a seguinte
proposta:
O empirismo moderno foi em grande parte condicionado por dois dogmas. Um
deles é a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou
fundadas em significados independentes de questões de fato, e verdades
sintéticas, ou fundadas em fatos. O outro dogma é o reducionismo: a crença de
que todo enunciado significativo é equivalente a algum constructo lógico sobre
termos que se referem á experiência imediata. Ambos os dogmas, deverei
sustentar são mal fundamentados (QUINE, 1980, p. 237).
57
Este texto, apesar de possuir menos de 20 páginas, tem força suficiente para balançar os
ditames epistemológicos tradicionais. Percebemos imediatamente nas linhas iniciais que seu
objetivo primordial é criticar os dogmas existentes nas duas formas de empirismo mais
usuais: uma primeira forma que advém do paradigma clássico, moderno, que como vimos
tem como representante mor David Hume e como tese central a defesa ostensiva do padrão
empírico, aquele que crê na evidência como fonte primeira para se compreender e dizer o
mundo e para justificar nossas crenças, e que conta irremediavelmente com a bifurcação entre
analítico e sintético. E a segunda forma, que é apresentada por W. O. Quine como
proveniente da primeira está estritamente vinculada ao empirismo lógico, especialmente ao
empreendimento de Rudolf Carnap, que prevê a redução de todo enunciado empírico ao
padrão lógico-linguístico.
Nesta ocasião W. O. Quine nos lembra de que o primeiro dogma pode frequentemente
ser rastreado entre os modernos, mais notadamente em David Hume quando este defende,
como já demonstramos, a rigorosa distinção entre “relações de ideias” e “questões de fato”;
mas é evidente também no racionalismo de Leibniz quando se verifica a dicotômica relação
entre “verdades de razão” e “verdades de fato”. E que ainda pode ser localizado em Emanuel
Kant, uma vez que ele, do mesmo modo, alegou e propagou como nenhum outro a divisão
requerida pelo empirismo. Esta divisão tornou-se canônica na filosofia e tradicionalmente
exigiu a separação categórica entre sentenças analíticas e sintéticas.
Essa bipartição reivindica (e faz conforme entende W. O. Quine) legitimar uma tradição
que privilegiou as verdades de razão, ou verdades analíticas como necessariamente
verdadeira e sua negação como analiticamente falsa, como defendia Leibniz – a verdade
analítica é verdadeira em todos os mundos possíveis.
Segundo essa versão clássica, sentenças analíticas podem ser definidas como Kant o fez
tantas vezes. Lembremos que este prussiano concebia um “enunciado analítico como o que
atribuía a seu sujeito não mais do que aquilo que já estava conceitualmente contido no
sujeito” (QUINE, 1980, p. 237), assim sendo nenhum enunciado dessa espécie tem sua forma
lógica contestada, independente de qualquer consulta aos fatos da experiência, ele será
necessariamente verdadeiro.
Deste modo, percebemos que na elogiada filosofia kantiana a notação “analiticamente
verdadeiro” corresponde àquele enunciado que é válido em virtude de sua formalidade lógica
e assim sendo é válido em função do seu significado a priori. Para Kant, numa relação
sujeito-predicado a analiticidade é garantida, porque num enunciado do tipo: o triângulo tem
três lados, o predicado já está contido no sujeito, independente do fato, livre de qualquer
58
comprovação empírica, ele se faz necessariamente verdadeiro pela pertença do predicado ao
sujeito, apenas este arrazoado garante a um significado sua validade e justificação epistêmica.
Esta analiticidade alardeada habitualmente na filosofia é o ‘elemento duvidoso’ que foi
avaliado por W. O. Quine como problemático, é a ele que sua crítica se direciona. Na
perspectiva quineana a pressuposição de um significado analítico, a priori, independente de
uma rede de relações em que o sujeito pode tecê-lo é sempre imprecisa porque, no seu
entendimento, esta assertiva carece peremptoriamente dos subsídios da sinonímia que este
pensador quer tanto abdicar. Esta última, na compreensão quineana, exige um tipo de
ajustamento correspondencial, uma espécie de redução arbitrária que não se deve mais
considerar aceitável. Deste modo, o problema da analiticidade, conforme se defende aqui,
está na sua vinculação e mesmo na sua dependência do significado, porque este se encontra
invariavelmente acoplado a uma noção forte de sinonímia. Estas conexões receberão fortes
ataques de W. O. Quine:
Existem aqueles que acham reconfortante dizer que os enunciados analíticos se
reduzem as verdades lógicas, por meio de definições; ‘solteiro’, por exemplo, é
definido como homem que não casou. Mas como de fato chegamos à conclusão
de que ‘solteiro’ se define como ‘homem que não casou’? Quem assim o definiu
e quando? Devemos recorrer ao dicionário mais próximo e aceitar como lei a
formulação do lexicógrafo? (...) a noção de sinonímia aqui pressuposta deve
ainda ser clarificada (...) certamente a “definição”, que consiste no relato do
lexicógrafo de uma sinonímia observada, não pode ser tomada como fundamento
da sinonímia (QUINE, 1980, p. 240).
Entendida assim, a sinonímia, como parece carecer ou requerer necessariamente de um
traço apriorístico, e exigir ajustes forçados, deverá ser renunciada. As condições reais da
sinonímia para legitimar a verdade e o significado entram em dificuldades na visão
epistemológica de W. O. Quine. Ele não acredita na capacidade de um significado puro,
dado por definição, para ele esta última não consegue, como se alega, converter verdades
analíticas em verdades lógicas. Não há significados despregados da empiria, ainda que
algumas vezes estejam apenas indiretamente vinculados a ela. Em última instância somente a
evidência empírica se constitui em fundamento de onde devem emergir os conteúdos de todo
e qualquer ato de significar e só nelas se devem confiar nossas crenças, entretanto o
procedimento de uso dessa evidência deve ser modificado. Segundo sua compreensão deste
problema, é pertinente que se apele para outra orientação no uso das evidências; deve-se
redimensionar o debate:
59
O que exatamente quer dizer afirmar sinonímia, no que exatamente podem se
constituir as interconexões necessárias e suficientes para que duas formas
lingüísticas possam ser com propriedades descritas como sinônimas, é algo que
está longe de ser claro; mas, o que quer que sejam, estas interconexões são
ordinariamente baseadas no uso (QUINE, 1980, p. 240).
A partir deste enunciado W. O. Quine prenuncia que não haja alguma coisa como um
significado dado, e reafirma que o que há são interconexões linguísticas usadas
ordinariamente, aos moldes do que preconizava o segundo Wittgenstein. Para dizê-lo de
forma mais simplificada, ele – o significado - sempre irá insurgir de relações intersubjetivas e
públicas, de redes verbais sociais que lhe definem conforme um sistema de crença, de acordo
com o aprendizado de uma linguagem, respeitando certa empatia entre as partes falantes.
Enfim, pode-se inferir que do ponto de vista deste filósofo somente o contexto natural,
ordinário e pragmático permitirá que os indivíduos forjem, criem e inventem significados.
Falar das coisas, dizer o que elas significam; formular discursos sobre o mundo é, de algum
modo, dizer o que se apreendeu sobre ele a partir de dados advindos da empiria. O
movimento empírico inicial e basilar é marcado pelo que W. O. Quine identifica como
“irritações de superfície”.
A partir do descontentamento com o apriorismo na linguagem se observa a intolerância
quineana com a permanência do “mito do significado” ou com a crença metafísica de
significados puros, imaculados, vazios de informações empíricas, que se perpetuou ao longo
dos anos.
Entendemos que possa de certa maneira soar como uma contradição a censura que W.
O. Quine faz ao empirismo, uma vez que o próprio filósofo ainda reafirma a plausibilidade da
evidência empírica, defendendo que é somente sobre ela que todo e qualquer enunciado sobre
o mundo repousam. E se pode mesmo indagar se é possível alguém se ocupar de uma tarefa
tão seriamente e depois disso retomar um percurso como se nada tivesse ocorrido?
Parafraseando Wittgenstein, teria W. O. Quine chegado ao cume da escada e lhe jogado fora?
Seria esse o caso? Talvez, mas o que fica realmente evidente é que Quine realiza um
melioramento do empirismo para depois poder reutilizá-lo. Só um empirismo revisado é
admissível na sua concepção.
As questões levantadas por W. O. Quine quanto ao segundo dogma do empirismo
conforme ele mesmo nos assevera, são derivadas do primeiro problema e referem-se à crença
“de que todo enunciado significativo é equivalente a algum constructo lógico sobre termos
que se referem à experiência imediata” (QUINE, 1980, p.01). Esta crença é disseminada
60
pelos empiristas lógicos do século XX, afiliados de empiristas britânicos clássicos como:
Locke, Berkeley, e David Hume.
A imagem de ciência com a qual se convivia até a primeira metade do século XX é a
produzida por este empirismo lógico ou neopositivismo. Esta corrente de pensamento advém
do empreendimento de um grupo de pensadores de Viena que nas primeiras décadas do
século referido resolvem, entre outras coisas, declarar guerra a qualquer princípio metafísico
para a epistemologia. Esta escola tinha como finalidade ajustar o empirismo e os
desenvolvimentos que ocorrera na lógica para mostrar que todos os problemas filosóficos
pendentes poderiam ser equacionados pela reconstrução da linguagem. Esta doutrina
reafirmava também os dogmas do empirismo tradicional ao sustentar que “apenas
declarações e termos significantes referem-se ao que a experiência pode verificar; daí seu
critério da significância” (ROSEMBERG, 2009, p. 255). Eles defendem ainda a possibilidade
de enunciados não verificáveis, mas ressaltam que estes se manteriam verdadeiros com base
nos próprios termos que os compõem.
A justificação assinalada pelo grupo vianense ao impetrar estes princípios seria a de que
a filosofia deveria se apoiar na lógica moderna, derivada de Frege e Russell, e reduzir-se a
análise lógica da linguagem excluindo consequentemente todas as preocupações bem como
todos os enunciados metafísicos que, na sua visão, são desprovidos de sentido, devido à
impossibilidade de serem afirmados e verificados empiricamente. Assim, para o empirismo
lógico, toda afirmação que se pretenda como portadora de conhecimento deve ser uma
exclusiva afirmação da realidade, ou seja, esta afirmação converte-se em enunciado
linguístico indicativo de fatos empíricos. Na sua compreensão existem alguns saberes que
deverão ser rechaçados no ambiente epistemológico, o principal deles é a metafísica. Dentre
os defensores mais aguerridos desta linha de pensamento destacam-se Morris Schilic, Otho
Neurath e mais intensamente Rudolf Carnap.
A doutrina destes novos empiristas, apesar de algumas variações, reza que o critério
verificacionista é o único legítimo para a ciência. Os pensadores do Círculo de Viena tomam
esse critério correspondencial e reducionista como condição da autonomia da filosofia e da
ciência frente a qualquer outra forma de saber. Neste verificacionismo, podem ser rastreados
os enunciados factuais como um procedimento que recorre única e exclusivamente à
experiência e aos fatos. Anotemos ainda que a doutrina reducionista compreenda como
ciência somente o exercício lógico-linguísta e lhe nega quaisquer traços metafísicos,
históricos, contextuais e pragmáticos.
61
Como ressalvamos essa forma correspondencial de pensar denota crença numa redução,
ou seja, na sustentação empírica dos enunciados lógicos "o que diz a teoria verificacional é
que os enunciados são sinônimos se e somente se são semelhantes no que diz respeito ao
método de infirmação ou confirmação empírica” (QUINE, 1980, p. 248), e, este tipo de
reducionismo é para a compreensão de W. O. Quine um exercício inatingível, impraticável, e
por isso nunca poderá ser completado, devido às dificuldades de ajustamentos entre um e
outro; pela insuficiência dos próprios enunciados lógicos para sinonimarem toda experiência
empírica.
W. O. Quine, por não entender e até duvidar de como ocorre essa redução, ou por
desconfiar do processo que estabelece as relações de similaridade entre os enunciados lógicos
e sua ratificação empírica, pergunta pela “natureza da relação entre um enunciado e as
experiências que contribuem para sua confirmação ou que a prejudicam” (QUINE, 1980, p.
249), e, insatisfeito com esta espécie de ‘subtraimento epistemológico’ faz uma ríspida
apreciação a ele, onde vai criticar o reducionismo radical, reducionismo que no seu
entendimento almejava crer absurdamente e até “ingenuamente” numa vinculação direta
entre enunciado e experiência.
Observamos que às vezes a questão é tratada de forma irônica: “um termo, para ser de
algum modo significante, deve ser ou o nome de um dado sensível, ou um composto de tais
nomes, ou uma abreviatura de tal composto?” (QUINE, 1980, p. 249); há um julgamento
apontando que em todo este procedimento reducionista estão assinalados, constantemente,
fortes sinais de vagueza e ambiguidade, o que lhe torna arbitrário. Consequentemente deve-se
contestar sua legitimidade. Entretanto, o que se observa é que mesmo com os ataques
quineanos a esse projeto de redução, ao menos início do século XX ele se sobressai e se
intitula como capaz de responder sobre a ciência.
Notamos ainda que W. O. Quine identificava uma compreensão desse reducionismo até
mesmo em Bertrand Russel, porque este filósofo admitia que:
O veículo primário do significado passou a ser visto não mais no termo, mas no
enunciado (...) esta reorientação forma a base do conceito de Russel de
“símbolos incompletos definidos no uso” e é também explícita na teoria
verificacional do significado, pois que os objetivos da verificação são enunciados
(QUINE, 1980, 249).
Entendemos também que Rudolf Carnap, seu grande mestre, se comprometeu com a
defesa desse projeto reducionista com intensidade, mas é possível se capturar algumas
diferenças em seu empreendimento quando se constata que “a linguagem adotada por Carnap
62
como ponto de partida não era uma linguagem de dados sensíveis, no sentido mais estrito
concebido” (QUINE, 1980, p. 250) o sentido era inverso, a linguagem a qual Carnap adere
efetivamente “incluía também as notações lógicas, ao nível mais elevado da teoria dos
conjuntos, efetivamente incluía toda linguagem da matemática pura” (QUINE, 1980, p. 250).
Para W. O. Quine, Carnap se utiliza de toda sua engenhosidade de pensamento para
definir muitos conceitos sensoriais, para construir enunciados sobre o mundo físico e para
reduzir a ciência a termos da experiência imediata. Contudo, Carnap não consegue realizar tal
tarefa, mas apesar de incompleta, e mesmo que seja inviável, sua iniciativa deve ser avaliada
como um grande feito filosófico.
O dogma do reducionismo, segundo o entendimento quineano, ainda reverbera e tem tido
implicações direta na filosofia contemporânea. No seu entendimento ele pode ser localizado
quando em algumas áreas do conhecimento ainda permanece aceitável a “suposição de que
cada enunciado, tomado isoladamente de seus companheiros, pode admitir confirmação ou
infirmação de algum modo” (QUINE, 1980, p. 251). Essa prescrição, segundo suas
orientações, deve ser rejeitada, esse princípio metodológico deve ser refutado no ambiente
epistemológico por não conseguir atingir o que se propõe. Quanto a tudo isso W. O. Quine
irá contrapor sua tese do holismo semântico.
Após enfrentar o problema da redução, o que se passa a localizar na filosofia de W. O.
Quine, ao contrário da perspectiva carnapiana e de seus companheiros vianenses, é a defesa
implacável de um holismo, ou seja, passa-se a advogar a tese de que os enunciados sobre o
mundo exterior passam pelo tribunal da experiência, sempre num corpo organizado, nunca
isolado, e que podem e devem ser revisados frequentemente.
Ainda sobre os dois dogmas, conclui W. O. Quine em seu célebre texto:
É um disparate falar de um componente linguístico e de um componente factual
da verdade de qualquer enunciado particular. Tomada globalmente, a ciência tem
sua dupla dependência para com a linguagem e a experiência (QUINE, 1980, p.
251).
A separação canônica não se sustenta, a verdade de todos os enunciados exige uma
revisão, e esta só pode ocorrer numa perspectiva holista.
Contudo, o julgamento quineano é passível de retaliações e críticas, a divisão analíticosintética ainda reverbera. Quanto as suas censuras ao significado, nem todas são aceitas sem
contestações. W. O. Quine recebe alguns julgamentos no que se refere à sua crítica contra os
dois dogmas. Pergunta-se se a partir de seus ataques ter-se-ia definitivamente banido da
63
filosofia o dualismo analítico-sintético? E observa-se que ele ainda resiste. Indaga-se se seu
holismo naturalista daria conta das querelas epistemológicas com as quais se comprometeu?
Entende-se que o holismo também é alvo de críticas. Percebemos que alguns autores se
voltaram contra as críticas impetradas ao empirismo pelas mãos de Quine, podemos citar um
seu contemporâneo Donald Davidson34 e uma crítica mais recente feita por Laurence
Bonjour35, ambos identificam algumas limitações na epistemologia quineana.
Se W. O. Quine se volta para analisar o convencionalismo na linguagem a quem diga que
ele assuma ao menos parcialmente esta perspectiva:
Se seguirmos a argumentação de Naumann, devemos concluir que o
convencionalismo em Quine pode ser localizado justamente em sua afirmação de
que todo enunciado apresenta algum aspecto convencional além de seu aspecto
empírico, de sua relação com evidências empíricas. Porém não é sustentável,
segundo a argumentação de Quine, como, por exemplo, em “Truth by
convention”, defender a existência de enunciados puramente convencionais
(STEIN, 2003, p.200)
No entanto entendemos que a crítica aos dois dogmas do empirismo funciona em W. O.
Quine somente como um exercício de expurgação e ou eliminação de alguns equívocos,
exageros e pretensões arbitrárias, existentes no âmago das teses empiristas. E passa também
pela necessidade de se examinar e criticar a sinonímia e o apriorismo na linguagem. Mas
compreendemos que não seja aconselhável dizer que este filósofo americano refuta a
plausibilidade do empirismo. Todos percebem que ele permanece sendo um dos defensores
dessa doutrina, todavia recomendando sempre doses moderadas em seu uso.
Sua defesa é de um tipo de empirismo sopesado, aquele que ainda aceita crê no
potencial da evidência para justificar nossas crenças e fundamentar todo tipo de
conhecimento, mas prescreve-lhe uma constante revisão, ou seja, a evidência deve
34
A posição de Donald Davidson é como segue: “sugiro que abandonemos a ideia de que o significado ou
o conhecimento se fundamentem em algo válido, em última análise, como fonte de evidência. Sem
dúvida, o significado e o conhecimento dependem da experiência e esta última, por sua vez, em última
análise da sensação. Mas trata-se de um “depender” da causalidade, não aquele da evidência ou
justificação”. Ao contrário de W. O. Quine Donald Davidson alega que a maior parte de nossas crenças
são verdadeiras e essa razão é que uma crença é por sua própria natureza verídica, afirma ele: “sustento
primeiramente, com insistência que a compreensão correta do discurso, das crenças, dos desejos, das
intenções e outras atitudes de uma pessoa conduz a conclusão de que a maior parte de suas crenças deve
ser verdadeira e que podemos legitimamente presumir que cada uma tomada em particular é verdadeira,
desde que seja coerente com um conjunto de crenças conhecidas da pessoa em questão(...). A única coisa
que é necessária de se reconhecer é que a crença é por sua natureza verídica”. Conferir SPARANO, 2003,
p. 143-144.
35
Em “contra a epistemologia naturalizada” Laurence Bonjour alveja a epistemologia quineana e lhe faz
severas críticas, em algumas passagens ele afirma que esta filosofia é autodestrutiva e se for levada a
sério deixa a própria filosofia em apuros. Ele sugere que nem “deveríamos supor que Quine propôs uma
epistemologia (...) conclui que o argumento original de Quine fracassa”, p. 173-202.
64
frequentemente se submeter a um conjunto de outras crenças existentes numa rede de
crenças; a evidência está frequentemente online e é assim que deve ser revisada e entendida.
Nesta perspectiva filosófica, se defende que a evidência deve suportar passar por uma
experiência holista, pragmática e só esta prova permitirá que os indivíduos possam inferir
com alguma segurança sobre a mesma, sobre o mundo exterior e sobre si mesmo.
Assim, pensamos que deve ficar sempre manifesto o fundamento de onde este pensador
retira as armas que compõe sua epistemologia e mais precisamente, que fique claro a que
doutrina ele anseia se filiar. É uma epistemologia naturalizada, aquela que tem por base a
experiência e o método empírico que este autor visa dar robustez; logo, suas críticas devem
ser entendidas como uma tarefa de melioramento do empirismo jamais como sua
impugnação.
3.4 - O aprendizado de uma linguagem.
A tese do aprendizado de uma linguagem se constitui em um elemento imprescindível
do seu sistema filosófico; reconhecemos que ao desenvolver sua explanação desta tese este
pensador põe em movimento praticamente todas as categorias que dão corpo a sua
epistemologia. Destarte, se compreendermos como na visão quineana ocorre a apreensão de
uma linguagem, se igualmente capturarmos todas as dificuldades que ocorrem na tradução de
uma língua totalmente desconhecida (tarefa indeterminada conforme entende W. O. Quine)
estaremos diante de uma série de elementos que, combinados, nos propiciarão um
entendimento razoável do que seja esta epistemologia.
Contrapondo-se a alguns pensadores do círculo da filosofia da linguagem, dentre eles
Chomsky36, W. O. Quine afirma ser esta uma arte social. Esta sua acepção pode ser
apreendida imediatamente no prefácio de sua obra mais importante Palavra e objeto:
A linguagem é uma arte social. Ao adquiri-la, nós dependemos inteiramente das
indicações disponíveis intersubjetivamente do que dizer e quando dizer. Assim,
não há justificação para cotejar significados linguísticos, a não ser em termos das
disposições dos homens a responder publicamente a estimulações socialmente
observáveis (QUINE, 2010, prefácio, p.01).
36
Sofhia Stein, na apresentação da obra de Quine “Palavra e objeto” em 2010, afirma que Chomsky
discute com W. O. Quine sobre a necessidade de supormos traços inatos determinantes de nossa
gramática e desafia o mesmo afirmando que este tem de supor certas formas gramaticais inatas para poder
explicar o comportamento verbal dos falantes.
65
Assim, para se aprender uma linguagem, nos moldes quineanos, os indivíduos passam
por etapas bem definidas no interior de uma estrutura social. Estas etapas seguem
inicialmente um procedimento behaviorista, onde a criança está vinculada a presença de
estímulos físicos e se desenvolvem para fases mais complexas, caracterizada por
substituições, ações intersubjetivas e públicas e, invenções.
Na primeira destas fases sobrevêm respostas aos estímulos físicos e verbais onde os
indivíduos são incitados sensorialmente por objetos do mundo físicos e respondem a estes
inicialmente com um balbuciado e posteriormente, quando consegue identificar e diferenciar
objetos e coisas, com um enunciado. Este enunciado se amplia nas relações que os indivíduos
estabelecem com seu meio, ele é sempre produto da intersubjetividade, ou seja, passa pela
aprovação ou reprovação do grupo ou do ambiente onde o indivíduo está sendo iniciado. A
linguagem é, nesta fase, um produto desse processo de estímulo-resposta. Esta primeira etapa
da aprendizagem passou a ser reconhecida como a fase behaviorista da epistemologia
quineana, mas corresponde somente a uma pequena parcela do aprendizado.
Identificamos que W. O. Quine utilizou como procedimento metodológico inicial o
behaviorismo, tanto para explicitar o início do processo que demonstra como uma criança
aprende sua língua materna quanto como uma fase importante na elaboração de sua tese da
indeterminação da tradução, que explanaremos mais tarde.
A segunda fase da aprendizagem de uma linguagem foi denominada de “substituição
por analogias”, nesta os indivíduos frequentemente desenvolvem a capacidade de substituir
termos de maneira concreta como nos enunciados de observação, ou de forma abstrata,
utilizando-se do princípio da analogia. Nesta fase ainda é perceptível uma conexão com
estímulos sensoriais. Ou seja, mesmo na segunda etapa deste aprendizado só é possível
realizar um intercâmbio entre os termos tendo uma base empírica como referência.
A terceira fase do referido processo, onde os enunciados já não são subprodutos diretos
de estimulações físicas e verbais, é conhecido como “a interanimação das frases”, é a fase da
criação e da inventividade, nesta os enunciados passam a responder a uma cadeia de
enunciados, que se constitui numa teoria científica ou do senso comum,
Não que todas ou a maioria das frases sejam aprendidas como totalidades. A
maioria das frases é, ao contrário, construída a partir de partes já aprendidas, por
analogia com a maneira pela qual tais partes foram vistas previamente ocorrer
em outras frases, que podem ou não terem sido aprendidas como totalidades.
Quais frases podem ser alcançadas por tal síntese analógica, e quais são
alcançadas diretamente, é uma questão da própria história esquecida de cada
indivíduo (QUINE, 2010, p. 30).
66
Compreendeemos que neste terceiro passo ocorre a associação entre frases. Acontece a
elaboração de frases novas a partir de frases velhas e, também é comum que os estímulos não
verbais tenham o poder de suscitar frases, provando que a linguagem transcende a qualquer
tipo de fenomenalismo e ou fisicalismo. Os enunciados sobrevindos da interanimação entre
frase são os chamados enunciados teóricos ou abstratos. Esta é a fase do ultrapassamento da
empiria. Estes enunciados abstratos são geralmente forjados da relação dialógica que os
indivíduos passam a vivenciar no interior de suas redes verbais, ali serão testados todos os
dados internalizados nas primeiras etapas do processo e ocorrem também os entendimentos e
ajustes quanto às crenças de cada um dos interlocutores.
Nestes acordos há um tipo de suposição necessária para que o processo não se quebre:
um interlocutor precisa pressupor que seu modo de ver o mundo é acessado de alguma
maneira pelo outro. Eles necessitam vê o mundo de um jeito similar. No entendimento de W.
O. Quine é preciso que se aposte na efetividade desta conjectura para que se desenvolva uma
linguagem. Sugerimos que tal processo venha decisivamente se efetivando na história da
humanidade, porque permanecemos cotidianamente nos entendendo ou pelo menos
idealizamos que isto esteja acontecendo.
No terceiro passo, W. O. Quine faz ainda uma interessante distinção entre o que ele
chama de “frases de ocasião como - havia cobre nelas, verdadeiras para cada uma das
ocasiões experimentais” (QUINE, 2010, p. 34) e o que nomeou de “frases eternas como
“óxido de cobre é verde, verdadeiras sempre” (QUINE, 2010, p. 34).
Quanto ao problema da aprendizagem de uma linguagem há ainda uma questão que
precisamos elucidar de forma mais satisfatória. Como já fora mencionado por nós, há um
componente behaviorista na epistemologia quineana, mas como o uso deste dispositivo é
somente metodológico e restrito, parece não legitimar, pelo menos em grau, um rótulo de
behaviorista que alguns pensadores conferem insistentemente a W. O. Quine.
A título de esclarecimento, o behaviorismo é apreendido como uma corrente de
pensamento da psicologia contemporânea que define a psicologia exclusivamente como o
estudo do comportamento, eliminando toda referência à consciência e ao que não pode ser
observado e descrito em termos objetivos.
Como psicologia, o behaviorismo tem como teses centrais o reflexo condicionado, ou
seja, a crença de que um processo do tipo estímulo-resposta garante a produção de
conhecimento e, a confiança de que não é possível falar cientificamente daquilo que escapa a
qualquer possibilidade de observação objetiva. Na sua acepção clássica vincula-se ao
67
pensamento de Pavlov e Watson. Em nossos dias é uma doutrina ainda aproveitada, pelo
menos de forma mitigada, por algumas correntes psicológicas e filosóficas.
Ao ler as obras de W. O. Quine constatamos que o traço behaviorista ali presente tem
uma função metodológica importante, mas específica e restrita. Este estratagema pode ser
delineado como o elemento que torna possível a fase inicial do processo de aprendizagem de
uma linguagem, bem como pode ser identificado como aquele artifício ao qual um tradutor
de uma língua desconhecida se apega quando pretende realizar um trabalho de tradução.
Quanto ao processo de tradução o behaviorismo é correspondente à observação do
comportamento dos falantes, numa circunstância dada, onde este gera a inferência imediata
de um termo. E no tocante ao processo de aprendizagem, ele corresponde ao que se pode
nomear como um ato de estímulo que continuamente afeta as terminações nervosas de um
indivíduo, irritando suas superfícies e gerando um anunciar, um dizer algo de algo.
Logo, como frequentemente nenhum empreendimento humano termina imediatamente
após o seu início, esse passo behaviorista carece de acréscimos para poder completar sua
ação plenamente. A observação do comportamento dos falantes, a relação estímulo-resposta
que gera a produção de enunciados e uma linguagem imediata é essencial, diria
imprescindível para o desencadeamento de uma série de assentimentos complexos sobre o
mundo, mas não têm o poder de deliberar, sozinha, com precisão, sobre o que seja de fato o
mundo exterior.
Destarte o behaviorismo reutilizado por W. O. Quine é peça inicial de um jogo
linguístico e constitui-se somente em um primeiro passo de seu procedimento. Julgamos que
esta etapa ‘fisicalista’ deva corresponder ao que este filósofo chama de “irritações de
superfície”
37
e estas deverão necessariamente ser acrescidas de uma série de outros
elementos para alcançar o ápice de uma linguagem desenvolvida. É obvio que sem começo
não há meio nem fim, e deste modo as “irritações de superfície" desencadeiam direta e
indiretamente a produção de uma linguagem, de uma teoria, mas, este começo
definitivamente não delimita nem constitui um todo, segundo o que se entende na iniciativa
quineana.
Daí nossa disposição em apresentar a epistemologia quineana para além de um
behaviorismo e afirmar que este componente localiza-se tão somente na periferia de sua
epistemologia, jamais no âmago. Entendemos que se somando a esta etapa primeira,
behaviorista, deve ser encontrado, naquele ato, o que se tem nomeado de pragmatismo
37
Esta expressão aparece várias vezes no capítulo I de “Palavra e objeto” referindo- se a uma etapa
superficial, primeira, dos processos linguísticos e científicos.
68
semântico. Cremos não haver dolo em dizer que W. O. Quine assumiria uma linhagem
pragmática, ele mesmo nos assevera disso:
Carnap, Lewis e outros tomam uma posição pragmática na questão da escolha
entre formas linguística, ou estruturas científicas, mas seu pragmatismo se detém
na fronteira imaginada entre o analítico e o sintético. Repudiando tal fronteira,
esposo um pragmatismo mais completo. A cada homem é dada uma herança
científica mais um contínuo fogo de barragem de estimulação sensorial; e as
considerações que o guiam na urdidura de sua herança científica para ajustar suas
contínuas incitações sensoriais são, quando racionais, pragmáticas (QUINE,
1975, p. 254)
Mas, também pode existir em W. O. Quine o que muitos classificam como um
naturalismo semântico, ou o que outros denominam como um realismo naturalista, enfim,
todas estas alternativas estão ainda em pleno debate e, nos auxiliam agora a assentir que a
epistemologia quineana ultrapassa o behaviorismo e, que a aprendizagem de uma linguagem
bem como a tradução extrapola abundantemente a este estágio. O discurso transcende a
evidência, entretanto esta permanece sendo o único recurso confiável; recurso que apesar de
falível e revisável permanece sendo aquele no qual todo indivíduo precisa se apoiar. E na
prática é isto que vem acontecendo uma vez que a comunicação é um fenômeno humano que
não cessa.
3.5 - A indeterminação da tradução e a inescrutabilidade da referência.
Algumas doutrinas filosóficas teriam levado W. O. Quine a tese da indeterminação da
tradução.
Entendemos que existem elementos que teriam originado e provocado seu
desenvolvimento. Um deles pode ser a filosofia da ciência de Pierre Duhem38 onde se
encontra uma tese convencionalista que entre outras coisas afirma que não há somente um
sistema teórico verdadeiro para se dizer o mundo, e que, ao contrário, podem-se elaborar
diversos sistemas com este mesmo objetivo
38
39
. Isto teria instigado e inspirado a formulação
Pierre Duhen foi um importante físico francês, historiador da ciência, dono de uma vasta bibliografia
dentre elas “A teoria física: seu objeto e sua estrutura”, de 1906, obra onde defende um convencionalismo
moderado; nesta obra “há também o antagonismo (...) aos modos mecanicistas de explicação, a que
contrapõe uma concepção holística das teorias científicas; a ordem global em que estas incrustam e
inscrevem os dados observacionais impede que as proposições empíricas singulares se possam testar de
forma isolada. Tal aferição só pode acontecer em conjunção com outras exigências teóricas e outras
hipóteses auxiliares” (DUHEN, 2008, p. 03).
39
A tese convencionalista fundamental defende que não há apenas um sistema teórico verdadeiro acerca
do mundo, mas a possibilidade de construção de múltiplos sistemas. Pierre Duhem explica essa
possibilidade quando descreve em que consiste propriamente uma teoria da física. Toda teoria física é um
sistema simbólico que não é um “relato fiel” ou um “equivalente exato” da realidade ou dos fatos, e isto
69
de muitos preceitos da epistemologia quineana resultando mais especificamente no W. O.
Quine irá propor como indeterminação da tradução.
Querendo demonstrar a questão da indeterminação da tradução e provar que estamos
sempre limitados a adaptar qualquer esquema conceitual alheio ao nosso próprio padrão de
esquema conceitual W. O. Quine sugere que acompanhemos o exemplo da tradução radical
que ele elabora. Recuperemos com nossas palavras o caso dos linguistas tão citado por este
autor: dois linguistas, para aprender a língua de uma tribo recém descoberta – língua esta que
os linguistas em questão não têm qualquer afinidade – contam apenas com dados
observacionais do comportamento das pessoas da tribo no momento em que estão praticando
a linguagem. Num primeiro instante um dos linguistas usa a técnica de reunir termos nativos
para designar objetos que são observados ao redor, pois é o único meio que ele tem
disponível, é uma tentativa.
W. O. Quine supõem que os membros da tribo utilizam um determinado termo
“gavagai” sempre que há um coelho presente em sua frente. Um dos linguistas decide
traduzir tal termo por – “coelho”, no entanto, o outro linguista companheiro, elaborando
outro manual de tradução, um pouco mais rigorosa, pode traduzir a dita expressão gentílica
por: -“Eis aí um coelho” ou “Aí temos um coelho ou ainda” – “Ei! Um coelho” e por fim –
“Ei! Coelhice de novo”, (QUINE, 1975, p. 123). Observa-se que há linguista mais exigente,
detalhista e perspicaz. Como é o segundo caso aqui.
Diante dessa lista de alternativas concorrentes de tradução (que como notamos,
partiram do mesmo dado, mas achegaram a conclusões conflitantes) como se pode chegar a
uma decisão sobre a melhor versão ou a uma tradução correta? Nos alerta W. O. Quine:
É difícil dizer de que outra maneira se pode falar, não porque nosso padrão
objetivamente seja um traço invariável da natureza humana, mas porque estamos
limitados a adaptar qualquer padrão alheio ao nosso próprio padrão, no mesmo
processo de entender ou traduzir as sentenças alheias (QUINE, 1975, p.51).
pode ser demonstrado primeiramente pela própria natureza da linguagem e da realidade. A linguagem é
um conjunto de símbolos que esquematizam fatos ou acontecimentos, não os reproduzem fielmente. Há
um tipo de limitação essencial à linguagem enquanto universo simbólico de representação em relação à
realidade. Essa limitação faz com que toda descrição ou explicação de fatos seja apenas “aproximada.” A
linguagem esquematiza a realidade. Nas experiências da física, já mediadas por um alto grau de teoria,
pode-se observar que ‘muitos fatos concretos’ podem corresponder a um mesmo enunciado simbólico, ou,
dito de outra maneira, um mesmo conjunto de fatos concretos pode corresponder a uma infinidade de
juízos diferentes e logicamente incompatíveis entre si. Esta consideração pode ser encontrada em Sophia
Stein, 2003, pp. 185–203.
70
Como vimos, o único critério que os dois têm em mãos, é o da evidência empírica,
visto que quando os linguístas entram em contanto com os nativos a única ferramenta que
têm a disposição é a observação direta do comportamento dos mesmos, daí a desordem para
se chegar a algum acordo:
Quine toma como base apenas os dados e as descrições físicas do ambiente do
locutor, assim como as descrições das emissões de palavras do falante alienígena
exposto a estímulos sensoriais. Quine se atém unicamente a descrições de dados
de ordem física do falante e não descrições psicológicas ou semânticas, porque
quer reconstruir a noção de significado somente a partir de dados
comportamentais (SPARANO, 2003, p.76).
E assim sendo, podemos ter todas as traduções possíveis e incompatíveis entre si. O
que fazer? Como efetivar uma boa escolha entre traduções? É possível decidir, ou melhor, é
presumível uma decidibilidade? Com base em que critérios? O ato de decidir quanto à
tradução parece implicar um alto grau de falibilidade. Para que se possa resolver, ou ao
menos amenizar o problema a respeito das variadas possibilidades de traduções precisamos,
segundo pensa W. O. Quine, de um aparato de “identidade” e “quantificação”, pois
simplesmente não podemos decidir por falta de evidência (ou por insuficiência desta). Diz
ele:
Dado que uma sentença nativa diga que um tal e tal está presente e dado que a
sentença seja verdadeira quando e somente quando um coelho está presente, de
nenhum modo se segue que os tais e tais sejam coelhos. Eles poderiam ser todos
vários seguimentos de coelhos, precisamos de algo como o aparato de
identificação e quantificação: donde muito mais de que nós próprios estamos em
condição de utilizar numa linguagem em que nosso ponto alto, mesmo para
datar, é a Anunciação de coelhos (QUINE, 1975, pp. 52-53).
Este aparato de identificação e quantificação permitirá que o linguista mais rigoroso
consiga, ao máximo, traduzir anunciações simplórias de eventos correntes observáveis.
Contudo, deve-se requerer dele, no mínimo, um manual de instrução que permita construir,
aproximadamente, uma sentença nativa que corresponda (também de modo aproximado) a
qualquer nova sentença de tal língua. Se for cumprida esta tarefa, o linguista terá como
decidir quais expressões nativas faz referência a objetos, e, pelo menos de forma limitada, a
que espécie de objetos elas se referem. Entretanto, ele terá que decidir como adequar
expressões idiomáticas de identidade e quantificação de sua língua (de seu esquema
conceitual) na tradução de expressões nativas, e esse ato de deliberar só poderá ser feito de
71
modo arbitrário, o que na epistemologia é sempre um dilema. Conforme nos dita W. O.
Quine:
A palavra “arbitrário” precisa ser acentuada, não porque essas decisões sejam
totalmente arbitrárias, mas porque elas o são tão mais do que se tende a supor.
Pois que evidencia tem o linguista? Ele começou com o que podemos chamar de
sentenças nativas de observação, tais como a anunciação de coelhos. Essas, ele
pode dizer como traduzi-las em português, desde que não atribuamos nenhuma
relevância às diferenças entre um coelho aqui, Coelhice aqui e outras tais. Ele
pode também registrar outras sentenças nativas e estabelecer se pessoas variadas
estão preparadas para afirmá-las ou negá-las, ainda que não descubra nenhum
movimento de coelho ou outros eventos correntemente observáveis aos quais
ligá-las. Entre estas sentenças não traduzidas, ele pode obter uma indicação
ocasional de conexões lógicas, descobrindo, digamos, que precisamente as
pessoas que estão preparadas para afirmar A estão preparadas para afirma B e
negar C. A partir daí cessam seus dados e principia sua criatividade (QUINE,
1975, p. 52).
E assim o dilema parece não ter fim. Na segunda etapa da tradução, quando cessam os
dados empíricos (quando se faz inferências, se elaboram os enunciados teóricos) o linguista
só poderá empregar sua criatividade, estabelecendo assim, ele mesmo, conexões lógicas entre
as sentenças da língua nativa. Esta é a fase da invenção incontrolada, ao dar esse novo passo,
ele atribui funções às palavras, cria relações e isto permanecerá sendo uma tomada de decisão
discricionária.
Tudo isso ocorre, segundo adverte W. O. Quine, porque frequentemente estamos presos
em esquemas conceituais e não há como não sê-lo, “um linguistas cauteloso é um linguista
enjaulado” (QUINE, 1975, p. 52) e por consequência desse enjaulamento não se tem acesso
ou não é possível determinar qual a melhor tradução, já que são várias as possibilidades de se
traduzir uma sentença, todas sustentadas empiricamente, mas logicamente incompatíveis
entre si. Chega-se a afirmar que este aprisionamento conceitual se dá inclusive no interior de
uma mesma estrutura:
A arbitrariedade da leitura de nossas objetivações no discurso gentílico reflete
não tanto a inescrutabilidade da mente gentílica, mas o fato de que não há nada a
escrutar. Mesmo nós que crescemos juntos e aprendemos português no mesmo
colo, ou em colos adjacentes, por nenhuma outra razão falamos de modo
semelhante senão porque a sociedade nos treinou de modo semelhante num
padrão de resposta verbal a indicações exteriormente observáveis(QUINE. 1975,
p. 53).
72
Ou seja, nas profundezas de uma mesma língua existem dificuldades reais de se inferir que se
esteja de fato “falando a mesma língua”; afirmar uma mesmidade conceitual40 é pressupor
sempre algo além do escrutável e consequentemente o linguista encontrar-se-á impedido de
justificar arrazoadamente sua tradução.
Ainda que não concordemos plenamente, é recorrente em W. O. Quine o fato de que
estamos sempre amordaçados ao nosso plano conceitual, e de tal modo impedidos de
compreender outros esquemas. Mesmo que este tenha sido somente um artifício
metodológico utilizado por este filósofo para melhor disseminar sua tese, julgamos
demasiado radical este assentimento quineano uma vez que sem essa capacidade exercício
como este nosso exercício aqui seria impraticável.
O problema da indeterminação da tradução deve nos conectar a outra questão quineana
que é a inescrutabilidade da referência. Para esta questão espinhosa W. O. Quine destina
especificamente dois capítulos de Palavra e objeto; no início do capítulo III- a ontogênese da
referência- destaca-se em linhas gerais como este autor pretende tratar tal assunto:
Nós vimos que a referência objetiva específica dos termos estrangeiros é
inescrutável por meio do significado por estímulos ou outras disposições
linguísticas correntes. Quando, em português, decidimos se um termo deve se
referir a um só objeto inclusivo ou a cada uma de suas várias partes, nossa
decisão está ligada a um aparato provincial de artigos, cópulas, e plurais que é
intraduzível para línguas estrangeiras exceto de forma tradicional ou arbitrária
indeterminada pelas disposições do discurso (QUINE, 1960, p. 113).
Percebemos que duas questões permanecem prementes: a) primeiro a referência está
imbricada com a aprendizagem de uma linguagem ou com seu uso dentro de uma língua e,
está também ligada a questão da tradução entre duas línguas desconhecidas; b) que a
inescrutabilidade permanece em ambos os casos e que a decisão para referir é frequentemente
despótica.
Assim como a observação do comportamento dos falantes é insuficiente para a tarefa de
sinonimar também o é para referir. Percebemos que os indivíduos frequentemente não
possuem as condições satisfatórias que lhes possibilite observar quantas descrições podem
ser feitas de um termo ou de uma expressão, e como isto pode ser realizado. Estamos agora
diante da compreensão quineana da referência e esta é tomada como algo inescrutável.
Vejamos:
40
Quine se utiliza desta expressão repetidas vezes em “Falando de objetos”, 1975.
73
Referência, extensão, tem sido a coisa firme; significado, intensão, a coisa
infirme. Entretanto, a indeterminação de tradução com o que nos confrontamos
agora se entrecruza de modo semelhante com extensão e intensão. Os termos
coelho, parte não destacada de um coelho e fase de coelho diferem não apenas
em significados; eles são verdadeiros de coisas diferentes. A própria referência
se mostra comportamentalmente inescrutável (QUINE, 1975, p. 72).
Como sintetiza Vidal no texto abaixo:
Assim como a observação do comportamento dos falantes não permite detectar
univocamente o significado de uma expressão linguística, o mesmo ocorre com
sua referência, dado que todo campo de observação admite infinitas descrições e
que o conjunto dos campos de percepções disponíveis para análise de certo uso
linguístico é limitado, as infinitas hipóteses possíveis nunca serão testáveis em
sua totalidade (VIDAL, 1989, p. 55).
O problema da referência no campo da linguagem, segundo a compreensão de W. O.
Quine ocorre porque não se consegue fazer desaparecer as irregularidades e as
indeterminações ligadas aquela. Isto tudo se deve a constância de sua vaguidade, ao dilema
da ambiguidade e as dificuldades quanto à opacidade. Este seu exemplo é esclarecedor no
tocante a vagueza da referência: “à medida que é deixado indeterminado o quão para baixo
no espectro, em direção ao amarelo, ou para cima, em direção ao azul, uma coisa pode estar e
ainda ser considerada verde, verde é vago” (QUINE, 1960, p.167). Neste sentido a
indeterminação, a imprecisão prejudica a objetividade e deixa o ato de nomear recheado de
lacunas; decidir, ou seja, afirmar ‘é verde’, conforme quer nos persuadir Quine, ecoa quase
sempre como um dogma.
Quanto à ambiguidade, ele afirma existir alguns tipos importantes, destacamos a
“ambiguidade de termos”, onde se verifica que, “um termo pode ser ao mesmo tempo
claramente verdadeiro de vários objetos e claramente falso deles” (QUINE, 1960, p. 170171) e, “ambiguidade de sintaxe” como no exemplo: “o violinista era miserável” onde tanto
se pode aludir que o violinista fosse um indivíduo muito pobre em bens materiais quanto
dizer que ele era um péssimo tocador de violão41.
Em relatividade ontológica W. O. Quine realiza uma série de ilustrações para reafirmar
os problemas da inescrutabilidade ligados à ambiguidade, acompanhemos o seguinte:
Considerando-se a palavra alfa ou de novo a palavra verde. Em nosso uso dessas
palavras e de outras como elas, há uma ambiguidade sistemática. Às vezes
usamos tais palavras como termos gerais concretos, como quando dizemos que a
grama é verde, ou que alguma inscrição começa com um alfa. Às vezes, por
41
Pode-se conferir essa ilustração completa e mais exemplos sobre a ambiguidade da sintaxe em “Palavra
e objeto”, p. 177.
74
outro lado, usamo-las como termos singulares abstratos, como quando dizemos
que verde é uma cor, que alfa é uma letra. Uma tal ambiguidade é encorajada
pelo fato de que não há nada na ostensão para distinguir os dois usos. O ato de
apontar que seria feito ao ensinar o termo geral concreto verde ou alfa não difere
em nada do ato que seria feito ao ensinar o termo singular abstrato verde ou alfa.
Porém os objetos a que se refere a palavra são muitos diferentes nos dois usos;
num uso, a palavra é verdadeira de muitos objetos concretos e, no outro uso, ela
nomeia um objeto singular abstrato (QUINE, 1975, p. 73-74).
Com a ilustração acima fica evidente que pela dificuldade de se apontar, distinguir e
escolher com firmeza entre um termo geral e um termo singular abstrato, a ambiguidade se
instala e consequentemente se dá a inescrutabilidade.
Já quando se ocupa da opacidade referencial W. O. Quine irá contrapor crenças opacas
versus crenças transparentes e, irá identificar a relação entre opacidade e termos indefinidos
apontando para o problema da opacidade de alguns verbos como: caçar, procurar, desejar,
querer. Estes verbos, antes de definir uma ação, ‘indefinem’. Ou seja, seu grau de opacidade
é tamanho que confundem e inebriam a qualquer um pelo nível de sombra ao qual estão
envoltos.
Com efeito, W. O. Quine quer nos forçar a concluir que a impossibilidade de traduzir
vincula-se também ao problema da correferenciabilidade. E, assim como estamos
aprisionados em redes conceituais, estamos também limitados a instituir a referência de um
termo; como não adquirimos a competência de controlar nem a quantidade em que um termo
pode ser empregado nem as circunstâncias do seu uso, consequentemente jamais se chegará
às condições suficientes para referí-lo sem falha.
Contudo, sentimos a necessidade de perguntar a W. O. Quine se num determinado
contexto, onde se esteja guiado por um bom léxico esta tarefa seja assim tão impossível,
sugerimos que de algum modo na prática isto é o que tem funcionado. Mas ele não acreditava
nessa possibilidade.
A formulação de uma correferenciabilidade pressupõe a crença na mesmidade conceitual,
tanto no que se refere a uma tradução entre línguas diferentes, quanto na compreensão da
linguagem gentílica, ou seja, esta mesmidade supõe que expressões portuguesas significam a
mesma coisa quando se pode intercambiar uma pela outra em qualquer situação ou contexto
aproximado. Porém, mais uma vez questiona W. O. Quine:
Pode um empirista falar seriamente de mesmidade conceitual de duas condições
para um objeto x, um enunciado na linguagem gentílica e outra na nossa, mesmo
quando a singularização de um objeto x como objeto, simplesmente, para a
linguagem gentílica é tão irremediavelmente arbitrária? (...) o fato é que não vejo
75
esperança alguma de conferir-se sentido razoável à mesmidade de significado
(Quine, 1975, p. 62-62).
Concluímos que nesta perspectiva epistemológica fazer alusão de um termo é sempre
uma tarefa engenhosa, mesmo no interior de uma língua. Ou seja, “para uma reflexão mais
profunda, a tradução radical começa em casa” (QUINE, 1975, p. 78). Nesse exercício se
dependerá sempre de um emaranhado de frases, de uma teoria de mundo ou de uma teoria
científica. E assim sendo, fora de uma rede verbal ou linguística não se pode afiançar
verdadeiramente se uma palavra nomeia um referente. Contudo arremata W. O. Quine:
Insistir em que poderíamos conhecer as condições estimulatórias necessárias e
suficientes de cada ato possível de proferição numa língua estrangeira e, ainda
assim, não saber como determinar em que objetos os locutores a insegurança
quanto a referir um termo daquela língua acreditam. Ora, se a referência objetiva
é tão inalcançável à observação, quem poderá dizer, com razões empíricas, que a
crença em objetos desta ou daquela descrição está certa ou errada? Como poderá
alguma vez haver evidência empírica contra enunciados existenciais? (...)
concedamos que um conhecimento das condições estimulatórias apropriadas de
uma sentença não estabelece como interpretar a sentença em termos de
existência dos objetos. Ainda assim, ele tende a estabelecer o que se há de contar
como evidência empírica a favor de ou contra a verdade da sentença (QUINE,
1975, p. 56).
Dizendo de maneira até redundante, para se realizar tal tarefa deverá se examinar a
evidência ou um termo sempre conectado a um plano contextual, pragmático.
3.6 - Holismos quineanos: a fusão entre holismo semântico e holismo
epistemológico.
Mais uma vez invocamos um argumento da filosofia de Pierre Duhen para retirar dele
uma possível inspiração para W. O. Quine:
O convencionalismo de Duhem se sustenta sobre a assertiva de que qualquer
experiência da física nunca pode condenar uma hipótese isolada, mas somente
todo um conjunto teórico, ou seja, de que toda teoria não é uma representação
exata de uma realidade subjacente de tal forma que suas hipóteses correspondam
cada uma isoladamente a determinados fatos. Pelo contrário, uma teoria explica a
realidade de tal maneira que não se possa dizer exatamente a quais fenômenos
correspondem seus juízos. Assim, uma certa experiência, elaborada para testar os
juízos da teoria, ela própria já altamente teórica, não testa apenas uma hipótese
da teoria, mas, assim como é o resultado de um conjunto de pressuposições
teóricas relacionadas a outras pressuposições teóricas na teoria, também testa a
teoria como um todo, como um todo de enunciados semanticamente relacionados
entre si. (STEIN, 2003, p. XXX).
76
A esta altura já é sabido por todos nós que a observação empírica do comportamento dos
falantes é importantíssima para W. O. Quine, todavia sabemos igualmente que ela não
garante a certeza de um significado, ao contrário, este estará sempre passível do mal da
indeterminação porque a inescrutabilidade de um termo é uma doença crônica. Contudo, deve
haver alguma garantia que corrobore o que ainda seja dizer que ‘x significa y. E, se a noção
de significado não se prende inteiramente a uma base empírica e transcende de algum modo a
ela lhe superando, aonde então esta deverá ser ancorada? É ainda razoável que os indivíduos,
em determinada circunstância indiquem alguma coisa como sinônima de outra?
A tese do holismo semântico de W. O. Quine quer resguardar a possibilidade de um
assentimento positivo quanto ao significado, mas devem-se reformular as condições que o
tornarão possível:
O holismo semântico pode ser sintetizado nas seguintes afirmações: a unidade de
significado linguística é a totalidade da teoria cujo discurso uma expressão
integra e não a sentença ou a um termo. Toda expressão, retirada do contexto a
que pertence, não é significativa (VIDAL, 1989, p.54).
Entendido deste modo, o significado é alguma coisa que só pode ser dado numa trama
intersubjetiva onde se integram sentenças, como num jogo onde as peças só têm sentido se
associadas umas as outras. O holismo sublinhado aqui visa garantir no todo o sentido de cada
uma das peças que o compõe. As sentenças, na compreensão quineana não são, por sua
própria natureza, verídicas, elas não possuem validade se tomadas em particular.
É fácil identificar nessa filosofia da linguagem, uma coerência no que diz respeito ao
problema do significado. Este pensador se mantém firme em todas as teses quanto à
impossibilidade de se retirar da mente ou de qualquer outro lugar transcendente os
significados e todo seu esforço se move para refutar tanto seus atributos apriorísticos quanto
para negar a suficiência de seus conteúdos behavioristas. A ideia do holismo semântico é
transferir para outro lugar a validade do ato de significar e, sua defesa se dirige para a
existência de uma rede verbal, composta de sentenças que são como fibras, onde estas se
reverberam em contato direto ou indireto com as irritações de superfície.
Quanto ao holismo epistemológico, W. O. Quine entende que nossos enunciados sobre o
mundo exterior não passam pelo crivo da experiência sensível isoladamente, mas sempre
como um todo organizado.
Essa asseveração deve ser compreendida como uma invertida
quineana para reafirmar o holismo. Ocorre com os corolários da ciência um movimento
similar ao que ocorre com os enunciados de uma linguagem. Não há validade isolada de uma
77
crença, assim como não ocorre com as sentenças de uma linguagem. A ciência, conforme
entende W. O. Quine, opera através de um corpo comum de crenças, que se formam a partir
das irritações de superfície, para poder falar sobre o real.
É importante ressalvar como no interior desta teoria se entende o caminho que os
indivíduos fazem até a ciência, Quine nos assegura que:
Nós absorvemos uma arcaica filosofia natural com o leite de nossa mãe. A seu
tempo, pondo-os a par na literatura corrente e fazendo algumas observações
suplementares por conta própria, obtemos maior clareza sobre as coisas. Mas é
um processo de crescimento e mudança gradual: não cortamos o passado, nem
conseguimos níveis de evidência e realidade de um tipo diferente dos níveis
vagos das crianças e dos leigos. A ciência não é um substituto para o senso
comum, mas uma extensão dele (QUINE, 1995, p. 20).
A tarefa que a ciência se impõe é especificar a realidade, dizer como ela é. A ciência
quer descrever a estrutura da realidade como diferente da estrutura de uma ou outra
linguagem tradicional. E assim, adverte W. O. Quine mesmo que se considere que “a noção
de realidade independente da linguagem é transportada pelo cientista desde as primeiras
impressões, mas a reificação fácil das características linguísticas é evitada ou minimizada”
(QUINE,1995, p.25); e também que se defenda que “todo discurso é mera resposta às
irritações de superfície” (QUINE, 1995, p. 25); e, ainda que se entenda que o senso comum
arcaico já nos possibilitava de algum modo as noções de realidade e evidência, não se pode,
na compreensão deste pensador abdicar das presunções da ciência. E não se pode fazê-lo
porque a ciência é vista aqui como uma extensão do senso comum, a diferença está somente
em sua apresentação mais técnica e sofisticada e, também porque o cientista é um homem
mais cuidadoso e paciente que o leigo.
Uma questão relevante é saber no que a ciência anda a frente do senso comum e quanto a
isso W. O. Quine é categórico:
A resposta numa palavra é “sistema”. O cientista introduz o sistema na sua
pesquisa e no escrutínio da evidência. Além do que o sistema dita as próprias
proposições do cientista: as mais bem- vindas são as que se pensa conduzirem à
maior simplicidade da teoria como um todo. (QUINE, 1995, p.26).
O que W. O. QUINE quer evitar é que se imagine a ciência como possuidora de um tipo
de evidência que seja totalmente desconhecida pelo senso comum, ele quer esclarecer que
não é esse o caso, e que a diferença se faz apenas pelo manuseio que o cientista faz das
78
evidências, e como se processa esse manuseio. O leigo toma-a sem conexões, o cientista tem
em mãos um corpo interconectado de evidências e deve saber que só assim elas funcionam.
Entretanto o problema da ciência, na concepção quineana é que ela pretende fazer um
discurso ‘sobre’ o mundo, ou seja, seu desejo e pretensão é possuir uma linguagem sobre a
realidade, o que se constitui, de certa maneira, numa iniciativa problemática uma vez que a
realidade não é independente da linguagem como se requer; não há alguma coisa como
linguagem e realidade separadas “o real é assentido, em primeiro lugar e antes de mais, como
prévio a linguagem e exterior a nós (QUINE, 1995, p. 24). Mas esta maneira de ver está
equivocada, conforme nos alerta Quine, há, ao contrário uma concomitância na apreensão.
O holismo epistemológico se dá na mesma estrutura do semântico. Se sua análise
semântica não abre mão da existência de uma rede verbal, no ambiente epistemológico
deverá se presumir uma ‘rede epistêmica’ que dará validade a cada um dos postulados
científicos, sempre resguardando a unidade do todo.
A tese do holismo epistemológico quineano reza que uma sentença da ciência só é
legítima se integrada, ou seja, é verdadeira e autêntica pelo seu nexo de pertencimento a uma
teoria dada. Não há algo avulso. Uma crença científica disjunta do corpo que lhe confere
força e objetividade, não é portadora de verdade. A ciência nesse sentido é sempre
compreendida como uma rede de crenças.
Em 1960 já é notória uma inquietação sua com este problema:
Se existisse uma única melhor sistematização total X da ciência, conformável aos
impactos nervosos da humanidade, passado, presente, futuro, de tal forma que
nós pudéssemos definir toda a verdade como tal desconhecida X, ainda assim
nós não deveríamos ter, desta forma, definido verdades para frases reais. Por
derivação, nós não poderíamos dizer que qualquer frase simples S é verdadeira
se ela ou uma tradução sua pertence a X, pois não há, em geral, nenhum sentido
em igualar uma frase de uma teoria X com uma frase S dada a parte de X. A não
ser que esteja bem firmemente e diretamente condicionada à estimulação
sensorial, a frase S não tem significado exceto relativamente à sua própria teoria
(QUINE, 1960, p. 48).
Percebemos que nessa ocasião a preocupação com aspectos da linguagem é clara, mas o
que termina aparecendo é uma estrutura de pensamento que será mantida quando emergem as
discussões sobre a ciência.
Em 1970 juntamente com Stephen Ullian W. O. Quine escreve Web of belief (rede de
crenças) visando assumir definitivamente o problema do holismo de crença no ambiente da
filosofia da ciência. Nesta obra eles fazem uma investigação sobre os aspectos dinâmicos da
crença analisando preferencialmente a maneira como ocorrem as mudanças nas crenças e
79
como o agente formula estas crenças; neste estudo eles criticam e rejeitam sobremaneira as
doutrinas anti-racionalistas. Constatamos nesse trabalho quineano um argumento a favor da
tese do holismo epistemológico que está subliminar ao conceito de “teia de crenças” onde se
pode rastrear a noção de que o conjunto de crenças de um agente não é instituto separado,
desconexo ou sem relações, ao contrário, subjaz às crenças uma estrutura holista sem a qual
nenhuma crença subsiste.
Nesta obra The web of belief identificamos a importância das sentenças de observação na
formulação das teorias científicas, ali se orienta mais uma vez que estas sentenças não se dão
quando desacopladas de uma teia:
Quando nosso sistema de crenças suporta nossa expectativa de algum evento e
que o evento não ocorrer, temos o problema de selecionar algumas de nossas
crenças convergentes para revisão. Isso é o que acontece quando um experimento
é feito para verificar uma teoria científica e o resultado não é o que a teoria
previu. O cientista, em seguida, tem de rever sua teoria de alguma forma. Ele
deve voltar e rever uma ou outra crença de sua teoria, pelo menos, as crenças que
juntos implicava a falsa previsão. Este é também o que acontece, menos
formalmente, sempre que algo esperado não acontecer; somos chamados para
voltar e revisar uma ou outra das crenças que, tomadas em conjunto, gerou a
falsa expectativa – (QUINE e UILLIAM, 1970, capítulo II, tradução nossa) 42.
Estas sentenças observacionais não são privadas ao agente, ao contrário, são
necessariamente passíveis de serem testemunhadas por outros agentes. O que as tornariam
verdadeiras seria exatamente aquelas situações onde várias pessoas lhe poderiam testar.
Quando se afirma “há um gato sobre o tapete” várias pessoas podem conferi-lo, e é desejável
que o façam, mas quando se diz ‘meu gato preto está no tapete’ afirma-se algo privadamente
e por ser assim não se atinge as condições de uma sentença de observação; porque não se
consegue acessar os conteúdos intencionais do agente ao formular este tipo de crença43.
O testemunho, um dos elementos investigados em The web of belief, é algo relevante na
linguagem e na ciência, quando se ouve uma frase de observação que descreve algo além da
experiência que se vivencia, adquire-se uma evidência que o orador (que lhe anuncia) tem ao
receber a estimulação apropriada para seu enunciado, mesmo quando que esse estímulo não
42
O original em inglês se encontra no início do Segundo capítulo de The web of belief: When our system
of beliefs supports our expectation of some event and that event does not occur, we have the problem of
selecting certain of our interlocking beliefs for revision. This is what happens when an experiment is
made to check a scientific theory and the result is not what the theory predicted. The scientist then has to
revise his theory somehow; he must drop some one or another, at least, of the beliefs which together
implied the false prediction. This is also what happens, less formally, whenever something expected fails
to happen; we are called upon to go back and revise one or another of the beliefs which, taken together,
had engendered the false expectation.
43
Esta explanação encontra-se também esboçada no segundo capítulo da obra quineana The web of
belief, de 1970.
80
chega até nós, podemos tê-lo pelo depoimento de outrem. W. O. Quine entende que esse
mecanismo testemunhal, em princípio, é como uma extensão dos nossos sentidos. Constituise assim no primeiro e maior dispositivo humano para intensificar a observação; aprende-se
também a partir da apreensão que os outros fazem em sua observação. Nesse sentido somos
uma extensão do outro44.
Com efeito, W. O. Quine considera que toda teoria transcende amplamente os dados
experimentais e mais ainda, que uma teoria depende em grande parte dos dados culturais do
contexto de onde emerge, considera também que qualquer observação científica ou do senso
comum está profundamente impregnada pelo quadro conceitual e teórico no qual se realiza;
e, reconhece do mesmo modo que não é possível distinguir, com precisão, em nosso discurso
científico o que depende das constatações empíricas e o que deriva das sofisticadas
construções teóricas dos cientistas.
Deste modo os postulados da ciência só têm alguma salvação se apreciados ou
entendidos numa perspectiva holista, só esta lhe conferirá alguma probabilidade e lhe dará a
chance de manter o status especial alcançado ao longo dos anos.
Julgamos que esteja presente nesta epistemologia um acasalamento do holismo
semântico com o holismo epistemológico, e observamos que este pensador tramita da
semântica à epistemologia sem nenhum constrangimento, ele assume isso sem pudor: “a
epistemologia converte-se agora em semântica” (QUINE, 1975, p.102). Frases de um corpo
linguístico passam a se assemelhar a sentenças de uma ciência ou vice versa, e assim W. O.
Quine vai perpetuando a forma holista independente do conteúdo e consequentemente vai
disseminado sua herança de Pierre Duhen45 por toda parte.
3.7 - Epistemologia naturalizada em W. O. Quine – a tradição abjurada.
Historicamente a epistemologia tradicional tem como principal preocupação procurar
saber sobre a força de nossas crenças sobre o mundo exterior e contar com algum tipo de
verdade que justifique e valide estas crenças. Mesmo que não se tenha atingido isso todas as
vezes, os empreendimentos da epistemologia visam dar conta de um conhecimento sobre o
mundo. E ao menos parcamente tem se chegado a isso.
44
Conferir a primeira parte do capítulo V de The web of belief, 1970.
A tese do holismo epistemológico ficou conhecida na epistemologia como tese Duhen-Quine. Pierre
Duhen é um importante pensador que escreveu uma obra sobre a história da física como ciência natural e
junto com W. O. Quine defendia uma perspectiva holista em resposta ao convencionalismo na ciência.
45
81
A epistemologia tradicional ocupa-se com os fundamentos filosóficos do conhecimento e
do saber científico. Seu inquérito procura dar conta do problema da verdade, do significado,
da legitimidade e da justificação do conhecimento científico. Frequentemente se tem crido na
possibilidade de um fundamento a priori para nossos sistemas de crenças.
Na filosofia, o debate acerca do conhecimento nos transporta a Platão, essencialmente à
suas obras Teeteto e Menon, quando se afirmava nos diálogos protagonizados por Sócrates
que conhecimento é crença verdadeira e justificada. A epistemologia se insere, portanto, num
exercício filosófico que pode ser rastreado dos clássicos aos nossos dias. Em Descartes,
Hume, Kant, nos iluministas, nos positivistas, nos neopositivistas é possível localizar
inquietações quanto ao exercício de se produzir crenças, conhecimentos, verdades, certezas
sobre o próprio conhecimento, sobre a ciência. É ponto pacífico até W. O. Quine que a
epistemologia gerencia, de fora, o que seja o conhecimento e o que deva ser a ciência. O que
há é o que tem sido descrito como uma teoria do conhecimento e uma filosofia da ciência.
Como já afirmamos neste estudo, podemos indicar que a gênese de algumas teses
quineanas estejam enraizadas na filosofia empírica de Hume e no empirismo lógico de
Carnap e que de algum modo estes pensadores instigaram, em muitos aspectos, a proposta
quineana para a epistemologia. Quando W. O. Quine realiza sua crítica ao empirismo o
diálogo é direto entre eles e estes filósofos. Cremos que não seja exagero afirmar que sua
nova concepção de epistemologia se ergue a partir da abordagem que estes pensadores fazem
do problema do conhecimento, das crenças e da verdade.
W. O. Quine, no que se refere à tese da epistemologia naturalizada nos apresenta alguns
argumentos que procuram desbancar a vinculação filosofia e ciência, negando uma relação
hierárquica e, indicando um outro tipo de afinidade entre ambas. Essa nova acepção exige
uma retirada de força da filosofia e o adicionamento de uma força extraordinária à ciência,
resultando num desequilíbrio entre as partes.
A filosofia identificada por muitos como “ciência primeira” é nivelada à ciência. Este
pensador é até bem mais severo, ele sugere uma espécie de ‘transmutação de valores na
epistemologia’ quando em 1969, numa obra intitulada Epistemologia naturalizada46, lhe
coloca apenas como um capítulo vinculado à psicologia:
Por que toda essa reconstrução criativa, por que todo esse simulacro? A
estimulação dos receptores sensoriais constitui, em última análise, toda a
evidência na qual cada um terá podido basear-se para chegar à sua imagem do
46
Nós utilizaremos a tradução portuguesa da coleção Os pensadores, editada em 1975.
82
mundo? Por que não ver simplesmente como esta construção realmente se
processa? Por que não ficar com a psicologia?(QUINE, 1975, p. 94).
Sua insatisfação diz respeito ao a-psicologismo que se implantou nas primeiras décadas
do século XX, onde muitos pensadores consideravam um raciocínio circular a transferências
das responsabilidades epistemológicas para a epistemologia. Nessa oportunidade também é
possível aferir a insatisfação de W. O. Quine com a ambição da epistemologia em ser
fundamento para todas as ciências, inclusive para a matemática. Incomoda-lhe especialmente
o esforço dos epistemólogos da virada do século XIX para o século XX de querer, a todo
custo, reduzir a matemática à lógica, o que ele julga ser uma tarefa impraticável.
Ele adverte que sendo a matemática reduzida à lógica, todas as suas verdades passam a
ser verdades lógicas:
Se em particular todos os conceitos da matemática fossem reduzíveis aos termos
claros da lógica, todas as verdades da matemática passariam a ser verdades da
lógica; e as verdades da lógica são com certeza todas elas óbvias ou, pelo menos,
potencialmente óbvias, isto é, deriváveis a partir de verdades óbvias, por meios
de passos que, um por um, são todos eles óbvios (QUINE, 1975, p. 91).
Contudo, essa compreensão, na visão de W. O. Quine é uma premissa que nos levará a
uma conclusão falsa, e assim sendo deve ser rejeitada. No seu entendimento a matemática só
pode se reduzir à lógica e à teoria dos conjuntos e, mesmo assim permanece sendo um
exemplar que auxilia a epistemologia e não se constitui parte desta, como queriam os
epistemólogos do começo do século. Quine chega a defender que as verdades matemáticas
reduzem-se apenas a teoria dos conjuntos e é somente isto o que garante que elas sejam claras
e distintas. Para fazer tal assentimento ele se sustenta na teoria de Goedel de que nenhum
sistema axiomático consistente pode cobrir a matemática, ainda que renunciemos à autoevidência47.
W. O. Quine insiste que apesar de toda lide filosófica, o epistemólogo não tem
conseguido provar como as verdades da matemática são possíveis e, se utiliza dessa limitação
para questionar como ainda é possível se sustentar uma crença cega numa epistemologia tão
ampla, que se apresente como capaz de oferecer os fundamentos de todas as ciências.
David Hume- o melhor representante do empirismo inglês, no entendimento de Quine,
teria se esforçado para dar conta de uma epistemologia do conhecimento natural, tanto em
47
Conferir a exposição de W. O. Quine em Epistemologia naturalizada, p 91-92.
83
seu aspecto “conceitual” (que investigaria os problemas ligados ao significado) quanto no
aspecto “doutrinal” (que examina sobre a verdade), mas este empirista teria fracassado,
especialmente no lado doutrinal, W. O. Quine nos adverte que o impasse humeano
permanece sendo o impasse humano:
A mais modesta generalização sobre os dados observáveis encerra muito mais
casos que aquele que quem profere tal enunciado pôde ter a ocasião de observar.
É preciso reconhecer que não há esperança de poder fundamentar, por via
claramente lógica, a ciência da natureza sem a experiência imediata. A busca
cartesiana da certeza foi o motivo vago que inspirou a epistemologia no que
concerne tanto ao lado conceitual quanto o doutrinal; mas se percebeu que essa
busca era vã. Querer dotar de plena autoridade da experiência imediata as
verdades da natureza não era menos vago que esperar dotar as verdades da
matemática do caráter potencialmente óbvio característico da lógica elementar
(QUINE, 1975, p.93-94).
Em sua análise crítica da epistemologia clássica W. O. Quine também retoma mais uma
vez o pensamento neopositivista de Rudolf Carnap que no começo do século XX projetou-se
para realizar uma grande tarefa - representar o mundo exterior como uma construção lógica a
partir de sense data. Carnap tentou efetivar o chamado “reducionismo lógico”, apostando que
conseguiria traduzir (e segundo Quine foi quem mais se aproximou) todos os enunciados
sobre o mundo em termos de dados de observação, e imaginou que realizaria tudo isso
contando com o auxílio da lógica e da teoria dos conjuntos. Na visão quineana Carnap
também falha, e ainda que tivesse atingido seus objetivos não conseguiria dar conta do
problema, uma vez que qualquer redução ou generalização sobre dados observáveis irá
permanecer problemática e passível de revisão48.
Como esse passo não foi dado, alerta W. O. Quine, entendemos que o problema
conceitual, ligado ao significado, indicado pela epistemologia tradicional humeana
permanece sem uma resposta adequada.
Contudo, mesmo com a “impossibilidade de uma estrita derivação da ciência do mundo
exterior, a partir da evidência sensorial” (QUINE, 1975, p. 94), não se pode refutar, conforme
nos adverte o autor da crítica aos dois dogmas (até de forma contraditória) que os princípios
empiristas sejam imprescindíveis no ambiente da epistemologia, ele nos cita que dois deles
permanecem insistentemente apoiando nossos sistemas de crenças: “toda evidência de que a
ciência dispõe é a evidencia sensorial” (QUINE, 1975, p. 94) e que “qualquer processo de
inculcar significados de palavras terá que repousar, em última análise, numa evidência
48
Esta apresentação pode ser encontrada na íntegra em “Epistemologia naturalizada”, p. 93.
84
sensorial” (QUINE, 1975, p. 94). Ou seja, a evidência, tão laureada por muitas correntes
filosóficas, não é suficientemente forte para dar suporte (sozinha) à verdade, no entanto,
permanece sendo uma das fontes primeira, um fundamento para se chegar a uma imagem do
mundo.
Diante de tudo isso, o que podemos dizer da epistemologia naturalizada de Quine? O que
ela conserva e o que rejeita dos ditames tradicionais? A epistemologia tradicional crê de
algum modo na possibilidade do mundo exterior e deseja preservar a justificação de nossas
crenças. Quer resguardar ainda uma força normativa ante as ciências e, assim sendo procura
operar através de caracteres prescritivos, que como vimos apóiam-se especialmente na lógica,
e assim deliberar sobre a práxis científica. Não há, conforme constatamos, como
compatibilizar as convicções quineanas com esta visão tradicional. Há uma ruptura entre elas.
O naturalismo quineano abjura as doutrinas epistemológicas clássicas.
O arrefecimento do poder normativo da epistemologia é sublinhado em W. O. Quine. É
público que com ele a epistemologia é uma mera figura que perde o lugar de protagonista e
passa a ser entendida como coadjuvante, ou seja, ela agora é um campo de estudo similar a
qualquer ciência. Ao afirmar que ciência e filosofia estão num mesmo nível e possuem o
mesmo grau de força, que a ciência, em especial a psicologia, passa a garantir justificação
epistêmica e a reger de dentro nossas assertivas sobre o mundo exterior, este filósofo dissolve
todo o trabalho de se dar significação à ciência a priori.
Conhecemos as várias críticas que são endereçadas a W. O. Quine quanto a este quesito,
especialmente aquelas impetradas por Laurence Bonjour que considera este empreendimento
autodestrutivo.
Endentemos que Thomas Kuhn também não aceite a radicalidade do
naturalismo quineano, contudo como afirmamos inicialmente, nossa pretensão era descrever
como esta tese e as demais se encontram disposta no interior do esquema teórico de W. O.
Quine.
Conclusão:
Já reconhecemos o quão amplo é o trabalho filosófico quineano. Suas críticas aos
dogmas do empirismo visam não sua eliminação, mas a sofisticação deste. E, a partir destas
apreciações se vê surgir um holismo semântico e epistemológico, uma epistemologia
naturalizada, como também se percebe o alavancar de questões profundas acerca da
aprendizagem de uma linguagem, da tradução e da referência. Muitos estudos têm sido
realizados para examinar as minúcias deste empreendimento. Suas diferentes teses
permanecem abertas a investigação filosófica.
85
Esperamos ter apresentado aqui o suficiente para poder fazer a checagem que nos
dispomos. Almejamos ter elucidado de maneira satisfatória, ainda que instrumental, as teses
quineanas que consideramos importante para nossos propósitos, agora pretendemos
relacioná-las com a filosofia da ciência de Thomas Kuhn
86
4 INTERFACE FILOSÓFICA ENTRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE
THOMAS KUHN E A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE.
Na seção anterior elucidamos importantes teses do sistema quineano. Nosso objetivo era
corroborar a pressuposição de que esta epistemologia possui uma série de elementos que se
entrecruzam densamente com a filosofia da ciência de kuhniana, ou seja, pretendemos
responder a seguinte indagação: Teria W. O. Quine influenciado verdadeiramente Thomas
Kuhn em sua teoria? Ou há somente pontos comuns isolados nessas teorias que não indicam
necessariamente uma influência? Como almejávamos evidenciar que a filosofia histórica da
ciência toma como relevante alguns argumentos quineanos na formulação de seu traçado
conceitual se fez necessária a exposição antecedente. Acreditamos ser possível extrair das
linhas que compõem o empreendimento quineano várias informações que ajudaram a compor
a estrutura histórico-filosófica da ciência.
Nesta seção nosso objetivo é descrever pontos de conjunção contidos nestes
empreendimentos, sem negar, todavia, algumas disjunções. Não perdemos de vista que haja
verdadeiramente muitos legados na abordagem de ciência kuhniana, no entanto escolhemos
esta afinidade com W. O. Quine porque supusemos que ela ainda necessite ser mais
investigada.
4.1 - Entrecruzamentos conceituais entre Thomas Kuhn e W. O. Quine.
Thomas Kuhn admite repetidas vezes que W. O. Quine lhe persuadiu em muitas ideias.
Inferimos a partir disso que haja uma interface confessada, assumida. Não são poucas as
linhas em que se revelam os embricamentos conceituais entre suas filosofias. Listaremos
doravante várias passagens que se assentam como álibi dessa interconexão. Contudo, se faz
necessário esclarecer que este não é um movimento recíproco, mas unilateral, uma vez que
não se verificou em W. O. Quine quase nenhum sinal que se possa definir como kuhniano,
nem se encontrou algum assentimento deste quanto à filosofia da ciência do outro 49. Somente
Thomas Kuhn assume leituras e interferências da epistemologia quineana e mesmo quando
49
Sophia Stein na obra “Van Quine: epistemologia, semântica, e ontologia” afirma existir uma
proximidade intelectual de Quine e Thomas Kuhn no que se refere ao afastamento do reducionismo
fenomenalista, mas não indica uma dívida intelectual de Quine para com Thomas Kuhn. Nós reafirmamos
que não localizamos em Quine nenhuma referência às obras kuhnianas.
87
não o faz deixa lacunas para que alguém lhe faça. Delimitaremos a seguir as marcas desta
interface nas obras kuhnianas:
a) Em 1962, na obra ERC:
Nosso exercício de rastreamento pode dar sua primeira parada nas linhas da obra
kuhniana de 1962, a ERC, quando no seu prefácio encontramos esta afirmativa: “Quine
franqueou-me o acesso aos quebra-cabeças filosóficos da distinção analítico-sintética”
(KUHN, 2006a, p.11), mesmo não exemplificando detalhadamente nessa obra o que essa
afetação lhe teria ocasionado, consideramos este registro ainda em 1962 como bastante
relevante. E notamos que ao menos de forma subliminar essa obra já traz em seu âmago um
rastro de algumas concepções de W. O. Quine.
Ao examinarmos outra assertiva da ERC constatamos mais um traço desta proximidade:
“não é de admirar que nos primeiros estágios de desenvolvimento de qualquer ciência,
homens diferentes confrontados com a mesma gama de fenômenos- os descrevam e
interpretem de maneira tão diversa” (KUHN, 2006a, p. 37), esses dizeres podem nos remeter
diretamente às ideias que estão contidas na narrativa quineana de indeterminação da
tradução, onde os linguistas, tomando os dado de observação somente poderão fornecer uma
tradução indeterminada.
Observamos que uma questão sempre relevante em W. O. Quine é sua inquietação com a
linguagem, com o seu processo de aquisição, com as etapas de seu aprendizado, com seu
desenvolvimento. Notamos que uma ansiedade similar também é visível em Thomas Kuhn
durante toda ERC no que se refere à ciência, as suas fases de desenvolvimento e ao seu
aprendizado.
Acuremos mais linhas da ERC: “há dificuldades imensas que com frequências são
encontradas no estabelecimento de pontos de contato entre teoria e natureza” (KUHN, 2006a,
p. 51), cremos poder indicar que nessas epistemologias, tanto a da aprendizagem de uma
teoria científica quanto a da aprendizagem de uma linguagem presume-se uma articulação
entre linguagem e mundo e ambas assumem que este movimento não é simples, e que não se
consegue uma aproximação, um controle e um domínio do mundo, cada vez melhor e mais
apurado como algumas epistemólogos preveem. As duas teorias admitem um nexo entre
mundo e linguagem, não concebendo sua apreensão separadamente.
Observamos que W. O. Quine em Palavra e objeto se utiliza da expressão “rede verbal”:
A frase é provocada por um estimulo não-verbal; mas aqui, em contraste com
aquele estágio primitivo- behaviorista- a rede verbal de uma teoria articulada
interveio para ligar o estímulo com a resposta (...) a frase é provocada por um
88
estimulo não-verbal, porém o estímulo depende, para sua eficácia, de uma rede
anterior de associações de palavras com palavras, a saber, o próprio aprendizado
de uma teoria (QUINE, 2010, p. 32).
Não estaria esta “rede anterior”, como aludida acima, bem próxima do que Thomas Kuhn
por muitas vezes nomeou de paradigma em ERC? Não é admissível inferir que o autor das
revoluções tenha lido algumas linhas desta obra quineana de 1960 para articular esta sua
categoria tão recriminada? Vemos muita proximidade nestas construções conceituais e como
já fora acenado anteriormente, na obra de 1962 há um rastro da radicalidade quineana
espraiado em muitas ideias kuhnianas.
b) No Posfácio da ERC:
Consideramos este texto como uma parte importante de sua revisão. No Posfácio já é
possível notar grandes mudanças no interior da teoria kuhniana. Em alguns fragmentos notarse-á a presença viva de elementos que nos ajudam a demarcar a interface que estamos
rastreando. Não são raros os lugares onde ocorrem estes liames. O debate acerca da escolha
entre teorias científicas, ou a forma de empreendê-las é um dos temas frequentes das
primeiras páginas do texto e uma das saídas encontradas por Thomas Kuhn, ainda que
insuficiente, como ele mesmo indica é quanto às escolhas no ambiente científico, na ocasião
das escolhas uma comunidade científica deve ser considerada como comunidade linguística e
muitos de seus problemas deverão ser resolvidos como questões de linguagem, no mesmo
estilo como entendera W. O. Quine em suas obras, reparemos a prova disso:
Não é surpreendente que, quando estas distribuições ocorram, dois homens que
ali pareciam compreender-se perfeitamente durante suas conversações, podem
descobrir-se
repentinamente
reagindo
ao
mesmo
estímulo
através de
generalizações e descrições incompatíveis. Essas dificuldades não serão sentidas
nem mesmo em todas as áreas de seus discursos científicos, mas surgirão e
agrupar-se-ão mais densamente em torno dos fenômenos dos quais depende
basicamente a escolas da teoria (KUHN, 2006b, 250).
De forma surpreendente, ao adentrarmos o Posfácio encontramos a influência quineana
em muitos assentimentos:
Instamos que os homens que defendem pontos de vistas não comparáveis sejam
pensados como membros de diferentes comunidades de linguagem e que
analisemos seus problemas de comunicação como problema de tradução
(KUHN, 2006b, p. 221).
89
Nesta ocasião supracitada percebe-se que a radicalidade da indeterminação da tradução
quineana é ainda mantida na integra na visão de Thomas Kuhn.
Pudemos notificar e sugerir vários pontos de intercessão no Posfácio, mas há, sobretudo,
uma confissão direta. Ao tratar do problema da interlocução entre membros de diferentes
comunidades linguísticas (ou científicas, elas agora se confundem a todo o momento)
Thomas Kuhn irá posicionar-se de uma forma que sustenta o argumento da tradução no
sentido quineano reafirmando que em algumas situações os interlocutores tornam-se
tradutores e assume: “a fonte já clássica para a maioria dos problemas relevantes quanto à
tradução é Word and object de W. O. Quine” (KUHN, 2006b, p.251). Contudo, ainda que
estas duas teorias evidenciem o problema da tradução é pertinente que se deixe claro,
nenhuma delas ostenta uma defesa da intradutibilidade. Thomas Kuhn conta frequentemente
com a possibilidade de tradução e W. O. Quine opera com a probabilidade de várias
traduções, ainda que inconciliáveis.
Uma questão sempre levada a sério filosofia de Thomas Kuhn, como já se afirmou
outrora, diz respeito à categoria paradigma (indicada como componente chave desta filosofia
da ciência). Conjecturamos que esta pode também está conectada à filosofia de W. O. Quine.
Já se observou em ERC os caracteres que definem o que seja verdadeiramente um paradigma,
são os seguintes: possuir força atrativa que conecte um grupo de pesquisadores; ser
circunscrito ou limitado o suficiente para poder orientar a pesquisa que a ele sucede;
permanecer aberto o suficiente para deixar problemas, quebra-cabeças para serem desvelados
posteriormente. E, em obras subsequentes, iremos nos deparar sempre com uma revisão do
termo e em consequência disso com um uso subtraído e mais localizado.
No Posfácio, já se nota uma transformação conceitual e consequentemente uma
aplicabilidade circunscrita do termo paradigma que pode ser indicada como uma resposta aos
seus críticos, especialmente a Masterman. Paradigma é apresentado com outros distintivos e
certamente com outros objetivos. Ali, paradigma é entendido como “matriz disciplinar” e
efetiva-se como: a) generalizações simbólicas, mais gerais e flexíveis; b) como
compromissos ontológicos, analogias, grupo de valores, modelos considerados legítimos
numa dada comunidade científica; c) exemplares compartilhados, aplicações-protótipos a
serem testados em casos particulares.
Se examinarmos com cuidado o conteúdo da letra b acima- paradigma usado como
compromissos ontológicos, analogias, grupo de valores, modelos considerados legítimos
numa dada comunidade científica (ou seja, um léxico em linguagem kuhniana recente)
90
perceberemos as mudanças quanto a sua abrangência e significado. Se assim for, se
paradigma adquire somente definição contextual perceberemos mais uma filiação ao
pensamento quineano. Lembremos que quando faz sua crítica da analiticidade em Two
Dogmas of empiricism, W. O. Quine se refere à questão do significado como algo que
invariavelmente irá emergir de uma rede de relações pragmáticas, sociais que lhe definem
conforme um sistema de crença, de acordo com o seu aprendizado de uma linguagem,
respeitando o diálogo e a empatia entre os falantes, num contexto pragmático dado. E,
somente isso permitirá que os indivíduos forjem alguma coisa como “significados”.
Ainda neste texto de 1969 pudemos localizar uma base de explicação para o problema
da comunicabilidade e do entendimento entre cientistas que embora aponte uma direção
diametral à de W. O. Quine, só pode ter sido elaborada lhe tomando como relevante, sua
composição ecoa como uma contraposição direta a ela, uma vez que seus argumentos são
todos elaborados como se respondendo às posições quineanas acerca das dificuldades de se
traduzir:
Tomando como objeto de estudo as diferenças encontradas nos discursos no
interior dos grupos ou entre esses, os interlocutores podem tentar primeiramente
descobrir os termos e as locuções que, usadas sem problemas no interior de cada
comunidade, são, não obstante, focos de problemas para discussões intergrupais
(traduções que não apresentam tais dificuldades podem ser traduzidas
homofonamente). Depois de isolar tais áreas de dificuldade na comunicação
científica, podem em seguida recorrer aos vocabulários cotidianos que lhes são
comuns, num esforço para elucidar ainda mais seus problemas. Cada uma pode
tentar descobrir o que o outro veria e diria quando confrontado com um estímulo
para o qual sua própria resposta verbal seria diferente. Se conseguirem refrear
suficientemente suas tendências para explicar o comportamento anômalo como a
consequência de simples erro ou lacuna poderão, com o tempo, começar a prevê
bastante bem o comportamento recíproco. Cada um terá aprendido a traduzir
para sua própria linguagem a teoria do outro, bem como suas consequências e,
simultaneamente, a descrever na sua linguagem o mundo ao qual essa teoria se
aplica (KUHN, 2006b, p. 251).
Esta possibilidade acenada acima não estaria nos planos de W. O. Quine ou ao menos
não tivemos a capacidade de localizá-la. Thomas Kuhn parece dar um passo ao problema da
tradução aqui, se bem que em sua teoria se fala mais de interpretação que de tradução e
sabemos que não se pode sinonimar estas categorias. Desacordos a parte, avisamos que eles
apareceriam.
Diante desta exposição, constatamos que no Posfácio da obra de 1962 também é possível
entrecruzar densamente estas filosofias.
c) Na obra Tensão Essencial (TE):
91
Percorramos mais sinais dessa interface, eles podem ser capturados em muitos lugares,
acompanhemos agora em TE, texto kuhniano de 1977:
Quando escrevia o livro sobre as revoluções, descrevi essas maneiras como
episódios em que os significados de alguns termos científicos mudavam, e sugeri
que o resultado era uma imensidade de pontos de vistas e uma quebra parcial de
comunicação entre os proponentes de diferentes teorias. Desde então, reconheci
que “mudanças de significados” denominam um problema mais do que um
fenômeno isolável, e agora estou persuadido, em grande parte pelo trabalho de
Quine, de que os problemas da incomensurabilidade e da comunicação parcial
deveriam tratar-se de outro modo (KUHN, 1989, p. 26).
Entendemos que nesta ocasião Thomas Kuhn estaria tentando compatibilizar sua ideia
inicial de incomensurabilidade à noção radical de indeterminação da tradução defendida por
W. O. Quine. Ele assumiria que inicialmente sua incomensurabilidade havia sido pensada
conforme inspiração quineana.
Contudo, em TE, já estaria reformulando sua tese se
afastando de si mesmo e de W. O. Quine, ao defender a possibilidade de uma comunicação
parcial quanto às mudanças de significados que ocorrem na ciência.
Nessa passagem é possível se sugerir mais uma marca de W. O. Quine:
Uma coisa que aglutina os membros de uma de qualquer comunidade científica
e ao mesmo tempo os diferencia dos membros de outros grupos aparentemente
similar é a posse de uma linguagem comum ou dialeto especial (...) que ao
aprenderem essa linguagem, como devem, a fim de participar no trabalho da
respectiva comunidade, os novos membros adquirem um conjunto de
empenhamentos cognitivos que não são, em princípio, totalmente analisáveis
dentro dessa mesma linguagem. Tais empenhamentos são consequência dos
modos como os termos, frases e enunciados da linguagem se aplicam à natureza,
e é a sua importância para a ligação linguagem-natureza que torna tão importante
o sentido original, mais restrito, de “paradigma” (KUHN, 1989, p. 26).
O conteúdo da notação acima passa a ser encontrado em vários lugares, atravessando os
escritos kuhnianos. Não são poucos os locais aonde se pode identificar essa nova
configuração que o autor imputa à sua filosofia, a preocupação com o binômio “linguagemnatureza” que não era comum, ou pelo menos não estava expressa com nitidez nas obras
anteriores, passam a ser um traço marcante em suas obras. E a forma como este problema é
tratado, ou seja, a inquietação com o modo como termos, enunciados e frases da linguagem
se aplicam a natureza, nos causa uma crença forte de que o autor dos paradigmas sofre uma
interferência substancial dos ensinamentos quineanos.
92
Em TE vimos que Thomas Kuhn já antevisse e ou acatasse de alguma maneira a
estrutura holística na filosofia da ciência, ali já se afirmava que “as teorias são holísticas em
alguns aspectos essenciais, sempre cobrem o âmbito total dos fenômenos naturais
concebíveis” (KUHN, 1989, p. 48). Mesmo que nesta oportunidade a defesa do holismo
ainda ocorra num grau mínimo e de forma tímida é possível se indicar a partir desta
afirmação mais uma presença de W. O. Quine, sem esquecer, como já fora aludido, que há
fragmentos em TE onde essa interferência é confessada.
d) Na obra CDE:
Outros embricamentos podem ser encontrados. Os próprios editores da obra kuhniana de
2000 afirmam em sua introdução:
Kuhn passou suas últimas décadas defendendo, esclarecendo e desenvolvendo
substancialmente a idéia de incomensurabilidade (...) comensurabilidade e
incomensurabilidade, tais como apresentadas nas obras posteriores são termos
que denotam uma relação que vigora das estruturas linguísticas (KUHN, 2006c,
p. 12).
Esta inovação na estrutura de pensar os antigos problemas, justificando-lhes como um
problema de linguagem, confirma em muitas ocasiões a interface que ora investigamos.
Anotamos que esta vinculação com W. O. Quine é reconhecida por estudiosos rigorosos das
ideias de Thomas Kuhn, um bom exemplo disso é Paul Hoyninger que em sua obra
Reconstruindo as revoluções científicas: a filosofia da ciência de Thomas Kuhn chega a citar
dez passagens onde é possível rastrear esta interface; e partilha ao seu modo da aproximação
como nós estamos fazendo agora
50
. Esta influência também já fora enunciada por alguns
estudiosos brasileiros51.
Ao revisar e analisar, o primeiro capítulo de CDE, notou-se que quanto ao conceito de
“movimento” na física aristotélica, Thomas Kuhn recomenda:
Quero, agora, começar a sugerir que, na medida em que se reconhecem esses e
outros aspectos do ponto de vista de Aristóteles, eles começam a se ajustar uns
aos outros, a apoiar-se de modo mútuo e assim, a criar, em conjunto, um certo
tipo de sentido que individualmente, não possuem ( KUHN, 2006c, p. 29).
50
Pode-se encontrar esta indicação detalhada em Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s
philosophy of science, preface, xviii. 1993.
51
Estamos nos referindo especialmente ao professor José Carlo Pintos de Oliveira que escreveu um
importante artigo “Kuhn e Quine”, onde apresenta tópicos de aproximação entre estes filósofos, conferir
cadernos de história e filosofia da ciência, Série 3, 1 p. 33-53, jan - jun, 2000.
93
Essa orientação holística não é notificada em 1962, e aqui conseguimos ouvir com
nitidez a voz de W. O. Quine nas palavras kuhnianas. Seguimos desvendando mais
intromissões conceituais em CDE: “a doutrina aristotélica sobre o vácuo e o vazio, exibe,
com particular clareza, como várias teses que parecem arbitrárias, quando tomadas
isoladamente, dão umas às outras, autoridade e apoio mútuos” (KUHN, 2006c, p. 30).
A revisão no entendimento do que seja a física aristotélica e sua doutrina do vácuo, só é
presumível nesta ocasião devido à assimilação da doutrina holística, nos moldes como fora
pensado o holismo epistemológico por W. O. Quine.
Além disso, em CDE apreendemos com frequência uma apologia quanto à estrutura
holística da ciência, exercício corriqueiro na epistemologia quineana, da crítica aos dogmas
do empirismo até as obras mais recentes. Thomas Kuhn, especialmente em seus últimos
escritos, passa a justificar toda espécie de mudança na ciência conforme esta estrutura,
defendendo que as mudanças revolucionárias, como haviam sido anunciadas outrora, só
poderia ser compreendida numa forma holística, acolhendo de vez uma conexão com a
epistemologia de W. O. Quine, apreciemos esta declaração:
As mudanças revolucionárias são, de certa forma, holísticas. Isto é, elas não
podem ser feitas gradualmente, um passo de cadê vez, e assim, contrastam com
as mudanças normais ou cumulativas como, por exemplo, a descoberta da lei de
Boyle, na mudança normal, simplesmente revisa-se ou acrescenta-se uma única
generalização, e todas as outras permanecem as mesmas. Na mudança
revolucionária é preciso ou viver com a incoerência ou revisar em conjunto
várias generalizações inter-relacionadas. Se estas mesmas mudanças fossem
introduzidas uma de cada vez, não haveria um refúgio intermediário. Apenas um
conjunto de generalizações provêem uma explicação coerente da natureza
(KUHN, 2006c, p.41).
Sobre essa questão é pertinente ressalvar que W. O. Quine desenvolve questões
específicas onde problematiza a ciência, uma delas, como já afirmamos, é sua ênfase ao
holismo epistemológico, onde defende que uma sentença retirada do contexto de uma teoria
não tem importância significativa, e que a unidade de significação linguística de uma
sentença reside somente na totalidade da teoria cujo discurso esta sentença integra. Podemos
encontrar sombras desse tipo de holismo, sem fazer muito esforço, em quase toda obra
kuhniana de 2000, examinemos em mais estes traços:
Ao se aprender a mecânica newtoniana, os termos “massa” e “força” precisam
ser adquiridos em conjunto e a segunda lei de Newton tem que desempenhar um
papel em sua aquisição (...) todos os três tem que ser apreendidos em conjunto
(...) para aprender qualquer uma dessas maneiras de fazer mecânica, os termos
inter-relacionados, em alguma parte da rede da linguagem, têm de ser aprendidos
94
ou reaprendidos em conjunto e, então, aplicados à natureza como um todo. Eles
não podem ser traduzidos um a um (KUHN, 2006c, p.60).
Ocorre quase uma transferência conceitual e percebe-se uma acomodação dos conceitos
quineanos na filosofia da ciência de Thomas Kuhn. Há verdadeiramente uma interface.
As conexões existentes nestas teorias, quanto à ciência e linguagem na
contemporaneidade, devem ser assinaladas como um item crucial desta interface. Thomas
Kuhn, especialmente em CDE, quer estabelecer uma vinculação epistemológica definitiva
entre estas duas categorias, assentando todas as suas teses acerca da ciência como elementos
meramente linguístico. W. O. Quine que assumiu desde sempre o problema da linguagem,
elabora questões específicas onde problematiza a linguagem da ciência, a epistemologia
naturalizada, a noção de rede de crenças, o holismo epistemológico, a inquietação com o
alcance da linguagem da ciência, são ilustrações diretas de sua preocupação. Observamos que
muitas convicções quineanas passam também a ser vistas em Thomas Kuhn.
Vemos a olho nu que nos últimos trabalhos kuhnianos se toma como relevante a
discussão acerca do problema da linguagem e do significado no ambiente científico, trazendo
a tona com frequência questões que são imprescindíveis na epistemologia quineana.
Examinemos mais esta declaração: “a mudança de significado, que venho descrevendo, de
forma um tanto precisa, como mudanças na maneira por que as palavras e expressões de uma
língua se ligam à natureza, uma mudança na maneira por que são determinados seus
referentes” (KUHN, 2006c, p. 42.). Esse assentimento se constitui em mais uma prova de
como as ideias quineanas estão presentes. Ao continuarmos nossa empreitada de
rastreamento das linhas desta interface elas se avolumam, acompanhemos neste outro
assentimento “as justaposições semelhantes a metáforas que mudam em épocas de revoluções
cientificas são, portanto, fundamentais para os processos pelo qual é adquirida a linguagem,
seja ela científica ou não” (KUHN, 2006c, p. 44).
A problemática da linguagem é assumida sem temor no interior da filosofia da ciência
kuhniana:
A prática científica sempre envolve a produção e a explicação de generalizações
sobre a natureza, e essas atividades pressupõem uma linguagem com um grau
mínimo de riqueza, e a aquisição de uma tal linguagem traz consigo
conhecimento da natureza(...) se estou certo, a característica principal das
revoluções científicas é que elas alteram o conhecimento da natureza intrínseco a
própria linguagem (KUHN, 2006c. p. 44).
95
Salta aos olhos que assinalar as interfaces entre estas concepções filosóficas é uma tarefa
alongada e essa extensão se justifica mais exatamente pelo que se pôde capturar nas linhas da
obra de 2000.
Assim, uma vez que a filosofia da ciência paradigmática assume deliberadamente
posições ligadas à linguagem e não se filia diretamente a nenhuma outra doutrina e, como em
várias oportunidades traz-se o nome e as ideias de W. O. Quine, seja para infirmá-las ou para
se filiar a esta, nos dar motivos para estabelecer essas conexões. Verificamos que latente ou
manifesto W. O. Quine aparece com insistência em muitos ditos e escritos kuhnianos de 1962
até 2000.
4.2 - Tópicos objetivos da interface filosófica entre a filosofia kuhniana e a
epistemologia quineana: proximidades e distanciamentos.
Num panorama geral se pode inferir que se Thomas Kuhn defende a ciência como um
empreendimento social, da mesma forma W. O. Quine o faz em relação à linguagem. Se o
epistemólogo cria e dá corpo a uma teoria da linguagem que dentre outras questões ocupa-se
ferrenhamente de uma linguagem da ciência, o filósofo da ciência, por sua vez reconstrói sua
teoria da ciência frequentemente se justificando em pressupostos de uma teoria da linguagem,
chegando mesmo a assumir a ciência com uma linguagem. Basta lembrar a sua transformação
dos termos paradigma, revoluções científicas e de suas novas afirmativas sobre a
incomensurabilidade. Na sua filosofia posterior a 1962, Thomas Kuhn sustenta que as teorias
científicas são como linguagens, referindo-se mais nomeadamente ao problema da
incomensurabilidade entre teorias ou paradigmas científicos e à escolha entre teorias ditas
rivais.
Se para W. O. Quine nada há por convenção52, Thomas Kuhn parece querer imitá-lo uma
vez que ao engendrar suas categorias procura frequentemente realçar caracteres contextuais.
Imaginamos que houve um estudo demorado, uma reflexão intensa sobre essa assertiva
quineana para se formar conceitos como comunidade científica, incomensurabilidade em
1962 bem como para reconstruí-los em CDE. O que seria o léxico a que se refere Thomas
Kuhn em 2000 senão um elemento significativo, empático, contextual que determinada
especialidade emprega? Isto não estaria coligado às convicções quineanas?
52
Somos alertados que mesmo criticando o convencionalismo, W. O. Quine ainda é apontado como
conservador de alguns meandros desta doutrina, sobre isso conferir um importante escrito de Sophia Stein
“aspectos convencionalistas da filosofia de Williard Quine” universidade federal de Goiás, principia 7 (1–
2), Florianópolis, Junho/Dezembro, 2003, pp. 185–203.
96
Em sua defesa da epistemologia naturalizada W. O. Quine traz à tona a questão da
definição contextual na linguagem, identificamos que a forma como Thomas Kuhn passou a
defender o que seja ciência em CDE, conferindo validade somente às especialidades,
redefinindo e reduzindo seus conceitos, aproxima-se da linhagem pragmática quineana
adotada acerca da linguagem.
Listamos mais uma aproximação: notamos que quando Thomas Kuhn reformula e
atualiza o que seja um paradigma seu uso se restringe acintosamente, o que era um corpo de
crenças comuns ou uma tradição de pesquisa que servia de parâmetro para a ciência normal,
passa a exercer somente o papel de uma teoria dentro de uma área restrita de pesquisa, assim
sendo podemos associar mais uma vez estes autores, vejamos como W. O. Quine se
pronuncia em Palavra e objeto:
A teoria como um todo – nesse caso, um capítulo da química, mais adjuntos
relevantes da lógica e de outros lugares – é uma trama de frases associadas de
formas variadas umas às outras e a estímulos não verbais pelo mecanismo de
resposta condicionada (...) uma teoria pode ser fruto de deliberação (...) pode ser
natural (...) em qualquer um dos casos, a teoria causa um compartilhar das frases
de base sensorial (QUINE, 2010, p. 33).
Deve ser com essa ideia diminuída de teoria, como um capítulo de alguma área de
conhecimento, que se estava operando em 2000 quando foi recomposta a noção de
paradigma, agora designada de léxico.
Destacaremos a seguir alguns elementos que consideramos proeminentes para objetivar
com mais precisão a inter-relação entre as teorias examinadas:
4.3 - Podemos fazer analogias entre a aprendizagem de uma linguagem e a
aprendizagem de uma ciência?
O neófito, conforme é compreendido na doutrina kuhniana aprende desenvolvendo a
capacidade de identificar similaridades, diferenças e apreendendo analogias entre problemas
e fenômenos:
Uma vez percebida a semelhança e apreendida a analogia entre dois ou mais
problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre símbolos e
aplicá-los à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado sua
eficiência anteriormente (...) desta aplicação resulta a habilidade para ver
semelhança entre variedades de situações. Tal habilidade me parece ser o que de
mais essencial um estudante adquire (...) depois de resolver certo número de
97
problemas o estudante passa a conceber as situações que o confrontam como um
cientista (KUHN, 2006b, p. 236-237).
Identificadores e quantificadores eram, como já demonstramos na segunda seção deste
trabalho, elementos determinantes aos aprendizes de uma linguagem conforme aludira W. O.
Quine. Anotamos ainda que a ideia de aprendizagem intersubjetiva e pública da linguagem
quineana encontra-se implícita na notação acima acerca da aprendizagem da ciência, todavia
nem tudo nestes processos pode inicialmente ser equiparado.
Ao estudar a epistemologia quineana, concordamos que o aprendizado de uma
linguagem seja uma questão relevante e talvez a tese que mais lhe fornece robustez como nos
recomenda Vera Vidal53. E não podemos perder de vista que o aprendizado de uma ciência
possui especial relevo na filosofia da ciência de Thomas Kuhn, constituindo-se em um
componente importante desta teoria. Identificamos que nestas duas concepções se confere
uma relevância peculiar ao “processo de aprendizagem”. Seus mentores estão obstinados a
compreender como este processo pode delimitar e construir uma relação satisfatória entre
linguagem e mundo e a partir disso, cada um, de maneira própria se esforça para demarcar
esta articulação.
Parece ser ponto comum que a natureza e as palavras são apreendidas simultaneamente.
Porém, o processo de educação, segundo Thomas Kuhn, pode determinar como isso ocorre e
o resultado pode indicar um distanciamento da abordagem quineana. Em Kuhn homens
diferentes que recebem o mesmo estímulo são tocados de forma diferentes por eles e
estímulos diferentes podem causar sensações parecidas, contudo, o neófito bem ensinado e os
cientistas compatibilizam de alguma maneira estímulos diferentes porque possuem
exemplares que lhes orientam e coligam, há um consenso que possibilita este ajuste. Já W. O.
Quine não aceitaria este tipo de compatibilidade no que se refere à aprendizagem de um
língua nova. Lembremos que os manuais formulados pelos tradutores quineanos são todos
incompatíveis entre si.
Na ERC temos o detalhamento do processo de como se estabelece, se aprende e se
ensina uma ciência madura, lembramos precisamente de como os neófitos precisavam ser
adestrados. Em Palavra e objeto podemos acompanhar todo o processo por meio do qual se
aprende, se alcança e se atinge uma linguagem desenvolvida. Nesta ocasião W. O. Quine
defende um pressuposto metodológico inicial para a aquisição de uma linguagem, que é
53
Em seu texto de 1989 “contribuições do sistema filosófico de Quine para as investigações da filosofia
analítica” Vera Vidal nos apresenta uma visão geral desta epistemologia e dar ênfase a tese quiniana da
aprendizagem de uma linguagem.
98
qualificado como um behaviorismo, um processo de estímulo-resposta. Thomas Kuhn em
1969 se refere en passant a critérios behavioristas54, mas segue para uma direção diferente:
Na medida em que os indivíduos pertencem ao mesmo grupo e compartilham a
educação, a língua, a experiência e, a cultura, temos boas razões para supor que
suas sensações são as mesmas. Se não fosse assim como poderíamos
compreender a plenitude de sua comunicação e o caráter coletivo de suas
respostas comportamentais ao meio ambiente? É preciso que vejam as coisas e
processem os estímulos de uma maneira quase igual (KUHN, 2006b, p. 241).
A teoria kuhniana defende, ao menos no estágio de ciência normal, certa regularidade na
comunicação, W. O. Quine não admitiria esta perfeição no processo de comunicabilidade e
como já pautamos outrora, ainda indicaria esta pressuposição como algo arbitrário.
Ressalvamos que quando privilegia a observação pública do comportamento dos
falantes, quando aposta na relação estímulo-resposta para produção de um discurso sobre o
mundo, W. O. Quine é rotulado como um behaviorista, mas, como já foi possível verificar,
em sua epistemologia, há um deslocamento ascendente para fases subsequentes onde se
podem captar elementos que transcendem a um comportamento estimulado, ou ao menos se
pode avistar enunciados pouco ligados a observação, já vimos que em fases mais
desenvolvidas ocorrem os processos de abstração e de inferência subjetivas. Thomas Kuhn
também não se prende a este artifício comportamental e de modo aproximado defende
inferências e interferências subjetivas no ambiente científico.
No entendimento de W. O. Quine, existe na linguagem a presença de enunciados
“teóricos”, que advêm de ‘acordos empáticos’, de relações pragmáticas, contextuais, de onde
passarão a emergir os tão desejados “significados”. Estes, conforme se radicaliza nessa
abordagem, não existem jamais na mente dos indivíduos, ao contrário, frequentemente serão
produzidos abertamente mediante a disposição de alguém a um determinado comportamento
no interior de um contexto linguístico dado, nega-se qualquer apriorismo.
Recordemos que Thomas Kuhn, em ERC também toma como relevante a explicação de
como num período de ciência normal, no interior de uma comunidade científica (que como
vimos pode até ser nomeada de comunidade linguística) é imprescindível que os neófitos em
diálogo com professores e especialistas aprendam e domine uma linguagem específica e
técnica, pertencente ao paradigma em vigência, de acordo com seu léxico, numa comunidade
dada, mas talvez isso não seja suficiente para se estabelecer aqui um nexo aproximativo, dado
54
No “Posfácio” podem-se encontrar alusões aos processos de estímulo-resposta na vivência e no
aprendizado dos cientistas, mesmo que este pressuposto não seja algo tão significativo na teoria kuhniana.
Conferir p.240-241.
99
que em algumas ocasiões Thomas Kuhn ainda defende certo apriorismo e também conta de
alguma maneira com aspectos intencionais quanto ao significado55.
Queremos deixar evidente que a interface ou a semelhança conceitual talvez ocorra
apenas na forma, na estrutura de pensar o problema, pois há divergências quanto ao
conteúdo. Penso que seja razoável assinalar que o aprendiz de uma língua parte do nada
conforme pensa W. O. Quine e que o aprendiz de uma ciência, no sentido kuhniano já possui
uma língua mãe, natural, se dispondo a aprender somente uma linguagem adstrita de sua
especialidade. O cientista kuhniano manuseia um léxico e o efetiva, ele realiza uma espécie
de sub-linguagem.
W. O. Quine assume em oportunidades mais recentes que a ciência pode ser subsumida
de certa forma como uma sub-linguagem, um discurso refinado sobre o mundo. Em O
alcance e a linguagem da ciência, 1995, Quine anuncia que a ciência é somente uma
linguagem mais refinada que o senso comum, um tipo de segunda linguagem. Assim sendo
anota-se mais uma congruência filosófica, no entanto quando se trata da questão da tradução
esta harmonia não sucede.
Ao retomarmos aqui a tese da aprendizagem de uma linguagem, pretendemos assinalar a
relevância ao processo de aprendizagem que está ressaltada nas estruturas teóricas que
estamos examinando; ao investigarmos mais esta convergência conteudística reconhecemos
que se pode equiparar apenas sua estrutura de pensar os problemas. Há questões acerca do
conteúdo destes processos que seguem caminhos bem diferenciados.
Deste modo perguntamos se é ainda admissível comparar tais processos e avaliamos que
uma comparação seja viável, porém equiparar ou igualá-los pode ser problemático. Em W. O.
Quine os aprendizes de uma língua natural não possuem nenhum equipamento conceitual,
teórico, partem do nada, dão um salto no escuro, e, os aprendizes de outra língua não são
capazes de utilizar a língua mãe na tradução devido à questão da inescrutabilidade da
referência dos termos. Os aprendizes de uma ciência nos moldes kuhnianos, ao contrário,
aprendem a dominar uma linguagem de sua área, contudo já possuem uma língua vernácula
bem desenvolvida.
Os cientistas normais e os neófitos, no entender de Thomas Kuhn, ou se encontram em
um laboratório de pesquisa e ou numa universidade, são indivíduos com capacidades
cognitivas bem desenvolvidas, são especialmente homens com um sistema de valores e
55
Estamos acolhendo aqui a sugestão de Paul Hoyningen que ao tratar do problema da mudança de
mundo como mudança de significado na teoria kuhniana, aponta para aspectos intencionais e extensionais
do significado no interior desta teoria. Esta narrativa pode ser conferida nas páginas 209-210 de
Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s philosophy of science.
100
crenças já arraigado e se utilizam destes em seus empreendimentos. Daí nosso
convencimento de que não se possam nivelar nem o aprendiz de uma linguagem com o
aprendiz de uma ciência, nem o cientista kuhniano com o tradutor quineano, atualmente a
radicalidade de W. O. Quine não se repete em Thomas Kuhn.
Na teoria kuhniana, a língua mãe dos cientistas pode e frequentemente é associada a
termos referentes às teorias científicas em vigências e não há fissura entre elas. Notaremos
uma ruptura light somente quando emergir ou se exigir dentro de um campo reservado de
estudo uma “nova” rede verbal para explanar o mesmo fenômeno que antes era explicado
pelo aparato conceitual de domínio do cientista. Por isso insistimos em repetir que o que nos
move a estabelecer um nexo através dessa questão, entre estas concepções, dizem respeito
somente as preocupações que estes apresentam quanto à aprendizagem. Por notarmos que
ambos escolhem esse fundamento metodológico para dele erigir e ordenar suas teorias.
Defendemos que o tradutor quineano e o operador da ciência não podem ser igualados. O
argumento sobre a tradução em W. O. Quine, que como vimos é uma das pedras angulares de
sua epistemologia, reza que a indeterminação da tradução ocorre pela impossibilidade de se
decidir sobre a referência dos termos de uma linguagem. Se considerássemos apenas a obra
kuhniana de 1962, diríamos que o cientista kuhniano, como opera com paradigmas
incomensuráveis, estaria igualmente impossibilitado de traduzir um paradigma em outro
subsequente e assim se assumiria uma dificuldade similar a de W. O. Quine.
Contudo, verificamos que com a reconstrução do sentido original de paradigma feita na
atualidade, será diminuída sua relação com o argumento da tradução quineana, mesmo que
ainda mantenha certa familiaridade com aquela epistemologia, uma vez que ele é agora
assumidamente um dispositivo linguístico. É certo que a cada exercício e revisão que vai
sendo realizado em suas obras Thomas Kuhn parece temer o uso da categoria paradigma
“embora raramente empregue esse termo hoje em dia, tendo perdido por completo o controle
sobre ele, irei, a bem da brevidade, usá-lo aqui algumas vezes” (KUHN, 2000, p. 271). Mas
também é verdadeiro que todo uso que se faz dele agora seja como um elemento de
linguagem.
Não é mais possível dizer que os paradigmas, no sentido fraco que possuem atualmente,
são incomensuráveis, hoje estes correspondem apenas a um léxico pertencente a uma
especialidade científica; e, mesmo porque este léxico co-existe, convive com outros sem
grandes dificuldades. Lembremos que no esquema teórico quineano não se contava com a
possibilidade de um léxico funcionar, uma vez que o aprisionamento aos esquemas
conceituais impedia qualquer exercício de se transferir, ou intercambiar termos para outros
101
quadros conceituais. O linguista quineano é um indivíduo enjaulado como já indicamos
outrora, e, o cientista kuhniano cada vez mais convive não só com seu léxico, mas com a
plausibilidade de outros.
Reafirmamos que a radicalidade de W. O. Quine não repercute mais na nova filosofia de
Thomas Kuhn, este se utiliza das ideias daquele, mas não ratifica sua força.
4.4 - Incomensurabilidade e indeterminação da tradução:
A questão da incomensurabilidade, onde se polemiza sobre a concorrência entre teorias e
a subdeterminação que envolve sua escolha é, conforme alegação de seu mentor, um
problema polêmico e trabalhoso nesta concepção filosófica56. E assim sendo Thomas Kuhn
corre atrás de algum tipo de justificação que lhe torne mais adequada no ambiente
epistemológico. Conforme entendemos a questão, tanto a construção quanto a reconstrução e
reformulação desse termo se aproxima da base conceitual adotada por W. O. Quine em
diferentes obras. Sugerimos que haja uma leitura das teses da indeterminação da tradução e
da inescrutabilidade da referência neste exercício kuhniano, muito embora o resultado final
aponte para alguma dissonância.
Cremos que a resolutividade e a saída a que chega Thomas Kuhn acerca do problema da
incomensurabilidade (que como já explicitamos na primeira seção, em sua versão atual é
exclusivamente um conceito localizado), só é possível através do entendimento e da
compreensão do que é e como se engendram as concepções quineanas de indeterminação da
tradução e de inescrutabilidade da referência. Lembremos que a primeira assinala que a
indeterminação ocorre pela multiplicidade dos dados da experiência e pelo uso descontrolado
que se faz deles e que a segunda tem por base a crença que todo campo de observação admite
infinitas descrições e o conjunto dos campos de percepção disponíveis para a análise de certo
uso linguístico é limitado; as infinitas hipóteses possíveis nunca serão testáveis em sua
totalidade, daí ocorrer a indeterminação. Indicamos que estes argumentos quineanos são
somente inspiradores, não delimitadores do que recomenda Thomas Kuhn, especialmente em
sua nova acepção – incomensurabilidade local.
56
Paul Hoyningen faz uma lista infindável dos vários autores que criticam o termo incomensurabilidade
na forma como fora defendido por Thomas Kuhn, entre os mais conhecidos estão: Hacking 1982, p. 5862, Lakatos, 1970, p. 179, Laudan 1976, p. 593-596, Putnam 1981, p. 113-124.
102
Embora esta vinculação filosófica seja explícita podemos localizar em CDE uma crítica
de Thomas Kuhn à questão da tradução em W. O. Quine. Na seção- o manual de tradução
quineano pode-se verificar como ele organiza essa apreciação:
A maioria das dificuldades consideradas aqui deriva, mais ou menos
diretamente, de uma tradição que sustenta que uma tradução pode ser elaborada
em termos puramente referenciais. Tenho reiterado que isso não é possível, e
meus argumentos implicam pelo menos, a necessidade de se invocar alguma
coisa do reino dos significados, intencionalidades e conceitos (KUHN, 2006c, p.
64).
Se Thomas Kuhn tiver como defender o argumento acima nos colocará diante de uma
visão diferente daquela requerida por W. O. Quine. E agindo assim permaneceria adotando
um apriorismo e ou um fundacionismo na linguagem e, rejeitando as tendências behavioristas
e empíricas já aludidas na epistemologia quineana. Mas sabemos das dificuldades que
existem em se afastar totalmente as convicções kuhnianas do ambiente da experiência. Não
seria o caso de se sugerir quanto a isto uma saída analítico-sintética? Se for Thomas Kuhn se
afasta de Quine, este já aboliu essa bipartição.
Mesmo identificando estas declarações contrárias à indeterminação tradução, julgamos
pelo menos inicialmente que estas críticas não têm força para invalidar nosso assentimento de
que é a partir da leitura desta tese que Thomas Kuhn formula e revisa sua noção de
incomensurabilidade.
Entretanto, não podemos negligenciar que as censuras contidas em CDE sejam marca de
um desacordo; já havíamos advertido quanto às disjunções entre estes autores, elas
verdadeiramente existem e nem daremos conta aqui. Percebemos numa seção desta obra
intitulada “tradução versus interpretação” que Thomas Kuhn nos pede para eliminarmos a
equiparação entre interpretação e tradução e ensaia a partir disso, algumas críticas a tese
quineana da tradução, Kuhn chega a dizer que os exemplos elaborados por W. O. Quine são
enganadores porque confundiriam interpretação e tradução. Como vimos, Quine diz não
contar com nenhum componente interpretativo no ato de traduzir, o linguista tradutor citado
em sua teoria sabe sua língua e desconhece totalmente a língua a ser traduzida. O tradutor
kuhniano parece está em outras condições:
A tradução é feita por uma pessoa que sabe duas línguas, perante um texto,
escrito ou oral, em um dessas línguas, o tradutor sistematicamente substitui as
palavras ou sequências de palavras do texto por palavras ou sequências de
palavras da outra língua. Não é preciso, por enquanto, especificar o que significa
ser um “texto equivalente”. Igualdade de significado e igualdade de referencia
são ambos, desideratos óbvios, mas não os invoco ainda, digamos simplesmente
103
que o texto de tradução conta mais ou menos a mesma história, apresenta mais
ou menos as mesmas ideias, ou descreve mais ou menos a mesma situação que o
texto do qual ele é a tradução (KUHN, 2006c, p. 53).
Observemos que a posição original para traduzir é tomada pelos dois pensadores de
forma diferente, e consequentemente o exercício de traduzir, quando se conhece duas línguas
muda substancialmente. É preciso deixar claro que W. O. Quine não toma a questão desta
forma.
Thomas Kuhn chama o ideal de tradução no sentido quineano de idealista, para ele o
tradutor quineano visa uma perfeição inatingível quanto ao ato de traduzir. E, quanto ao ato
de interpretar, afirma-se em CDE que esta ação pode ser realizada por antropólogos e
historiadores e ao contrário do tradutor o interprete pode, inicialmente, dominar apenas uma
única língua. Percebemos que Thomas Kuhn insinua que o tradutor quineano seja somente
um intérprete e orienta que no tão conhecido “caso do gavagai”, ele deve agir de outra
maneira “em vez de traduzir, o intérprete pode simplesmente aprender qual é o animal em
questão e usar, para este animal, o termo empregado pelos nativos” (KUHN, 2000, p. 54).
Contudo, na compreensão Kuhniana interpretar não impede a tradução, em sua visão o
interprete pode descrever para o inglês, por exemplo, os referentes do termo “gavagai” e se a
descrição for bem sucedida não haverá incomensurabilidade, mas devemos ficar atento as
possibilidades disso não ocorrer, ou seja, pode haver casos onde “gavagai” permaneça um
termo irremediavelmente nativo e quando isso ocorre estar-se-á diante de um caso incomum
de incomensurabilidade57. Por isso incomensurabilidade é (em alguns casos raros) um tipo
especial de intradutibilidade:
Incomensurabilidade torna-se um tipo de intradutibilidade circunscrita a uma ou
outra área em que duas taxonomias lexicais diferem. Categoriais taxonômicas
compartilhadas, pelo menos numa área sob discussão, pré-requisitos para uma
comunicação necessária para a avaliação das asserções de verdade. Se diferentes
comunidades linguísticas têm taxonomias que diferem em alguma área
localizada, então membros de uma delas podem fazer (e ocasionalmente farão)
enunciados que, embora plenamente significativos nessa comunidade de
discurso, não podem em princípio ser articulados pelos membros de outra
(KUHN, 2006c, 118).
Apesar de podermos capturar rastro de convergências acima, deve ficar manifesto que
W. O. Quine não faz menção a intradutibilidade, ele nos fala de infinitas possibilidades de
tradução o que não é o caso aqui em Thomas Kuhn. Mas percebemos ao mesmo tempo nessa
notação que este último alimenta sua admiração pelo esquema teórico quineano. A ideia de
57
Observa-se aqui a explicação kuhniana em “O caminho desde a estrutura”, p. 55.
104
taxonomia é próxima da ideia de quadro conceitual como aludido pelo autor de epistemologia
naturalizada.
Incomensurabilidade, em sua versão forte de 1962, foi considerada por vários críticos de
Thomas Kuhn, como uma das teses que mais deixava lacunas explicativas na estrutura
interna de sua filosofia, ou seja, era um item que exigia um processo de justificação árduo, o
que lhe forçou a um trabalho permanente de revisão e um apelo frequente a outras
epistemologias. Avaliamos que de algum modo as ideias quineanas são as que mais se
aproximavam do conceito forte de incomensurabilidade. E, quanto ao novo conceito –
incomensurabilidade local- que emerge das obras kuhnianas recentes, notamos que ele guarda
uma relação com a doutrina holística tão propagada na epistemologia quineana. Apesar deste
autor não admitir expressamente uma dívida a W. O. Quine quanto a este quesito, e até
criticar a tradução quineana, penso ser pertinente afirmar que é dali que ele consegue extrair
algum tipo de corroboração para lançar esta categoria em 1962 e também para transformá-la
no que ela é no momento.
No entanto é importante verificar como mesmo se utilizando em grande escala das ideias
quineanas e lhe tendo uma dívida considerável, Thomas Kuhn se encoraja a lhe fazer uma
crítica, o que revela sua autonomia filosófica. Julgamos que a crítica a tradução seja produto
da revisão que fora realizada em toda obra kuhniana, o que consequentemente força-lhe a
rechaçar a radicalidade de W. O. Quine, o que nem sempre deve ser valorado como positivo,
entretanto, no final das contas, nada há de grandioso nestas críticas que se possa colocar estas
visões como antagônicas ou opositoras.
4.5 - Thomas Kuhn seria um epistemólogo natural nos moldes quineanos?
Perguntamos se Thomas Kuhn se emolduraria na epistemologia naturalizada como dita
por W. O. Quine ou se o naturalismo presente em sua filosofia da ciência não corresponderia
à outra vertente do naturalismo ou se a filosofia kuhniana não escaparia deste rótulo58.
Alguns críticos dizem não ser preocupante o fato de Thomas Kuhn ser ou não naturalista,
mas conferimos relevância a este problema, primeiro porque suspeitamos que sua filosofia
não se ajuste a muitos posicionamentos naturalistas e segundo porque em algumas passagens
58
Estou compartilhando com Philip Kitcher e Jésio Hernani, a idéia de que seja muito difícil enquadrar
Thomas Kuhn como um naturalista, para isto estou usando o argumento de que esta doutrina é muito
diversa, e, que este autor não reafirma a tese segundo a qual a filosofia perde seu status no entendimento
do seja e o que deva ser a ciência e mais ainda que tenha se perdido o caráter normativo na epistemologia.
105
de sua vasta bibliografia encontramos uma inquietação em permanecer normativo. Para tanto
se faz necessário alguns esclarecimentos sobre a epistemologia naturalizada.
A epistemologia naturalizada é um empreendimento filosófico que tem como traço
fundamental a crença de que é possível um método empírico na realização de tarefas
filosóficas; ou seja, assim como a ciência só pode ser analisada, compreendida e descrita
através de uma base empírica assim também deve ser com a epistemologia.
Na
epistemologia naturalizada se aposta num processo de auto-análise epistemológico e se
descredencia qualquer apreciação externa que transcenda a empiria.
Se a epistemologia tradicional prescrevia sobre o conhecimento, se se constituía numa
‘teoria do conhecimento’, agora o diagnóstico mais apropriado da ciência é dado pela própria
ciência; defende-se somente uma vistoria naturalista. Não haveria mais neste campo uma
ação normativa que preceituasse o que seja a ciência ou o que deva ser, nenhum trabalho
nesse sentido é apropriado, somente a avaliação que insurja do seu próprio interior pode ser
tomada como relevante. Entendemos que os conceitos e teorias epistemológicas são
vulneráveis ao crivo da experiência, do mesmo modo que as teorias científicas. Em qualquer
interpretação que façamos da epistemologia naturalizada fica evidente que a filosofia que se
apresenta como uma disciplina a priori, de caráter normativo e livre de considerações
empíricas arrefece ou cai por terra.
De forma subliminar, há muito tempo tem se dado créditos a tal exercício na filosofia. Os
empiristas ingleses já ensaiavam esse entendimento quando optaram por operar com a ideia
de que algo que transcendesse ao fazer empírico era de segundo grau. Os positivistas do
século XIX que elegeram a ciência como ‘o novo deus’ do ocidente decretaram que o estado
metafísico é equivalente ao da ignorância e por ser assim deve ser rebaixado. Entretanto,
estudos nos revelam que parece ser o pragmatismo de William James, o naturalismo empírico
de Dewey e as ideias evolucionistas de Charles Darwin (a filosofia dita anglo-americana) que
dirigem a epistemologia naturalizada ao seu cume. Só os investimentos de cunho cientificista
são razoáveis nessa matriz conceitual:
As mazelas da filosofia seriam resultado, para Dewey, do emprego de um
método não-empírico que teria afastado a filosofia da experiência primeira,
levando-a a hipostasiar uma substância imutável como realidade abstrata, eivada
de categorias do pensamento (ABRANTES, 1998, p.08).
Assim entendida a epistemologia naturalizada em seus princípios primeiros sugere: a) o
abandono de qualquer tendência fundacionalista, intelectualista que não perceba o sujeito
106
cognoscente em plena conexão com seu meio ambiente, b) a rejeição de todo movimento que
exceda o empírico e se aproxime do metafísico. Expira o normativismo e jaz o descritivismo.
Cabe à epistemologia somente descrever e explicar a ciência, mas se utilizando da própria
ciência para fazê-lo. No princípio a psicologia passa a ser a base onde os naturalistas se
ancoram, posteriormente, as ciências cognitivas, a sociologia e por vezes a história passam a
subsidiar também todo e qualquer tipo de juízo acerca a ciência. Dissolve-se a força
prescritiva da epistemologia.
Entretanto, revisando as análises desta estirpe filosófica nos deparamos com versões
diferentes de naturalismo. São vários os tipos de naturalismo, “umas das dificuldades em se
avaliar o naturalismo é a variedade de orientações englobadas nessa denominação”
(ABRANTES, 1998, p. 14). Deste modo, parece ser necessário classificá-los em dois tipos e
a partir daí se verificar aonde cada subtipo pode ser anexado. Existe a epistemologia
naturalizada tradicional e a epistemologia naturalizada radical, a primeira está atrelada aos
nomes de John Dewey, William James, Nagel e a segunda refere-se mais especialmente ao
naturalismo apresentado por W. O. Quine a partir de 1969, em sua obra Epistemologia
naturalizada, já explicitada nesse estudo.
Quando apresentamos aqui a epistemologia naturalizada de W. O. Quine, dita agora
como radical, identificamos que nela era relevante retirar da epistemologia a função
normativa da qual teria se encarregado ao longo do tempo e, abandonando tal função caberia
a esta apenas um trabalho descritivo. Contudo, é necessário esclarecer que a epistemologia
naturalizada tradicional parece querer operar somente com uma versão módica desse
descritivismo, por isto nela são atenuadas, de certo modo, as críticas à função normativa.
Diante de posições bem distintas perguntamos se ainda é admissível que se nomeie, todas
estas epistemologias como epistemologia naturalizada e se há alguma tese de consenso que
outorgue o rótulo de naturalista a versões tão variadas. Indagamos também se não é possível
afirmar uma ruptura entre os tradicionais e radicais? Porém, percebemos que há algo que
conecta estas iniciativas, “não é obvio que haja um núcleo comum de compromissos aceitos
por todas as variedades de naturalismo, Kitcher considera centrais dois componentes do
naturalismo: a rejeição do a priori e o psicologismo” (ABRANTES, 1998, p. 14).
De modo geral os naturalistas não aceitam o exercício de justificação a priori devido o
caráter falível e contingente das crenças que compõem suas teses epistemológicas e,
contrariamente aceitam o psicologismo porque este lhes possibilita o afastamento das
idealizações feitas pela epistemologia clássica.
107
Uma epistemologia naturalizada deve levar em consideração, por exemplo, as
limitações cognitivas do sujeito epistêmico, em vez de propor normas (baseadas
em princípios da lógica ou da estatística, por exemplo) que não podem ser
seguidas por sujeitos epistêmicos reais. A aceitação do principio ‘deve => pode’
teria, nesse sentido, um caráter eminentemente naturalista (ABRANTES, 1998,
p. 15).
Constatamos assim o primado do “pode” sobre o “deve”, quer sejam radicais ou
tradicionais, todos acatam esse novo imperativo e é assim que se desenvolvem, umas mais
outras menos, as epistemologias que derivam da matriz naturalista. Laurence Bonjour, ao
fazer suas críticas à epistemologia naturalizada vai observar que existem também vários
tipos de psicologismos e que há possibilidade de que alguns deles consigam conviver com a
justificação a priori de determinados princípios59.
Estudiosos da epistemologia naturalizada dentre os quais Philip Kitcher, Paulo Abrantes
e L. Bonjour, ao listarem epistemólogos naturais enquadram Thomas Kuhn nessa relação. De
fato sua filosofia da ciência parece abrigar elementos naturalistas. Todavia, sabemos que
conforme já fora abordado acima, há versões e versões da epistemologia naturalizada, umas
hardcore que é o caso, como se viu, do naturalismo de W. O. Quine, mas há outros tipos
mais mitigados. Nossa pretensão é afastar Thomas Kuhn ao máximo do naturalismo e
defender que se houver um tipo de naturalismo em sua filosofia da ciência, deverá conviver
com o normativismo.
Perguntamos se ceder lugar para a história da ciência, para psicologia e para sociologia
da ciência em sua abordagem da ciência é abandonar de vez todo tipo de justificação? Se
abraçar o psicologismo da forma como fez Thomas Kuhn lhe obriga a negar a legitimidade
de justificação ou de algum fundamento na epistemologia? Já vimos com Bonjour que se
pode muito bem adotar a um, sem que necessariamente tenha que consentir com o outro.
Desconfiamos que a filosofia da ciência que ora nos debruçamos, conforme fora por nós
elucidada, aspire preservar certo grau normativo ainda que seja uma espécie de
normatividade relativa.
Se voltarmos à explicação de que o naturalismo rejeita todo tipo de fundacionalismo e se
prende unilateralmente à experiência imediata vemos que por alguns instantes há uma
confusão na teoria kuhniana, ora vinculando-se ao segundo critério, ora mantendo um tipo de
fundacionismo. Sugerimos que de alguma maneira o paradigma kuhniano em suas versões
fortes e fracas corresponderia a um fundacionismo que se pensado a priori delibera sobre o
59
Na importante crítica de Laurence Bonjour em “Contra a epistemologia naturalizada” ele indicará três
tipos de psicologismos, um psicologismo mínimo, um conceitual, outro meliorativo, conferir cadernos de
história e filosofia da ciência, Campinas, série 3, v. 8, n. 2, p. 186-187, 1998.
108
modus faciendis das práxis científicas, o paradigma possui uma função normativa.
Lembramos novamente que Margaret Masterman em sua crítica da variância de significados
do termo paradigma na ERC de Kuhn, indicou um sentido metafísico de paradigma e nos
advertiu que nessa acepção seu autor se apartaria da empiria requerida em outros usos do
termo.
Comprovamos que na sua abordagem de ciência Thomas Kuhn assume reiteradas vezes
o holismo e sabemos das profundas dificuldades que persistem em se compatibilizar holismo
e fundacionismo ou holismo e apriorismo. Como é possível uma posição holista resguardar
algum grau de normatividade, é aceitável um holismo local? Se isto não for possível o
empreendimento
kuhniano
se
despedaça.
Contudo
já
evidenciamos
aqui
seu
comprometimento com uma incomensurabilidade local.
É certo que em nenhuma ocasião Thomas Kuhn se assume como naturalista, mas ao
mesmo tempo se auto-apresenta como um historiador e filósofo da ciência e é assim que se
comporta ordinariamente. No entanto, o que é determinante para nossa pretensão de abrandar
aqui o naturalismo é não detectarmos uma passagem sequer onde se defenda a eliminação da
epistemologia em favor da psicologia e, sobretudo que a epistemologia perca seu caráter
normativo. Em algumas linhas já desvendadas por nós Kuhn confirma que sua filosofia da
ciência permanece normativa e afirma ser improvável o fosso que se estabeleceu entre o “é”
(descrever) e o “deve ser” (prescrever).
Outro elemento importante nessa discussão naturalista diz respeito as questões do
método na filosofia e na ciência. Nessa perspectiva são atendidas duas visões metodológicas,
uma monista que afirma existir um método único a ser utilizado pela filosofia e pela ciência e
outra dualista que visualiza ciência e filosofia com métodos próprios e diferentes entre si.
Quine é um monista metodológico (...) e Goldman opõem-se a Quine por
defender claramente o status normativo da epistemologia, o que implicaria, no
seu entender, que esta última dispõe de métodos próprios, não científicos (...) o
confiabilismo de Goldman mantém-se naturalista na medida em que pressupõe
que a justificação de uma crença é função dos processos psicológicos que a
produzem e sustentam (ABRANTES, 1998, p. 21).
Quanto às questões metodológicas, como já asseguramos, Thomas Kuhn ainda quer
preservar um normativismo, os paradigmas, ou sua versão recente “os léxicos” são
aprioristícos no sentido kantiano do termo. E assim sendo pensamos ser mais adequado
aproximar a estrutura kuhniana da visão naturalista requerida por Alvin Goldman que ainda
109
resguarda caracteres normativos na epistemologia60; devemos igualmente conectá-lo ao tipo
de naturalismo que é defendido por Philip Kitcher. Inferimos que a filosofia da ciência de
Thomas Kuhn está para além da epistemologia naturalizada nos moldes como fora pensada
por W. O. Quine e se aproximaria de outros epistemólogos menos severos.
Ao destacarmos alguns pontos arrazoados por Philip Kitcher em seu paper “o
retorno dos naturalistas”
61
, constatamos que seja admissível vincular o naturalismo
kitcherano ao que ocorre na filosofia de Kuhn. Kitcher também assume o debate natural
fazendo aparecer importantes variáveis e julgamos que estas, face a face, podem nos ajudar a
entender alguma veia naturalista no empreendimento kuhniano. Em linhas gerais Kitcher
parece querer apresentar uma versão alternativa para o naturalismo nos oferecendo um novo
ponto de vista, uma perspectiva acrescida de elementos poucos canônicos e/ou nem aceitos
pela discussão ortodoxa dessa temática. Elencaremos a seguir alguns tópicos relevantes do
referido texto para ver se de algum modo podemos retirar dele um amparo plausível à nossa
investigação.
No início da iniciativa de Philip Kitcher, é possível anotar a reafirmação da divisão
clássica do naturalismo em tradicional e radical, bem como a preferência dos radicais pela
psicologia e, o consequente deslocamento da filosofia para um lugar de capítulo daquela.
Uma asserção que imediatamente nos chama atenção nesta investigação é quando este
estudioso nos assevera que na visão dos naturalistas “a epistemologia e a filosofia da ciência
são disciplinas somente descritiva, capítulo da psicologia, neurociência, sociologia, ou
história da ciência” (KITCHER, 1998, p. 34-35). Ser a filosofia da ciência apontada como
capítulo da psicologia não nos aparece mais como inédito, mas o ato de adicionar à lista, a
sociologia e história da ciência nos permite dizer que Kitcher pretende se comprometer com
algo alternativo.
Todavia, o caráter de novidade e ousadia não se localiza somente no assentimento
acima, ele se evidencia mais precisamente quando este filósofo procura assegurar a
viabilidade de se preservar uma essência normativa no interior de uma estrutura naturalista 62.
Se for razoável o que ele pretende defender (e desconfiamos que seja), Thomas Kuhn de
certo modo se vincula uma epistemologia naturalizada no modo kitcherano. Ou seja, adere
60
Conferir a exposição de Paulo Abrantes em “Naturalismo epistemológico: apresentação”, p.21, 1998.
Ver também a posição de Alvin Goldman acerca da epistemologia naturaliza no paper “epistemologia
naturalizada e confiabilismo” in cadernos de história e filosofia da ciência, série 3, v. 8, n. 2, p. 109-145,
1998.
61
Este texto pode ser encontrado na íntegra nos cadernos de história e filosofia da ciência, série 3, v. 8, n.
2, p.27-108, 1998.
62
Sobre isso conferir a exposição majestosa realizada por Kitcher em “O retorno dos naturalistas”, 1998,
p. 35.
110
caracteres naturalistas sem abandonar a normatividade. Consequentemente, este ponto passar
a ser um artefato formidável para nós.
Entretanto, como já reafirmamos neste estudo, não devemos nos precipitar para aquiescer
sobre isso. Mesmo Kitcher parece querer livrar Kuhn desta moldura “as visões
epistemológicas complexas e às vezes evasivas de Kuhn tem inspirado numerosos
empreendimentos nas abordagens naturalistas de ciência (...) mas não está claro se o próprio
Kuhn adota o naturalismo” (KITCHER, 1998, p. 49).
No ambiente da epistemologia, como vimos, o argumento tradicional que defende o
conhecimento como crença verdadeira justificada, insere-se na seara sobre a verdade e o
conhecimento desde os clássicos e é reintroduzido nos dias de hoje com muita veemência.
Este é como nos assevera Kitcher, um argumento psicológico, mas como a ortodoxia
epistemológica resolveu, por um bom período de tempo, respeitar somente as condições
lógicas do conhecimento, a epistemologia tornou-se gradualmente apsicologista. Entretanto,
o processo de recuperação do psicologismo foi ocorrendo aos poucos, ganhou um alento
peremptório com W. O. Quine e a partir de 1970 surgem argumentos a favor de uma
epistemologia psicologista.
Com o estabelecer desse movimento a tendência é apostar que “o status epistemológico
de um estado de crença depende de fatos psicológicos relativos ao sujeito” (KITCHER, 1998,
p. 37). Segundo Kitcher, mesmo as respostas ao problema de Gettier63 são projetos
meliorativos onde se emprega procedimentos psicológicos não implicando a perda de
justificação, ao contrário, todas as respostas a este desafio proposto por Gettier visam
exatamente a justificação.
Destarte, a temática da psicologia se revitaliza na epistemologia e ganha força também
com Kitcher. Para ele “somos todos metodologicamente imperfeitos” (KITCHER, 1998, p.
45), e por isso não devemos repelir nenhum critério, e nos põe em alerta:
Há espaços para outros conceitos de racionalidade e justificação. A contrapartida
da afirmação de que alguém poderia satisfazer fortuitamente o ideal externo é
que um agente cognitivo possa fazer o melhor possível e ainda assim não atingilo (...) mas é importante manter o ideal externo como sendo a meta a ser atingida.
(KITCHER, 1998, p. 45).
63
“O problema de Gettier” constitui-se numa crítica sob a forma de contra-exemplo à definição tripartite
de conhecimento que opera considerando este último como crença verdadeira e justificada. O
epistemólogo Edmund Gettier em 1973 polemiza sobre a terceira variante (a justificação) alegando que
em algumas circunstâncias um sujeito S pode crer que P e está justificado em sua crença de P, mas que os
procedimentos de elaboração e justificação desta crença são insuficientes para que o sujeito tenha
conhecimento. Ter crença verdadeira e justificada é necessário para se ter conhecimento, mas não é
suficiente.
111
É perceptível que nos acréscimos propostos por Kitcher ao debate existem
elementos relevantes para compreendermos Thomas Kuhn:
A história da ciência revela que os objetivos atribuídos à investigação variam
amplamente de campo pra campo e de época pra época. Assim, não pode existir
nenhuma epistemologia normativa universal e devemos decidir ou pela descrição
dos modos como as pessoas realmente formam suas crenças ou pelas
recomendações locais sobre como aqueles que operam num contexto particular
devem promover os seus objetivos. Uma destacada forma contemporânea de
naturalismo recorre a esta assertiva. (KITCHER, 1998, 63).
Ou seja, podemos até afugentar um a priori epistemológico, mas não sugerir um
abandono aos projetos normativos, “é um exagero afirmar o fim da epistemologia
normativa” (KITCHER, 1998, p. 108) e, devemos, em oposição a isto, “abandonar uma
única concepção de valor cognitivo” (KITCHER, 1998, p.108). Ou seja, precisamos
começar a pensar somente em sua relativização. Haveria lugar para uma normatividade
local, relativa. Ficamos inquietados para compreender se isto é possível e sugerimos
concomitantemente que talvez seja; que deva ocorrer uma normatividade particular, um
projeto de normatividade contextual.
Em determinada ocasião Paul Feyerabend teria perguntado a Thomas Kuhn como
deveriam ser lidas suas ambíguas observações acerca da ciência, se como prescrição ou
somente como descrição64 e em CDE há uma importante resposta para esta provocação
que nos serve aqui:
A resposta é claro, é que devem ser lidas de ambas as maneiras ao mesmo tempo.
Se tenho uma teoria de como e por que a ciência funciona, ela tem
necessariamente de ter implicações para o modo como os cientistas devem
comportar-se para que seu empreendimento floresça ( KUHN, 2000, p. 163).
E ainda a respeito da normatividade reafirma e arremata Thomas Kuhn “meu
critério para enfatizar qualquer aspecto particular do comportamento científico não é
simplesmente que ele ocorre, nem simplesmente que ocorre com frequência, mas sim
que se ajusta a uma teoria do conhecimento científico” (KUHN, 2000, p. 163).
A partir destes achados em nossa análise, verificamos em muitas passagens da vasta
bibliografia kuhniana uma série de elementos que reforçam nosso entendimento quanto
64
Esta pergunta se encontra na seção 2 do paper “Consolando o especialista” in “Crítica e o
desenvolvimento do conhecimento”, LAKATOS e MUSGRAVE, p. 245, 1965.
112
a permanência de um traço normativo no interior de sua filosofia. Em vários tópicos
deste exame se percebeu que, sem nenhum embaraço, assume-me um caráter prescritivo
nesta epistemologia. Há elementos para além da empiria e do descritivismo em Thomas
Kuhn, logo, não há como afixá-lo um rótulo de naturalista sem questionar como tal
enquadramento se deu.
Indagamos se não é razoável que Thomas Kuhn escape da moldura do naturalismo
e, se isto não for possível, exigimos que seja atenuado ao máximo o título de naturalista
que lhe concederam. Há quem diga que seu naturalismo é somente acidental e que longe
de promover uma epistemologia empírica contra a idéia tradicional, o que Kuhn
efetivamente teria feito foi invalidar a rígida associação entre ‘normatividade’/
racionalidade e procedimentos ‘lógicos’ e ‘algorítmicos’65.
Somos compelidos também a dizer que Thomas Kuhn jamais aceitaria a
radicalidade de apontar a epistemologia como capítulo da psicologia; uma vez que ele
ainda permanece normativo quando recomenda que só seja admissível se analisar e
compreender a ciência se se considerar seu fundamento histórico; e por fim, estamos
seguros que ele recusa a separação entre o ato de descrever e o ato de prescrever, e
afirma ser impossível tal cisão.
Dar lugar para a história da ciência, para psicologia e para a sociologia da ciência
parece não ser condição suficiente para determinar que a epistemologia kuhniana
reverencie um tipo de naturalismo que não resguarde um teor normativista. Isso parece
imediatamente contraditório. Inicialmente sim, mas ao levantarmos elementos
prescritivos como já fizemos, cremos ser possível amenizar a contradição.
Como ocorre hoje no horizonte das ideias filosóficas uma pluralidade sobre o que
seja de fato a epistemologia naturalizada, qualquer tarefa de enquadramento deve passar
primeiro pela investigação dos tipos de naturalismo e até sobre sua validade em nossos
dias.
Lembremos que Bonjour realiza uma apreciação austera da epistemologia
naturalizada onde lhe descreve como um tipo de empreendimento sem sentido e lhe faz
julgamentos severos, declarando inclusive sua inviabilidade. Sua crítica se direciona
mais precisamente ao naturalismo de W. O. Quine, e se esta crítica, com esta gravidade,
puder ser também dirigida à filosofia da ciência de Thomas Kuhn, esta se encontrará em
65
Jézio Hernani Bonfim Gutierre da UNESP nos ajuda nesta assertiva no ensaio “Kuhn: um naturalista
acidental”.
113
apuros, contudo, defendemos que as contribuições kuhnianas à epistemologia
permanecem relevantes.
Conclusão:
Ao nos dedicarmos ao estudo da filosofia da ciência de Thomas Kuhn percebemos
que existem traços de outras filosofias, apesar da autonomia de muitas ideias kuhnianas.
E a proximidade com a epistemologia de W. V. O. Quine que conjecturamos foi
confirmada. Mesmo não assumindo esta proximidade substancial em sua obra prima de
1962, no decorrer dos anos, nos escritos posteriores a ERC vão aparecendo os sinais
desta interface. No Posfácio a esta obra, publicado em 1970 se percebeu com nitidez
uma aceitação significativa das ideias quineanas. No prefácio de Tensão Essencial
(1977) se reafirma a referida proximidade. Em CDE (2000), a amostra para a
demonstração desta interface foi dilatada haja vista o número de passagens onde se pode
comprovar algum tipo de conexão entre estas concepções filosóficas.
Há divergências, há distanciamentos entre Thomas Kuhn e W. O. Quine, mas
existem definitivamente similaridades no modo de ver muitos problemas.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há verdadeiramente uma revisão, uma atualização e consequentemente uma
reconstrução conceitual na filosofia da ciência de Thomas Kuhn. Não é possível compreender
o todo desta teoria se se parar na ERC. Esta obra é grandiosa, magnânima e deveria ser
autônoma, mas a partir do exercício revisional que faz seu autor, ela só tem sentido se
entendida numa rede que se efetiva pelo entrelaçamento entre todos os seus outros ditos e
escritos. Consequentemente, só é possível uma compreensão verdadeira da epistemologia
kuhniana se aceitarmos uma complementaridade e uma interdependência em seus registros,
ou seja, devemos acolher a interface filosófica entre suas obras.
O caráter revisional, apresentado na primeira seção desta análise, independente do que se
pode inicialmente conjecturar, parece querer garantir o refinamento dos conceitos, dando as
obras kuhnianas um movimento dialógico e dialético e, firmando seu caráter filosófico.
Todavia, há quem diga que isso é uma temeridade e até considere que o temor das críticas o
fizeram arredar de muitas convicções e, que o melhor Kuhn era mesmo o de ERC, menos
filosófico, mais historiador. Após o lançamento de ERC ele quis ser mais filósofo e mesmo
assim seus críticos não lhe abandonaram. Contudo, é indispensável assinalar que não se
estilhaça a teoria kuhniana, o serviço de refinamento das proposições que lhe dão fundamento
visa exatamente o contrário, salvaguardar o teor paradigmático da ciência. Este deve ser o
elemento filosófico que arrastará boa parte destas convicções para posteridade.
Na reconstrução demarcada por nós na primeira seção se verificou duas perspectivas,
uma que avaliamos ser mais correta e honrada e outra um tanto confusa, por vezes até
caótica. O trabalho é mais virtuoso quando visa esclarecer dubiedades e preencher lacunas,
quando demonstra uma preocupação com os deslizes e até equívocos cometidos lá nas
primeiras obras. Valoramos igualmente válido o enfrentamento que se trava com muitos
críticos e comentadores. Talvez poucos pensadores tenham se ocupado tão seriamente em
dialogar com seus críticos como fez Thomas Kuhn, embora não tenha acatado muitas das
recomendações que lhe foram feitas e mesmo que se coloque, em alguns casos, na defensiva,
dizendo que não foi bem compreendido e ou que fora mal interpretado. As contendas foram
pertinentes. Enfrentar o impacto causado pelos assentimentos que se faz é sempre uma
postura virtuosa e disso não se pode acusá-lo, neste estudo tratamos de uma estrutura teórica
elaborada por alguém que passou a vida inteira se explicando.
Quanto ao aspecto desordenado desta teoria, se ressalta que seu mentor não teve a
coragem ou a competência de sustentar alguns posicionamentos mais severos que havia
115
adotado especialmente em ERC. Observamos que quando recua diante do que seja de fato um
paradigma, se perdendo em sua ressignificação, função e aplicação dentro de uma teoria
científica, quando modifica o conceito de incomensurabilidade, alterando sua força, extensão
e grau de importância, imputando-lhe um rebaixamento, quando passa a afirmar revolução
científica somente como revolução linguística, admitindo que revolução seja equivalente
unicamente a uma mudança conceitual ou lexical, e, quando transforma comunidade
científica em comunidade linguística a impressão que nos causa é que seus objetivos
filosóficos foram bastante alterados. Notamos que ao invés de continuar defendendo uma
abordagem alternativa de ciência como fizera de maneira ousada em 1962 pareceu querer
somente compatibilizar sua filosofia da ciência com o que estava na moda, e o modismo em
seu tempo e lugar é a chamada “guinada linguística”, é na direção deste movimento que sua
filosofia se encaminha, o que era estrutura histórica da ciência se converte em estrutura
linguística da ciência.
Ele deseja ser mais filosófico abandonando talvez o que lhe fez algum dia filósofo e para
isso entra na chamada “onda linguística” visando um tipo de reconhecimento que quem sabe
nunca tenha alcançado. Quis evitar um dilúvio, mas viveu em meio a muitas tempestades.
Constatamos que os elementos da linguagem ganham amplo espaço nesta filosofia da
ciência. As obras mais recentes estão recheadas de subsídios linguísticos e comprovamos que
as ideias de W. O. Quine ocupam uma posição de destaque. A interface que conjecturamos
foi provada em diferentes entrecruzamentos conceituais e temáticos. Há indiscutivelmente
pontos de aproximações entre W. O. Quine e Thomas Kuhn, embora possam ter sidos
construídos autonomamente. Alguns entrecruzamentos foram assumidos, outros são
inferências realizadas por nós. Não podemos ser negligente quanto os distanciamentos,
averiguamos que em determinados tópicos destas teorias eles estão explícitos, basta recordar
aqui de dois itens bem importantes: a divergência quanto à tradução e o problema acerca da
normatividade, enquanto W. O. Quine quer rechaçar esta última, Thomas Kuhn quer
reafirmá-la. Para os nossos propósitos atuais podemos de fato ter omitido divergências
importantes, porque nos concentramos em apresentar similaridades e aproximações.
Percebemos que o entendimento acerca da ciência e da linguagem como artefatos sociais
foi um elemento de convergência entre ambos e que os dois entendem que no processo de
aquisição de uma linguagem se apreende concomitantemente o mundo. Notou-se igualmente,
que o holismo quineano foi abraçado em larga escala por Thomas Kuhn e que o naturalismo,
ainda que tomado de forma diferente por cada um, é o mote que norteia a metodologia destes
pensadores.
116
Não obstante, mesmo assumindo uma estrutura holista no debate epistemológico, a
filosofia kuhniana quis a todo custo ainda preservar caracteres fundacionistas em sua
estrutura, o que é via de rega, um problema filosófico. Independente de como se pode avaliar
esta incoerência, ela está ensaiada na teoria da ciência que ora examinamos quando ainda
rastreamos sinais de apriorismo e prescritivismo. Outra questão relevante é o problema da
normatividade, mesmo que Thomas Kuhn tenha alertado quanto a não haver mais
complicações neste campo; ele afirma ainda no Posfácio de 1970 que normativismo e
descritivismo há muito são possíveis, entendemos que muitas querelas quanto ao
normativismo na epistemologia ainda carecem ser elucidadas. Ele deseja insistentemente ser
normativo e, reiteradas vezes afirma que sua filosofia é também prescritiva, diz inclusive que
não consegue compreender como na filosofia da ciência ocorre de se descrever sem
prescrever.
Percebemos igualmente que naturalismo e especialmente o holismo são doutrinas que
estão entremeadas no âmago das concepções kuhnianas e normalmente os preceitos destas
doutrinas não combinam com o normativismo, ou pelo menos não se tem efetivado esta
conexão no ambiente epistemológico. Mas há, conforme compreende Kuhn a possibilidade
de uma normatividade local, contextual, difícil de ser entendida, mas segundo ele, já
praticada e assim sendo salvar-se-ia a possibilidade de uma estrutura holística se auto
sustentar. Deixaremos isso em aberto para futuras investigações, é impertinente para ocasião
aprofundarmos este problema, mas lhe consideramos sério e desafiador.
Como articular numa mesma seara filosófica descritivismo, prescritivismo e
normativismo? Holismo e fundacionismo? Naturalismo e normatividade? Normalmente estes
empreendimentos são vistos em quadros separados e muitas vezes como antagônicos.
Colocar a todos num mesmo quadro é uma engenhosidade arriscada. Sustentar tudo isso
talvez não seja possível, o que nos ocorre é que este intrépido pensador tenha terminado sua
empreitada filosófica como começou: irreverente, dizendo mais do que pode. Só um
ecletismo desenfreado pode acomodar tamanha diversidade. Contudo, ele nos pede que esta
postura não seja interpretada como irracionalista, somente como relativista. E alerta que este
deve ser o novo modo de se compreender a ciência.
Perguntamos se Thomas Kuhn teria terminado a vida como começou, dizendo e
escrevendo de maneira adversa dos ditames tradicionais, fazendo combinações injustificadas
e apologias a um pluralismo na epistemologia? É Thomas Kuhn um anarquista como queria
Feyerabend?
117
Independente do rótulo que lhe coloquem, observamos que o número de dissertações e
teses que investigam a teoria kuhniana é vasto e aumenta a cada ano. O que confirma o
interesse por suas ideias.
Indicamos que a análise daqueles elementos da estrutura kuhniana onde se relaciona
ciência e linguagem, bem como seus últimos escritos, onde compara o desenvolvimento
científico ao processo de seleção natural de Charles Darwin ainda carecem de um examine
mais apurado. Devemos aguardar também os escritos que ficaram sem publicação e que
foram anunciados pelo próprio Thomas Kuhn em suas últimas declarações em vida.
Avaliamos que esta filosofia da ciência permanece sendo um excelente objeto de análise, de
onde ainda podem ser retirados subsídios para uma melhor compreensão do que seja a
epistemologia em nosso tempo.
118
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