1 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: INTERFACES COM A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE. Maria de Jesus dos Santos Teresina (PI) 2011. 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: INTERFACES COM A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE. Maria de Jesus dos Santos Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob orientação do professor doutor Gerson Albuquerque de Araújo Neto. Teresina (PI) 2011 3 MARIA DE JESUS DOS SANTOS A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: INTERFACES COM A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE Dissertação apresentada ao programa de mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Gerson Albuquerque Araújo Neto Aprovada em: 03/10/2011 Banca Examinadora __________________________________________ Prof. Dr. Gerson Albuquerque Araújo Neto Orientador __________________________________________ Bortollo Valle 1º Examinador __________________________________________ Maria Cristina de Távora Sparano 2ª examinado 4 AGRADECIMENTOS Ao professor doutor Gerson Albuquerque de Araújo Neto pela orientação paciente, pelas sugestões precisas e pela convivência quase sempre pacífica. À professora doutora Maria Cristina Távora Sparano pelas contribuições no exame de qualificação. Ao professor Helder Buenos Aires de Carvalho pela dedicação incansável ao MEE. A todos os professores do mestrado em ética e epistemologia. À minha família que com seu amor incondicional e sincero me faz melhor e mais corajosa a cada dia, ao meu pai (in memorian) por me ensinar a não me conformar com o simples e com o fácil. Aos parceiros da vida: Francisco, Gilson, Socorro Gomes, Raimunda Rodrigues pela amizade sincera. Aos amigos do mestrado: Deyvide, Luis Fernando, Osvaldino, Geraldo, Hellen, João Caetano e André pelo aprendizado mútuo, pela parceria intelectual. A Deus por ser fonte inspiradora e permanecer comigo quando nem eu mesmo sabia aonde estava. A SEDUC, pela liberação integral das atividades docentes, o que possibilitou a realização deste trabalho. RESUMO 5 Este trabalho consiste num estudo da filosofia da ciência de Thomas Kuhn, a partir da revisão das principais categorias que lhe compõe, do confronto de sua teoria com as ideias dos filósofos da ciência que vigoram em sua época e de aproximações entre seu empreendimento e a epistemologia de W. O. Quine. Pretendemos demonstrar o caráter revisional presente no pensamento kuhniano tendo como ponto de partida a análise de sua obra prima de 1962: A estrutura das revoluções científicas. Esperamos evidenciar que Thomas Kuhn ao construir e revisar sua filosofia perpetrará elementos relevantes que indicam um afastamento das teorias da ciência de seu tempo e, ao mesmo tempo faz aparecer subsídios que sugerem uma proximidade com a epistemologia quineana. Demonstraremos a partir desta apreciação como ocorrem estas aproximações, que serão apresentadas aqui sob a forma de interfaces filosóficas. Ambicionamos confirmar a relevância da filosofia da ciência de Thomas Kuhn, que deve aparecer neste trabalho como uma iniciativa substancialmente influente em nossos dias. Esperamos com essa iniciativa atualizar o debate epistemológico da segunda metade do século XX. Palavras-chave: Filosofia da ciência, Epistemologia, Thomas Kuhn, W. O. Quine, Interface filosófica. 6 ABSTRACT This work consists in a study of the philosophy of science Thomas Kuhn, from the revision of the main categories that you compose, the confrontation of his theory with the ideas of philosophers of science that exist in his time and of approaches between your company and the epistemology of W. O. Quine. What if you want to demonstrate is the revision character present in thought kuhniano having as starting point to the analysis of his masterpiece of 1962: the structure of scientific revolutions. Expected evidence that Thomas Kuhn to build and revise his philosophy perpetrate relevant elements that indicate a move away from the theories of science of his time, and at the same time brings up subsidies that suggest closeness with quineana epistemology. Expected highlight from this assessment as occur these approximations, which will be presented here in the form of philosophical interfaces. We intend to confirm the relevance of the philosophy of science Thomas Kuhn, who must appear in this work as an initiative substantially influential in our days. We also update the epistemological debate of the second half of the 20th century. Keywords: Science of philosophy, Epistemology, Thomas Kuhn, W. O. Quine, Philosophical interface. 7 OBRAS DE THOMAS S. KUHN: A estrutura das revoluções científicas -1962 Reflexões sobre meus críticos - 1970, 2006 Posfácio -1970 Reconsideração acerca dos paradigmas -1974 Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa -1970 Tensão essencial - 1977 O caminho desde a estrutura - 2000 Obras de W. O. Quine: Dois dogmas do empirismo - 1951 Palavra e objeto (capítulos I, II, III) - 1960 Epistemologia naturalizada - 1969 Falando sobre objetos - 1975 The web of belief (rede de crenças) - 1970 Relatividade ontológica - 1975 8 LISTA DE ABREVIATURAS: ERC – A estrutura das revoluções científicas TE – Tensão essencial CDE – O caminho desde a estrutura LDPP – Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa? 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................09 2 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: UMA NOVA FIGURA EPISTEMOLÓGICA ........................................................................................................14 2.1 Comunidade Científica ..................................................................................................17 2.2 Paradigma ......................................................................................................................23 2.3 Ciência Normal ..............................................................................................................30 2.4 Revoluções Científicas .................................................................................................37 2.5 Incomensurabilidade......................................................................................................43 3 CINCO TESES DA EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE ....................................51 3.1 Um breve comentário sobre W. O. Quine .....................................................................51 3.2 A epistemologia de W. O. Quine...................................................................................53 3.3 Tese I: os dois dogmas do empirismo ...........................................................................54 3.4 Tese II: aprendizagem de uma linguagem .....................................................................63 3.5 Tese III: indeterminação da tradução e inescrutabilidade da referência ......................67 3.6 Tese IV: holismo semântico e holismo e epistemológico .............................................74 3.7 Tese V: epistemologia naturalizada ...............................................................................79 4 INTERFACE FILOSÓFICA ENTRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN E A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE....................................84 4.1 Entrecruzamentos conceituais entre Thomas Kuhn e W. O. Quine .............................. 84 4.2 Tópicos objetivos da interface: aproximações e distanciamentos .................................93 4.3 A aprendizagem de uma linguagem e a aprendizagem de uma ciência ........................ 94 4.5 Incomensurabilidade e indeterminação da tradução ......................................................99 4.6 Thomas Kuhn é um epistemólogo natural nos moldes quineanos? .............................. 102 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................116 10 INTRODUÇÃO No início do século XX já havia se consolidado o modelo de ciência advindo da racionalidade moderna, aquele arquétipo que principia com Francis Bacon, Isaac Newton, Renée Descartes passa por David Hume e Immanuel Kant e se concretiza no iluminismo do século XVIII. O empirismo lógico – neopositivismo- ratifica de algum modo o positivismo do século XIX e se estabelece como o novo protótipo epistemológico do começo do século XX. Na Filosofia da Ciência Karl Popper propagava uma nova lógica para pesquisa científica, adotando um critério falseacionista e, nessa atmosfera epistemológica surge a filosofia kuhniana em defesa de uma imagem de ciência normal e paradigmática. Em 1962, Thomas Kuhn lança sua obra prima A estrutura das revoluções científicas onde apresenta para o ocidente, numa perspectiva descritivo-normativa1, uma nova abordagem de ciência. É característica substancial desta epistemologia a ênfase dada à ciência normal e ao caráter revolucionário do progresso científico e, o destaque aos distintivos sociológicos e históricos que as comunidades científicas possuem. Thomas S. Kuhn é um filósofo da ciência que iniciou sua carreira acadêmica como físico. Em seguida, quando ainda estava no doutorado, foi indicado para ministrar uma cadeira de história da ciência e a partir disso se conduziu para a filosofia da ciência. Quando adentrou as discussões acerca da história da ciência descobriu que possuía vários juízos e preconceitos a respeito da natureza da ciência e de seu desenvolvimento e, seria necessário desfazer-se de muitos deles. Em suas experiências como Júnior Fellow da Society da universidade de Harvard Thomas Kuhn teve a oportunidade de aprofundar suas ideias e compreender que as narrativas tradicionais acerca da ciência não tinham conferido relevância à sua história. Algum esforço nesse sentido deveria ser empreendido. Como o ambiente da física e da história da ciência não forneceu para este pensador, os elementos suficientes para suas inquietações (uma delas, que ele mesmo ressalta era o desejo intenso de saber o que é ser verdadeiro) e, como entendeu que esse desejo não era algo que se alcançasse pela física, o passo seguinte foi abraçar as questões filosóficas para melhor compreender a natureza da ciência. Após o lançamento de sua obra prima inaugura-se uma perspectiva epistemológica que irá contrapor-se aos ditames da filosofia da ciência tradicional. Essa nova filosofia tem como 1 Esta é uma questão que requer um tratamento mais ajuizado. Thomas Kuhn na obra “O caminho desde a estrutura”, onde é apresentada uma entrevista, uma espécie de autobiografia, assume que seu esforço epistemológico possui características descritivas e também normativas, sabemos das implicações deste assentimento e deveremos tratar dessas questões de modo específico em outras partes deste trabalho. 11 constitutivo uma descrição das práticas científicas que confere grande valor aos seus aspectos externos sem deixar de dar créditos aos internos. Seu empreendimento visa apresentar uma explicação das mudanças conceituais que ocorrem no ambiente científico e traz como principal atrativo a adição de caracteres históricos, sociológicos e psicológicos no modo de se produzir crenças bem como na maneira de se compreender, produzir e apresentar a ciência. A ciência e seu desenvolvimento, as razões e a fórmula do seu sucesso e progresso são apresentadas nas obras de Thomas Kuhn de uma forma diametralmente oposta a de seus predecessores e contemporâneos2. Essa radicalidade advém do seu envolvimento com a história da ciência e da vivência de práticas científicas cotidianas experimentadas como físico. Contudo, são perceptíveis heranças epistemológicas multivariadas nesta teoria. Sua análise se inicia pela história das idéias científicas e em seguida se deixa afetar por questões científicas e filosóficas. Interessa-se ainda pela psicologia da percepção, dedicandose com mais obstinação aos estudos da teoria da forma, a Gestalt, esta aparece em alguns momentos compondo sua teoria. Assume também uma preferência particular pela leitura da obra do médico e epistemólogo Ludwik Fleck de quem ele diz herdar muitas ideias. Em 1977 Thomas Kuhn publica o texto Tensão Essencial que tem como objetivo capital retomar algumas ideias filosóficas já aludidas na obra prima de 1962, porém com novos olhares. Consta em sua bibliografia uma série de obras menores (em volume, não em conteúdo) dentre as quais podemos citar Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa? Fruto de um colóquio de filosofia da ciência em 1965, o Posfácio da obra de 1962 que apareceu somente em 1970, Considerações acerca dos paradigmas de 1974, Reflexões sobre meus críticos (ensaios escritos entre 1965 e 1969), este aparece também reeditado na obra kuhniana de 2000. De 1945 até 1999 sua produção foi intensa, lista-se mais de 100 escritos3. Em O caminho desde a estrutura, obra lançada em 2000, quatro anos após sua morte e traduzida para o português em 2006, compilam-se e se reformulam ensaios de 1970 a 1993. Constatamos que neste texto Thomas Kuhn faz uma retomada geral, uma espécie de inspeção em toda sua teoria. Em nossa avaliação, aparece ali com mais clareza a proximidade da 2 Consideramos nessa afirmativa especificamente o empreendimento dos positivistas lógicos e a teoria da ciência de Karl Popper. 3 Iremos utilizar nesta pesquisa as seguintes publicações: “A estrutura das revoluções científicas” da editora Perspectiva, 2006 e a publicação do Posfácio anexa nesta mesma publicação. “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?” In a “Crítica e o desenvolvimento do conhecimento”, org. por Imre Lakatos e Alan Musgrave, Tradução: Otávio Mendes Cajado, 1970. “A tensão essencial”, Lisboa: Edições 70, 1989. “O caminho desde a estrutura”, Editora UNESP, São Paulo, 2006. 12 epistemologia de W. O. Quine que ora investigamos. Embora os outros escritos também tenham sido tomados para se rastrear uma possível influência da doutrina quineana4. Notamos que a aspiração de Thomas Kuhn era realizar um exercício filosófico profícuo acerca da ciência e o ecletismo de influências das quais ele se cerca nos ajudam a formar a crença de que seu interesse era explanar um modus operandis da ciência que possuísse características dessemelhantes ao que já vigorava. Pretendemos explicitar e delimitar no decurso desta pesquisa os elementos relevantes que compõem esta estrutura alternativa de ciência. Nosso principal objetivo é demonstrar a novidade instituída no modo de ver e descrever a ciência, todavia, deveremos também indicar uma marca herdada por ele de outra epistemologia. Recorreremos a estas marcas para tentar resolver lacunas explicativas em seu empreendimento e ou com a pretensão de justificar com maior rigor seus argumentos. Na primeira seção deste trabalho apresentaremos uma interface interna da filosofia da ciência kuhniana, onde serão evidenciadas as principais categorias deste sistema históricofilosófico fazendo aparecer o revisionismo tão recorrente neste empreendimento. Será apresentado o compromisso com um fundamento histórico para ciência e o imbricamento desta com fatores subjetivos e sociais. Este exercício se efetivará na forma seguinte: tomaremos inicialmente as categorias kuhnianas “paradigma”, “comunidade científica”, “ciência normal”, “revoluções científicas” e “incomensurabilidade”, no formato conceitual que possuem na obra a Estrutura das Revoluções Científicas de 1962 e em seguida se examinará seus novos conteúdos e consequentemente seus novos usos em obras intermediárias5; e, finalmente, atualizaremos o teor conceitual das categorias na obra O caminho desde a estrutura. Assim sendo estabeleceremos uma rota de investigação com início em 1962 e fim em 2000. Ao investigarmos o sistema kuhniano, através da análise de seus principais elementos conceituais, surgir impreterivelmente, como já advertimos, o caráter revisional desta teoria. Percebemos que não há no autor desta abordagem de ciência nenhum constrangimento em ressignificar cada um dos termos impetrados a esta filosofia em 1962, deste modo, ao seguirmos uma linha do tempo, no interior dessa estrutura teórica, esperamos demonstrar como ocorre em cada um dos textos analisados a reconstrução, o refinamento e até o 4 Esclarecemos que como estamos usando uma publicação da obra de 1962 feita em 2006 e nela está contido seu Posfácio; como a publicação da obra de 2000 que usaremos também é de 2006, nas citações iremos identificar as obras na forma seguinte: A estrutura das revoluções científicas (2006 a), Posfácio (2006 b), O caminho desde a estrutura (2006 c). 5 Estamos considerando aqui os textos: Posfácio da obra de 1962 publicado em 1970, o texto de 1965, “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?” Publicado em 1970, a obra de 1977, “Tensão essencial”, que traz importantes artigos dentre eles o “Reconsideração acerca dos paradigmas”; consideramos ainda uma importante réplica “Reflexões sobre meus críticos”, publicada em 1970. 13 ‘desvirtuamento’ das proposições apresentadas originalmente na obra A Estrutura das revoluções científicas. Nossa proposta é explanar o processo de atualização conceitual operada por Thomas Kuhn em sua filosofia da ciência e planejamos fazê-lo através da descrição e da análise das categorias já mencionadas. A apresentação da epistemologia kuhniana perfaz-se aqui, mediante a revisão e o aprofundamento de seus elementos relevantes, tarefa que supomos cumprir quase que integralmente nas seções iniciais desta pesquisa. Nosso engajamento nesse estudo tem como fito perpetrar uma apreciação da estrutura conceitual da obra de Thomas Kuhn, mas entendemos que não podemos negligenciar o exame de influências e relações epistemológicas que permitiram o alavancar deste empreendimento histórico-filosófico. Assim, avaliamos ser também de grande valia nos debruçar sobre alguns elementos que marcaram a construção e a reconstrução dessa iniciativa filosófica. Para tanto na segunda parte desta análise faremos uma apresentação da epistemologia de W. O. Quine visando, a partir desta demonstração, responder se algum argumento dos que compõem suas teses têm interferência na filosofia de Thomas Kuhn, ou seja, daremos ênfase às questões quineanas que supostamente se aproximam do empreendimento kuhniano. Destacaremos na segunda seção: os dois dogmas do empirismo, o problema da aprendizagem de uma linguagem, a indeterminação da tradução, a tese do holismo semântico e epistemológico e a questão da epistemologia naturalizada. Não descartamos a possibilidade de haver em outras teses quineanas elementos que também possam está próximo do que defende Thomas Kuhn, nesse sentido nossa escolha pode ser considerada caótica e até arbitrária, contudo fomos governados pelo sentimento de proximidade conceitual que víamos surgir nas primeiras leituras que fizemos destas teorias. Na terceira e última parte deste trabalho optamos por dar destaque a uma interface aproximativa e assim sendo examinaremos a relação entre as filosofias quineana e kuhniana. Entendemos que haja verdadeiramente muitas heranças que auxiliam na formulação de todo arcabouço teórico de Thomas Kuhn, mas nesse estudo queremos demonstrar esta afinidade porque julgamos que tenha um valor significativo para o debate epistemológico contemporâneo. Destarte, na última seção esperamos comprovar com mais tenacidade como ocorrem as relações conceituais entre estas concepções filosóficas. Esperamos poder demonstrar na parte final desta análise, pelo levantamento das ideias contidas nas obras kuhnianas e quineanas, que existem diversos traços que nos possibilitarão confirmar tal afinidade. Em algumas obras de Thomas Kuhn as marcas podem aparecer como 14 espectros, em outras é possível descrever com riqueza de detalhes as provas de que precisamos para confirmar nossas conjecturas acerca desse liame conceitual. Demarcaremos a interface diretamente nas obras estudadas, quando se trouxer as passagens onde Thomas Kuhn faz referência direta a W. O. Quine, onde ele assume que o mentor da crítica aos dogmas do empirismo lhe influenciou e o convenceu em muitos aspectos. Mas demarcaremos, nós mesmos, os sinais existentes nos textos kuhnianos que assinalam a presença desta influência quineana. Temos certeza que não se esgotará aqui os pontos de entrecruzamentos entre estas filosofias, nosso percurso é limitado pelo tempo e pelo caráter da própria pesquisa, mas pretendemos prestar contas ao máximo dessa interface. Revisando a literatura filosófica, lemos e relemos em diversos trabalhos acadêmicos, em livros, artigos e outros, sobre o confronto entre Thomas Kuhn e Karl Popper; Thomas Kuhn e Imre Lakatos; W. O. Quine e Rudolf Carnap, contudo entendemos que a relação entre as ideias de Thomas Kuhn e as de W. O. Quine não tenha sido ilustrada ainda de forma satisfatória. Nossa pretensão é explicitar alguns pontos de conjunção, sem negar as disjunções; queremos ressaltar um conjunto de aproximações sem deixar de reconhecer possíveis divergências. Aspiramos por este outro viés legitimar de forma mais categórica nossas convicções de que a filosofia da ciência que escolhemos como objeto de análise é ainda relevante e muito expressiva; apesar de todo exame crítico que enfrentaram ao longo destes anos, as ideias contidas nesta filosofia possuem mérito epistemológico. Com esse fim, concluiremos este trabalho elencando as ocorrências de alguns embricamentos, aproximações e afastamentos entre a teoria kuhniana e a quineana. 15 2 A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN: UMA NOVA FIGURA EPISTEMOLÓGICA. Nesta seção apresentamos algumas das principais ideias da filosofia da ciência de Thomas S. Kuhn. A exposição tem como fito a descrição e, a revisão das categorias basilares que dão estrutura à filosofia kuhniana. Começamos descrevendo cada uma destas categorias conforme se encontra disposta na obra prima de 1962 A estrutura das revoluções científicas. Apresentamos em seguida uma interface onde colocamos face a face às questões mais relevantes trazidas neste texto de 1962 com obras subsequentes como seu Posfácio publicado em 1970, Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa? Tensão essencial e O caminho desde a estrutura. Também tratamos, para fins de esclarecimento e contraste, de alguns pontos contidos nas posições filosóficas de Margaret Masterman, John Watkins, Karl Popper dentre outros. O objetivo que nos norteia é elaborar uma revisão da filosofia da ciência kuhniana reafirmando seu caráter alternativo frente às doutrinas mais clássicas que dominam a nossa tradição filosófica. Pretendemos aqui elencar e discutir os elementos fundantes dessa filosofia da ciência. Para tanto, daremos especial destaque à rota da ciência, a sua práxis ordinária e aos seus caracteres revolucionários; ressaltaremos que na visão de Thomas Kuhn a efetividade da ciência se delineia conforme duas perspectivas, uma interna e outra externa; a pretensão é demonstrar o que são paradigmas científicos, como ocorre sua construção, qual o modo de adesão a eles e como essa categoria se modifica nas diferentes obras kuhnianas. Apresentaremos também os argumentos que são empregados para se arquitetar a tese da incomensurabilidade entre paradigmas científicos. Deverá ficar igualmente evidente o que são, nessa teoria, as comunidades científicas, a ciência normal e, o que se entende por revoluções científicas. Prevenimos que o traço revisionista, frequentemente assinalado no empreendimento kuhniano aqui é necessariamente assumido. Se o próprio autor perpetra esta prática sem reservas, não tememos trazer em nosso estudo esta particularidade. Em nosso trabalho este exercício se fará presente especialmente nesta seção. Acreditamos que essa característica revisional de seus textos se deve primeiramente ao impacto que suas ideias proporcionaram à filosofia da ciência em vigência na sua época, provocando o julgamento de muitos pensadores; incitando alguns ataques e consequentemente algumas réplicas. E segundo, a 16 revisão ocorre pela disposição e abertura que Thomas Kuhn apresenta em responder aos seus críticos (talvez porque as críticas que lhe fizeram fossem, na sua maioria, pertinentes), acatando algumas orientações, descartado outras, mas, sobretudo, dialogando com aqueles que ele considerava pares admiráveis no ambiente da epistemologia na segunda metade do século XX. Está presente nas obras estudadas algo que podemos denominar como uma espécie de “questões disputadas”, uma que Thomas Kuhn trava consigo mesmo, recapitulando e reformulando as categorias que dão base ao seu sistema teórico e outras que ele realiza com importantes pensadores de seu tempo; estas contendas aparecerão de maneira subliminar nesta seção. O que é objetivamente o empreendimento kuhniano? Que imagem de ciência advém dele? Que figura epistemológica surge a partir das noções impostas por Thomas Kuhn à filosofia da ciência? Esperamos arregimentar aqui algumas respostas para estas interrogações e demonstrar através da interface entre suas obras, os argumentos que respondem a estas indagações. Como já afirmamos a imagem de ciência kuhniana é uma figura epistemológica que se delineia pela interface entre diferentes obras. A ciência, seu desenvolvimento, as razões do seu sucesso e progresso estão demonstrados na filosofia de Thomas Kuhn de uma forma paradigmaticamente oposta a de seus predecessores e contemporâneos. Mas o que significa fazer tal assentimento? Quais os elementos que seriam rejeitados dos cânones tradicionais e quais inovações seriam adicionados a sua epistemologia que a colocaria como antagônica e ou alternativa as demais? Que transformações seriam efetivadas por sua filosofia da ciência que a tornaria tão diversa de outras correntes de pensamento na contemporaneidade? A estrutura kuhniana, como seu mentor mesmo a apresenta, possui uma imagem que advém dos parâmetros da nova historiografia6. Sua epistemologia possui teses de caráter descritivo, que se prendem a práxis da ciência. Contudo, em algumas passagens de sua obra se comprovam afirmações, avisos, de que suas teses são ainda normativas, o que se prefigura, no nosso entendimento, uma questão espinhosa para ser explicitada. Se sua filosofia da ciência ainda resguardar padrões normativos pode entrar em choque com muitas orientações 6 Thomas Kuhn assume essa influência da nova historiografia em diversas passagens, mas é importante que nos lembremos de algumas questões referentes a esta doutrina. Primeiro devemos apontar para a polissemia que envolve essa categoria e para dificuldade de saber a qual linha Kuhn estaria se dirigindo e se agregando. Supomos que ele se apegue teoricamente mais proximamente ao pensamento de Ortega y Gasset quando defende a chamada teoria da história, cujo papel é o de estudar a estrutura, leis e condições da realidade histórica. E segundo, que ele se vincule sempre ao modelo de ciência como o apresentado pelo médico e epistemólogo Ludwik Fleck. 17 que regulam a nova fórmula de se fazer história. E se ele pretende de fato compatibilizar descritivismo e normatividade, talvez Thomas Kuhn não seja um discípulo obediente da doutrina que diz defender (a nova historiografia não se assume como normativa). Suas generalizações acerca da ciência “dizem respeito à sociologia ou a psicologia social dos cientistas, ainda assim algumas conclusões pertencem tradicionalmente à lógica ou à epistemologia” (KUHN, 1962, p. 22). Utilizando-se de todo esse entrelaçado de influência esta filosofia procura demonstrar: a) a insuficiência das diretrizes metodológicas da ciência (presentes na epistemologia vigente) que acreditam “ditarem por si só, uma única conclusão substantiva para as várias espécies de questões científicas” (KUHN, 2006a, p. 22); b) os caracteres e a significância da ciência normal e c) a ciência paradigmática através de episódios marcantes de sua própria história. Ambicionamos aqui evidenciar que na filosofia da ciência de Thomas Kuhn há uma ciência normal que se constitui na tarefa que os cientistas executam numa determinada comunidade científica. Esta última é composta por homens da ciência que estabelecem um paradigma, seguem-no e o ensinam aos neófitos7. O paradigma (em seu sentido forte) se impõe como um dogma8 que se sobrepõe arbitrariamente sobre aqueles que atuam em laboratórios de pesquisa e nas universidades, em um determinado período histórico. Contudo, os paradigmas não servem o tempo todo, pelo menos integralmente, eles entram em crise e podem mesmo serem desprezados. Ocorrem, em consequência desse processo, as chamadas revoluções científicas que fazem emergir novos paradigmas, incompatíveis com seus antecessores. Isso tudo implica o que será nomeado de incomensurabilidade entre paradigmas, no que se refere às suas estruturas conceituais. Os elementos em destaque acima são selecionados por nós como aqueles que constituem a base estrutural da filosofia da ciência de Thomas Kuhn e passam agora a serem examinados. Colocaremos um a um, face a face, no interior das obras escritas entre 1962 e 2000 e esperamos a partir deste exercício conseguir provar suas atualizações, ajustamentos, ressignificações. O que pretendemos é demonstrar o caráter arrojado da teoria kuhniana frente a outras interpretações da ciência. 7 Neófitos aqui são os indivíduos iniciantes numa ciência, segundo Thomas Kuhn eles são ensinados para aderir e compartilhar o paradigma vigente em sua área de atuação; eles são bons leitores dos principais manuais de sua área e aprendem a solucionar quebra cabeças de acordo com estes manuais. 8 O termo dogma possui uma força conceitual na obra kuhniana de 1962, mas esta força diminui consideravelmente até a obra de 2000. Anote-se ainda que Karl Popper em seu importante artigo “A ciência normal e seus perigos” criticará com veemência essa perspectiva de ciência dogmática apresentada por Thomas Kuhn. 18 2.1 - Comunidade Científica – o lócus histórico e social de construção da ciência. A comunidade científica como aparece em A estrutura das revoluções científicas (nomeada a partir de agora na forma abreviada de ERC) é o recinto da práxis científica; o espaço humano onde se efetiva o modus operandis da ciência, e, a superestrutura onde se concretiza a ciência normal e consequentemente onde ocorre toda a pesquisa que implicará na produção do conhecimento científico: A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade cientifica pense ter adquirido respostas seguras para perguntas como as seguintes: quais as entidades fundamentais que compõem o universo? Como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? Que questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? (KUHN, 2006a, p. 23). É nessa comunidade, onde se dá a emergência das descobertas científicas e de tudo que sobrevêm delas: a formação de crenças, a fabricação do paradigma exemplar, os métodos e técnicas a serem manipulados, os desacordos, os consensos, os conflitos, o jogo de poder, o estabelecimento das regras para adesão ao paradigma e todos os procedimentos que garantem a vigência deste. É ali também onde ocorrem as crises, se detectam anomalias e onde se faz os ajustamentos na ciência. Como é descrita em 1962, comunidade científica é uma entidade social extremamente particular que possui uma natureza completamente diversa de qualquer outro tipo de comunidade. Esta comunidade sobrevive de um paradigma e este depende igualmente dela. Explicada numa estrutura circular, essa relação encontra-se exposta na forma seguinte: “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 2006b, p. 221). Entretanto, no Posfácio desta obra publicado em 1970, considerado por nós como uma segunda revisão teórica elaborada por Thomas Kuhn9, já se corrige essa circularidade e é possível se verificar daí em diante uma versão amenizada do que seja comunidade científica: 9 A primeira revisão é realizada no colóquio de filosofia da ciência realizado em Londres em 1965. As atas desse colóquio transformaram-se em livro com publicação em 1970. Dali é possível retirar uma série de reflexões entre Kuhn e os muitos filósofos presentes. Nessa oportunidade este autor já começa a discutir e rever alguns pontos de sua filosofia. 19 Uma comunidade científica é formada pelos praticantes de uma especialidade científica. Estes foram submetidos a uma iniciação profissional e a uma educação similares, numa extensão sem paralelos na maioria das disciplinas. Neste processo absorveram a mesma literatura técnica e dela retiraram muitas das mesmas lições (...) em geral cada comunidade possui um objeto de estudo próprio (KUHN, 2006b, p. 222). Posterior a esta inspeção e mutação do termo comunidade científica se constata o surgimento de algo diferenciado, derivado dela, mas com menos abrangência, menor força conceitual e epistemológica. Há também a remoção da circularidade. O que se evidenciará a partir de tal alteração está mais próximo de “comunidades científicas” onde o plural se justifica pelo novo contorno desenhado por Kuhn. Ao alegar o termo “especialidade científica”, como está feito acima, somos conduzidos a admitir que comunidades científicas convivam, cada uma operando de acordo com um corpo de crenças, com objetos e objetivos exclusivos. Julgamos que essa mudança de percepção quanto à comunidade científica acontece de maneira mais categórica devido à revisão de outra categoria do esquema conceitual kuhniano, que é o paradigma, e, se dar também pela negação da vinculação circular paradigmacomunidade científica. Analisado demasiadamente pelos seus críticos, paradigma é um tópico da epistemologia kuhniana que exige profunda re-elaboração, daremos atenção a ele numa outra seção deste trabalho. Por enquanto é oportuno realçar somente a circularidade apontada por muitos críticos e assinalar que esta circularidade é reconhecida e modificada gradualmente por Thomas Kuhn e, que a partir de 1970 ocorre consequentemente uma cisão entre estas duas variáveis de sua teoria; constatamos que se amortece o grau do vínculo e se altera a própria forma do vínculo entre as comunidades e paradigma. Examinemos nessa passagem do Posfácio como se dá certa reviravolta conceitual referente a este problema: As comunidades podem e devem ser isoladas sem recurso prévio aos paradigmas e em seguida estes podem ser descobertos através do escrutínio do comportamento dos membros de uma comunidade dada (KUHN, 2006b, p. 222). Haveria então, sucedendo a esta nova compreensão, a defesa clara de “comunidades científicas” sem um paradigma a priori, este permanece existindo, mas brotaria concomitante 20 ao processo organizativo da própria comunidade, e, sua estrutura comunitária seria organizada numa espécie de escalonamento “a comunidade mais global é composta por todos os cientistas ligados às ciências naturais, em um nível inferior estariam os principais grupos científicos profissionais: físicos, químicos, astrônomos, zoólogos” (KUHN, 2006b, p. 223); a forma estrutural que define uma comunidade científica contribui para tornar possível o funcionamento efetivo do empreendimento científico e, assim sendo este tipo de grupo se legitimaria pelo grau de especialização de seus membros. O que determinaria sua estruturação e organização seria: “possuir a mais alta titulação, participar de sociedades profissionais, ler periódicos especializados” (KUHN, 2006b, p. 223). Isto se constituiria em condição suficiente para fazer funcionar as comunidades científicas. No Posfácio, 1970 comunidades científicas existem e coexistem, consequentemente não se admite que haja cientista operando ou tomando decisões isoladas, de acordo com suas convicções e intuições. Ainda que sua pesquisa seja a mais apropriada para investigar um fenômeno específico, que seja um pesquisador muito responsável, que possua uma postura adequada e que tenha altos índices de resolutividade de casos, não se reconhece que o cientista possa tomar decisões independentes, o consenso é forçoso no interior desse tipo de comunidade. Somente a comunidade de especialistas tem o poder de decisão. Há um conjunto de valores, nem sempre harmônicos que deverão convergir e ser compartilhados para que determinada comunidade opere com o sucesso desejado e leve o grupo a considerar um conjunto de argumentos como melhor que o outro. É um processo persuasivo o que ocorre no interior das comunidades científicas, todavia, a convergência (o consenso) é condição necessária nesse recinto. Outro item imprescindível desta estrutura comunitária seriam seus processos de comunicabilidade. A comunicação se estabeleceria através de redes formais e informais onde seriam distribuídas, comunicadas e levadas a reconhecimento público as descobertas científicas. Mesmo estando em diferentes espaços geográficos, espalhados pelo mundo a fora, reinaria sobre os membros de uma comunidade científica, ao menos no período de ciência normal, uma espécie de unanimidade teórica que lhes faria unificar vocabulários, interesses, objetos de investigação, procedimentos metodológicos e, o mais formidável, este espírito lhes imporia os problemas relevantes e as alternativas razoáveis para resolvê-los. As estratégias de comunicabilidade traçadas e utilizadas numa comunidade se constituiriam deste modo, num artifício estratégico que possibilitaria a tessitura das idéias, das descobertas, das invenções de todos os partícipes desta seleta comunidade. Em geral, na visão kuhniana os cientistas duma comunidade científica se entendem, ainda que algumas vezes discordem. 21 É certo que a filosofia da ciência e seus empreendedores tenham se empenhando historicamente em compreender preferencialmente o contexto de justificação dos conhecimentos e verdades científicas e que a discussão sobre as comunidades científicas não seja relevante para muitos. A tradição impetrou e defendeu um afastamento abissal entre os contextos de descoberta e de justificação, prestigiando este último e relegando toda e qualquer discussão sobre o primeiro para as ciências empíricas. Foi e permanece sendo pouco importante examinar e desvendar o plano, as estruturas de onde emergem ou onde se “fabricam conhecimentos científicos” 10. Isto tudo tem conduzido epistemólogos a pensar tão somente sobre a validade, a simplicidade, a clareza, o alcance, o grau de resolutividade e a abrangência de cada um dos postulados, leis e corolários da ciência. Na base de todas as investigações epistemológicas e também científicas o contexto de justificação tem sido consequentemente o mais reverenciado; defende-se um estatuto privilegiado para o conhecimento científico que ressalta essa estratégia positivista; só há legitimidade e aceitação, por parte da tradição, daquele tipo de conhecimento que não reconhece e até rejeita a história como forjadora de verdades. Não se tem problematizado e levado a sério os modos como se arquitetam o conhecimento. Os cientistas são idealizados como seres despregados do mundo e de seus grupos; são pensados como inventores de um novo mundo, objetivo e imparcial. Méritos cognitivos individuais são supostamente aceitos e frequentemente incentivados quando se privilegia apenas o contexto de justificação de verdades científicas. Este tipo de regalia dada ao contexto de justificação infirma a efetividade das comunidades científicas. A teoria ora estudada parece não ignorar nem rejeitar nenhum dos elementos partícipes do contexto de justificação arrolados acima, além disso, não encontramos em Thomas Kuhn a intenção clara de desobedecê-los. Entretanto, observamos que no interior do empreendimento epistemológico kuhniano foi adicionado a categoria “comunidade científica” com a pretensão de tornar relevante o contexto de descoberta de crenças e assim valorizar também os fatores subjetivos presentes na ciência, tanto na fabricação de verdades como na escolha entre teorias rivais: O meu ponto é, portanto, que toda escolha individual entre teorias rivais- numa comunidade cientifica dada- depende de uma mistura de fatores objetivos e subjetivos, ou de critérios partilhados ou individuais, visto que os últimos não parecem em geral na filosofia da ciência, meu realce sobre eles fez que a minha 10 Esta expressão é utilizada por Alan Chalmers na obra “Science and its fabrication” de 1990, traduzida para o português em 1994 com o título “A fabricação da Ciência”. 22 crença nos primeiros não tivesse sido percebida pelos meus críticos (KUHN, 1989, p.389). A investigação kuhniana repta a tradição e opta por outro trajeto. Direciona-se para um caminho transversal ao que se costumava fazer na filosofia da ciência. Ou seja, Thomas Kuhn examina aspectos negligenciados historicamente e ainda pouco explorados na epistemologia visando realçar o contexto de descobrimento, de fabricação e de produção das verdades científicas; nessa nova estrutura os elementos da história, da psicologia e até da sociologia passam a ganhar relevância e a aparecer como imbricados com a práxis científica. Com este deslocamento de rota Thomas Kuhn analisa um solo esquecido por Neopositivistas e pouco frequentado por Karl Popper, Lakatos, Watkins e outros. Investigar o contexto de descoberta da ciência nas décadas de cinquenta e sessenta, como se faz nessa abordagem, é desempenhar uma atividade de segundo grau; naquele momento histórico este ainda era um exercício filosófico considerado ilícito na epistemologia. Os neopositivistas e até Karl Popper conferem valor somente as discussões acerca do contexto de justificação do conhecimento científico, Karl Popper chega a declarar “a miséria do historicismo” e a propalar a idéia de um conhecimento objetivo. No entanto, como se comprova na vasta produção kuhniana nada o inibiu. A prova disso são passagens como a que temos abaixo onde se pode constatar sua intrepidez: Começarei por perguntar como é que os filósofos da ciência puderam negligenciar, durante tanto tempo, os elementos subjetivos que, garantem eles, entram regularmente nas escolhas teóricas reais feitas pelos cientistas individuais? Por que razão estes elementos lhe parecem apenas um índice de fraqueza humana, e não um índice da natureza do conhecimento científico? (KUHN, 1977, p. 389). Havia nessa filosofia uma pretensão manifesta de elucidar também os fatores exteriores à ciência, ou seja, compreendia-se que os elementos externos que tornam a ciência possível, legítima são igualmente importantes e assim sendo é cogente o uso de estratégias que caracterizem e ressaltem sua estrutura comunitária, bem como é forçoso evidenciar a força criadora e inventiva desta, tanto no que se refere a sua prática normal como também na erupção dos momentos de crise e na transformação das diretrizes de pensamento e consequentemente do paradigma. Julgamos que somente deste modo era plausível justificar o novo desenho que se remodela para a ciência; a assimilação de critérios subjetivistas na ciência só parece possível se junto a isso ocorrer uma adesão ao que se caracterizou aqui como comunidade científica. Podemos com isso inferir que as comunidades científicas são 23 como elemento-parte da teoria kuhniana, o que engendra o funcionamento de todo o resto e aquilo que definitivamente reafirma sua preocupação com o contexto de descoberta de crenças. Thomas Kuhn parece realmente crer que a coletividade na ciência seja um bem epistêmico. Uma compreensão histórica da ciência, quando se escolhe respeitar critérios subjetivistas, irá exigir certos ajustamentos teóricos- metodológicos e um deles é impreterivelmente a confiança na efetividade de comunidades científicas. Ou seja, é necessário dar-se créditos a esta estrutura para que se tenha como produto a firme noção da interferência da história no conhecimento científico. Contudo, é pertinente lembrar que no uso corrente do termo comunidade, seja ela científica ou de qualquer outra espécie, é-lhe dado como sinônimo “algo formado por homens que possuem um sistema comum de valores, de interesses, de crenças”, de tal modo que as considerações aqui erigidas podem ter implicações éticas, sociais, morais e políticas, isto é, a filosofia da ciência kuhniana pode trazer a tona elementos que transcendem ao campo epistemológico, todavia seu foco de investigação se conserva no recinto da epistemologia. Em O Caminho desde a estrutura, 2000, (apresentada a partir de agora como CDE) é possível se apreender uma modernização conceitual da categoria comunidade científica bem mais abreviada. Notamos que esta se converterá em comunidade linguística e nessa nova acepção lhe será concedido um uso refinado: “Mudanças nas expectativas a respeito dos referentes de um termo para espécie são (...) mudanças em seu significado, de tal modo que apenas uma variedade limitada de expectativas pode ser acomodada em uma única comunidade linguística” (KUHN, 2006c, p. 283). Uma comunidade linguística é aquela que por um tempo determinado se apropria de um conjunto de palavras para poder dizer sobre um conjunto limitado de coisas. Esta comunidade, como lida como questões de evidências e fatos deve contar com a possibilidade de a médio ou longo prazo ir fazendo alterações significativas em seu léxico, estas mudanças são imprescindíveis e haverão momentos em que elas podem implicar num estrangulamento: Os períodos em que uma comunidade linguística realmente emprega termos superpostos para espécies acaba em uma de duas maneiras: ou um toma inteiramente o lugar do outro, ou a comunidade se divide em duas, um processo não dessemelhante à especiação e que é, como sugeri mais tarde, a razão para a especialização cada vez maior das ciências (KUHN, 2006c, p. 285). Vista sob este ângulo comunidade linguística é o subproduto de um tipo de incomensurabilidade linguística que ainda sobrevive na estrutura teórica kuhniana. 24 Observamos que nesta perspectiva atualizada como aparece em CDE comunidade linguística, revisada no presente, indica tão somente a reunião de certos indivíduos que não pertencem ou possuem uma “linhagem especial” 11 mas que diferentemente estão preparados ou em estágio de preparação numa especialidade científica e que comungam um léxico específico fazendo dele a legenda para suas investigações, criações e inventos. Logo, ao ser re-significada comunidade científica só deve ser compreendida como um tema linguístico, nada além disso. Seria esta conversão uma ratificação do processo de vinculação definitivo que ocorrerá entre a filosofia da ciência de Thomas Kuhn e os postulados semânticos? Acreditamos que sim, e, percebemos que pelo exercício de aproximar deliberativamente ciência e linguagem, esta categoria padeceu de uma radical mutação. Uma comunidade linguística, conforme se entende aqui, é somente um grupo privativo de peritos que cria, domina e emprega um léxico comum e que se utiliza dele como referência para efetivar suas práticas ordinárias por um curto período de tempo, haja vista a proliferação das especialidades da ciência nos dias de hoje; o tipo de glossário exclusivo, partilhado nesta comunidade, possibilitará que se opere com algum grau de concordância e harmonia conceitual. É assim, com este novo perfil que deverá ser entendido atualmente o que antes era denominado de comunidade científica. Como está manifesto, há nesse tópico da teoria kuhniana, uma perda conceitual irremediável, abrupta. Outrora comunidade científica se assemelhava a uma religião por sua estrutura dogmática, hoje é um grupo de especialistas que compartilha um dicionário técnico. 2.2- Paradigma – conceito chave da filosofia de Thomas Kuhn. A introdução do termo paradigma ao discurso epistemológico projeta Thomas Kuhn para um grau considerável de ineditismo. Como é apresentada e defendida em ERC, a categoria paradigma força o rompimento da filosofia da ciência ora examinada com muitas iniciativas antes realizadas nesta área de investigação. Conforme está publicado em ERC paradigma pode ser proferido e interpretado de maneira extensa. Selecionaremos a seguir algumas passagens onde se pode verificar esta extensão. Alguns críticos, dentre eles Margaret Masterman, alegam uma variância de sentido, 11 Thomas Kuhn utiliza-se essa expressão de forma irônica em sua obra “O caminho desde a estrutura”, 2006c, p. 175. 25 uma polissemia cercando esse termo e disso trataremos posteriormente, por ora verificaremos como ocorre sua exposição e qual seu papel epistemológico na estrutura teórica kuhniana em 1962. Em sua primeira aparição na ERC o termo paradigma se assemelha as “realizações científicas que serviram por algum tempo para definir implicitamente os problemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para gerações posteriores de praticantes da ciência” (KUHN, 2006a, p. 30), estas “realizações científicas” devem se estabelecer como fortes e inovadoras o suficiente para conseguir agrupar e coligar muitos cientistas, ao tempo em que também devem ter o poder de afastar o praticante de uma ciência de qualquer outra linha de pesquisa. Como arquétipo característico de paradigma, nessa forma conceitual, cita-se a mecânica newtoniana que por um período específico da história da física foi um tipo de realização científica que permitiu a coesão de um grupo de operadores da ciência e ao mesmo tempo beneficiou sua separação de qualquer outro parâmetro. Em algumas passagens da ERC, mais notadamente no capítulo a rota para ciência normal, o conceito de paradigma equivale a “realizações científicas” e noutras aparece como sinônimo de “tradições de pesquisa” e de “corpo de crenças comuns”. Um exercício que muito nos chama atenção é vincular ainda em 1962 a categoria paradigma a um campo de estudo. Ao se percorrer estas linhas kuhnianas é possível capturar esta novidade, observe: “o novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do campo de estudo” (p.39) e novamente “desde a antiguidade um campo de estudos após o outro tem cruzado a divisa entre o que o historiador poderia chamar de sua pré-história como ciência e sua história propriamente dita” (p. 41), nessa outra passagem isso se explicita com maior claridade: Quando um cientista pode considerar um paradigma como certo, não tem mais necessidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo de estudo começando pelos primeiros princípios e justificando o uso de cada conceito introduzido (KUHN, 2006a, p. 40). Se paradigma nesta ocasião já está conceituado como “campo de estudo” podemos inferir que nessa acepção já é possível ser confundido com uma área científica ou com alguma especialidade desta. Se for assim, identificamos ainda em 1962 uma distância e um arrefecimento substancial do seu conteúdo primeiro e um prenúncio de seu uso mais recente. Um uso ainda menos extenso do termo poder ser verificado quando ele se conecta ao conceito de teoria, “para ser aceito como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas 26 competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada” (KUHN, 2006a, p. 38), ou seja, num período de pré-ciência há um leque de teorias circulando como pretensas solucionadoras de problemas (puzzles), mas uma delas, pelo menos para um grupo, sobrepõe-se sobre as demais. Ao equiparar paradigma a teoria se empreende um uso minimamente dilatado do termo se comparado a “tradição de pesquisa”, contudo, ainda é mantido o objetivo inicial, qual seja resguardar a ideia reguladora e norteadora que tanto se quis conservar na essência do que seja um paradigma. De certa maneira uma teoria, uma lei ainda é um imperativo que neste sentido rege alguns procedimentos científicos, e sugere de qualquer jeito um modus faciendis, o que blindaria de certo modo a proposta kuhniana. Entretanto não queremos negar as dificuldades que existem em se nivelar categorias que invariavelmente tem aplicações e usos bem diferentes. Independente da polissemia que lhe envolve, paradigma passa a ser, de 1962 em diante, o protagonista da filosofia kuhniana e, será designado e empregado como o conceito-chave em torno do qual se articulam todos os outros componentes desta nova epistemologia. Comunidade científica, ciência normal e incomensurabilidade, dentre outros, passam a ganhar vida e sentido devido ao seu embricamento com essa categoria-mor de Thomas Kuhn. Como um “motor primeiro” paradigma, apresentado nesta versão forte, é um daqueles elementos expressivos, determinantes, que produzem o movimento, a forma e o conteúdo de uma estrutura teórica. Porque Thomas Kuhn parece realmente ter cometido tantos deslizes quanto a este quesito? Entendemos que sua pretensão naquela época era construir e lançar uma inovação na imagem de ciência e para tanto, cometer certos exageros ou algumas escorregadelas no uso conceitual de paradigma, acabou sendo uma estratégia alternativa. Algumas vezes na história este é um traço característico de quem quer apresentar mudanças. Aceitamos este modo de ver e agir naquela ocasião, ao menos no que se refere ao termo paradigma, considerando três aspectos: primeiro a plausibilidade, a pertinência e a magnitude do seu empreendimento naquela ocasião histórica. Segundo, por constatar que Kuhn posteriormente toma conta desta categoria, revisando e reformando seu conceito em oportunidades subsequentes, dando-lhe um uso polido, circunscrito e às vezes até desistindo dele. Terceiro, porque consideramos ser mais razoável se cometer alguns equívocos quando se tem como objetivo realizar alterações substanciais numa estrutura do que permanecer numa zona de conforto, rezando em doutrinas epistemológicas vigentes, mesmo discordando delas. 27 A presunção kuhniana de 1962 era arrojada, havia a pretensão de dar impulso ao debate filosófico e histórico da ciência e se tinha em vista impactar a epistemologia da época, uma vez que esta permanecia firmemente unida a elementos lógico-empírico-verificacionistas. Notamos que quando se adiciona noções fortes como a de paradigma e incomensurabilidade ao debate epistemológico o anseio é apresentar uma imagem de ciência compatível com a história da ciência e descrevê-la numa estrutura que permaneça crível, plausível e autêntica, apesar dos sinais subjetivos. Atividade que muitos pensadores dizem ser impossível. Esta abordagem da ciência tem finalidades diferentes da que já vinha sendo efetivada na filosofia, a primeira delas é seu objetivo epistemológico que se evidencia no vigor das investigações sobre o conhecimento científico, sobre o estatuto da ciência e sobre seu famigerado progresso e ainda na sua análise das estruturas interna e externa da ciência; assegura-se uma ciência normal e ao mesmo tempo se vislumbra episódios revolucionários. A segunda finalidade é histórica, que possibilitará a compreensão de uma relação ciênciatempo. Tempo de continuidades, tempo de rupturas e tempo de descontinuidades na ciência. A própria ERC é um bom exemplo de estrutura paradigmática (parafraseando seu autor) porque lança mão de um conjunto de conceitos incomensuráveis com outras versões de filosofia, estes seus conceitos comporão um quadro novo para o que passa a ser designado de ciência e, o corpo de crenças que compõem esse quadro se contrapõe aos estilos mais correntes de se descrever e interpretar a ciência na contemporaneidade. Margareth Masterman, linguista e filósofa britânica que analisou e criticou o uso abusivo do termo paradigma em ERC, indicou algumas imprecisões e forte polissemia na sua aplicação. Apesar de considerar Thomas Kuhn um dos mais notáveis filósofos da ciência do nosso tempo, ela realiza um estudo de sua obra de 1962 que dependendo da interpretação que se faça poderá ecoar como uma crítica severa, mas talvez não seja o caso. Em seu artigo A natureza de um paradigma aparece dois problemas que qualificamos como relevante: a- A autora considera a obra de 1962 cientificamente clara e filosoficamente obscura (MASTERMAN, 1970, p. 73); b- E considera também o uso da categoria paradigma - dita central na estrutura conceitual de Kuhn - polissêmico, desordenado e de natureza bem distinta (MASTERMAN, 1970, p. 75). O primeiro problema indicado ocupa objetivamente somente as primeiras linhas de seu paper, mas encontra-se subliminarmente imbricado ao segundo problema. A obscuridade filosófica detectada como problema “a” parece está justamente na efetividade do problema 28 “b”, o que nos remete inicialmente a dizer que há em Masterman apenas um problema ou que se houverem dois, encontram-se bem acoplados. Trataremos do argumento contido no problema “b”, tomado por nós como mais proeminente e assim arriscaremos compreender e dirimir também o problema “a”. Como já dissemos outrora Mastermam indica uma multiplicidade conceitual nas definições de paradigma dadas por Thomas Kuhn, “de acordo com minha contagem, ele empregava a palavra “paradigma” em pelo menos vinte e um sentidos diferentes” (MASTERMAN, 1970, p. 75). Não queremos nos tornar aqui masternianos, longe disso, mas achamos por bem rememorar em detalhes os usos da palavra paradigma assinalados pela autora: uso 1realização científica universalmente reconhecida, uso 2- mito, uso 3- filosofia ou constelação de perguntas, uso 4- manual, obra clássica, uso 5- como tradição, como modelo, uso 6realização científica, uso 7- analogia, uso 8- especulação metafísica bem-sucedida, uso 9dispositivo aceito na lei comum, uso 10- fonte de instrumento, uso 11- ilustração normal, uso 12- expediente ou tipo de instrumentação, uso 13- baralho de cartas anômalo, uso 14- fábrica de máquinas-ferramentas, uso 15- figura de gestalt que pode ser vista de duas maneiras, uso 16- conjunto de instituições públicas, uso 17- modelo aplicado a quase-metafísica, uso 18princípio organizador, uso 19- ponto de vista epistemológico geral, uso 20- novo modo de ver, uso 21- algo que define ampla extensão de realidade12. Esta multiplicidade de definições conforme o entendimento de Masterman é aleatória, o que leva esta estudiosa a tentar ordenar ou racionalizar o seu uso. Tentando resolver a questão ela aglomera os vinte e um usos em três grupos e indica para cada um destes grupos um tipo de paradigma, reduzindo assim essa categoria kuhniana a três conceitos ou perspectivas. Surgem com isso um paradigma sociológico, um paradigma metafísico e um paradigma de construção. Seriam parte do paradigma sociológico os usos 1, 6, 16, 9. Constituiriam o paradigma metafísico os usos 2, 8, 5, 20, 18, 21 e participariam do paradigma de construção os usos 4, 10, 11, 7, 12, 13, 14, 17. A esperteza dessa sutil divisão garante a esta autora alguns créditos, mas ela mesma se questiona quanto a sua plausibilidade, e assume sua imprecisão: É evidente que nem todos esses sentidos sejam incompatíveis entre si: alguns podem elucidar outros. Sem embargo, dado a diversidade, é obviamente razoável perguntar: haverá alguma coisa comum entre todos? Haverá, filosoficamente 12 Esta exposição pode ser encontrada de forma detalhada na obra de Margaret Masterman “A natureza de um paradigma”, 1970, p.75-78. 29 falando, alguma coisa definida ou geral acerca da noção de paradigma que Kuhn está tentando esclarecer? (MASTERMAN, 1970, p. 78) Quanto às indagações acima, nosso estudo revela-se positivo, mesmo que as resposta kuhnianas só possam ser dadas através da reformulação do conceito de paradigma. Apesar de gastar tempo numa análise demorada Masterman se apresenta como kuhniana e em algumas linhas de seu texto faz uma oposição austera a pensadores como Popper. Noutras linhas ela aponta o empreendimento kuhniano como um “simples guia geral” (p.73), útil à ciência. Em seguida faz prescrições do tipo: “a ciência mais ou menos como Kuhn a descreve é também a ciência como deve ser exercida” (MASTERMAN, 1970, p. 74). Consideramos seu estudo pertinente, ao menos em parte, mas notamos que algumas questões ficam em aberto e que se levantam problemas herméticos que nos permite lhe dedicar o mesmo rótulo que ela destinou a Thomas Kuhn – obscura. Entretanto devemos reconhecer que o problema da polissemia nessa teoria é real e que destacar os aspectos metafísicos do paradigma como foi feito por essa linguista é algo relevante e pode nos servir posteriormente nesse estudo. Entretanto, nossa leitura de Mastermam é inquietante, ela batiza de obscura a obra de Thomas Kuhn, porque esta no seu entendimento requer um exercício apurado de interpretação, ou porque tem resultado em interpretações nem sempre similares. Ela se diz cientista e imagino que só assim seja possível reconhecê-la, pois na história dos empreendimentos filosóficos não há um texto sequer que contenha uma objetividade suficiente para blindar suas interpretações. É evidente que filosofia nunca foi literatura nem poesia, mas a dificuldade para interpretar Kant, Espinosa, Hegel, Heidegger não lhes faz menos filosóficos, ao contrário, talvez seja essa mesma a natureza da filosofia, mas Masterman não conseguiu enxergar isso, é uma cientista. No texto Reflexão sobre meus críticos, 1970 já é possível perceber a recepção de Thomas Kuhn a algumas críticas de Masterman, verificamos que ele acata parte de sua análise redefinindo de alguma maneira o que pretendia dizer com paradigma em 1962 e, o que passa a dizer sobre paradigma após essa reflexão já é fruto de uma revisão. Reconstruído no Posfácio também de 1970, paradigma fica mais próximo de “matriz disciplinar” e efetivase como: a) generalizações simbólicas, mais gerais e flexíveis; b) como compromissos ontológicos, analogias, grupo de valores, modelos considerados legítimos numa dada 30 comunidade científica; c) exemplares compartilhados, aplicações-protótipos a serem testados em casos particulares13. Nesse processo de atualização conceitual, notamos também que no texto de 1974 Reconsiderações acerca dos paradigmas se encontra mais uma ressignificação do que seja um paradigma, ele aparece apenas com dois sentidos específicos: Qualquer que seja o número de usos de “paradigma” no livro dividem-se em dois conjuntos, que exigem nomes diferentes e discussões separadas. Um sentido de paradigma é global, abarcando todos os empenhamentos partilhados por um grupo científico; outro isola um gênero particularmente importante de empenhamento, e é assim um subconjunto do primeiro (KUHN, 1974, p.354). Ao continuarmos o exercício de colocar as obras kuhnianas face a face, localizamos em CDE uma nova atualização (e última em vida). Aqui, na nossa avaliação, há uma reviravolta conceitual aguda “dada uma taxonomia lexical, o que chamo agora, na maioria das vezes, simplesmente de um léxico, há toda uma gama de diferentes enunciados que podem ser feitos, bem como um leque de teorias que podem ser desenvolvidas” (KUHN, 2006c, p. 119). E para arrematar toda esta polissemia Thomas Kuhn conclui: Minha tese até agora foi a de que as ciências naturais de qualquer período são fundamentadas em um conjunto de conceitos que a geração corrente de praticantes herda de seus predecessores imediatos. Esse conjunto de conceitos é um produto histórico, embasado na cultura em que os praticantes correntes são iniciados durante o processo de aprendizado, e acessível a não-membros somente por intermédio das técnicas hermenêuticas pelas quais historiadores e antropólogos chegam a compreender outros modos de pensamento. Algumas vezes tenho falado disso como a base hermenêutica para a ciência de um determinado período, e vocês podem notar que tem semelhança considerável a um dos sentidos daquilo que chamei de paradigma. Embora raramente empregue esse termo hoje em dia, tendo perdido por completo o controle sobre ele (KUHN, 2006c, p. 271). Em 1962 os caracteres que definem o que seja verdadeiramente um paradigma são: possuir força atrativa que conecte um grupo de pesquisadores; ser circunscrito ou limitado o suficiente para poder orientar a pesquisa que a ele sucede; permanecer aberto o suficiente para deixar problemas para serem desvelados posteriormente; em obras subsequentes, especialmente no Posfácio e em Reconsideração sobre os paradigmas de 1974, observaremos uma transfiguração de paradigma, onde este já é apresentado com outros distintivos e certamente com outros objetivos. Por fim em CDE paradigma é um léxico. 13 Conferir os detalhes desta exposição no Posfácio, 2006b, p. 229-231. 31 Reconhecemos que pelo exercício de polimento que se realiza no termo paradigma Thomas Kuhn tenta se esquivar do ambiente das abstrações, da mera axiomatização e segue na direção das realizações concretas e empíricas da prática científica. Como bem alertou Masterman a filosofia da ciência kuhniana ocupa-se de questões vivas da ciência. No entanto é realmente difícil se compatibilizar os usos do termo paradigma, e, devemos assumir que este é realmente um filho pródigo, uma ovelha desgarrada desta teoria. E, como a teoria kuhniana passa a aportar quase todas as discussões nas tramas da linguagem, questionamos se acomodar ou salvaguardar paradigma como um “léxico” seria genuinamente uma saída linguística ou somente a confirmação deste desgarrar-se. 2.3 - Ciência Normal – o ordinário que produz o extraordinário. Para Thomas Kuhn a categoria ciência normal designa a práxis científica inspirada em pesquisas já firmadas, realizada em um determinado período de tempo, ou seja, o exercício ordinário, cotidiano e prático realizado em laboratórios de institutos de pesquisa ou de instituições de ensino acadêmico que tem como parâmetros um quadro conceitual já consolidado. Na ERC, na seção “rota para ciência normal” pode-se ratificar esse entendimento: Ciência normal significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior. Embora raramente na sua forma original, hoje em dia essas realizações são relatados pelos manuais científicos elementares e avançados. Tais livros expõem o corpo da teoria aceita, ilustram muitas (ou todas) as suas aplicações bem sucedidas e comparam essas aplicações com observações e experiências exemplares (KUHN, 2006a, p.29). Entre os manuais que desempenham a função de guiar a ciência normal encontram-se em destaque na ERC: a Física de Aristóteles, O Almagesto de Claudio Ptolomeu, os princípias e a óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier, a geologia de Lyell, estes “serviram por algum tempo para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência” (KUHN, 2006a, p. 29), a ciência normal atualizou no seu fazer cotidiano estes manuais como o ‘padrão a ser seguido’. Como estes modelos tradicionais passaram a designar algo como “dinâmica aristotélica", “astronomia ptolomaica ou copernicana”, etc, e 32 foram tomados como exemplar, de geração a geração, Thomas Kuhn passa a referir-se a eles como paradigmas. Ciência normal possui assim, em 1962, um elo condicional com o paradigma por que este, aqui entendido como tradição de pesquisa, é o parâmetro que lhe garante movimento prático e operacional; o paradigma é o seu fundamento. Nesta filosofia da ciência se enxerga tempos ou fases distintas na ciência. Notamos que a ciência se efetiva através de algumas etapas que se justapõem umas as outras; ela efetua um movimento habitual, normal seguido de revoluções, e é na sua temporada de normalidade que se concretiza sua verdadeira essência, é ali que ocorre seu desenvolvimento mais significante “é amiúde contestando observações ou ajustando teorias que se desenvolve o conhecimento científico. Contestações e ajustamentos são uma parte comum da pesquisa normal” (KUHN, 1970b, seção III). Ao reconstituir a rota da ciência neste estudo imaginamos ser possível cunhar com segurança o que seja de fato ciência normal e sua complementaridade à ciência extraordinária. Não podemos perder de vista que na abordagem de Thomas Kuhn só há ciência revolucionária se houver ciência normal; só se pode destruir uma tradição se ela existir e, sua existência se dá pela efetividade da ciência normal. Apresentaremos a seguir dois estudos de casos elaborados pelo próprio autor na ERC que rastreará ao mesmo tempo toda a rota da ciência normal e consequentemente seu trajeto como ciência paradigmática. Vejamos os casos abaixo: Caso I – O caso da óptica física - encontramos na ERC um relato bastante reproduzido pelos historiadores da ciência e frequentemente tomado pelos filósofos da ciência como objeto de análise, a saber, o caso da óptica física. Em linhas gerais podemos reconstituí-lo como segue: os estudiosos da óptica física referem-se a “Luz” de acordo com: seu tempo, sua tradição de pesquisa, as ferramentas que possuem em mão e os conceitos que dominam e consideram pertinentes em seu horizonte de pertencimento. Thomas Kuhn nos lembra de que no século XVIII imperava a óptica de Newton e de acordo com a ela a “Luz" era um corpúsculo de matéria, e isto era ensinado e utilizado como parâmetro por todos os praticantes desta ciência (ou pelo menos pela maioria deles) em seus afazeres triviais e ordinários, mas isso teve sua validade revogada. No século XIX obedecendo aos ensinamentos de Fresnel e Young, ensinava-se que a “Luz” era um movimento ondulatório e transversal e esta verdade foi positivada, tornando-se o princípio norteador das pesquisas ópticas naquele período, o cientista normal aderia ao padrão conceitual que dali advinha e assim realizava suas tarefas, levantando problemas e buscando soluções dentro dessa atmosfera teórica. Por fim, 33 atualmente nos manuais deste campo de estudo notamos que a “Luz” é um composto de fótons, entidades quântico-mecânicas de ondas e outras partículas. Essa verdade passa a vigorar após o modelo estabelecido por Planck e Einstein e possui uma vigência austera ainda em nossos dias14. O caso acima descrito nos remete para a compreensão prática do que se almejava defender como ciência normal. Temos aí demonstrado como uma ciência se desenvolve depois de arquitetar seu primeiro paradigma, e essa descrição histórica (de etapas justapostas) fortalece nosso conhecimento objetivo de cada uma das categorias kuhnianas aqui estudadas. A história da física óptica é um bom exemplo de rota de descontinuidade paradigmática uma vez que apresenta períodos justapostos de ciência normal, onde em cada período se aplica um aparato conceitual diferente para se referir a uma categoria equivalente. O cientista nessa rota de desenvolvimento, após a apreensão de uma base conceitual e da elaboração de um discurso, faz uma aplicação prática, uma transferência da linguagem apreendida para o mundo, através dos exercícios práticos realizados no interior da ciência normal. Caso II - O caso da eletricidade. Acompanhemos a exposição feita por Thomas Kuhn: A história da pesquisa elétrica na primeira metade do século XVIII proporciona um exemplo concreto de como a ciência se desenvolve antes de adquirir seu primeiro paradigma universalmente aceito. Durante aquele período houve tantas concepções sobre a natureza da eletricidade quanto havia experimentadores importantes nesse campo, homens como Hauksbee, Gray, Desaguliers, Du Fay, Nollet, Watson, Franklin e outros. Todos os seus inúmeros conceitos de eletricidade tinham algo em comum- eram parcialmente derivados de uma ou outra versão filosófica mecânico-corposcular que orientava a pesquisa científica na época, além disso, eram todos componentes de teorias científicas reais, teorias que tinham sido parcialmente extraídas de experiências de observações e que determinaram em parte a escolha e a interpretação de problemas adicionais enfrentados pela pesquisa. Entretanto, embora todas as experiências fossem elétricas e a maioria dos experimentadores lesse os trabalhos um dos outros suas teorias não tinham mais do que uma semelhança de família (KUHN, 2006a, p. 33). Ao contrário do que fora exibido no caso da óptica física, temos em nossa frente agora uma rota inversa de ciência, ou seja, um caso exemplar de um campo de estudo antes dele construir e estabelecer seu primeiro paradigma. Verificamos que há uma variedade de léxico concorrendo e sendo aplicado ao mesmo tempo, que há consensos quanto ao que estudar e 14 Essa apresentação é de inspiração kuhniana e pode ser encontrada na íntegra em “A estrutura das revoluções cientificas”, 2006a, p. 31 ss. 34 parece existir até certa comunicabilidade quanto à tarefa e as aquisições de cada um, entretanto ocorre o que vulgarmente podemos nomear como um “cada um por si”, não há nada que se assemelhe a uma unidade ou um acordo teórico. Há uma multiplicidade de modelos operando concomitantemente. A não-adesão a um corpo de crenças comum admite que alguns cientistas vagueiem criando uma rota própria, uma prática bem particular, algumas vezes inócua, outras vezes estéril e improdutiva. Não se reconhece os caracteres da ciência normal nesse período de préciência, e, o que pode ser rastreado nessa intermitência são apenas sinais de um fazer difuso, carente de objetividade. Jonh Watkins15 faz objeções severas à teoria kuhniana, especificamente ao que foi alcunhado de ciência normal. Em seu paper Contra a ciência normal Watkins investe contra essa categoria da epistemologia kuhniana sem clemência. Pontuamos alguns destes julgamentos para perguntarmos sobre sua pertinência e para averiguar se Thomas Kuhn se salva deles. Watkins inicia seu texto afirmando: “A estrutura das revoluções científicas, é um livro famoso, com o qual me acho razoavelmente familiarizado” (WATKINS, 1970, p.33-34). Em seguida começa os ataques: “a forma como ele a apresenta (referindo-se a confrontação que Kuhn faz com Popper) 16 não é tão séria quanto poderia ser” (WATKINS, 1970, p. 34) e segue durante todo o texto questionando sobre a legitimidade da ciência normal. Constatamos que a crítica é elaborada através de perguntas, das quais destacamos algumas: Por que Kuhn afirma que a ciência normal, tal como se opõe ao que ele denomina ciência extraordinária, constitui a essência da ciência? A ciência normal pode ser como Kuhn a descreve? Pode ela dar origens à ciência extraordinária (WATKINS, 1970, p.41). Estas indagações são todas respondidas e defendidas por Kuhn ao longo de sua vida, contudo, apesar de preparar esse rol de interrogações importantes Watkins infelizmente não se preocupa em respondê-las com palavras próprias, e, o que se constata em suas linhas é mais um confronto entre as idéias popperianas e kuhnianas, com uma tendência explícita a defender o ponto de vista de Karl Popper. 15 Filósofo da ciência que entre outras investigações procura fazer um confronto entre as idéias popperiana e kuhnianas. O paper aqui examinando pode ser encontrado na quarta ata do colóquio de filosofia da ciência em Londres, no ano de 1965, publicado no Brasil com o título de “A critica e o desenvolvimento do conhecimento” em 1970. 16 Grifo nosso. 35 Observamos ainda que Watkins se sirva de algumas questões já levantadas no texto kuhniano do mesmo colóquio de 1965, Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?17. Destacamos sua retomada da categoria “Teste”, a recuperação e defesa da chamada “Ciência Extraordinária” e, a indicação de que Thomas Kuhn limita-se a pôr de lado o critério falseacionista e a propor um critério alternativo de “solução de enigmas”. Em resumo o texto de Watkins faz a seguinte relação: Bem, as linhas podem coincidir, mas elas dividem o material de maneiras opostas. O que é genuinamente ciência para Kuhn mal chega a ser ciência para Popper, e o que é genuinamente científico para Popper mal chega a ser ciência para Kuhn (WATKINS, 1970, p. 38). E através dessa relação ele quer demonstrar a oposição e o conflito entre o que ambos nomeiam de ciência normal e ciência extraordinária, afirmando que Thomas Kuhn desenvolveu “uma espécie de aversão filosófica pelas revoluções científicas e perguntando (com palavras popperianas) por que ele estaria tão enamorado da laboriosa e não-crítica ciência normal?” (WATKINS, 1970, p. 41) 18. Percebemos uma disposição explícita em Watkins em investir contra as ideias kuhnianas e ao mesmo tempo entendemos que ele se amparava em posições já defendidas por Karl Popper em suas obras, não há, portanto uma novidade em suas investidas. Algumas passagens de Watkins podem ser consideradas ingênuas ou revelam que este autor não estava tão familiarizado com a ERC como assegurou: Um modo de contestar (a ciência normal é claro) seria apontar para exemplos históricos contrários, isto é, para longos períodos de história científica em que não emergiu nenhum paradigma claro e durante o qual estiveram ausentes os 19 típicos sintomas da ciência normal (WATKINS, 1970, p. 44) . Identificamos nestas asseverações um erro ou o uso de má fé por parte de Watkins, porque avaliamos que Thomas Kuhn é bastante claro ao defender na ERC, nos capítulos II, III, IV que numa fase de pré-ciência, anterior à consolidação de um paradigma, onde 17 Esse texto publicado em 1970 se constitui num trabalho importante onde Thomas Kuhn topifica uma série de expressões que compõem a filosofia de Popper, averiguando seu sentido, pertinência e criticando alguns usos conceituais com os quais ele não comunga. Nessa oportunidade há um confronto e um distanciamento das ideias popperianas apresentadas sob a forma de mudança de Gestalt. 18 Grifo nosso. 19 Itálico nosso. 36 concorrem várias teorias, não se efetiva uma prática normal na ciência. Como pode alguém tão íntimo de um texto não ter lido essas linhas? É ainda perceptível na crítica de John Watkins a forma como ele se prende aos exageros kuhnianos, percebemos isso quando ele se refere à incompatibilidade e à adesão a um paradigma. Identificamos nele uma postura de estrangulador, todavia, quando se move, ele mesmo, para apresentar alternativas filosóficas aos problemas que ele mesmo levanta, não o faz com o rigor de sua crítica. Contudo, no Posfácio de 1970 e em CDE em 2000 atenuam-se os exageros cometidos. Thomas Kuhn abranda de alguma maneira sua posição considerando o julgamento e as anotações feitas por John Watkins. Porém, cabe antecipar que não são substanciais as alterações quanto à ciência normal. Karl Popper também censura radicalmente a prática de ciência normal como a aqui defendida. Em seu texto de 1965, A ciência normal e seus perigos, também retirado das atas do quarto colóquio de filosofia da ciência realizado em Londres, ele admoesta Thomas Kuhn de várias maneiras: A ciência normal, no sentido de Kuhn existe. É a atividade do profissional nãorevolucionário, ou melhor, não muito crítico: dos estudiosos da ciência que aceita o dogma dominante do dia, que não deseja contestá-lo; e que só aceita uma nova teoria revolucionária quando quase toda a gente está pronta para aceitá-la- quando ela passa a esta moda, com uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que todos, ou quase todos, aderem (POPPER, 1970, p. 64-65). E continua sua crítica de forma intrépida “o cientista normal, descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foi ensinado com espírito dogmático, é uma vítima da doutrinação” (Popper, 1970, p. 65) e por fim, direciona sua crítica para os novos critérios instaurados pelo autor de ERC “é surpreendente e decepcionante a idéia de recorrer à sociologia ou à psicologia (...) a fim de informar-se das metas da ciência e do seu progresso” (POPPER, 1970, p.71). Algumas perguntas são frequentemente direcionadas a ciência normal, algumas delas são: o que lhe compõem, e, se ocorre progresso no seu interior? Na teoria kuhniana são concebidas três formas de desenvolvimento científico não-cumulativo no interior da ciência normal, o primeiro quando há a correção de conhecimento aparente sobre um dado do mundo sensível, visando à identificação e a eliminação do erro por meio de uma regulação da ciência, o segundo quando há revoluções destrutivas (no modo popperiano), quando se destrói substituindo, e terceiro quando é concebido um novo tipo de conhecimento, inconciliável com o que já existia; quando há a modificação de uma estrutura lexical 37 envolvendo uma mudança conceitual20. Ocorrendo desta forma não se pode falar de progresso, contudo ele pode ocorrer de outras maneiras. Na temporada de ciência normal são descobertas novas entidades, havendo uma adição de conhecimento; objetos familiares podem ser vistos com uma luz diferente e a aceitação de um novo atributo de um objeto requer o abandono do objeto velho; dados numéricos podem gerar uma mudança de entendimento de mundo21. Tudo isso pode sobrevir do cerne da ciência normal, e isto é o que deve ser chamado de progresso, há “ganhos” diários na ciência que se dão desta maneira, por isso o assentimento kuhniano de que haja verdadeiramente progresso na ciência normal. Contudo notamos que há uma sutileza nessa acepção de progresso o que lhe faz quase invisível. Em CDE Thomas Kuhn revisa as observações elaboradas a respeito de possíveis equívocos cometidos por ele, mas é categórico ao manter quase que intocável a noção de ciência normal, essa é uma categoria que não padece de muitas mutações. Vemos isso em suas próprias asseverações: “por sua natureza as revoluções não podem constituir o todo da ciência: necessariamente, alguma coisa diferente deve intercalar-se entre elas”evidentemente, a ciência normal (KUHN, 2006c, p. 169) 22 , confia-se que esse mesmo sentimento, com essa mesma intensidade já estava contido no texto de 1962. Nessa passagem ele é ainda mais incisivo: “uma vez que a ciência que chamo de normal é, precisamente, a pesquisa dentro de um referencial, ela pode ser apenas o reverso de uma moeda cujo anverso são as revoluções” (KUHN, 2006c, p.169), entendemos que aqui se procura resolver dois problemas de uma só vez, retoma-se a importância da ciência normal nos mesmos moldes de 1962 e mais precisamente se satisfaz a inquietação quanto ao processo de alternância entre ciência normal e ciência revolucionária. Enfrenta mais uma vez os críticos que teimam em reafirmar que sua única ocupação é a ciência normal. Quanto às críticas proferidas por Karl Popper e seus discípulos, dentre eles John Watkins,23 de que o principal problema da ciência normal é que cientista normal foi um “ser mal ensinado” e “pouco crítico”, Thomas Kuhn lhes rebate dizendo: 20 Este entendimento encontra-se na importante obra sobre a teoria kuhniana escrita por Paul Hoyninge Huene “Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s philosophy of science” p. 199, 1993. 21 Consideramos mais uma vez Paul Hoyninge Huene em “Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s philosophy of science” p. 202, 1993. 22 Grifo nosso. 23 Estas críticas encontram-se detalhadas no texto de Popper “A ciência normal e seus perigos” e no texto de Watkins “contra a ciência normal”, ambos retirados das atas do colóquio de filosofia da ciência de 1965, organizados por Lakatos e Musgrave com o título “A crítica e o desenvolvimento do conhecimento”, publicado em 1970. 38 A influência de um referencial sobre a mente de um cientista talvez não possa ser explicada meramente como o resultado de ter sido ele “mal ensinado”, (...), é preciso viver com os referenciais, e explorá-los, antes de poder rompê-los, mas isso não implica que os cientistas não devam ter como objetivo um perpétuo rompimento de referenciais, não importa quão inatingível seja esta meta, “revoluções permanentes” poderiam ser o nome de um importante imperativo ideológico (...). Popper e seu grupo sustentam que o cientista deveria tentar sempre ser um crítico e um proliferador de teorias alternativas. Insisto na desejabilidade de uma estratégia alternativa que reserve tal comportamento para ocasiões especiais (KUHN, 2006c, p. 170). Os desacordos permanecem e são óbvios, mas é evidente a escolha que se faz de continuar descrevendo uma estação de ciência normal onde ocorre o que se pode nomear de ‘essência mesma’ da ciência. Compreendemos que a preferência é dar mais relevância à ciência normal, o que não implica necessariamente na negação dos períodos de revolução. Estes períodos de insurreição existem, são derivados da ciência normal, forçam a ruptura de paradigmas, trazem consigo algumas incomensurabilidades, mas são apenas extraordinários na história da ciência. E assim sendo, somos compelidos a concluir que as críticas, apesar de rigorosas não coagem Thomas Kuhn a desistir dessa questão tão polêmica de seu empreendimento. 2.4 - As revoluções científicas segundo Thomas Kuhn: trocas conceituais e reviravolta paradigmática na ciência. Apesar de alguns epistemólogos da ciência24 afirmarem que Thomas Kuhn tenha ficado tão deslumbrado com a ciência normal a ponto de desenvolver uma espécie de repugnância pelo caráter revolucionário na ciência, em nossa análise julgamos que estas críticas sejam extremadas e assim sendo não concordamos nem no que se refere ao deslumbramento tampouco à repugnância. Reconhecemos a ênfase dada aos períodos de normalidade da ciência, perfilhamos igualmente que este seja o período privilegiado de sua filosofia, mas ainda estamos certos de que as “revoluções científicas” 25 se constituem na questão norteadora do empreendimento kuhniano. 24 25 Karl Popper, John Watkins. Esta expressão foi cunhada originalmente por Alexandre Koyré, filósofo francês de origem russa que escreveu sobre história e filosofia da ciência. 39 Quem se constituiria em sua principal inspiração filosófica e qual seria seu mote norteador senão a inquietação com as revoluções no ambiente científico? Que tipo de investigação lhe interessaria senão compreender como ocorrem estas revoluções no recinto da ciência e que valor teria sua epistemologia que não fosse o de examinar e interrogar sobre a natureza das mudanças na ciência? Nossa crença de que a preocupação kuhniana seja frequentemente com o aspecto revolucionário da ciência foi elaborada muito rapidamente. Sem contar com o rótulo da capa, já nas primeiras leituras das linhas de sua obra prima, ERC, encontram-se explícitas suas intenções. Em algumas passagens este filósofo historiador é taxativo ao se pronunciar: “foi a descoberta da natureza enigmática das revoluções o que me trouxe, em primeiro lugar, a história e à filosofia da ciência. Quase tudo que escrevi desde então trata delas”(KUHN, 2006c, p 169). O que os críticos podem dizer desta afirmativa? Que interpretações podem ser derivadas a partir desse assentimento? É possível um exercício hermenêutico que consiga abandonar a intenção de um autor? Se analisarmos objetivamente o conteúdo da afirmativa acima se perceberá que seu objetivo é claro, a não ser que o intérprete use de má fé. Em ERC podemos localizar concretamente o alicerce que necessitamos para confirmar nossas crenças de que os críticos da ciência normal tenham sido parciais ao querer questionar suas intenções quanto ao caráter revolucionário da ciência. Quem daria a sua obra prima um título pouco relevante? Quem destinaria cinco capítulos específicos de uma obra para abordar uma temática pouco significativa? Aos que desconhecem, os capítulos 8, 9, 10, 11 e 12, de ERC são destinados a tratar do problema das revoluções na ciência. Ali se questiona sobre a natureza e a necessidade das revoluções científicas; apresentam-se as revoluções científicas como mudanças de concepção de mundo; fala-se sobre a invisibilidade desse tipo de revolução; indica-se como ocorre a resolução das revoluções e, demonstra-se como se dá o progresso através das revoluções. Ao questionar sobre a natureza e a necessidade das revoluções científicas Thomas Kuhn retoma algumas questões relevantes: o que são as revoluções científicas e qual sua função no desenvolvimento científico? Por que chamar de revolução uma mudança de paradigma? E por último uma pergunta intrépida: face às grandes e essenciais diferenças que separam o desenvolvimento político do científico, que paralelismos poderão justificar a metáfora que encontra revoluções em ambos?26Acreditamos que todas estas questões já foram tocadas 26 Pode-se conferir esta passagem na íntegra na obra “A estrutura das revoluções científicas”, 2006a, p. 125. 40 neste estudo, contudo, o paralelismo indicado entre revoluções na política e na ciência, parece exigir ainda alguma explanação. Thomas Kuhn alega que frequentemente na política, quando um grupo está inconformado com a efetividade do sistema implantado, com as resposta aos problemas e às demandas com as quais, a priori, este sistema se comprometeu a enfrentar, há um sentimento crescente de insatisfação, há revoltas, gerando uma crise e consequentemente uma posterior mudança de regime. No seu entendimento na ciência ocorre um movimento semelhante quando um grupo restrito de cientista se rebela com um paradigma vigente que deixou de funcionar, mesmo que circunstancialmente, na investigação de um fenômeno. Na ciência, quando o paradigma não consegue responder a um aspecto da natureza, seja ele simples ou complexo, há insatisfação e crise produzindo inevitavelmente a troca gradual deste paradigma. Concluímos que há, conforme concebe esta teoria, vários elementos que possibilitam uma analogia entre ciência e política: Tanto no desenvolvimento político como no científico, o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para revolução (...) as revoluções políticas visam realizar mudanças nas instituições políticas, mudanças essas proibidas por estas mesmas instituições que se quer mudar. Consequentemente, seu êxito requer o abandono parcial de um conjunto de instituições em favor do outro, (...) tal como a escolha entre duas instituições políticas em competição, a escolha entre paradigmas em competição demonstra ser uma escolha entre modos incompatíveis de vida comunitária (KUHN, 2006a, p.126). Ao finalizar a seção sobre a natureza das revoluções Thomas Kuhn conclui que é sempre complexa a escolha entre um paradigma e outro, que é ao mesmo tempo complicado se optar sobre quais problemas são mais relevantes para serem resolvidos, por isso para deliberar a respeito de tal embate é imprescindível que se recorra a critérios externos aos da ciência normal (o que envolve padrões e valores), daí a importância de se pensar as revoluções científicas nos moldes como as que ocorrem na área política. Quando discute sobre as revoluções científicas como mudança de concepção de mundo faz uma alerta que um juízo apressado sobre a mudança entre paradigmas pode implicar na falsa impressão, ou sensação extremada de que os cientistas passam a viver e a operar em outro planeta, ou algo do tipo: um novo paradigma gera um novo mundo. De fato, Thomas Kuhn acredita que haja mudanças substanciais e que os compromissos dos cientistas são enormemente modificados com a substituição de um paradigma; este argumento tem como 41 justificação epistêmica uma mudança nos moldes do que ocorre na teoria psicológica da forma, a gestalt. Ocorre na ciência um processo similar a uma variação da gestalt. Daí ser possível se inferir que quando Newton nomeia algo de “movimento” ele o faz vendo algo diferente do que via o velho Aristóteles. Um cientista, no período posterior às revoluções científicas, com um novo paradigma, altera sua percepção, vê de maneira diferente. Ponderamos que não muda objetivamente o mundo, mas a forma de compreendê-lo. Sobre o caráter invisível das revoluções científicas é possível destacar que a princípio a existência e o significado destas são frequentemente disfarçados, mas há um estágio onde elas definitivamente aparecerão, é quando ocorre de fato o abandono e a substituição da base conceitual que vigorava, quando há a troca e a invenção de novos maquinários, quando as técnicas de resolução de problemas são totalmente modificadas. Torna-se imprescindível que nos lembremos como se tem apresentado o progresso através das revoluções (paradigma- ciência normal – crise – substituição), devemos reconhecer a natureza peculiar desse tipo de progresso e a ruptura que está implicada nele, nesta compreensão só existem ganhos se houver perdas, não há necessidade de ´cumulatividade` epistêmica. Todavia há na visão de Thomas Kuhn uma reformulação substancial na noção de progresso que se não for apreendida na integra tornará difícil a assimilação do que ele deseja afirmar. Quando afirma que há mais progresso na ciência normal que na ciência revolucionária, é para outra espécie de progresso que ele está apontando, um tipo especial onde ordinariamente haverão ganhos quantitativos e cumulativos, estes não ocorrem com as revoluções científicas, mas tão somente na ciência normal. Se radicalizarmos as ideias kuhnianas, na ciência só haverá um progresso mínino e este não está vinculado à ciência revolucionária. Estamos certos que nesta teoria, ao se descrever o desenvolvimento do conhecimento científico se almejava evidenciar a forma usual como ele tem sido narrado e, nos achados de Thomas Kuhn, este desenvolvimento tem sido costumeiramente relatado sob a forma de revoluções. São os episódios revolucionários que têm impressionado os filósofos da ciência, especialmente Karl Popper. Contudo, deslocar o foco do problema, ou conferir importância a outros elementos, como por exemplo, valorar positivamente uma práxis ordinária, não é comprometer-se necessariamente com a refutação das revoluções, tampouco desprezar os problemas que lhe envolvem. A teoria kuhniana ainda abraça a ideia de que haja na ciência períodos revolucionários, mas só lhe compreende como advindos ou derivados da ciência normal, está é condição para aqueles. 42 Em CDE as revoluções são repensadas e re-concebidas e, a ciência normal é reafirmada. Cremos que as noções de ruptura e descontinuidade conceitual, ainda que sejam entre as subáreas de uma ciência ou entre suas especialidades como ditas nesta obra revisionista, guardam, ao menos de forma diet,o caráter revolucionário apontado outrora. Para reformular o que sejam as revoluções Thomas Kuhn inicia reafirmando que: A mudança revolucionária é definida, em parte, por sua diferença com respeito à mudança normal, e a mudança normal, com já dito, é o tipo que resulta em crescimento, acréscimo, adição cumulativa ao que era antes concebido (KUHN, 2006c, p. 24). Na primeira parte de CDE há uma série de considerações e ajustes acerca das revoluções, o que nos induz a advogar e justificar sobre sua relevância na filosofia que ora investigamos. Permanece insistentemente em Thomas Kuhn uma evidente e esperançosa crença em um tempo de normalidade na ciência e esta confiança se espalha como rastro de pólvora em seus escritos. A certeza disso está fundamentada em assertivas como a que temos a seguir: As leis científicas, por exemplo, são usualmente produtos de processo normal: a lei de Boyle ilustra o que está envolvido nisso. Seus descobridores já dispunham anteriormente dos conceitos de pressão e volume dos gases, bem como dos instrumentos requeridos para determinar suas magnitudes. A descoberta de que, para uma dada amostra de gás, o produto da pressão pelo volume era constante, sob temperatura constante, simplesmente levou a um acréscimo ao conhecimento de modo como se comportam essas variáveis previamente disponíveis. A esmagadora maioria dos avanços científicos é desse tipo cumulativo normal (KUHN, 2006c, p. 24). Mas há importantes considerações acerca das revoluções, embora tomem um caminho diametralmente diverso e que sejam valoradas de outra forma: As mudanças revolucionárias são diferentes e bem problemáticas. Elas envolvem descobertas que não podem ser acomodadas nos limites dos conceitos que estavam em usos antes de elas terem sido feitas. A fim de fazer ou assimilar uma tal descoberta, deve-se alterar o modo como se pensa, e se descreve, algum conjunto de fenômenos naturais (KUHN, 2006c, p. 24-25). As novas ideias sobre as revoluções em CDE são arquitetadas a partir de alguns estudos de casos. Thomas Kuhn, como todo bom filósofo da ciência se serve deste equipamento 43 metodológico com o fito de evidenciar os detalhes do que deseja explanar. Destarte, efetua-se uma descrição de três exemplos de mudanças revolucionária e em seguida procura elucidar criticamente três características que este três modelos têm em comum. No primeiro exemplo de revolução demonstra de forma abreviada a transição da física aristotélica para a física newtoniana, dizendo da dificuldade de compreender Aristóteles com os óculos de hoje, identificando que seja uma falha se tentar fazer um julgamento sobre o trabalho de Aristóteles, levantando seus equívocos e limitações tendo como base a nosso quadro conceitual contemporâneo; o significado de um termo como “movimento” para ele e para seus seguidores não era o mesmo para Newton e Galileu nem o é para nós, há uma incomensurabilidade (linguística) entre eles. Thomas Kuhn adverte sobre a necessidade de uma interpretação holística das teses de Aristóteles, avisando que se lhe tomarmos de maneira separada aleijamos o empreendimento daquele filósofo27. No segundo modelo de revolução Thomas Kuhn nos traz o ano de 1800, quando Alessandro Volta descobre a pilha elétrica, esta descoberta traz consigo uma série de mudanças e ajuste, especialmente a respeito do que se entendia por “célula”, que respondem às expectativas daquele cientista e de seus seguidores por um período razoável, mas que em determinado momento começa a chocar-se com outras leis como, por exemplo, a lei de Ohm; no entendimento de Thomas Kuhn, na transição para a aceitação desta última irá ocorrer algo não-cumulativo28. Já no terceiro modelo a revolução é ilustrada mediante a explicitação do trabalho realizado por Max Planck ligado à origem da teoria quântica sobre o chamado “problema do corpo negro”, acompanhemos esta narrativa: Planck apresentou uma primeira solução para o problema do corpo negro em 1900, usando um método clássico desenvolvido pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann. Seis anos mais tarde, um erro pequeno mas crucial foi encontrado em sua derivação, e um de seus elementos principais teve de ser reconcebido. Quando isto foi realizado, a solução de Planck não apenas, de fato, funcionou, mas também rompeu radicalmente com a tradição. Por fim, essa ruptura difundiu-se e causou a reconstrução de boa parte da física (KUHN, 2006c, p. 37). Thomas Kuhn ressalva que nos dois primeiros modelos de revolução a mudança se dar pela forma que categorias como “movimento” e “célula” se ligam à natureza (KUHN, 2006c, p. 40) e que no terceiro modelo há uma mudança efetiva nas palavras. Antes de 1909 quando Planck se referia ao “tamanho E da célula” lhe nomeava como “elemento de energia”, depois 27 28 Conferir o relato de Thomas Kuhn em “o caminho desde a estrutura, 2006c, p. 28-30. Ibidem 44 começou a falar da mesma coisa lhe chamando de “quantum” e é com esta designação que ele é conhecido até hoje. Contudo, arremata: “o que caracteriza as revoluções não é, portanto simplesmente uma mudança no modo como os referentes são determinados, mas uma mudança ainda mais restrita” (KUHN, 2006c, p.42). A mudança na ciência é equiparada a uma revolução na linguagem, dizendo que ela altera não somente os critérios pelos quais os termos se ligam a natureza, mas, por extensão, o conjunto de objetos ou situações a que estes termos se ligam. E conclui “se estou certo, a característica principal das revoluções científicas é que elas alteram o conhecimento da natureza intrínseco à própria linguagem” (KUHN, 2006c, p.44), logo, a pergunta pelo que são as revoluções científicas, só pode ser respondida agora por Kuhn se as relacionarmos com a linguagem. Entendemos que a suavização do termo revoluções científicas ocorre de maneira lógica e coerente com todo o exercício de reformulação que se opera neste sistema teórico. Percebe-se que se Thomas Kuhn desfigura uma categoria, por exemplo, a incomensurabilidade, atenuando seu poder conceitual numa estrutura, consequentemente irá alterar o entendimento e a aplicabilidade do que sejam as revoluções. É perceptível a congruência, e até uma organicidade na teoria kuhniana ao manter íntegra a imagem holística de que as categorias não têm sentido isoladas, mas sempre articuladas num todo. Notamos sua preocupação em resguardar uma coesão interna em sua filosofia da ciência quando verificamos que o arrefecimento de uma categoria implica diretamente no abrandamento das outras. Logo, é mais adequado que de agora em diante se passe a nomear revoluções científicas como revoluções linguísticas, entendendo que as revoluções transfiguram-se igualmente numa questão de linguagem. Pode-se conferir o desenvolvimento deste problema quando se focaliza uma especialidade científica e se verifica em seu corpo um conjunto novo e específico de conceitos lhe dando contorno, delineando tecnicamente como determinado fenômeno pode ser interpretado e descrito. Nos domínios novos de uma outra estrutura linguística, de uma matéria científica nova, os velhos conceitos não conseguem aguentar o peso de todas as descobertas. O problema das revoluções científicas, assumindo este caráter, pode também está entrecruzado como as demandas concernentes ao campo da linguagem, o que avaliamos seja um aleijamento do que antes fora apregoado e que causou, naquela ocasião tanto alarde ao debate sobre a ciência. 2.5 - Incomensurabilidade - mudança conceitual que impossibilita o uso contínuo de categorias internas à ciência sem uma constante revisão. 45 Esta categoria ocupa uma posição de relevo na filosofia da ciência em estudo. Incomensurabilidade é, incontestavelmente, a grande inovação dessa estrutura filosófica e ao mesmo tempo se constitui em seu “calcanhar de Aquiles”. Em 1962 o impacto deste elemento kuhniano é ruidoso. Descrever teorias científicas como incomensuráveis, afirmar que o progresso da ciência é descontínuo e multidirecional, dizer que o que há são justaposições entre paradigmas científicos, é perturbar os cânones epistemológicos tradicionais provocando reações adversas. Incomensurabilidade é uma categoria da matemática que afixa a impossibilidade de se nivelar grandezas, medidas, potências, volumes, áreas, diametralmente opostas. A verdade x de que s é p, invariavelmente é incomensurável com a Verdade y de que esse mesmo s seja q. Vista sobre este ângulo, a incomensurabilidade presume elementos dessemelhantes, díspares e sua natureza é impedir que estes elementos sejam fundidos, confundidos ou reduzidos e acoplados arbitrariamente uns aos outros. Qualquer exercício nessa direção é inválido e não crível no recinto das ciências matemáticas. Em 1962 Thomas Kuhn e Paul Feyerabend29 fazem o transporte desse termo para o ambiente da filosofia da ciência. Entendemos que esse tipo de operação precisa contar com um certo grau de tolerância epistemológica uma vez que um conceito sempre carrega consigo algo de seu peso original, e este peso pode não corresponder ao novo uso que lhe será conferido; talvez por isso ao se ancorar na filosofia da ciência– incomensurabilidade- tenha causado tanta contestação. Imediatamente após o seu lançamento, a tese desses autores torna-se importante no âmbito da filosofia e da historiografia da ciência, ora como empreendimento espantoso, admirável ora como um feito irracional, execrável. Poucos tiveram a prudência de analisar razoavelmente este argumento ou de buscar um meio termo no entendimento do que seria a incomensurabilidade nesse campo. Paul Feyerabend e Thomas Kuhn partem de argumentos diferentes para trazer à tona o conceito incomensurabilidade; Feyerabend procura desmotivar qualquer tipo de pesquisa científica que possua como base fundamental os métodos canônicos advindos e reproduzidos desde Descartes e propõe um tipo de pluralismo ou “anarquismo metodológico” que tem como fundamento uma diversidade incomensurável de estratégias no trabalho científico. Thomas Kuhn, por sua vez, opta por um novo modo de ver a ciência e escolhe a história da física como padrão para sua tese da incomensurabilidade entre paradigmas. 29 Paul Feyerabend é um importante filósofo da ciência autor da imponente obra “Against method” (Contra o método) lançada em 1975. 46 Conferimos relevância ao trabalho de Paul Feyerabend, mas nos interessamos aqui especialmente pela discussão acerca da incomensurabilidade erigida do pensamento de Thomas Kuhn e passamos doravante a examiná-la. Ao assumirmos a análise da teoria kuhniana verificamos imediatamente que incomensurabilidade é um de seus artefatos que mais carecem de justificação, daí o esforço filosófico presente em obras posteriores a 1962 para tentar salvaguardá-la. Em ERC pode-se encontrar uma versão forte da incomensurabilidade kuhniana, ou seja, como está ali explicitada esta categoria possui um vigor que impressionou e impactou estudiosos de diversas áreas do conhecimento. Ao que nos parece, seu próprio defensor quando vai lhe revisar teme sua dimensão. Sua notação original afirma o seguinte: dois paradigmas (modelos, tradições) rivais não são comensuráveis de uma forma racional e objetiva. Esta noção de incomensurabilidade pode ser localizada em quase todas as linhas kuhnianas de 1962, quando não explícita pelo menos de maneira subliminar. No capítulo seis de ERC- as crises e a emergência das teorias científicas- verifica-se com exatidão, a partir de três exemplos, os argumentos a favor da efetividade dessa tese na ciência, sigamos o primeiro: O caso particularmente famoso de mudança de paradigma: o surgimento da astronomia copernicana, quando de sua elaboração, durante o período de 200 a.C a 200 d.C, o sistema precedente, o ptolomaico, foi admiravelmente bem sucedido na predição da mudança de posição das estrelas e dos planetas, nenhum outro sistema antigo saíra-se tão bem: a astronomia ptolomaica é ainda hoje amplamente usada para cálculos aproximados; no que concerne aos planetas, as predições de Ptolomeu eram tão boas como as de Copérnico. Porém quando se trata de uma teoria científica, ser admiravelmente bem sucedida não é a mesma coisa que ser totalmente bem sucedida (KUHN, 2006a, p. 95 ss). Outro argumento defensivo da incomensurabilidade é rastreado no exemplo abaixo: Passemos agora a um segundo exemplo bastante diferente: a crise que precedeu a emergência da teoria de Lavoisier sobre a combustão do oxigênio. Nos anos que seguiram a 1770 muitos fatores se combinaram para gerar uma crise na química, os historiadores não estão de acordo nem sobre a natureza, nem sobre a sua importância relativa, mas dois fatores são aceitos como sendo de primeira magnitude: o nascimento da química pneumática e a questão das relações de peso (KUHN, 2006a, p.97 ss ). E por último, o mais importante argumento kuhniano pela incomensurabilidade entre paradigmas na obra de 1962: 47 Examinemos agora um terceiro e último exemplo – a crise na física do fim do século XIX- que abriu caminho para a emergência da teoria da relatividade. Uma das raízes dessa crise data do fim do século XVIII, quando diversos estudiosos da filosofia da natureza, especialmente Leibniz, criticaram Newton por ter mantido uma versão atualizada da concepção clássica do espaço absoluto. Esses filósofos embora nunca tenham sido completamente bem sucedidos, quase conseguiram demonstrar que movimentos e posições absolutos não tinham nenhuma função no sistema de Newton. Além disso, foram bem sucedidos ao sugerir o atrativo estético considerável que uma concepção plenamente relativista de espaço ou movimento teria no futuro (KUHN, 2006a, p. 100). Deste modo, ao se apreender o que seja um processo incomensurável na ciência, especialmente na física, como vemos acima, devemos aprender, conforme nos incita Thomas Kuhn que na ciência os caracteres de linearidade, continuidade, acúmulo, são atenuados e que consequentemente se deve recompor a noção de progresso, aqui ele não é unidirecional. O que se evidencia nesse novo modo de ver a ciência é uma figura epistemológica restaurada, composta de justaposições entre paradigmas. Estabelece-se assim, em 1962, um estilo alternativo de se descrever, explicar e praticar ciência: Em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve aprender a ver uma nova forma (gestalt) em algumas situações com as quais já está familiarizado. Depois de fazê-lo, o mundo de suas pesquisas parecerá, aqui e ali, incomensurável com o que habitava anteriormente. Esta é outra razão pela qual escolas guiadas por paradigmas diferentes estão sempre em ligeiro desacordo (KUHN, 2006a, p. 148). A finalidade basilar dessa defesa da incomensurabilidade na ERC parece ser enfrentar questões relevantes como a mudança conceitual entre paradigmas, a redução de uma teoria a outra (como era comum nas filosofias da ciência em vigência) e mais especificamente, sua preocupação se dava com a forma como era realizada o ajuste de uma teoria em crise à sua sucessora. O problema que consequentemente emergirá dessa discussão é a querela em torno do progresso científico, “ Kuhn diz ocorrer- o progresso- não somente por adição, mas também por subtração (negação de legitimidade científica aos problemas e Standards de outros paradigmas” (MARTINS, 1993, p.68) que sendo entendido dessa maneira, implicará em perdas e ganhos no desenvolvimento das ciências. Outra questão relevante que emerge da discussão sobre a incomensurabilidade é o debate a respeito da insuficiência dos critérios objetivos na escolha entre teorias científicas, o que resultará num outro dilema epistemológico que é a subdeterminação entre teorias. As teorias científicas estão subdeterminadas quando não há critérios objetivos para efetivar sua escolha diante de um conjunto de dados. Em alguns momentos na ciência os dados observacionais 48 podem conduzir a duas ou mais construções teóricas incomensuráveis; decidir nessas ocasiões é um processo que transcende à objetividade. Esta é uma dificuldade frequente para filosofia da ciência e Thomas Kuhn não se escusou de enfrentá-lo. Finalmente analisamos que em 1962, incomensurabilidade pode mesmo ter sido usada como álibi por Thomas Kuhn para poder apresentar a ciência como um fato histórico, uma vez que esse elemento, apesar de ter sido o principal alvo dos seus críticos, foi também o que mais favoreceu a adição de subsídios históricos a sua epistemologia e, para o bem ou para o mal, possibilitaram um new style no entendimento e descrição do que seja ciência. Em CDE foi possível atualizar com precisão a ressignificação feita nesse conceito. Antecipamos, contudo, que este exercício se inicia imediatamente após seu lançamento na ERC devido o impacto ocasionado por sua introdução à filosofia da ciência daquela época. O capítulo dois de CDE – “comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade” parece possuir os argumentos suficientes para demonstrarmos que incomensurabilidade passa por um refinamento austero que culminará no conceito de “incomensurabilidade local” e, por conseguinte terá um caráter circunscrito, bem distante daquele ‘fenômeno conceitual’ de 1962. Para esse processo de depuração do termo incomensurabilidade destacamos um primeiro passo: Cada um de nós (Kuhn e Feyerabend) estava especialmente preocupado em mostrar que os significados de termos e conceitos científicos– “força” e ‘massa”, por exemplo, ou “elemento” e “composto”- com frequência mudavam de acordo com a teoria na qual eram empregados. E cada um de nós afirmava que , quando tais mudanças ocorriam, era impossível definir todos os termos de uma teoria no vocabulário de outra (...) tudo isso ocorreu em 1962. Desde então, os problemas da variação de significado foram amplamente discutidos, mas ninguém de fato enfrentou por completo as dificuldades que nos levaram a falar em incomensurabilidade (KUHN, 2006c, p. 48)30. Como já foi aludido em ERC incomensurabilidade tinha um peso demasiadamente agudo, e, do mesmo modo foi o nível da crítica a ela direcionado. Houve exageros parte a parte, de Thomas Kuhn e dos seus críticos, o primeiro pode ter sido descuidado e os críticos porque foram demasiadamente severos: 30 Grifo nosso. 49 A maioria das discussões, ou todas, sobre a incomensurabilidade dependeram da hipótese, literalmente correta, mas em geral interpretada de modo exagerado, de que se duas teorias são incomensuráveis, então elas devem estar enunciadas em linguagens mutuamente intraduzíveis (KUHN, 2006c, p.49). Foram imponentes e radicais as críticas relativas a esse conceito, o que forçou Thomas Kuhn a tarefa de durante toda a vida dar conta do que seria mesmo uma teoria ou um paradigma incomensurável (o que não foi uma empreitada simples). Não nos arriscamos a dizer nesse estudo se este filósofo conseguiu sair de todas as encruzilhadas em que se implicou, contudo reconhecemos seu esforço em proporcionar a elucidação de suas ideias. Sucede uma nova colocação do problema, entretanto estimamos que não se trate de uma grande reviravolta no pensamento kuhniano, avalia-se que seja um novo esclarecimento ou um preenchimento das lacunas deixadas em 1962. A crítica indicava uma igualdade problemática entre incomensurabilidade e comparabilidade de teorias, Thomas Kuhn refaz o argumento tentando rechaçar as censuras: Recordem de onde veio o termo “incomensurabilidade”. A hipotenusa de um triângulo retângulo isósceles é incomensurável relativamente a qualquer um dos catetos do triângulo, assim como a circunferência de um círculo o é com respeito ao raio do círculo, no sentido de que nenhuma unidade de comprimento pela qual ambos os elementos do par possam ser divididos, sem deixar resto, um número inteiro de vezes. Não há, portanto, nenhuma medida comum. Mas falta de medida comum não torna impossível uma comparação. Pelo contrário, magnitudes incomensuráveis podem ser comparadas até qualquer grau de aproximação que se requeira (KUHN, 2006c, p.50). Essa reconsideração atualiza de alguma maneira o conceito e ao mesmo tempo enfrenta o problema de se relacionar incomensurabilidade e comparabilidade. É possível que tenha havido um exagero dos críticos em afirmar que Thomas Kuhn defendia a incomparabilidade entre teorias, não localizamos isso de forma objetiva na obra de 1962. O arremate da questão é feito quando se assume que “aplicado ao vocabulário conceitual usado numa teoria científica e em seu entorno, o termo “incomensurabilidade” funciona metaforicamente” (KUHN, 2006c, p. 50) e, dissolvido definitivamente numa perspectiva semântica quando assegura categoricamente “a expressão nenhuma medida comum” passa a ser “nenhuma linguagem comum” (KUHN, 2006c, p. 50). Para dirimir de vez a querela percebemos, além disso, que o termo incomensurabilidade aparece em 2000 sempre aspejado, o que já denota um uso rigorosamente diferente. 50 Se ainda permaneciam algumas incertezas, incomensurabilidade definitivamente não implica sob nenhum aspecto incomparabilidade: A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é, assim a afirmação de que não há uma linguagem, neutra ou não, em que ambas as teorias, concebidas como conjuntos de sentenças, possam ser traduzidas sem haver perdas ou ganhos(KUHN, 2006c, p. 50). Assim sendo, perguntamos: os leitores de ERC teriam dado a incomensurabilidade um sentido mais forte do que o devido? Será? Thomas Kuhn parece exigir uma moderação na interpretação e no uso desse termo que ele mesmo não o fez na sua aplicação original. Podemos metaforizar dizendo que o pai gerou um filho forte e pode ter perdido seu controle. A criatura que já nasceu robusta, ganhou corpo e se desenvolveu impedindo o domínio do criador. O que fazer agora? Haverá remédio que sane essa disseminação desgovernada? Como dar freio a um conceito? Damos-nos conta que Thomas Kuhn passa a defender somente uma versão módica do termo, abraçando, no nosso entender, somente uma perspectiva linguístico- semântica: “chamarei essa versão modesta de “incomensurabilidade local”. Até o ponto em que incomensurabilidade constitui uma tese referente à linguagem, à mudança de significado, sua forma local é - agora - minha versão original” (KUHN, 2006c, p. 51). Se assim funcionar (como parece que funciona) perguntamos se incomensurabilidade passa a pertencer também aos ditames de uma teoria do significado; se Thomas Kuhn teria assumido de vez à semântica na filosofia da ciência? Sugerimos que sim. Mas precisamos analisar alguns argumentos quineanos para ancorar melhor esse nosso assentimento. Conclusão: Foi constatado que cada um dos elementos que deram corpo a teoria kuhniana são ao longo do tempo e conforme vai aparecendo uma nova fala ou escrito, atravessados por uma navalha que lhe extirpa o grau dos significados que lhes compunha quando lançados em 1962. Comunidade científica é agora comunidade linguística, revoluções científicas transvertem-se em revoluções linguísticas, incomensurabilidade passa a ser incomensurabilidade local, paradigma é exclusivamente um léxico e, ciência normal, diante do arrefecer das demais categorias não pode mais ser a mesma, mantém a mesma denominação, mas é do mesmo modo alterada dada a diminuição da extensão dos seus pares. 51 Destarte, a interface interna das obras kuhnianas proporciona uma imagem subtraída das categorias do seu quadro conceitual. Temos a sensação de que se o próprio autor tomasse cada um de seus elementos para uma avaliação e lhe aplicasse uma nota dez em 1962, a cada lançamento de uma nova obra, a cada dito, a nota iria decaindo substancialmente pela redução da extensão de cada uma das categorias. São notórias as saídas para a linguagem e consideramos plausíveis haja vista a severidade das críticas e o desejo deste autor em atingir o reconhecimento filosófico de suas teses, contudo não estamos certos se todas as estratégias de aprimoramento são objetivadas a ponto de salvaguardar algum vestígio do que antes era defendido. Insinuamos inclusive que haja algumas fissuras nessa estrutura. Não chegamos a instilar a existência de ‘dois Thomas Kuhn’ como se tem feito correntemente com os autores que tiveram a oportunidade de assumir os equívocos cometidos e arriscaram corrigi-los, mas reconhecemos que o processo de reconstrução nessa estrutura teórica foi significativamente agudo, intenso. Quanto à estratégia de integrar ciência e linguagem, entendemos que influenciado pela “guinada linguística” 31 muitos filósofos foram levados a justificar seus sistemas dentro deste círculo, e Thomas Kuhn querendo legitimar com mais vigor suas idéias acompanhara a moda vigente. Averiguaremos a seguir algumas teses de W. O. Quine visando responder se Thomas Kuhn, ao abraçar a linguagem lhe teria tomado por empréstimo algumas ideias ou se apenas vê muitos problemas de forma similar e ele. 31 Expressão defendida pelos filósofos J. L. Austin, Jürgen Habermas, J. Searle dentre outros, que assumem cada vez mais o caráter linguístico, pragmático e intersubjetivo do conhecimento e da verdade, e se afastam das metafísicas tradicionais. 52 3 CINCO TESES DA EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE. A epistemologia de W. O. Quine é composta de um conjunto de teses e argumentos acerca da linguagem, do significado, da ciência, da matemática e da lógica. A forma instigante e inovadora como este pensador trata cada uma destas questões lhe garante um lugar de destaque na filosofia contemporânea. Neste tópico apresentaremos cinco teses de sua epistemologia e em seguida buscaremos um entendimento acerca de seus significados. Nessa oportunidade nos ocupamos apenas de alguns aspectos desta teoria. Os itens que serão explicitados são: os dois dogmas do empirismo, a aprendizagem de uma linguagem, holismo semântico e epistemológico, indeterminação da tradução e epistemologia naturalizada. Em todos os casos o objetivo é explicar como estas teses estão articuladas no interior da epistemologia quineana. A partir do estudo das teses acima listadas temos a pretensão de evidenciar pontos de entrecruzamento entre esta epistemologia e a filosofia da ciência de Thomas Kuhn, o que será realizado na terceira e última parte deste trabalho. Ambicionamos aprofundar de maneira categórica cada um dos elementos que compõem a filosofia da ciência kuhniana já arrolados no capítulo primeiro desta análise. Para tanto faremos a partir de agora a explanação de elementos proeminentes do esquema teórico quineano para em seguida averiguarmos que tipo de relação é possível se fazer entre estes sistemas filósofos. Destarte, a explicitação dessas teses nessa seção serve como ponto de referência para que possamos em seguida, no final deste estudo pontuar mais objetivamente as ocorrências de embricamentos nestes sistemas de pensamento. Pretendemos examinar se no processo de construção e re-construção de sua filosofia Thomas Kuhn busca se justificar, de alguma maneira, em subsídios da epistemologia quineana, por isso escolhemos descrever a partir de agora os argumentos desta epistemologia que julgamos terem algum tipo de afinidade com o modelo kuhniano de ciência. 3.1 - Um breve comentário sobre W. O. Quine. Fortemente influenciado pelo pragmatismo clássico de Charles Sanders Peirce e John Dewey e defensor de um ponto de vista holista advindo de Pierre Duhen, Williard Von 53 Orman Quine é considerado por muitos como um filósofo admirável, extremamente produtivo, talvez o mais importante das Américas no século XX. Estudiosos brasileiros apontam W. O. Quine como o grande expoente da filosofia do nosso continente32. W. O. Quine foi um pensador de vida movimentada, comenta-se que este filósofo conheceu mais de cem países chegando a morar em algum deles, inclusive no Brasil. Aqui, durante o ano de 1944 ele escreveu uma importante obra O sentido da nova lógica, em português, que lhe serviu entre outras coisas para exercitar a língua portuguesa que muito lhe impressionava. Este filósofo doutorou-se em filosofia em Harvard sob a orientação de Whitehead. Sua tese versava sobre O principia mathemática de Bertrand Russell. Esteve por alguns anos na Europa onde teve a oportunidade de conviver com a atmosfera cultural da época e de trabalhar com importantes pensadores. Ainda no velho mundo conheceu os trabalhos de Gödel, importante matemático e defensor da teoria dos conjuntos. Conheceu igualmente Von Newman, Reichenbach e Ayer. Contudo o Círculo de Viena e sua doutrina do empirismo lógico, especialmente a filosofia de Rudolf Carnap é que marcarão decisivamente a trajetória filosófica de W. O. Quine33. Em 1936, após a primeira guerra e, diante do quadro político que se desfralda na Europa, retorna aos EUA e torna-se um notável professor em Harvard onde já havia sido excelente aluno. Ali ficara vinculado até sua morte. Verificamos uma produção bibliográfica vasta que ajudou W. O. Quine a firmar-se como uma referência da filosofia analítica da linguagem no novo mundo. Entre suas obras destacam-se os artigos Two Dogmas of empiricism de 1951, lançado oficialmente em 1953, Epistemologia Naturalizada (1969), seu importantíssimo livro Word and object (1960) traduzido para a língua portuguesa em 2010 com o título Palavra e objeto, O sentido da nova lógica, escrito no Brasil (em 1944), The Roots of reference (1974), Web of belief, dentre outros. A leitura das obras quineanas se tornaram ferramentas indispensáveis aos que desejam uma compreensão rigorosa de problemas referentes à filosofia analítica da linguagem, à semântica e à pragmática. Somos advertidos sobre o caráter sistemático da obra de W. O. Quine, alguns entendem que nessa filosofia haja uma unidade de pensamento e que assim deve se interpretar sua epistemologia: 32 Estamos nos reportando nessa afirmativa a estudiosos como Sophia Stein, Vera Vidal e Marcos Bucão. Sobre isso conferir o artigo de Sophia Stein intitulado Williard Von Orman Quine, elaborado a pedido do Centro de Estudos em Filosofia Americana – CEFA. 33 54 Já enunciamos que uma boa compreensão do pensamento quiniano supõe de se dê conta do aspecto sistemático de sua filosofia. Questões de epistemologia (qual a relação entre palavra e objeto, entre nosso discurso sobre o mundo e o próprio mundo, entre a evidência sensorial e nossa teria de mundo?), de lógica (como destacar o valor verdade de uma sentença?), de ontologia (que entidades assumimos como existentes em nosso discurso?), de filosofia da linguagem ( qual o estatuto ontológico dos significados lingüísticos? Que critérios justificam a distinção: sentenças analíticas e sintéticas? São respondidas dando origem a um sistema filosófico abrangente ( VIDAL, 1989, p. 43). Conforme a perspectiva acima apresentada, as teses de W. O. Quine só teriam força, coerência e significado se engendradas numa tecitura sistemática onde uma tese entre em conexão lógica com a outra. Não nos interessamos aqui em tomar partido quanto à sistematicidade de seu empreendimento, o que pretendemos é compreender os cinco elementos já aludidos acima e ao mesmo tempo investigar sua relação com a filosofia kuhniana. 3.2 - A epistemologia de W. O. Quine. Esta concepção filosófica se estrutura a partir do desenvolvimento de teses bem diversas e procuram dar conta de muitos problemas epistemológicos em vigência em nosso tempo. Aqui escolhemos pontuar algumas teses que evidenciam sua preocupação com a linguagem, com a ciência, com o significado por considerá-las relevantes para nosso estudo. Examinaremos ainda, por necessidade, a tese da epistemologia naturalizada. Alertamos antecipadamente que nossa opção por explanar somente as questões mencionadas acima não deve encobrir a amplitude e a profundidade do seu empreendimento filosófico. Nossa escolha destas teses se deu mediante leituras introdutórias desta epistemologia, o que por vezes pode parecer um tanto arbitrário, mas isso diminui quando se alude que, este conjunto de teses pode se acoplar de maneira holística, e que tratando de uma, as outras também serão levadas a sério. Pode haver elementos quineanos fora do que abordaremos aqui que também se conecte a filosofia da ciência de Thomas Kuhn, não ignoramos tal possibilidade. Optamos por este recorte por considerá-lo suficiente para este momento. Serviremos-nos de agora em diante de boa parte do pensamento quineano contido nas obras já anunciadas. Pretendemos elucidar teses fundantes desta epistemologia e que por hipóteses, conjeturamos estarem entrelaçadas de alguma maneira com a filosofia de Thomas 55 Kuhn. Por questões metodológicas e visando uma explicação mais particularizada apresentaremos de forma separada cada uma das teses escolhidas. 3.3 – Os dois dogmas do empirismo. Supomos que alguns mandamentos filosóficos, uns tradicionais, outros mais recentes, foram particularmente inspiradores de W. O. Quine para que realizasse sua impactante crítica aos dogmas do empirismo. Observando a citação abaixo notaremos que muitos dos seus elementos se constituem em alvos a serem revisado por este pensador: Um juízo analiticamente verdadeiro é aquele em que um conceito de seu predicado está contido em seu sujeito, ou tal que sua negação é contraditória (Kant). Uma proposição analiticamente verdadeira é ou uma verdade lógica, ou é redutível de uma verdade lógica por meio de definições em termos puramente lógicos (Frege). Um enunciado analiticamente verdadeiro é verdadeiro apenas em virtude do significado de seus termos (positivistas lógicos). ‘Analítico’ é geralmente usado de maneira equivalente a ‘analiticamente verdadeiro’. A negação de uma verdade analítica é analiticamente falsa. ‘Sintético é geralmente usado de modo equivalente a ‘nem analiticamente verdadeiro nem analiticamente falso’ (HAACK, 2002, p. 315). Todos estes pressupostos pautados acima, em linhas gerais pertencem à tradição epistemológica e conseguiram ao longo dos anos dá conta dos problemas referentes ao conhecimento, contudo, passam a ser aqueles conteúdos aos quais W. O. Quine irá deflagrar suas críticas. David Hume, segundo entende W. O. Quine, quis demonstrar que tradicionalmente existem dois objetos da razão humana: as “relações de ideias” e as “questões de fato”. Estas asseverações podem ser constatadas num clássico de humeano: Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de idéias e de fatos. Ao primeiro tipo pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. (...) Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são determinados da mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza igual à precedente. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção, como se ele estivesse em completo acordo com a realidade. (...) Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos sentidos (HUME, 1973, Secção IV, § 1). 56 Conforme este entendimento de Hume as “relações de idéias” são justificadas por elas mesmas, logo se pode dizer que são “analíticas”. Contudo as “relações de idéias”, por não possuírem como conteúdo as experiências, se constituem somente numa pequena parte do conhecimento humano e assim sendo não conseguem por si só formular um conhecimento acerca do que seja a natureza. Para que se formule um conhecimento adequado os objetos da razão devem está profundamente marcado pelas “questões de fato”, ou seja, somente os enunciados destas últimas, por possuírem uma relação causal com a experiência estão em condições de justificar nossas crenças. Os enunciados advindos das “questões de fato” são os que se denomina de “sintéticos” e, para Hume só existe conhecimento quando se liga as ideias através de uma relação causal dada de forma sintética. Outro elemento instigador do julgamento quineano é a reafirmação da tradição feita por Rudolf Carnap bem como a defesa que este filósofo do “círculo de Viena” faz do convencionalismo na linguagem: Carnap, enquanto defende a divisão entre enunciados analíticos e sintéticos, elabora uma noção de enunciado analítico ‘convencional’ (Carnap 1934), que lhe permite manter a divisão tradicional entre enunciados necessários e contingentes – sempre, claro, pressupondo que não haja enunciados necessários sintéticos ou “a posteriori”, porém, evitando qualquer afirmação de que os primeiros sejam intrinsecamente necessários. São, segundo Carnap, analíticos “por convenção” (STEIN, 2003, p. 185). Conforme irá problematizar W. O. Quine, a antiga divisão analítico/sintético, a defesa carnapiana do reducionismo, e a sobrevivência de enunciados analíticos por pura convenção devem ser revisados. A partir desse cenário é anunciada a necessidade de se expurgar da tradição filosófica estes equívocos e reivindicar que os dois dogmas do empirismo sejam inicialmente repudiados e passem por uma rigorosa revisão. E assim, bem intrépido, inicia uma apreciação rígida destes. Em 1951 W. O. Quine abre seu ensaio Two dogmas of empiricism com a seguinte proposta: O empirismo moderno foi em grande parte condicionado por dois dogmas. Um deles é a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em significados independentes de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas em fatos. O outro dogma é o reducionismo: a crença de que todo enunciado significativo é equivalente a algum constructo lógico sobre termos que se referem á experiência imediata. Ambos os dogmas, deverei sustentar são mal fundamentados (QUINE, 1980, p. 237). 57 Este texto, apesar de possuir menos de 20 páginas, tem força suficiente para balançar os ditames epistemológicos tradicionais. Percebemos imediatamente nas linhas iniciais que seu objetivo primordial é criticar os dogmas existentes nas duas formas de empirismo mais usuais: uma primeira forma que advém do paradigma clássico, moderno, que como vimos tem como representante mor David Hume e como tese central a defesa ostensiva do padrão empírico, aquele que crê na evidência como fonte primeira para se compreender e dizer o mundo e para justificar nossas crenças, e que conta irremediavelmente com a bifurcação entre analítico e sintético. E a segunda forma, que é apresentada por W. O. Quine como proveniente da primeira está estritamente vinculada ao empirismo lógico, especialmente ao empreendimento de Rudolf Carnap, que prevê a redução de todo enunciado empírico ao padrão lógico-linguístico. Nesta ocasião W. O. Quine nos lembra de que o primeiro dogma pode frequentemente ser rastreado entre os modernos, mais notadamente em David Hume quando este defende, como já demonstramos, a rigorosa distinção entre “relações de ideias” e “questões de fato”; mas é evidente também no racionalismo de Leibniz quando se verifica a dicotômica relação entre “verdades de razão” e “verdades de fato”. E que ainda pode ser localizado em Emanuel Kant, uma vez que ele, do mesmo modo, alegou e propagou como nenhum outro a divisão requerida pelo empirismo. Esta divisão tornou-se canônica na filosofia e tradicionalmente exigiu a separação categórica entre sentenças analíticas e sintéticas. Essa bipartição reivindica (e faz conforme entende W. O. Quine) legitimar uma tradição que privilegiou as verdades de razão, ou verdades analíticas como necessariamente verdadeira e sua negação como analiticamente falsa, como defendia Leibniz – a verdade analítica é verdadeira em todos os mundos possíveis. Segundo essa versão clássica, sentenças analíticas podem ser definidas como Kant o fez tantas vezes. Lembremos que este prussiano concebia um “enunciado analítico como o que atribuía a seu sujeito não mais do que aquilo que já estava conceitualmente contido no sujeito” (QUINE, 1980, p. 237), assim sendo nenhum enunciado dessa espécie tem sua forma lógica contestada, independente de qualquer consulta aos fatos da experiência, ele será necessariamente verdadeiro. Deste modo, percebemos que na elogiada filosofia kantiana a notação “analiticamente verdadeiro” corresponde àquele enunciado que é válido em virtude de sua formalidade lógica e assim sendo é válido em função do seu significado a priori. Para Kant, numa relação sujeito-predicado a analiticidade é garantida, porque num enunciado do tipo: o triângulo tem três lados, o predicado já está contido no sujeito, independente do fato, livre de qualquer 58 comprovação empírica, ele se faz necessariamente verdadeiro pela pertença do predicado ao sujeito, apenas este arrazoado garante a um significado sua validade e justificação epistêmica. Esta analiticidade alardeada habitualmente na filosofia é o ‘elemento duvidoso’ que foi avaliado por W. O. Quine como problemático, é a ele que sua crítica se direciona. Na perspectiva quineana a pressuposição de um significado analítico, a priori, independente de uma rede de relações em que o sujeito pode tecê-lo é sempre imprecisa porque, no seu entendimento, esta assertiva carece peremptoriamente dos subsídios da sinonímia que este pensador quer tanto abdicar. Esta última, na compreensão quineana, exige um tipo de ajustamento correspondencial, uma espécie de redução arbitrária que não se deve mais considerar aceitável. Deste modo, o problema da analiticidade, conforme se defende aqui, está na sua vinculação e mesmo na sua dependência do significado, porque este se encontra invariavelmente acoplado a uma noção forte de sinonímia. Estas conexões receberão fortes ataques de W. O. Quine: Existem aqueles que acham reconfortante dizer que os enunciados analíticos se reduzem as verdades lógicas, por meio de definições; ‘solteiro’, por exemplo, é definido como homem que não casou. Mas como de fato chegamos à conclusão de que ‘solteiro’ se define como ‘homem que não casou’? Quem assim o definiu e quando? Devemos recorrer ao dicionário mais próximo e aceitar como lei a formulação do lexicógrafo? (...) a noção de sinonímia aqui pressuposta deve ainda ser clarificada (...) certamente a “definição”, que consiste no relato do lexicógrafo de uma sinonímia observada, não pode ser tomada como fundamento da sinonímia (QUINE, 1980, p. 240). Entendida assim, a sinonímia, como parece carecer ou requerer necessariamente de um traço apriorístico, e exigir ajustes forçados, deverá ser renunciada. As condições reais da sinonímia para legitimar a verdade e o significado entram em dificuldades na visão epistemológica de W. O. Quine. Ele não acredita na capacidade de um significado puro, dado por definição, para ele esta última não consegue, como se alega, converter verdades analíticas em verdades lógicas. Não há significados despregados da empiria, ainda que algumas vezes estejam apenas indiretamente vinculados a ela. Em última instância somente a evidência empírica se constitui em fundamento de onde devem emergir os conteúdos de todo e qualquer ato de significar e só nelas se devem confiar nossas crenças, entretanto o procedimento de uso dessa evidência deve ser modificado. Segundo sua compreensão deste problema, é pertinente que se apele para outra orientação no uso das evidências; deve-se redimensionar o debate: 59 O que exatamente quer dizer afirmar sinonímia, no que exatamente podem se constituir as interconexões necessárias e suficientes para que duas formas lingüísticas possam ser com propriedades descritas como sinônimas, é algo que está longe de ser claro; mas, o que quer que sejam, estas interconexões são ordinariamente baseadas no uso (QUINE, 1980, p. 240). A partir deste enunciado W. O. Quine prenuncia que não haja alguma coisa como um significado dado, e reafirma que o que há são interconexões linguísticas usadas ordinariamente, aos moldes do que preconizava o segundo Wittgenstein. Para dizê-lo de forma mais simplificada, ele – o significado - sempre irá insurgir de relações intersubjetivas e públicas, de redes verbais sociais que lhe definem conforme um sistema de crença, de acordo com o aprendizado de uma linguagem, respeitando certa empatia entre as partes falantes. Enfim, pode-se inferir que do ponto de vista deste filósofo somente o contexto natural, ordinário e pragmático permitirá que os indivíduos forjem, criem e inventem significados. Falar das coisas, dizer o que elas significam; formular discursos sobre o mundo é, de algum modo, dizer o que se apreendeu sobre ele a partir de dados advindos da empiria. O movimento empírico inicial e basilar é marcado pelo que W. O. Quine identifica como “irritações de superfície”. A partir do descontentamento com o apriorismo na linguagem se observa a intolerância quineana com a permanência do “mito do significado” ou com a crença metafísica de significados puros, imaculados, vazios de informações empíricas, que se perpetuou ao longo dos anos. Entendemos que possa de certa maneira soar como uma contradição a censura que W. O. Quine faz ao empirismo, uma vez que o próprio filósofo ainda reafirma a plausibilidade da evidência empírica, defendendo que é somente sobre ela que todo e qualquer enunciado sobre o mundo repousam. E se pode mesmo indagar se é possível alguém se ocupar de uma tarefa tão seriamente e depois disso retomar um percurso como se nada tivesse ocorrido? Parafraseando Wittgenstein, teria W. O. Quine chegado ao cume da escada e lhe jogado fora? Seria esse o caso? Talvez, mas o que fica realmente evidente é que Quine realiza um melioramento do empirismo para depois poder reutilizá-lo. Só um empirismo revisado é admissível na sua concepção. As questões levantadas por W. O. Quine quanto ao segundo dogma do empirismo conforme ele mesmo nos assevera, são derivadas do primeiro problema e referem-se à crença “de que todo enunciado significativo é equivalente a algum constructo lógico sobre termos que se referem à experiência imediata” (QUINE, 1980, p.01). Esta crença é disseminada 60 pelos empiristas lógicos do século XX, afiliados de empiristas britânicos clássicos como: Locke, Berkeley, e David Hume. A imagem de ciência com a qual se convivia até a primeira metade do século XX é a produzida por este empirismo lógico ou neopositivismo. Esta corrente de pensamento advém do empreendimento de um grupo de pensadores de Viena que nas primeiras décadas do século referido resolvem, entre outras coisas, declarar guerra a qualquer princípio metafísico para a epistemologia. Esta escola tinha como finalidade ajustar o empirismo e os desenvolvimentos que ocorrera na lógica para mostrar que todos os problemas filosóficos pendentes poderiam ser equacionados pela reconstrução da linguagem. Esta doutrina reafirmava também os dogmas do empirismo tradicional ao sustentar que “apenas declarações e termos significantes referem-se ao que a experiência pode verificar; daí seu critério da significância” (ROSEMBERG, 2009, p. 255). Eles defendem ainda a possibilidade de enunciados não verificáveis, mas ressaltam que estes se manteriam verdadeiros com base nos próprios termos que os compõem. A justificação assinalada pelo grupo vianense ao impetrar estes princípios seria a de que a filosofia deveria se apoiar na lógica moderna, derivada de Frege e Russell, e reduzir-se a análise lógica da linguagem excluindo consequentemente todas as preocupações bem como todos os enunciados metafísicos que, na sua visão, são desprovidos de sentido, devido à impossibilidade de serem afirmados e verificados empiricamente. Assim, para o empirismo lógico, toda afirmação que se pretenda como portadora de conhecimento deve ser uma exclusiva afirmação da realidade, ou seja, esta afirmação converte-se em enunciado linguístico indicativo de fatos empíricos. Na sua compreensão existem alguns saberes que deverão ser rechaçados no ambiente epistemológico, o principal deles é a metafísica. Dentre os defensores mais aguerridos desta linha de pensamento destacam-se Morris Schilic, Otho Neurath e mais intensamente Rudolf Carnap. A doutrina destes novos empiristas, apesar de algumas variações, reza que o critério verificacionista é o único legítimo para a ciência. Os pensadores do Círculo de Viena tomam esse critério correspondencial e reducionista como condição da autonomia da filosofia e da ciência frente a qualquer outra forma de saber. Neste verificacionismo, podem ser rastreados os enunciados factuais como um procedimento que recorre única e exclusivamente à experiência e aos fatos. Anotemos ainda que a doutrina reducionista compreenda como ciência somente o exercício lógico-linguísta e lhe nega quaisquer traços metafísicos, históricos, contextuais e pragmáticos. 61 Como ressalvamos essa forma correspondencial de pensar denota crença numa redução, ou seja, na sustentação empírica dos enunciados lógicos "o que diz a teoria verificacional é que os enunciados são sinônimos se e somente se são semelhantes no que diz respeito ao método de infirmação ou confirmação empírica” (QUINE, 1980, p. 248), e, este tipo de reducionismo é para a compreensão de W. O. Quine um exercício inatingível, impraticável, e por isso nunca poderá ser completado, devido às dificuldades de ajustamentos entre um e outro; pela insuficiência dos próprios enunciados lógicos para sinonimarem toda experiência empírica. W. O. Quine, por não entender e até duvidar de como ocorre essa redução, ou por desconfiar do processo que estabelece as relações de similaridade entre os enunciados lógicos e sua ratificação empírica, pergunta pela “natureza da relação entre um enunciado e as experiências que contribuem para sua confirmação ou que a prejudicam” (QUINE, 1980, p. 249), e, insatisfeito com esta espécie de ‘subtraimento epistemológico’ faz uma ríspida apreciação a ele, onde vai criticar o reducionismo radical, reducionismo que no seu entendimento almejava crer absurdamente e até “ingenuamente” numa vinculação direta entre enunciado e experiência. Observamos que às vezes a questão é tratada de forma irônica: “um termo, para ser de algum modo significante, deve ser ou o nome de um dado sensível, ou um composto de tais nomes, ou uma abreviatura de tal composto?” (QUINE, 1980, p. 249); há um julgamento apontando que em todo este procedimento reducionista estão assinalados, constantemente, fortes sinais de vagueza e ambiguidade, o que lhe torna arbitrário. Consequentemente deve-se contestar sua legitimidade. Entretanto, o que se observa é que mesmo com os ataques quineanos a esse projeto de redução, ao menos início do século XX ele se sobressai e se intitula como capaz de responder sobre a ciência. Notamos ainda que W. O. Quine identificava uma compreensão desse reducionismo até mesmo em Bertrand Russel, porque este filósofo admitia que: O veículo primário do significado passou a ser visto não mais no termo, mas no enunciado (...) esta reorientação forma a base do conceito de Russel de “símbolos incompletos definidos no uso” e é também explícita na teoria verificacional do significado, pois que os objetivos da verificação são enunciados (QUINE, 1980, 249). Entendemos também que Rudolf Carnap, seu grande mestre, se comprometeu com a defesa desse projeto reducionista com intensidade, mas é possível se capturar algumas diferenças em seu empreendimento quando se constata que “a linguagem adotada por Carnap 62 como ponto de partida não era uma linguagem de dados sensíveis, no sentido mais estrito concebido” (QUINE, 1980, p. 250) o sentido era inverso, a linguagem a qual Carnap adere efetivamente “incluía também as notações lógicas, ao nível mais elevado da teoria dos conjuntos, efetivamente incluía toda linguagem da matemática pura” (QUINE, 1980, p. 250). Para W. O. Quine, Carnap se utiliza de toda sua engenhosidade de pensamento para definir muitos conceitos sensoriais, para construir enunciados sobre o mundo físico e para reduzir a ciência a termos da experiência imediata. Contudo, Carnap não consegue realizar tal tarefa, mas apesar de incompleta, e mesmo que seja inviável, sua iniciativa deve ser avaliada como um grande feito filosófico. O dogma do reducionismo, segundo o entendimento quineano, ainda reverbera e tem tido implicações direta na filosofia contemporânea. No seu entendimento ele pode ser localizado quando em algumas áreas do conhecimento ainda permanece aceitável a “suposição de que cada enunciado, tomado isoladamente de seus companheiros, pode admitir confirmação ou infirmação de algum modo” (QUINE, 1980, p. 251). Essa prescrição, segundo suas orientações, deve ser rejeitada, esse princípio metodológico deve ser refutado no ambiente epistemológico por não conseguir atingir o que se propõe. Quanto a tudo isso W. O. Quine irá contrapor sua tese do holismo semântico. Após enfrentar o problema da redução, o que se passa a localizar na filosofia de W. O. Quine, ao contrário da perspectiva carnapiana e de seus companheiros vianenses, é a defesa implacável de um holismo, ou seja, passa-se a advogar a tese de que os enunciados sobre o mundo exterior passam pelo tribunal da experiência, sempre num corpo organizado, nunca isolado, e que podem e devem ser revisados frequentemente. Ainda sobre os dois dogmas, conclui W. O. Quine em seu célebre texto: É um disparate falar de um componente linguístico e de um componente factual da verdade de qualquer enunciado particular. Tomada globalmente, a ciência tem sua dupla dependência para com a linguagem e a experiência (QUINE, 1980, p. 251). A separação canônica não se sustenta, a verdade de todos os enunciados exige uma revisão, e esta só pode ocorrer numa perspectiva holista. Contudo, o julgamento quineano é passível de retaliações e críticas, a divisão analíticosintética ainda reverbera. Quanto as suas censuras ao significado, nem todas são aceitas sem contestações. W. O. Quine recebe alguns julgamentos no que se refere à sua crítica contra os dois dogmas. Pergunta-se se a partir de seus ataques ter-se-ia definitivamente banido da 63 filosofia o dualismo analítico-sintético? E observa-se que ele ainda resiste. Indaga-se se seu holismo naturalista daria conta das querelas epistemológicas com as quais se comprometeu? Entende-se que o holismo também é alvo de críticas. Percebemos que alguns autores se voltaram contra as críticas impetradas ao empirismo pelas mãos de Quine, podemos citar um seu contemporâneo Donald Davidson34 e uma crítica mais recente feita por Laurence Bonjour35, ambos identificam algumas limitações na epistemologia quineana. Se W. O. Quine se volta para analisar o convencionalismo na linguagem a quem diga que ele assuma ao menos parcialmente esta perspectiva: Se seguirmos a argumentação de Naumann, devemos concluir que o convencionalismo em Quine pode ser localizado justamente em sua afirmação de que todo enunciado apresenta algum aspecto convencional além de seu aspecto empírico, de sua relação com evidências empíricas. Porém não é sustentável, segundo a argumentação de Quine, como, por exemplo, em “Truth by convention”, defender a existência de enunciados puramente convencionais (STEIN, 2003, p.200) No entanto entendemos que a crítica aos dois dogmas do empirismo funciona em W. O. Quine somente como um exercício de expurgação e ou eliminação de alguns equívocos, exageros e pretensões arbitrárias, existentes no âmago das teses empiristas. E passa também pela necessidade de se examinar e criticar a sinonímia e o apriorismo na linguagem. Mas compreendemos que não seja aconselhável dizer que este filósofo americano refuta a plausibilidade do empirismo. Todos percebem que ele permanece sendo um dos defensores dessa doutrina, todavia recomendando sempre doses moderadas em seu uso. Sua defesa é de um tipo de empirismo sopesado, aquele que ainda aceita crê no potencial da evidência para justificar nossas crenças e fundamentar todo tipo de conhecimento, mas prescreve-lhe uma constante revisão, ou seja, a evidência deve 34 A posição de Donald Davidson é como segue: “sugiro que abandonemos a ideia de que o significado ou o conhecimento se fundamentem em algo válido, em última análise, como fonte de evidência. Sem dúvida, o significado e o conhecimento dependem da experiência e esta última, por sua vez, em última análise da sensação. Mas trata-se de um “depender” da causalidade, não aquele da evidência ou justificação”. Ao contrário de W. O. Quine Donald Davidson alega que a maior parte de nossas crenças são verdadeiras e essa razão é que uma crença é por sua própria natureza verídica, afirma ele: “sustento primeiramente, com insistência que a compreensão correta do discurso, das crenças, dos desejos, das intenções e outras atitudes de uma pessoa conduz a conclusão de que a maior parte de suas crenças deve ser verdadeira e que podemos legitimamente presumir que cada uma tomada em particular é verdadeira, desde que seja coerente com um conjunto de crenças conhecidas da pessoa em questão(...). A única coisa que é necessária de se reconhecer é que a crença é por sua natureza verídica”. Conferir SPARANO, 2003, p. 143-144. 35 Em “contra a epistemologia naturalizada” Laurence Bonjour alveja a epistemologia quineana e lhe faz severas críticas, em algumas passagens ele afirma que esta filosofia é autodestrutiva e se for levada a sério deixa a própria filosofia em apuros. Ele sugere que nem “deveríamos supor que Quine propôs uma epistemologia (...) conclui que o argumento original de Quine fracassa”, p. 173-202. 64 frequentemente se submeter a um conjunto de outras crenças existentes numa rede de crenças; a evidência está frequentemente online e é assim que deve ser revisada e entendida. Nesta perspectiva filosófica, se defende que a evidência deve suportar passar por uma experiência holista, pragmática e só esta prova permitirá que os indivíduos possam inferir com alguma segurança sobre a mesma, sobre o mundo exterior e sobre si mesmo. Assim, pensamos que deve ficar sempre manifesto o fundamento de onde este pensador retira as armas que compõe sua epistemologia e mais precisamente, que fique claro a que doutrina ele anseia se filiar. É uma epistemologia naturalizada, aquela que tem por base a experiência e o método empírico que este autor visa dar robustez; logo, suas críticas devem ser entendidas como uma tarefa de melioramento do empirismo jamais como sua impugnação. 3.4 - O aprendizado de uma linguagem. A tese do aprendizado de uma linguagem se constitui em um elemento imprescindível do seu sistema filosófico; reconhecemos que ao desenvolver sua explanação desta tese este pensador põe em movimento praticamente todas as categorias que dão corpo a sua epistemologia. Destarte, se compreendermos como na visão quineana ocorre a apreensão de uma linguagem, se igualmente capturarmos todas as dificuldades que ocorrem na tradução de uma língua totalmente desconhecida (tarefa indeterminada conforme entende W. O. Quine) estaremos diante de uma série de elementos que, combinados, nos propiciarão um entendimento razoável do que seja esta epistemologia. Contrapondo-se a alguns pensadores do círculo da filosofia da linguagem, dentre eles Chomsky36, W. O. Quine afirma ser esta uma arte social. Esta sua acepção pode ser apreendida imediatamente no prefácio de sua obra mais importante Palavra e objeto: A linguagem é uma arte social. Ao adquiri-la, nós dependemos inteiramente das indicações disponíveis intersubjetivamente do que dizer e quando dizer. Assim, não há justificação para cotejar significados linguísticos, a não ser em termos das disposições dos homens a responder publicamente a estimulações socialmente observáveis (QUINE, 2010, prefácio, p.01). 36 Sofhia Stein, na apresentação da obra de Quine “Palavra e objeto” em 2010, afirma que Chomsky discute com W. O. Quine sobre a necessidade de supormos traços inatos determinantes de nossa gramática e desafia o mesmo afirmando que este tem de supor certas formas gramaticais inatas para poder explicar o comportamento verbal dos falantes. 65 Assim, para se aprender uma linguagem, nos moldes quineanos, os indivíduos passam por etapas bem definidas no interior de uma estrutura social. Estas etapas seguem inicialmente um procedimento behaviorista, onde a criança está vinculada a presença de estímulos físicos e se desenvolvem para fases mais complexas, caracterizada por substituições, ações intersubjetivas e públicas e, invenções. Na primeira destas fases sobrevêm respostas aos estímulos físicos e verbais onde os indivíduos são incitados sensorialmente por objetos do mundo físicos e respondem a estes inicialmente com um balbuciado e posteriormente, quando consegue identificar e diferenciar objetos e coisas, com um enunciado. Este enunciado se amplia nas relações que os indivíduos estabelecem com seu meio, ele é sempre produto da intersubjetividade, ou seja, passa pela aprovação ou reprovação do grupo ou do ambiente onde o indivíduo está sendo iniciado. A linguagem é, nesta fase, um produto desse processo de estímulo-resposta. Esta primeira etapa da aprendizagem passou a ser reconhecida como a fase behaviorista da epistemologia quineana, mas corresponde somente a uma pequena parcela do aprendizado. Identificamos que W. O. Quine utilizou como procedimento metodológico inicial o behaviorismo, tanto para explicitar o início do processo que demonstra como uma criança aprende sua língua materna quanto como uma fase importante na elaboração de sua tese da indeterminação da tradução, que explanaremos mais tarde. A segunda fase da aprendizagem de uma linguagem foi denominada de “substituição por analogias”, nesta os indivíduos frequentemente desenvolvem a capacidade de substituir termos de maneira concreta como nos enunciados de observação, ou de forma abstrata, utilizando-se do princípio da analogia. Nesta fase ainda é perceptível uma conexão com estímulos sensoriais. Ou seja, mesmo na segunda etapa deste aprendizado só é possível realizar um intercâmbio entre os termos tendo uma base empírica como referência. A terceira fase do referido processo, onde os enunciados já não são subprodutos diretos de estimulações físicas e verbais, é conhecido como “a interanimação das frases”, é a fase da criação e da inventividade, nesta os enunciados passam a responder a uma cadeia de enunciados, que se constitui numa teoria científica ou do senso comum, Não que todas ou a maioria das frases sejam aprendidas como totalidades. A maioria das frases é, ao contrário, construída a partir de partes já aprendidas, por analogia com a maneira pela qual tais partes foram vistas previamente ocorrer em outras frases, que podem ou não terem sido aprendidas como totalidades. Quais frases podem ser alcançadas por tal síntese analógica, e quais são alcançadas diretamente, é uma questão da própria história esquecida de cada indivíduo (QUINE, 2010, p. 30). 66 Compreendeemos que neste terceiro passo ocorre a associação entre frases. Acontece a elaboração de frases novas a partir de frases velhas e, também é comum que os estímulos não verbais tenham o poder de suscitar frases, provando que a linguagem transcende a qualquer tipo de fenomenalismo e ou fisicalismo. Os enunciados sobrevindos da interanimação entre frase são os chamados enunciados teóricos ou abstratos. Esta é a fase do ultrapassamento da empiria. Estes enunciados abstratos são geralmente forjados da relação dialógica que os indivíduos passam a vivenciar no interior de suas redes verbais, ali serão testados todos os dados internalizados nas primeiras etapas do processo e ocorrem também os entendimentos e ajustes quanto às crenças de cada um dos interlocutores. Nestes acordos há um tipo de suposição necessária para que o processo não se quebre: um interlocutor precisa pressupor que seu modo de ver o mundo é acessado de alguma maneira pelo outro. Eles necessitam vê o mundo de um jeito similar. No entendimento de W. O. Quine é preciso que se aposte na efetividade desta conjectura para que se desenvolva uma linguagem. Sugerimos que tal processo venha decisivamente se efetivando na história da humanidade, porque permanecemos cotidianamente nos entendendo ou pelo menos idealizamos que isto esteja acontecendo. No terceiro passo, W. O. Quine faz ainda uma interessante distinção entre o que ele chama de “frases de ocasião como - havia cobre nelas, verdadeiras para cada uma das ocasiões experimentais” (QUINE, 2010, p. 34) e o que nomeou de “frases eternas como “óxido de cobre é verde, verdadeiras sempre” (QUINE, 2010, p. 34). Quanto ao problema da aprendizagem de uma linguagem há ainda uma questão que precisamos elucidar de forma mais satisfatória. Como já fora mencionado por nós, há um componente behaviorista na epistemologia quineana, mas como o uso deste dispositivo é somente metodológico e restrito, parece não legitimar, pelo menos em grau, um rótulo de behaviorista que alguns pensadores conferem insistentemente a W. O. Quine. A título de esclarecimento, o behaviorismo é apreendido como uma corrente de pensamento da psicologia contemporânea que define a psicologia exclusivamente como o estudo do comportamento, eliminando toda referência à consciência e ao que não pode ser observado e descrito em termos objetivos. Como psicologia, o behaviorismo tem como teses centrais o reflexo condicionado, ou seja, a crença de que um processo do tipo estímulo-resposta garante a produção de conhecimento e, a confiança de que não é possível falar cientificamente daquilo que escapa a qualquer possibilidade de observação objetiva. Na sua acepção clássica vincula-se ao 67 pensamento de Pavlov e Watson. Em nossos dias é uma doutrina ainda aproveitada, pelo menos de forma mitigada, por algumas correntes psicológicas e filosóficas. Ao ler as obras de W. O. Quine constatamos que o traço behaviorista ali presente tem uma função metodológica importante, mas específica e restrita. Este estratagema pode ser delineado como o elemento que torna possível a fase inicial do processo de aprendizagem de uma linguagem, bem como pode ser identificado como aquele artifício ao qual um tradutor de uma língua desconhecida se apega quando pretende realizar um trabalho de tradução. Quanto ao processo de tradução o behaviorismo é correspondente à observação do comportamento dos falantes, numa circunstância dada, onde este gera a inferência imediata de um termo. E no tocante ao processo de aprendizagem, ele corresponde ao que se pode nomear como um ato de estímulo que continuamente afeta as terminações nervosas de um indivíduo, irritando suas superfícies e gerando um anunciar, um dizer algo de algo. Logo, como frequentemente nenhum empreendimento humano termina imediatamente após o seu início, esse passo behaviorista carece de acréscimos para poder completar sua ação plenamente. A observação do comportamento dos falantes, a relação estímulo-resposta que gera a produção de enunciados e uma linguagem imediata é essencial, diria imprescindível para o desencadeamento de uma série de assentimentos complexos sobre o mundo, mas não têm o poder de deliberar, sozinha, com precisão, sobre o que seja de fato o mundo exterior. Destarte o behaviorismo reutilizado por W. O. Quine é peça inicial de um jogo linguístico e constitui-se somente em um primeiro passo de seu procedimento. Julgamos que esta etapa ‘fisicalista’ deva corresponder ao que este filósofo chama de “irritações de superfície” 37 e estas deverão necessariamente ser acrescidas de uma série de outros elementos para alcançar o ápice de uma linguagem desenvolvida. É obvio que sem começo não há meio nem fim, e deste modo as “irritações de superfície" desencadeiam direta e indiretamente a produção de uma linguagem, de uma teoria, mas, este começo definitivamente não delimita nem constitui um todo, segundo o que se entende na iniciativa quineana. Daí nossa disposição em apresentar a epistemologia quineana para além de um behaviorismo e afirmar que este componente localiza-se tão somente na periferia de sua epistemologia, jamais no âmago. Entendemos que se somando a esta etapa primeira, behaviorista, deve ser encontrado, naquele ato, o que se tem nomeado de pragmatismo 37 Esta expressão aparece várias vezes no capítulo I de “Palavra e objeto” referindo- se a uma etapa superficial, primeira, dos processos linguísticos e científicos. 68 semântico. Cremos não haver dolo em dizer que W. O. Quine assumiria uma linhagem pragmática, ele mesmo nos assevera disso: Carnap, Lewis e outros tomam uma posição pragmática na questão da escolha entre formas linguística, ou estruturas científicas, mas seu pragmatismo se detém na fronteira imaginada entre o analítico e o sintético. Repudiando tal fronteira, esposo um pragmatismo mais completo. A cada homem é dada uma herança científica mais um contínuo fogo de barragem de estimulação sensorial; e as considerações que o guiam na urdidura de sua herança científica para ajustar suas contínuas incitações sensoriais são, quando racionais, pragmáticas (QUINE, 1975, p. 254) Mas, também pode existir em W. O. Quine o que muitos classificam como um naturalismo semântico, ou o que outros denominam como um realismo naturalista, enfim, todas estas alternativas estão ainda em pleno debate e, nos auxiliam agora a assentir que a epistemologia quineana ultrapassa o behaviorismo e, que a aprendizagem de uma linguagem bem como a tradução extrapola abundantemente a este estágio. O discurso transcende a evidência, entretanto esta permanece sendo o único recurso confiável; recurso que apesar de falível e revisável permanece sendo aquele no qual todo indivíduo precisa se apoiar. E na prática é isto que vem acontecendo uma vez que a comunicação é um fenômeno humano que não cessa. 3.5 - A indeterminação da tradução e a inescrutabilidade da referência. Algumas doutrinas filosóficas teriam levado W. O. Quine a tese da indeterminação da tradução. Entendemos que existem elementos que teriam originado e provocado seu desenvolvimento. Um deles pode ser a filosofia da ciência de Pierre Duhem38 onde se encontra uma tese convencionalista que entre outras coisas afirma que não há somente um sistema teórico verdadeiro para se dizer o mundo, e que, ao contrário, podem-se elaborar diversos sistemas com este mesmo objetivo 38 39 . Isto teria instigado e inspirado a formulação Pierre Duhen foi um importante físico francês, historiador da ciência, dono de uma vasta bibliografia dentre elas “A teoria física: seu objeto e sua estrutura”, de 1906, obra onde defende um convencionalismo moderado; nesta obra “há também o antagonismo (...) aos modos mecanicistas de explicação, a que contrapõe uma concepção holística das teorias científicas; a ordem global em que estas incrustam e inscrevem os dados observacionais impede que as proposições empíricas singulares se possam testar de forma isolada. Tal aferição só pode acontecer em conjunção com outras exigências teóricas e outras hipóteses auxiliares” (DUHEN, 2008, p. 03). 39 A tese convencionalista fundamental defende que não há apenas um sistema teórico verdadeiro acerca do mundo, mas a possibilidade de construção de múltiplos sistemas. Pierre Duhem explica essa possibilidade quando descreve em que consiste propriamente uma teoria da física. Toda teoria física é um sistema simbólico que não é um “relato fiel” ou um “equivalente exato” da realidade ou dos fatos, e isto 69 de muitos preceitos da epistemologia quineana resultando mais especificamente no W. O. Quine irá propor como indeterminação da tradução. Querendo demonstrar a questão da indeterminação da tradução e provar que estamos sempre limitados a adaptar qualquer esquema conceitual alheio ao nosso próprio padrão de esquema conceitual W. O. Quine sugere que acompanhemos o exemplo da tradução radical que ele elabora. Recuperemos com nossas palavras o caso dos linguistas tão citado por este autor: dois linguistas, para aprender a língua de uma tribo recém descoberta – língua esta que os linguistas em questão não têm qualquer afinidade – contam apenas com dados observacionais do comportamento das pessoas da tribo no momento em que estão praticando a linguagem. Num primeiro instante um dos linguistas usa a técnica de reunir termos nativos para designar objetos que são observados ao redor, pois é o único meio que ele tem disponível, é uma tentativa. W. O. Quine supõem que os membros da tribo utilizam um determinado termo “gavagai” sempre que há um coelho presente em sua frente. Um dos linguistas decide traduzir tal termo por – “coelho”, no entanto, o outro linguista companheiro, elaborando outro manual de tradução, um pouco mais rigorosa, pode traduzir a dita expressão gentílica por: -“Eis aí um coelho” ou “Aí temos um coelho ou ainda” – “Ei! Um coelho” e por fim – “Ei! Coelhice de novo”, (QUINE, 1975, p. 123). Observa-se que há linguista mais exigente, detalhista e perspicaz. Como é o segundo caso aqui. Diante dessa lista de alternativas concorrentes de tradução (que como notamos, partiram do mesmo dado, mas achegaram a conclusões conflitantes) como se pode chegar a uma decisão sobre a melhor versão ou a uma tradução correta? Nos alerta W. O. Quine: É difícil dizer de que outra maneira se pode falar, não porque nosso padrão objetivamente seja um traço invariável da natureza humana, mas porque estamos limitados a adaptar qualquer padrão alheio ao nosso próprio padrão, no mesmo processo de entender ou traduzir as sentenças alheias (QUINE, 1975, p.51). pode ser demonstrado primeiramente pela própria natureza da linguagem e da realidade. A linguagem é um conjunto de símbolos que esquematizam fatos ou acontecimentos, não os reproduzem fielmente. Há um tipo de limitação essencial à linguagem enquanto universo simbólico de representação em relação à realidade. Essa limitação faz com que toda descrição ou explicação de fatos seja apenas “aproximada.” A linguagem esquematiza a realidade. Nas experiências da física, já mediadas por um alto grau de teoria, pode-se observar que ‘muitos fatos concretos’ podem corresponder a um mesmo enunciado simbólico, ou, dito de outra maneira, um mesmo conjunto de fatos concretos pode corresponder a uma infinidade de juízos diferentes e logicamente incompatíveis entre si. Esta consideração pode ser encontrada em Sophia Stein, 2003, pp. 185–203. 70 Como vimos, o único critério que os dois têm em mãos, é o da evidência empírica, visto que quando os linguístas entram em contanto com os nativos a única ferramenta que têm a disposição é a observação direta do comportamento dos mesmos, daí a desordem para se chegar a algum acordo: Quine toma como base apenas os dados e as descrições físicas do ambiente do locutor, assim como as descrições das emissões de palavras do falante alienígena exposto a estímulos sensoriais. Quine se atém unicamente a descrições de dados de ordem física do falante e não descrições psicológicas ou semânticas, porque quer reconstruir a noção de significado somente a partir de dados comportamentais (SPARANO, 2003, p.76). E assim sendo, podemos ter todas as traduções possíveis e incompatíveis entre si. O que fazer? Como efetivar uma boa escolha entre traduções? É possível decidir, ou melhor, é presumível uma decidibilidade? Com base em que critérios? O ato de decidir quanto à tradução parece implicar um alto grau de falibilidade. Para que se possa resolver, ou ao menos amenizar o problema a respeito das variadas possibilidades de traduções precisamos, segundo pensa W. O. Quine, de um aparato de “identidade” e “quantificação”, pois simplesmente não podemos decidir por falta de evidência (ou por insuficiência desta). Diz ele: Dado que uma sentença nativa diga que um tal e tal está presente e dado que a sentença seja verdadeira quando e somente quando um coelho está presente, de nenhum modo se segue que os tais e tais sejam coelhos. Eles poderiam ser todos vários seguimentos de coelhos, precisamos de algo como o aparato de identificação e quantificação: donde muito mais de que nós próprios estamos em condição de utilizar numa linguagem em que nosso ponto alto, mesmo para datar, é a Anunciação de coelhos (QUINE, 1975, pp. 52-53). Este aparato de identificação e quantificação permitirá que o linguista mais rigoroso consiga, ao máximo, traduzir anunciações simplórias de eventos correntes observáveis. Contudo, deve-se requerer dele, no mínimo, um manual de instrução que permita construir, aproximadamente, uma sentença nativa que corresponda (também de modo aproximado) a qualquer nova sentença de tal língua. Se for cumprida esta tarefa, o linguista terá como decidir quais expressões nativas faz referência a objetos, e, pelo menos de forma limitada, a que espécie de objetos elas se referem. Entretanto, ele terá que decidir como adequar expressões idiomáticas de identidade e quantificação de sua língua (de seu esquema conceitual) na tradução de expressões nativas, e esse ato de deliberar só poderá ser feito de 71 modo arbitrário, o que na epistemologia é sempre um dilema. Conforme nos dita W. O. Quine: A palavra “arbitrário” precisa ser acentuada, não porque essas decisões sejam totalmente arbitrárias, mas porque elas o são tão mais do que se tende a supor. Pois que evidencia tem o linguista? Ele começou com o que podemos chamar de sentenças nativas de observação, tais como a anunciação de coelhos. Essas, ele pode dizer como traduzi-las em português, desde que não atribuamos nenhuma relevância às diferenças entre um coelho aqui, Coelhice aqui e outras tais. Ele pode também registrar outras sentenças nativas e estabelecer se pessoas variadas estão preparadas para afirmá-las ou negá-las, ainda que não descubra nenhum movimento de coelho ou outros eventos correntemente observáveis aos quais ligá-las. Entre estas sentenças não traduzidas, ele pode obter uma indicação ocasional de conexões lógicas, descobrindo, digamos, que precisamente as pessoas que estão preparadas para afirmar A estão preparadas para afirma B e negar C. A partir daí cessam seus dados e principia sua criatividade (QUINE, 1975, p. 52). E assim o dilema parece não ter fim. Na segunda etapa da tradução, quando cessam os dados empíricos (quando se faz inferências, se elaboram os enunciados teóricos) o linguista só poderá empregar sua criatividade, estabelecendo assim, ele mesmo, conexões lógicas entre as sentenças da língua nativa. Esta é a fase da invenção incontrolada, ao dar esse novo passo, ele atribui funções às palavras, cria relações e isto permanecerá sendo uma tomada de decisão discricionária. Tudo isso ocorre, segundo adverte W. O. Quine, porque frequentemente estamos presos em esquemas conceituais e não há como não sê-lo, “um linguistas cauteloso é um linguista enjaulado” (QUINE, 1975, p. 52) e por consequência desse enjaulamento não se tem acesso ou não é possível determinar qual a melhor tradução, já que são várias as possibilidades de se traduzir uma sentença, todas sustentadas empiricamente, mas logicamente incompatíveis entre si. Chega-se a afirmar que este aprisionamento conceitual se dá inclusive no interior de uma mesma estrutura: A arbitrariedade da leitura de nossas objetivações no discurso gentílico reflete não tanto a inescrutabilidade da mente gentílica, mas o fato de que não há nada a escrutar. Mesmo nós que crescemos juntos e aprendemos português no mesmo colo, ou em colos adjacentes, por nenhuma outra razão falamos de modo semelhante senão porque a sociedade nos treinou de modo semelhante num padrão de resposta verbal a indicações exteriormente observáveis(QUINE. 1975, p. 53). 72 Ou seja, nas profundezas de uma mesma língua existem dificuldades reais de se inferir que se esteja de fato “falando a mesma língua”; afirmar uma mesmidade conceitual40 é pressupor sempre algo além do escrutável e consequentemente o linguista encontrar-se-á impedido de justificar arrazoadamente sua tradução. Ainda que não concordemos plenamente, é recorrente em W. O. Quine o fato de que estamos sempre amordaçados ao nosso plano conceitual, e de tal modo impedidos de compreender outros esquemas. Mesmo que este tenha sido somente um artifício metodológico utilizado por este filósofo para melhor disseminar sua tese, julgamos demasiado radical este assentimento quineano uma vez que sem essa capacidade exercício como este nosso exercício aqui seria impraticável. O problema da indeterminação da tradução deve nos conectar a outra questão quineana que é a inescrutabilidade da referência. Para esta questão espinhosa W. O. Quine destina especificamente dois capítulos de Palavra e objeto; no início do capítulo III- a ontogênese da referência- destaca-se em linhas gerais como este autor pretende tratar tal assunto: Nós vimos que a referência objetiva específica dos termos estrangeiros é inescrutável por meio do significado por estímulos ou outras disposições linguísticas correntes. Quando, em português, decidimos se um termo deve se referir a um só objeto inclusivo ou a cada uma de suas várias partes, nossa decisão está ligada a um aparato provincial de artigos, cópulas, e plurais que é intraduzível para línguas estrangeiras exceto de forma tradicional ou arbitrária indeterminada pelas disposições do discurso (QUINE, 1960, p. 113). Percebemos que duas questões permanecem prementes: a) primeiro a referência está imbricada com a aprendizagem de uma linguagem ou com seu uso dentro de uma língua e, está também ligada a questão da tradução entre duas línguas desconhecidas; b) que a inescrutabilidade permanece em ambos os casos e que a decisão para referir é frequentemente despótica. Assim como a observação do comportamento dos falantes é insuficiente para a tarefa de sinonimar também o é para referir. Percebemos que os indivíduos frequentemente não possuem as condições satisfatórias que lhes possibilite observar quantas descrições podem ser feitas de um termo ou de uma expressão, e como isto pode ser realizado. Estamos agora diante da compreensão quineana da referência e esta é tomada como algo inescrutável. Vejamos: 40 Quine se utiliza desta expressão repetidas vezes em “Falando de objetos”, 1975. 73 Referência, extensão, tem sido a coisa firme; significado, intensão, a coisa infirme. Entretanto, a indeterminação de tradução com o que nos confrontamos agora se entrecruza de modo semelhante com extensão e intensão. Os termos coelho, parte não destacada de um coelho e fase de coelho diferem não apenas em significados; eles são verdadeiros de coisas diferentes. A própria referência se mostra comportamentalmente inescrutável (QUINE, 1975, p. 72). Como sintetiza Vidal no texto abaixo: Assim como a observação do comportamento dos falantes não permite detectar univocamente o significado de uma expressão linguística, o mesmo ocorre com sua referência, dado que todo campo de observação admite infinitas descrições e que o conjunto dos campos de percepções disponíveis para análise de certo uso linguístico é limitado, as infinitas hipóteses possíveis nunca serão testáveis em sua totalidade (VIDAL, 1989, p. 55). O problema da referência no campo da linguagem, segundo a compreensão de W. O. Quine ocorre porque não se consegue fazer desaparecer as irregularidades e as indeterminações ligadas aquela. Isto tudo se deve a constância de sua vaguidade, ao dilema da ambiguidade e as dificuldades quanto à opacidade. Este seu exemplo é esclarecedor no tocante a vagueza da referência: “à medida que é deixado indeterminado o quão para baixo no espectro, em direção ao amarelo, ou para cima, em direção ao azul, uma coisa pode estar e ainda ser considerada verde, verde é vago” (QUINE, 1960, p.167). Neste sentido a indeterminação, a imprecisão prejudica a objetividade e deixa o ato de nomear recheado de lacunas; decidir, ou seja, afirmar ‘é verde’, conforme quer nos persuadir Quine, ecoa quase sempre como um dogma. Quanto à ambiguidade, ele afirma existir alguns tipos importantes, destacamos a “ambiguidade de termos”, onde se verifica que, “um termo pode ser ao mesmo tempo claramente verdadeiro de vários objetos e claramente falso deles” (QUINE, 1960, p. 170171) e, “ambiguidade de sintaxe” como no exemplo: “o violinista era miserável” onde tanto se pode aludir que o violinista fosse um indivíduo muito pobre em bens materiais quanto dizer que ele era um péssimo tocador de violão41. Em relatividade ontológica W. O. Quine realiza uma série de ilustrações para reafirmar os problemas da inescrutabilidade ligados à ambiguidade, acompanhemos o seguinte: Considerando-se a palavra alfa ou de novo a palavra verde. Em nosso uso dessas palavras e de outras como elas, há uma ambiguidade sistemática. Às vezes usamos tais palavras como termos gerais concretos, como quando dizemos que a grama é verde, ou que alguma inscrição começa com um alfa. Às vezes, por 41 Pode-se conferir essa ilustração completa e mais exemplos sobre a ambiguidade da sintaxe em “Palavra e objeto”, p. 177. 74 outro lado, usamo-las como termos singulares abstratos, como quando dizemos que verde é uma cor, que alfa é uma letra. Uma tal ambiguidade é encorajada pelo fato de que não há nada na ostensão para distinguir os dois usos. O ato de apontar que seria feito ao ensinar o termo geral concreto verde ou alfa não difere em nada do ato que seria feito ao ensinar o termo singular abstrato verde ou alfa. Porém os objetos a que se refere a palavra são muitos diferentes nos dois usos; num uso, a palavra é verdadeira de muitos objetos concretos e, no outro uso, ela nomeia um objeto singular abstrato (QUINE, 1975, p. 73-74). Com a ilustração acima fica evidente que pela dificuldade de se apontar, distinguir e escolher com firmeza entre um termo geral e um termo singular abstrato, a ambiguidade se instala e consequentemente se dá a inescrutabilidade. Já quando se ocupa da opacidade referencial W. O. Quine irá contrapor crenças opacas versus crenças transparentes e, irá identificar a relação entre opacidade e termos indefinidos apontando para o problema da opacidade de alguns verbos como: caçar, procurar, desejar, querer. Estes verbos, antes de definir uma ação, ‘indefinem’. Ou seja, seu grau de opacidade é tamanho que confundem e inebriam a qualquer um pelo nível de sombra ao qual estão envoltos. Com efeito, W. O. Quine quer nos forçar a concluir que a impossibilidade de traduzir vincula-se também ao problema da correferenciabilidade. E, assim como estamos aprisionados em redes conceituais, estamos também limitados a instituir a referência de um termo; como não adquirimos a competência de controlar nem a quantidade em que um termo pode ser empregado nem as circunstâncias do seu uso, consequentemente jamais se chegará às condições suficientes para referí-lo sem falha. Contudo, sentimos a necessidade de perguntar a W. O. Quine se num determinado contexto, onde se esteja guiado por um bom léxico esta tarefa seja assim tão impossível, sugerimos que de algum modo na prática isto é o que tem funcionado. Mas ele não acreditava nessa possibilidade. A formulação de uma correferenciabilidade pressupõe a crença na mesmidade conceitual, tanto no que se refere a uma tradução entre línguas diferentes, quanto na compreensão da linguagem gentílica, ou seja, esta mesmidade supõe que expressões portuguesas significam a mesma coisa quando se pode intercambiar uma pela outra em qualquer situação ou contexto aproximado. Porém, mais uma vez questiona W. O. Quine: Pode um empirista falar seriamente de mesmidade conceitual de duas condições para um objeto x, um enunciado na linguagem gentílica e outra na nossa, mesmo quando a singularização de um objeto x como objeto, simplesmente, para a linguagem gentílica é tão irremediavelmente arbitrária? (...) o fato é que não vejo 75 esperança alguma de conferir-se sentido razoável à mesmidade de significado (Quine, 1975, p. 62-62). Concluímos que nesta perspectiva epistemológica fazer alusão de um termo é sempre uma tarefa engenhosa, mesmo no interior de uma língua. Ou seja, “para uma reflexão mais profunda, a tradução radical começa em casa” (QUINE, 1975, p. 78). Nesse exercício se dependerá sempre de um emaranhado de frases, de uma teoria de mundo ou de uma teoria científica. E assim sendo, fora de uma rede verbal ou linguística não se pode afiançar verdadeiramente se uma palavra nomeia um referente. Contudo arremata W. O. Quine: Insistir em que poderíamos conhecer as condições estimulatórias necessárias e suficientes de cada ato possível de proferição numa língua estrangeira e, ainda assim, não saber como determinar em que objetos os locutores a insegurança quanto a referir um termo daquela língua acreditam. Ora, se a referência objetiva é tão inalcançável à observação, quem poderá dizer, com razões empíricas, que a crença em objetos desta ou daquela descrição está certa ou errada? Como poderá alguma vez haver evidência empírica contra enunciados existenciais? (...) concedamos que um conhecimento das condições estimulatórias apropriadas de uma sentença não estabelece como interpretar a sentença em termos de existência dos objetos. Ainda assim, ele tende a estabelecer o que se há de contar como evidência empírica a favor de ou contra a verdade da sentença (QUINE, 1975, p. 56). Dizendo de maneira até redundante, para se realizar tal tarefa deverá se examinar a evidência ou um termo sempre conectado a um plano contextual, pragmático. 3.6 - Holismos quineanos: a fusão entre holismo semântico e holismo epistemológico. Mais uma vez invocamos um argumento da filosofia de Pierre Duhen para retirar dele uma possível inspiração para W. O. Quine: O convencionalismo de Duhem se sustenta sobre a assertiva de que qualquer experiência da física nunca pode condenar uma hipótese isolada, mas somente todo um conjunto teórico, ou seja, de que toda teoria não é uma representação exata de uma realidade subjacente de tal forma que suas hipóteses correspondam cada uma isoladamente a determinados fatos. Pelo contrário, uma teoria explica a realidade de tal maneira que não se possa dizer exatamente a quais fenômenos correspondem seus juízos. Assim, uma certa experiência, elaborada para testar os juízos da teoria, ela própria já altamente teórica, não testa apenas uma hipótese da teoria, mas, assim como é o resultado de um conjunto de pressuposições teóricas relacionadas a outras pressuposições teóricas na teoria, também testa a teoria como um todo, como um todo de enunciados semanticamente relacionados entre si. (STEIN, 2003, p. XXX). 76 A esta altura já é sabido por todos nós que a observação empírica do comportamento dos falantes é importantíssima para W. O. Quine, todavia sabemos igualmente que ela não garante a certeza de um significado, ao contrário, este estará sempre passível do mal da indeterminação porque a inescrutabilidade de um termo é uma doença crônica. Contudo, deve haver alguma garantia que corrobore o que ainda seja dizer que ‘x significa y. E, se a noção de significado não se prende inteiramente a uma base empírica e transcende de algum modo a ela lhe superando, aonde então esta deverá ser ancorada? É ainda razoável que os indivíduos, em determinada circunstância indiquem alguma coisa como sinônima de outra? A tese do holismo semântico de W. O. Quine quer resguardar a possibilidade de um assentimento positivo quanto ao significado, mas devem-se reformular as condições que o tornarão possível: O holismo semântico pode ser sintetizado nas seguintes afirmações: a unidade de significado linguística é a totalidade da teoria cujo discurso uma expressão integra e não a sentença ou a um termo. Toda expressão, retirada do contexto a que pertence, não é significativa (VIDAL, 1989, p.54). Entendido deste modo, o significado é alguma coisa que só pode ser dado numa trama intersubjetiva onde se integram sentenças, como num jogo onde as peças só têm sentido se associadas umas as outras. O holismo sublinhado aqui visa garantir no todo o sentido de cada uma das peças que o compõe. As sentenças, na compreensão quineana não são, por sua própria natureza, verídicas, elas não possuem validade se tomadas em particular. É fácil identificar nessa filosofia da linguagem, uma coerência no que diz respeito ao problema do significado. Este pensador se mantém firme em todas as teses quanto à impossibilidade de se retirar da mente ou de qualquer outro lugar transcendente os significados e todo seu esforço se move para refutar tanto seus atributos apriorísticos quanto para negar a suficiência de seus conteúdos behavioristas. A ideia do holismo semântico é transferir para outro lugar a validade do ato de significar e, sua defesa se dirige para a existência de uma rede verbal, composta de sentenças que são como fibras, onde estas se reverberam em contato direto ou indireto com as irritações de superfície. Quanto ao holismo epistemológico, W. O. Quine entende que nossos enunciados sobre o mundo exterior não passam pelo crivo da experiência sensível isoladamente, mas sempre como um todo organizado. Essa asseveração deve ser compreendida como uma invertida quineana para reafirmar o holismo. Ocorre com os corolários da ciência um movimento similar ao que ocorre com os enunciados de uma linguagem. Não há validade isolada de uma 77 crença, assim como não ocorre com as sentenças de uma linguagem. A ciência, conforme entende W. O. Quine, opera através de um corpo comum de crenças, que se formam a partir das irritações de superfície, para poder falar sobre o real. É importante ressalvar como no interior desta teoria se entende o caminho que os indivíduos fazem até a ciência, Quine nos assegura que: Nós absorvemos uma arcaica filosofia natural com o leite de nossa mãe. A seu tempo, pondo-os a par na literatura corrente e fazendo algumas observações suplementares por conta própria, obtemos maior clareza sobre as coisas. Mas é um processo de crescimento e mudança gradual: não cortamos o passado, nem conseguimos níveis de evidência e realidade de um tipo diferente dos níveis vagos das crianças e dos leigos. A ciência não é um substituto para o senso comum, mas uma extensão dele (QUINE, 1995, p. 20). A tarefa que a ciência se impõe é especificar a realidade, dizer como ela é. A ciência quer descrever a estrutura da realidade como diferente da estrutura de uma ou outra linguagem tradicional. E assim, adverte W. O. Quine mesmo que se considere que “a noção de realidade independente da linguagem é transportada pelo cientista desde as primeiras impressões, mas a reificação fácil das características linguísticas é evitada ou minimizada” (QUINE,1995, p.25); e também que se defenda que “todo discurso é mera resposta às irritações de superfície” (QUINE, 1995, p. 25); e, ainda que se entenda que o senso comum arcaico já nos possibilitava de algum modo as noções de realidade e evidência, não se pode, na compreensão deste pensador abdicar das presunções da ciência. E não se pode fazê-lo porque a ciência é vista aqui como uma extensão do senso comum, a diferença está somente em sua apresentação mais técnica e sofisticada e, também porque o cientista é um homem mais cuidadoso e paciente que o leigo. Uma questão relevante é saber no que a ciência anda a frente do senso comum e quanto a isso W. O. Quine é categórico: A resposta numa palavra é “sistema”. O cientista introduz o sistema na sua pesquisa e no escrutínio da evidência. Além do que o sistema dita as próprias proposições do cientista: as mais bem- vindas são as que se pensa conduzirem à maior simplicidade da teoria como um todo. (QUINE, 1995, p.26). O que W. O. QUINE quer evitar é que se imagine a ciência como possuidora de um tipo de evidência que seja totalmente desconhecida pelo senso comum, ele quer esclarecer que não é esse o caso, e que a diferença se faz apenas pelo manuseio que o cientista faz das 78 evidências, e como se processa esse manuseio. O leigo toma-a sem conexões, o cientista tem em mãos um corpo interconectado de evidências e deve saber que só assim elas funcionam. Entretanto o problema da ciência, na concepção quineana é que ela pretende fazer um discurso ‘sobre’ o mundo, ou seja, seu desejo e pretensão é possuir uma linguagem sobre a realidade, o que se constitui, de certa maneira, numa iniciativa problemática uma vez que a realidade não é independente da linguagem como se requer; não há alguma coisa como linguagem e realidade separadas “o real é assentido, em primeiro lugar e antes de mais, como prévio a linguagem e exterior a nós (QUINE, 1995, p. 24). Mas esta maneira de ver está equivocada, conforme nos alerta Quine, há, ao contrário uma concomitância na apreensão. O holismo epistemológico se dá na mesma estrutura do semântico. Se sua análise semântica não abre mão da existência de uma rede verbal, no ambiente epistemológico deverá se presumir uma ‘rede epistêmica’ que dará validade a cada um dos postulados científicos, sempre resguardando a unidade do todo. A tese do holismo epistemológico quineano reza que uma sentença da ciência só é legítima se integrada, ou seja, é verdadeira e autêntica pelo seu nexo de pertencimento a uma teoria dada. Não há algo avulso. Uma crença científica disjunta do corpo que lhe confere força e objetividade, não é portadora de verdade. A ciência nesse sentido é sempre compreendida como uma rede de crenças. Em 1960 já é notória uma inquietação sua com este problema: Se existisse uma única melhor sistematização total X da ciência, conformável aos impactos nervosos da humanidade, passado, presente, futuro, de tal forma que nós pudéssemos definir toda a verdade como tal desconhecida X, ainda assim nós não deveríamos ter, desta forma, definido verdades para frases reais. Por derivação, nós não poderíamos dizer que qualquer frase simples S é verdadeira se ela ou uma tradução sua pertence a X, pois não há, em geral, nenhum sentido em igualar uma frase de uma teoria X com uma frase S dada a parte de X. A não ser que esteja bem firmemente e diretamente condicionada à estimulação sensorial, a frase S não tem significado exceto relativamente à sua própria teoria (QUINE, 1960, p. 48). Percebemos que nessa ocasião a preocupação com aspectos da linguagem é clara, mas o que termina aparecendo é uma estrutura de pensamento que será mantida quando emergem as discussões sobre a ciência. Em 1970 juntamente com Stephen Ullian W. O. Quine escreve Web of belief (rede de crenças) visando assumir definitivamente o problema do holismo de crença no ambiente da filosofia da ciência. Nesta obra eles fazem uma investigação sobre os aspectos dinâmicos da crença analisando preferencialmente a maneira como ocorrem as mudanças nas crenças e 79 como o agente formula estas crenças; neste estudo eles criticam e rejeitam sobremaneira as doutrinas anti-racionalistas. Constatamos nesse trabalho quineano um argumento a favor da tese do holismo epistemológico que está subliminar ao conceito de “teia de crenças” onde se pode rastrear a noção de que o conjunto de crenças de um agente não é instituto separado, desconexo ou sem relações, ao contrário, subjaz às crenças uma estrutura holista sem a qual nenhuma crença subsiste. Nesta obra The web of belief identificamos a importância das sentenças de observação na formulação das teorias científicas, ali se orienta mais uma vez que estas sentenças não se dão quando desacopladas de uma teia: Quando nosso sistema de crenças suporta nossa expectativa de algum evento e que o evento não ocorrer, temos o problema de selecionar algumas de nossas crenças convergentes para revisão. Isso é o que acontece quando um experimento é feito para verificar uma teoria científica e o resultado não é o que a teoria previu. O cientista, em seguida, tem de rever sua teoria de alguma forma. Ele deve voltar e rever uma ou outra crença de sua teoria, pelo menos, as crenças que juntos implicava a falsa previsão. Este é também o que acontece, menos formalmente, sempre que algo esperado não acontecer; somos chamados para voltar e revisar uma ou outra das crenças que, tomadas em conjunto, gerou a falsa expectativa – (QUINE e UILLIAM, 1970, capítulo II, tradução nossa) 42. Estas sentenças observacionais não são privadas ao agente, ao contrário, são necessariamente passíveis de serem testemunhadas por outros agentes. O que as tornariam verdadeiras seria exatamente aquelas situações onde várias pessoas lhe poderiam testar. Quando se afirma “há um gato sobre o tapete” várias pessoas podem conferi-lo, e é desejável que o façam, mas quando se diz ‘meu gato preto está no tapete’ afirma-se algo privadamente e por ser assim não se atinge as condições de uma sentença de observação; porque não se consegue acessar os conteúdos intencionais do agente ao formular este tipo de crença43. O testemunho, um dos elementos investigados em The web of belief, é algo relevante na linguagem e na ciência, quando se ouve uma frase de observação que descreve algo além da experiência que se vivencia, adquire-se uma evidência que o orador (que lhe anuncia) tem ao receber a estimulação apropriada para seu enunciado, mesmo quando que esse estímulo não 42 O original em inglês se encontra no início do Segundo capítulo de The web of belief: When our system of beliefs supports our expectation of some event and that event does not occur, we have the problem of selecting certain of our interlocking beliefs for revision. This is what happens when an experiment is made to check a scientific theory and the result is not what the theory predicted. The scientist then has to revise his theory somehow; he must drop some one or another, at least, of the beliefs which together implied the false prediction. This is also what happens, less formally, whenever something expected fails to happen; we are called upon to go back and revise one or another of the beliefs which, taken together, had engendered the false expectation. 43 Esta explanação encontra-se também esboçada no segundo capítulo da obra quineana The web of belief, de 1970. 80 chega até nós, podemos tê-lo pelo depoimento de outrem. W. O. Quine entende que esse mecanismo testemunhal, em princípio, é como uma extensão dos nossos sentidos. Constituise assim no primeiro e maior dispositivo humano para intensificar a observação; aprende-se também a partir da apreensão que os outros fazem em sua observação. Nesse sentido somos uma extensão do outro44. Com efeito, W. O. Quine considera que toda teoria transcende amplamente os dados experimentais e mais ainda, que uma teoria depende em grande parte dos dados culturais do contexto de onde emerge, considera também que qualquer observação científica ou do senso comum está profundamente impregnada pelo quadro conceitual e teórico no qual se realiza; e, reconhece do mesmo modo que não é possível distinguir, com precisão, em nosso discurso científico o que depende das constatações empíricas e o que deriva das sofisticadas construções teóricas dos cientistas. Deste modo os postulados da ciência só têm alguma salvação se apreciados ou entendidos numa perspectiva holista, só esta lhe conferirá alguma probabilidade e lhe dará a chance de manter o status especial alcançado ao longo dos anos. Julgamos que esteja presente nesta epistemologia um acasalamento do holismo semântico com o holismo epistemológico, e observamos que este pensador tramita da semântica à epistemologia sem nenhum constrangimento, ele assume isso sem pudor: “a epistemologia converte-se agora em semântica” (QUINE, 1975, p.102). Frases de um corpo linguístico passam a se assemelhar a sentenças de uma ciência ou vice versa, e assim W. O. Quine vai perpetuando a forma holista independente do conteúdo e consequentemente vai disseminado sua herança de Pierre Duhen45 por toda parte. 3.7 - Epistemologia naturalizada em W. O. Quine – a tradição abjurada. Historicamente a epistemologia tradicional tem como principal preocupação procurar saber sobre a força de nossas crenças sobre o mundo exterior e contar com algum tipo de verdade que justifique e valide estas crenças. Mesmo que não se tenha atingido isso todas as vezes, os empreendimentos da epistemologia visam dar conta de um conhecimento sobre o mundo. E ao menos parcamente tem se chegado a isso. 44 Conferir a primeira parte do capítulo V de The web of belief, 1970. A tese do holismo epistemológico ficou conhecida na epistemologia como tese Duhen-Quine. Pierre Duhen é um importante pensador que escreveu uma obra sobre a história da física como ciência natural e junto com W. O. Quine defendia uma perspectiva holista em resposta ao convencionalismo na ciência. 45 81 A epistemologia tradicional ocupa-se com os fundamentos filosóficos do conhecimento e do saber científico. Seu inquérito procura dar conta do problema da verdade, do significado, da legitimidade e da justificação do conhecimento científico. Frequentemente se tem crido na possibilidade de um fundamento a priori para nossos sistemas de crenças. Na filosofia, o debate acerca do conhecimento nos transporta a Platão, essencialmente à suas obras Teeteto e Menon, quando se afirmava nos diálogos protagonizados por Sócrates que conhecimento é crença verdadeira e justificada. A epistemologia se insere, portanto, num exercício filosófico que pode ser rastreado dos clássicos aos nossos dias. Em Descartes, Hume, Kant, nos iluministas, nos positivistas, nos neopositivistas é possível localizar inquietações quanto ao exercício de se produzir crenças, conhecimentos, verdades, certezas sobre o próprio conhecimento, sobre a ciência. É ponto pacífico até W. O. Quine que a epistemologia gerencia, de fora, o que seja o conhecimento e o que deva ser a ciência. O que há é o que tem sido descrito como uma teoria do conhecimento e uma filosofia da ciência. Como já afirmamos neste estudo, podemos indicar que a gênese de algumas teses quineanas estejam enraizadas na filosofia empírica de Hume e no empirismo lógico de Carnap e que de algum modo estes pensadores instigaram, em muitos aspectos, a proposta quineana para a epistemologia. Quando W. O. Quine realiza sua crítica ao empirismo o diálogo é direto entre eles e estes filósofos. Cremos que não seja exagero afirmar que sua nova concepção de epistemologia se ergue a partir da abordagem que estes pensadores fazem do problema do conhecimento, das crenças e da verdade. W. O. Quine, no que se refere à tese da epistemologia naturalizada nos apresenta alguns argumentos que procuram desbancar a vinculação filosofia e ciência, negando uma relação hierárquica e, indicando um outro tipo de afinidade entre ambas. Essa nova acepção exige uma retirada de força da filosofia e o adicionamento de uma força extraordinária à ciência, resultando num desequilíbrio entre as partes. A filosofia identificada por muitos como “ciência primeira” é nivelada à ciência. Este pensador é até bem mais severo, ele sugere uma espécie de ‘transmutação de valores na epistemologia’ quando em 1969, numa obra intitulada Epistemologia naturalizada46, lhe coloca apenas como um capítulo vinculado à psicologia: Por que toda essa reconstrução criativa, por que todo esse simulacro? A estimulação dos receptores sensoriais constitui, em última análise, toda a evidência na qual cada um terá podido basear-se para chegar à sua imagem do 46 Nós utilizaremos a tradução portuguesa da coleção Os pensadores, editada em 1975. 82 mundo? Por que não ver simplesmente como esta construção realmente se processa? Por que não ficar com a psicologia?(QUINE, 1975, p. 94). Sua insatisfação diz respeito ao a-psicologismo que se implantou nas primeiras décadas do século XX, onde muitos pensadores consideravam um raciocínio circular a transferências das responsabilidades epistemológicas para a epistemologia. Nessa oportunidade também é possível aferir a insatisfação de W. O. Quine com a ambição da epistemologia em ser fundamento para todas as ciências, inclusive para a matemática. Incomoda-lhe especialmente o esforço dos epistemólogos da virada do século XIX para o século XX de querer, a todo custo, reduzir a matemática à lógica, o que ele julga ser uma tarefa impraticável. Ele adverte que sendo a matemática reduzida à lógica, todas as suas verdades passam a ser verdades lógicas: Se em particular todos os conceitos da matemática fossem reduzíveis aos termos claros da lógica, todas as verdades da matemática passariam a ser verdades da lógica; e as verdades da lógica são com certeza todas elas óbvias ou, pelo menos, potencialmente óbvias, isto é, deriváveis a partir de verdades óbvias, por meios de passos que, um por um, são todos eles óbvios (QUINE, 1975, p. 91). Contudo, essa compreensão, na visão de W. O. Quine é uma premissa que nos levará a uma conclusão falsa, e assim sendo deve ser rejeitada. No seu entendimento a matemática só pode se reduzir à lógica e à teoria dos conjuntos e, mesmo assim permanece sendo um exemplar que auxilia a epistemologia e não se constitui parte desta, como queriam os epistemólogos do começo do século. Quine chega a defender que as verdades matemáticas reduzem-se apenas a teoria dos conjuntos e é somente isto o que garante que elas sejam claras e distintas. Para fazer tal assentimento ele se sustenta na teoria de Goedel de que nenhum sistema axiomático consistente pode cobrir a matemática, ainda que renunciemos à autoevidência47. W. O. Quine insiste que apesar de toda lide filosófica, o epistemólogo não tem conseguido provar como as verdades da matemática são possíveis e, se utiliza dessa limitação para questionar como ainda é possível se sustentar uma crença cega numa epistemologia tão ampla, que se apresente como capaz de oferecer os fundamentos de todas as ciências. David Hume- o melhor representante do empirismo inglês, no entendimento de Quine, teria se esforçado para dar conta de uma epistemologia do conhecimento natural, tanto em 47 Conferir a exposição de W. O. Quine em Epistemologia naturalizada, p 91-92. 83 seu aspecto “conceitual” (que investigaria os problemas ligados ao significado) quanto no aspecto “doutrinal” (que examina sobre a verdade), mas este empirista teria fracassado, especialmente no lado doutrinal, W. O. Quine nos adverte que o impasse humeano permanece sendo o impasse humano: A mais modesta generalização sobre os dados observáveis encerra muito mais casos que aquele que quem profere tal enunciado pôde ter a ocasião de observar. É preciso reconhecer que não há esperança de poder fundamentar, por via claramente lógica, a ciência da natureza sem a experiência imediata. A busca cartesiana da certeza foi o motivo vago que inspirou a epistemologia no que concerne tanto ao lado conceitual quanto o doutrinal; mas se percebeu que essa busca era vã. Querer dotar de plena autoridade da experiência imediata as verdades da natureza não era menos vago que esperar dotar as verdades da matemática do caráter potencialmente óbvio característico da lógica elementar (QUINE, 1975, p.93-94). Em sua análise crítica da epistemologia clássica W. O. Quine também retoma mais uma vez o pensamento neopositivista de Rudolf Carnap que no começo do século XX projetou-se para realizar uma grande tarefa - representar o mundo exterior como uma construção lógica a partir de sense data. Carnap tentou efetivar o chamado “reducionismo lógico”, apostando que conseguiria traduzir (e segundo Quine foi quem mais se aproximou) todos os enunciados sobre o mundo em termos de dados de observação, e imaginou que realizaria tudo isso contando com o auxílio da lógica e da teoria dos conjuntos. Na visão quineana Carnap também falha, e ainda que tivesse atingido seus objetivos não conseguiria dar conta do problema, uma vez que qualquer redução ou generalização sobre dados observáveis irá permanecer problemática e passível de revisão48. Como esse passo não foi dado, alerta W. O. Quine, entendemos que o problema conceitual, ligado ao significado, indicado pela epistemologia tradicional humeana permanece sem uma resposta adequada. Contudo, mesmo com a “impossibilidade de uma estrita derivação da ciência do mundo exterior, a partir da evidência sensorial” (QUINE, 1975, p. 94), não se pode refutar, conforme nos adverte o autor da crítica aos dois dogmas (até de forma contraditória) que os princípios empiristas sejam imprescindíveis no ambiente da epistemologia, ele nos cita que dois deles permanecem insistentemente apoiando nossos sistemas de crenças: “toda evidência de que a ciência dispõe é a evidencia sensorial” (QUINE, 1975, p. 94) e que “qualquer processo de inculcar significados de palavras terá que repousar, em última análise, numa evidência 48 Esta apresentação pode ser encontrada na íntegra em “Epistemologia naturalizada”, p. 93. 84 sensorial” (QUINE, 1975, p. 94). Ou seja, a evidência, tão laureada por muitas correntes filosóficas, não é suficientemente forte para dar suporte (sozinha) à verdade, no entanto, permanece sendo uma das fontes primeira, um fundamento para se chegar a uma imagem do mundo. Diante de tudo isso, o que podemos dizer da epistemologia naturalizada de Quine? O que ela conserva e o que rejeita dos ditames tradicionais? A epistemologia tradicional crê de algum modo na possibilidade do mundo exterior e deseja preservar a justificação de nossas crenças. Quer resguardar ainda uma força normativa ante as ciências e, assim sendo procura operar através de caracteres prescritivos, que como vimos apóiam-se especialmente na lógica, e assim deliberar sobre a práxis científica. Não há, conforme constatamos, como compatibilizar as convicções quineanas com esta visão tradicional. Há uma ruptura entre elas. O naturalismo quineano abjura as doutrinas epistemológicas clássicas. O arrefecimento do poder normativo da epistemologia é sublinhado em W. O. Quine. É público que com ele a epistemologia é uma mera figura que perde o lugar de protagonista e passa a ser entendida como coadjuvante, ou seja, ela agora é um campo de estudo similar a qualquer ciência. Ao afirmar que ciência e filosofia estão num mesmo nível e possuem o mesmo grau de força, que a ciência, em especial a psicologia, passa a garantir justificação epistêmica e a reger de dentro nossas assertivas sobre o mundo exterior, este filósofo dissolve todo o trabalho de se dar significação à ciência a priori. Conhecemos as várias críticas que são endereçadas a W. O. Quine quanto a este quesito, especialmente aquelas impetradas por Laurence Bonjour que considera este empreendimento autodestrutivo. Endentemos que Thomas Kuhn também não aceite a radicalidade do naturalismo quineano, contudo como afirmamos inicialmente, nossa pretensão era descrever como esta tese e as demais se encontram disposta no interior do esquema teórico de W. O. Quine. Conclusão: Já reconhecemos o quão amplo é o trabalho filosófico quineano. Suas críticas aos dogmas do empirismo visam não sua eliminação, mas a sofisticação deste. E, a partir destas apreciações se vê surgir um holismo semântico e epistemológico, uma epistemologia naturalizada, como também se percebe o alavancar de questões profundas acerca da aprendizagem de uma linguagem, da tradução e da referência. Muitos estudos têm sido realizados para examinar as minúcias deste empreendimento. Suas diferentes teses permanecem abertas a investigação filosófica. 85 Esperamos ter apresentado aqui o suficiente para poder fazer a checagem que nos dispomos. Almejamos ter elucidado de maneira satisfatória, ainda que instrumental, as teses quineanas que consideramos importante para nossos propósitos, agora pretendemos relacioná-las com a filosofia da ciência de Thomas Kuhn 86 4 INTERFACE FILOSÓFICA ENTRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN E A EPISTEMOLOGIA DE W. O. QUINE. Na seção anterior elucidamos importantes teses do sistema quineano. Nosso objetivo era corroborar a pressuposição de que esta epistemologia possui uma série de elementos que se entrecruzam densamente com a filosofia da ciência de kuhniana, ou seja, pretendemos responder a seguinte indagação: Teria W. O. Quine influenciado verdadeiramente Thomas Kuhn em sua teoria? Ou há somente pontos comuns isolados nessas teorias que não indicam necessariamente uma influência? Como almejávamos evidenciar que a filosofia histórica da ciência toma como relevante alguns argumentos quineanos na formulação de seu traçado conceitual se fez necessária a exposição antecedente. Acreditamos ser possível extrair das linhas que compõem o empreendimento quineano várias informações que ajudaram a compor a estrutura histórico-filosófica da ciência. Nesta seção nosso objetivo é descrever pontos de conjunção contidos nestes empreendimentos, sem negar, todavia, algumas disjunções. Não perdemos de vista que haja verdadeiramente muitos legados na abordagem de ciência kuhniana, no entanto escolhemos esta afinidade com W. O. Quine porque supusemos que ela ainda necessite ser mais investigada. 4.1 - Entrecruzamentos conceituais entre Thomas Kuhn e W. O. Quine. Thomas Kuhn admite repetidas vezes que W. O. Quine lhe persuadiu em muitas ideias. Inferimos a partir disso que haja uma interface confessada, assumida. Não são poucas as linhas em que se revelam os embricamentos conceituais entre suas filosofias. Listaremos doravante várias passagens que se assentam como álibi dessa interconexão. Contudo, se faz necessário esclarecer que este não é um movimento recíproco, mas unilateral, uma vez que não se verificou em W. O. Quine quase nenhum sinal que se possa definir como kuhniano, nem se encontrou algum assentimento deste quanto à filosofia da ciência do outro 49. Somente Thomas Kuhn assume leituras e interferências da epistemologia quineana e mesmo quando 49 Sophia Stein na obra “Van Quine: epistemologia, semântica, e ontologia” afirma existir uma proximidade intelectual de Quine e Thomas Kuhn no que se refere ao afastamento do reducionismo fenomenalista, mas não indica uma dívida intelectual de Quine para com Thomas Kuhn. Nós reafirmamos que não localizamos em Quine nenhuma referência às obras kuhnianas. 87 não o faz deixa lacunas para que alguém lhe faça. Delimitaremos a seguir as marcas desta interface nas obras kuhnianas: a) Em 1962, na obra ERC: Nosso exercício de rastreamento pode dar sua primeira parada nas linhas da obra kuhniana de 1962, a ERC, quando no seu prefácio encontramos esta afirmativa: “Quine franqueou-me o acesso aos quebra-cabeças filosóficos da distinção analítico-sintética” (KUHN, 2006a, p.11), mesmo não exemplificando detalhadamente nessa obra o que essa afetação lhe teria ocasionado, consideramos este registro ainda em 1962 como bastante relevante. E notamos que ao menos de forma subliminar essa obra já traz em seu âmago um rastro de algumas concepções de W. O. Quine. Ao examinarmos outra assertiva da ERC constatamos mais um traço desta proximidade: “não é de admirar que nos primeiros estágios de desenvolvimento de qualquer ciência, homens diferentes confrontados com a mesma gama de fenômenos- os descrevam e interpretem de maneira tão diversa” (KUHN, 2006a, p. 37), esses dizeres podem nos remeter diretamente às ideias que estão contidas na narrativa quineana de indeterminação da tradução, onde os linguistas, tomando os dado de observação somente poderão fornecer uma tradução indeterminada. Observamos que uma questão sempre relevante em W. O. Quine é sua inquietação com a linguagem, com o seu processo de aquisição, com as etapas de seu aprendizado, com seu desenvolvimento. Notamos que uma ansiedade similar também é visível em Thomas Kuhn durante toda ERC no que se refere à ciência, as suas fases de desenvolvimento e ao seu aprendizado. Acuremos mais linhas da ERC: “há dificuldades imensas que com frequências são encontradas no estabelecimento de pontos de contato entre teoria e natureza” (KUHN, 2006a, p. 51), cremos poder indicar que nessas epistemologias, tanto a da aprendizagem de uma teoria científica quanto a da aprendizagem de uma linguagem presume-se uma articulação entre linguagem e mundo e ambas assumem que este movimento não é simples, e que não se consegue uma aproximação, um controle e um domínio do mundo, cada vez melhor e mais apurado como algumas epistemólogos preveem. As duas teorias admitem um nexo entre mundo e linguagem, não concebendo sua apreensão separadamente. Observamos que W. O. Quine em Palavra e objeto se utiliza da expressão “rede verbal”: A frase é provocada por um estimulo não-verbal; mas aqui, em contraste com aquele estágio primitivo- behaviorista- a rede verbal de uma teoria articulada interveio para ligar o estímulo com a resposta (...) a frase é provocada por um 88 estimulo não-verbal, porém o estímulo depende, para sua eficácia, de uma rede anterior de associações de palavras com palavras, a saber, o próprio aprendizado de uma teoria (QUINE, 2010, p. 32). Não estaria esta “rede anterior”, como aludida acima, bem próxima do que Thomas Kuhn por muitas vezes nomeou de paradigma em ERC? Não é admissível inferir que o autor das revoluções tenha lido algumas linhas desta obra quineana de 1960 para articular esta sua categoria tão recriminada? Vemos muita proximidade nestas construções conceituais e como já fora acenado anteriormente, na obra de 1962 há um rastro da radicalidade quineana espraiado em muitas ideias kuhnianas. b) No Posfácio da ERC: Consideramos este texto como uma parte importante de sua revisão. No Posfácio já é possível notar grandes mudanças no interior da teoria kuhniana. Em alguns fragmentos notarse-á a presença viva de elementos que nos ajudam a demarcar a interface que estamos rastreando. Não são raros os lugares onde ocorrem estes liames. O debate acerca da escolha entre teorias científicas, ou a forma de empreendê-las é um dos temas frequentes das primeiras páginas do texto e uma das saídas encontradas por Thomas Kuhn, ainda que insuficiente, como ele mesmo indica é quanto às escolhas no ambiente científico, na ocasião das escolhas uma comunidade científica deve ser considerada como comunidade linguística e muitos de seus problemas deverão ser resolvidos como questões de linguagem, no mesmo estilo como entendera W. O. Quine em suas obras, reparemos a prova disso: Não é surpreendente que, quando estas distribuições ocorram, dois homens que ali pareciam compreender-se perfeitamente durante suas conversações, podem descobrir-se repentinamente reagindo ao mesmo estímulo através de generalizações e descrições incompatíveis. Essas dificuldades não serão sentidas nem mesmo em todas as áreas de seus discursos científicos, mas surgirão e agrupar-se-ão mais densamente em torno dos fenômenos dos quais depende basicamente a escolas da teoria (KUHN, 2006b, 250). De forma surpreendente, ao adentrarmos o Posfácio encontramos a influência quineana em muitos assentimentos: Instamos que os homens que defendem pontos de vistas não comparáveis sejam pensados como membros de diferentes comunidades de linguagem e que analisemos seus problemas de comunicação como problema de tradução (KUHN, 2006b, p. 221). 89 Nesta ocasião supracitada percebe-se que a radicalidade da indeterminação da tradução quineana é ainda mantida na integra na visão de Thomas Kuhn. Pudemos notificar e sugerir vários pontos de intercessão no Posfácio, mas há, sobretudo, uma confissão direta. Ao tratar do problema da interlocução entre membros de diferentes comunidades linguísticas (ou científicas, elas agora se confundem a todo o momento) Thomas Kuhn irá posicionar-se de uma forma que sustenta o argumento da tradução no sentido quineano reafirmando que em algumas situações os interlocutores tornam-se tradutores e assume: “a fonte já clássica para a maioria dos problemas relevantes quanto à tradução é Word and object de W. O. Quine” (KUHN, 2006b, p.251). Contudo, ainda que estas duas teorias evidenciem o problema da tradução é pertinente que se deixe claro, nenhuma delas ostenta uma defesa da intradutibilidade. Thomas Kuhn conta frequentemente com a possibilidade de tradução e W. O. Quine opera com a probabilidade de várias traduções, ainda que inconciliáveis. Uma questão sempre levada a sério filosofia de Thomas Kuhn, como já se afirmou outrora, diz respeito à categoria paradigma (indicada como componente chave desta filosofia da ciência). Conjecturamos que esta pode também está conectada à filosofia de W. O. Quine. Já se observou em ERC os caracteres que definem o que seja verdadeiramente um paradigma, são os seguintes: possuir força atrativa que conecte um grupo de pesquisadores; ser circunscrito ou limitado o suficiente para poder orientar a pesquisa que a ele sucede; permanecer aberto o suficiente para deixar problemas, quebra-cabeças para serem desvelados posteriormente. E, em obras subsequentes, iremos nos deparar sempre com uma revisão do termo e em consequência disso com um uso subtraído e mais localizado. No Posfácio, já se nota uma transformação conceitual e consequentemente uma aplicabilidade circunscrita do termo paradigma que pode ser indicada como uma resposta aos seus críticos, especialmente a Masterman. Paradigma é apresentado com outros distintivos e certamente com outros objetivos. Ali, paradigma é entendido como “matriz disciplinar” e efetiva-se como: a) generalizações simbólicas, mais gerais e flexíveis; b) como compromissos ontológicos, analogias, grupo de valores, modelos considerados legítimos numa dada comunidade científica; c) exemplares compartilhados, aplicações-protótipos a serem testados em casos particulares. Se examinarmos com cuidado o conteúdo da letra b acima- paradigma usado como compromissos ontológicos, analogias, grupo de valores, modelos considerados legítimos numa dada comunidade científica (ou seja, um léxico em linguagem kuhniana recente) 90 perceberemos as mudanças quanto a sua abrangência e significado. Se assim for, se paradigma adquire somente definição contextual perceberemos mais uma filiação ao pensamento quineano. Lembremos que quando faz sua crítica da analiticidade em Two Dogmas of empiricism, W. O. Quine se refere à questão do significado como algo que invariavelmente irá emergir de uma rede de relações pragmáticas, sociais que lhe definem conforme um sistema de crença, de acordo com o seu aprendizado de uma linguagem, respeitando o diálogo e a empatia entre os falantes, num contexto pragmático dado. E, somente isso permitirá que os indivíduos forjem alguma coisa como “significados”. Ainda neste texto de 1969 pudemos localizar uma base de explicação para o problema da comunicabilidade e do entendimento entre cientistas que embora aponte uma direção diametral à de W. O. Quine, só pode ter sido elaborada lhe tomando como relevante, sua composição ecoa como uma contraposição direta a ela, uma vez que seus argumentos são todos elaborados como se respondendo às posições quineanas acerca das dificuldades de se traduzir: Tomando como objeto de estudo as diferenças encontradas nos discursos no interior dos grupos ou entre esses, os interlocutores podem tentar primeiramente descobrir os termos e as locuções que, usadas sem problemas no interior de cada comunidade, são, não obstante, focos de problemas para discussões intergrupais (traduções que não apresentam tais dificuldades podem ser traduzidas homofonamente). Depois de isolar tais áreas de dificuldade na comunicação científica, podem em seguida recorrer aos vocabulários cotidianos que lhes são comuns, num esforço para elucidar ainda mais seus problemas. Cada uma pode tentar descobrir o que o outro veria e diria quando confrontado com um estímulo para o qual sua própria resposta verbal seria diferente. Se conseguirem refrear suficientemente suas tendências para explicar o comportamento anômalo como a consequência de simples erro ou lacuna poderão, com o tempo, começar a prevê bastante bem o comportamento recíproco. Cada um terá aprendido a traduzir para sua própria linguagem a teoria do outro, bem como suas consequências e, simultaneamente, a descrever na sua linguagem o mundo ao qual essa teoria se aplica (KUHN, 2006b, p. 251). Esta possibilidade acenada acima não estaria nos planos de W. O. Quine ou ao menos não tivemos a capacidade de localizá-la. Thomas Kuhn parece dar um passo ao problema da tradução aqui, se bem que em sua teoria se fala mais de interpretação que de tradução e sabemos que não se pode sinonimar estas categorias. Desacordos a parte, avisamos que eles apareceriam. Diante desta exposição, constatamos que no Posfácio da obra de 1962 também é possível entrecruzar densamente estas filosofias. c) Na obra Tensão Essencial (TE): 91 Percorramos mais sinais dessa interface, eles podem ser capturados em muitos lugares, acompanhemos agora em TE, texto kuhniano de 1977: Quando escrevia o livro sobre as revoluções, descrevi essas maneiras como episódios em que os significados de alguns termos científicos mudavam, e sugeri que o resultado era uma imensidade de pontos de vistas e uma quebra parcial de comunicação entre os proponentes de diferentes teorias. Desde então, reconheci que “mudanças de significados” denominam um problema mais do que um fenômeno isolável, e agora estou persuadido, em grande parte pelo trabalho de Quine, de que os problemas da incomensurabilidade e da comunicação parcial deveriam tratar-se de outro modo (KUHN, 1989, p. 26). Entendemos que nesta ocasião Thomas Kuhn estaria tentando compatibilizar sua ideia inicial de incomensurabilidade à noção radical de indeterminação da tradução defendida por W. O. Quine. Ele assumiria que inicialmente sua incomensurabilidade havia sido pensada conforme inspiração quineana. Contudo, em TE, já estaria reformulando sua tese se afastando de si mesmo e de W. O. Quine, ao defender a possibilidade de uma comunicação parcial quanto às mudanças de significados que ocorrem na ciência. Nessa passagem é possível se sugerir mais uma marca de W. O. Quine: Uma coisa que aglutina os membros de uma de qualquer comunidade científica e ao mesmo tempo os diferencia dos membros de outros grupos aparentemente similar é a posse de uma linguagem comum ou dialeto especial (...) que ao aprenderem essa linguagem, como devem, a fim de participar no trabalho da respectiva comunidade, os novos membros adquirem um conjunto de empenhamentos cognitivos que não são, em princípio, totalmente analisáveis dentro dessa mesma linguagem. Tais empenhamentos são consequência dos modos como os termos, frases e enunciados da linguagem se aplicam à natureza, e é a sua importância para a ligação linguagem-natureza que torna tão importante o sentido original, mais restrito, de “paradigma” (KUHN, 1989, p. 26). O conteúdo da notação acima passa a ser encontrado em vários lugares, atravessando os escritos kuhnianos. Não são poucos os locais aonde se pode identificar essa nova configuração que o autor imputa à sua filosofia, a preocupação com o binômio “linguagemnatureza” que não era comum, ou pelo menos não estava expressa com nitidez nas obras anteriores, passam a ser um traço marcante em suas obras. E a forma como este problema é tratado, ou seja, a inquietação com o modo como termos, enunciados e frases da linguagem se aplicam a natureza, nos causa uma crença forte de que o autor dos paradigmas sofre uma interferência substancial dos ensinamentos quineanos. 92 Em TE vimos que Thomas Kuhn já antevisse e ou acatasse de alguma maneira a estrutura holística na filosofia da ciência, ali já se afirmava que “as teorias são holísticas em alguns aspectos essenciais, sempre cobrem o âmbito total dos fenômenos naturais concebíveis” (KUHN, 1989, p. 48). Mesmo que nesta oportunidade a defesa do holismo ainda ocorra num grau mínimo e de forma tímida é possível se indicar a partir desta afirmação mais uma presença de W. O. Quine, sem esquecer, como já fora aludido, que há fragmentos em TE onde essa interferência é confessada. d) Na obra CDE: Outros embricamentos podem ser encontrados. Os próprios editores da obra kuhniana de 2000 afirmam em sua introdução: Kuhn passou suas últimas décadas defendendo, esclarecendo e desenvolvendo substancialmente a idéia de incomensurabilidade (...) comensurabilidade e incomensurabilidade, tais como apresentadas nas obras posteriores são termos que denotam uma relação que vigora das estruturas linguísticas (KUHN, 2006c, p. 12). Esta inovação na estrutura de pensar os antigos problemas, justificando-lhes como um problema de linguagem, confirma em muitas ocasiões a interface que ora investigamos. Anotamos que esta vinculação com W. O. Quine é reconhecida por estudiosos rigorosos das ideias de Thomas Kuhn, um bom exemplo disso é Paul Hoyninger que em sua obra Reconstruindo as revoluções científicas: a filosofia da ciência de Thomas Kuhn chega a citar dez passagens onde é possível rastrear esta interface; e partilha ao seu modo da aproximação como nós estamos fazendo agora 50 . Esta influência também já fora enunciada por alguns estudiosos brasileiros51. Ao revisar e analisar, o primeiro capítulo de CDE, notou-se que quanto ao conceito de “movimento” na física aristotélica, Thomas Kuhn recomenda: Quero, agora, começar a sugerir que, na medida em que se reconhecem esses e outros aspectos do ponto de vista de Aristóteles, eles começam a se ajustar uns aos outros, a apoiar-se de modo mútuo e assim, a criar, em conjunto, um certo tipo de sentido que individualmente, não possuem ( KUHN, 2006c, p. 29). 50 Pode-se encontrar esta indicação detalhada em Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s philosophy of science, preface, xviii. 1993. 51 Estamos nos referindo especialmente ao professor José Carlo Pintos de Oliveira que escreveu um importante artigo “Kuhn e Quine”, onde apresenta tópicos de aproximação entre estes filósofos, conferir cadernos de história e filosofia da ciência, Série 3, 1 p. 33-53, jan - jun, 2000. 93 Essa orientação holística não é notificada em 1962, e aqui conseguimos ouvir com nitidez a voz de W. O. Quine nas palavras kuhnianas. Seguimos desvendando mais intromissões conceituais em CDE: “a doutrina aristotélica sobre o vácuo e o vazio, exibe, com particular clareza, como várias teses que parecem arbitrárias, quando tomadas isoladamente, dão umas às outras, autoridade e apoio mútuos” (KUHN, 2006c, p. 30). A revisão no entendimento do que seja a física aristotélica e sua doutrina do vácuo, só é presumível nesta ocasião devido à assimilação da doutrina holística, nos moldes como fora pensado o holismo epistemológico por W. O. Quine. Além disso, em CDE apreendemos com frequência uma apologia quanto à estrutura holística da ciência, exercício corriqueiro na epistemologia quineana, da crítica aos dogmas do empirismo até as obras mais recentes. Thomas Kuhn, especialmente em seus últimos escritos, passa a justificar toda espécie de mudança na ciência conforme esta estrutura, defendendo que as mudanças revolucionárias, como haviam sido anunciadas outrora, só poderia ser compreendida numa forma holística, acolhendo de vez uma conexão com a epistemologia de W. O. Quine, apreciemos esta declaração: As mudanças revolucionárias são, de certa forma, holísticas. Isto é, elas não podem ser feitas gradualmente, um passo de cadê vez, e assim, contrastam com as mudanças normais ou cumulativas como, por exemplo, a descoberta da lei de Boyle, na mudança normal, simplesmente revisa-se ou acrescenta-se uma única generalização, e todas as outras permanecem as mesmas. Na mudança revolucionária é preciso ou viver com a incoerência ou revisar em conjunto várias generalizações inter-relacionadas. Se estas mesmas mudanças fossem introduzidas uma de cada vez, não haveria um refúgio intermediário. Apenas um conjunto de generalizações provêem uma explicação coerente da natureza (KUHN, 2006c, p.41). Sobre essa questão é pertinente ressalvar que W. O. Quine desenvolve questões específicas onde problematiza a ciência, uma delas, como já afirmamos, é sua ênfase ao holismo epistemológico, onde defende que uma sentença retirada do contexto de uma teoria não tem importância significativa, e que a unidade de significação linguística de uma sentença reside somente na totalidade da teoria cujo discurso esta sentença integra. Podemos encontrar sombras desse tipo de holismo, sem fazer muito esforço, em quase toda obra kuhniana de 2000, examinemos em mais estes traços: Ao se aprender a mecânica newtoniana, os termos “massa” e “força” precisam ser adquiridos em conjunto e a segunda lei de Newton tem que desempenhar um papel em sua aquisição (...) todos os três tem que ser apreendidos em conjunto (...) para aprender qualquer uma dessas maneiras de fazer mecânica, os termos inter-relacionados, em alguma parte da rede da linguagem, têm de ser aprendidos 94 ou reaprendidos em conjunto e, então, aplicados à natureza como um todo. Eles não podem ser traduzidos um a um (KUHN, 2006c, p.60). Ocorre quase uma transferência conceitual e percebe-se uma acomodação dos conceitos quineanos na filosofia da ciência de Thomas Kuhn. Há verdadeiramente uma interface. As conexões existentes nestas teorias, quanto à ciência e linguagem na contemporaneidade, devem ser assinaladas como um item crucial desta interface. Thomas Kuhn, especialmente em CDE, quer estabelecer uma vinculação epistemológica definitiva entre estas duas categorias, assentando todas as suas teses acerca da ciência como elementos meramente linguístico. W. O. Quine que assumiu desde sempre o problema da linguagem, elabora questões específicas onde problematiza a linguagem da ciência, a epistemologia naturalizada, a noção de rede de crenças, o holismo epistemológico, a inquietação com o alcance da linguagem da ciência, são ilustrações diretas de sua preocupação. Observamos que muitas convicções quineanas passam também a ser vistas em Thomas Kuhn. Vemos a olho nu que nos últimos trabalhos kuhnianos se toma como relevante a discussão acerca do problema da linguagem e do significado no ambiente científico, trazendo a tona com frequência questões que são imprescindíveis na epistemologia quineana. Examinemos mais esta declaração: “a mudança de significado, que venho descrevendo, de forma um tanto precisa, como mudanças na maneira por que as palavras e expressões de uma língua se ligam à natureza, uma mudança na maneira por que são determinados seus referentes” (KUHN, 2006c, p. 42.). Esse assentimento se constitui em mais uma prova de como as ideias quineanas estão presentes. Ao continuarmos nossa empreitada de rastreamento das linhas desta interface elas se avolumam, acompanhemos neste outro assentimento “as justaposições semelhantes a metáforas que mudam em épocas de revoluções cientificas são, portanto, fundamentais para os processos pelo qual é adquirida a linguagem, seja ela científica ou não” (KUHN, 2006c, p. 44). A problemática da linguagem é assumida sem temor no interior da filosofia da ciência kuhniana: A prática científica sempre envolve a produção e a explicação de generalizações sobre a natureza, e essas atividades pressupõem uma linguagem com um grau mínimo de riqueza, e a aquisição de uma tal linguagem traz consigo conhecimento da natureza(...) se estou certo, a característica principal das revoluções científicas é que elas alteram o conhecimento da natureza intrínseco a própria linguagem (KUHN, 2006c. p. 44). 95 Salta aos olhos que assinalar as interfaces entre estas concepções filosóficas é uma tarefa alongada e essa extensão se justifica mais exatamente pelo que se pôde capturar nas linhas da obra de 2000. Assim, uma vez que a filosofia da ciência paradigmática assume deliberadamente posições ligadas à linguagem e não se filia diretamente a nenhuma outra doutrina e, como em várias oportunidades traz-se o nome e as ideias de W. O. Quine, seja para infirmá-las ou para se filiar a esta, nos dar motivos para estabelecer essas conexões. Verificamos que latente ou manifesto W. O. Quine aparece com insistência em muitos ditos e escritos kuhnianos de 1962 até 2000. 4.2 - Tópicos objetivos da interface filosófica entre a filosofia kuhniana e a epistemologia quineana: proximidades e distanciamentos. Num panorama geral se pode inferir que se Thomas Kuhn defende a ciência como um empreendimento social, da mesma forma W. O. Quine o faz em relação à linguagem. Se o epistemólogo cria e dá corpo a uma teoria da linguagem que dentre outras questões ocupa-se ferrenhamente de uma linguagem da ciência, o filósofo da ciência, por sua vez reconstrói sua teoria da ciência frequentemente se justificando em pressupostos de uma teoria da linguagem, chegando mesmo a assumir a ciência com uma linguagem. Basta lembrar a sua transformação dos termos paradigma, revoluções científicas e de suas novas afirmativas sobre a incomensurabilidade. Na sua filosofia posterior a 1962, Thomas Kuhn sustenta que as teorias científicas são como linguagens, referindo-se mais nomeadamente ao problema da incomensurabilidade entre teorias ou paradigmas científicos e à escolha entre teorias ditas rivais. Se para W. O. Quine nada há por convenção52, Thomas Kuhn parece querer imitá-lo uma vez que ao engendrar suas categorias procura frequentemente realçar caracteres contextuais. Imaginamos que houve um estudo demorado, uma reflexão intensa sobre essa assertiva quineana para se formar conceitos como comunidade científica, incomensurabilidade em 1962 bem como para reconstruí-los em CDE. O que seria o léxico a que se refere Thomas Kuhn em 2000 senão um elemento significativo, empático, contextual que determinada especialidade emprega? Isto não estaria coligado às convicções quineanas? 52 Somos alertados que mesmo criticando o convencionalismo, W. O. Quine ainda é apontado como conservador de alguns meandros desta doutrina, sobre isso conferir um importante escrito de Sophia Stein “aspectos convencionalistas da filosofia de Williard Quine” universidade federal de Goiás, principia 7 (1– 2), Florianópolis, Junho/Dezembro, 2003, pp. 185–203. 96 Em sua defesa da epistemologia naturalizada W. O. Quine traz à tona a questão da definição contextual na linguagem, identificamos que a forma como Thomas Kuhn passou a defender o que seja ciência em CDE, conferindo validade somente às especialidades, redefinindo e reduzindo seus conceitos, aproxima-se da linhagem pragmática quineana adotada acerca da linguagem. Listamos mais uma aproximação: notamos que quando Thomas Kuhn reformula e atualiza o que seja um paradigma seu uso se restringe acintosamente, o que era um corpo de crenças comuns ou uma tradição de pesquisa que servia de parâmetro para a ciência normal, passa a exercer somente o papel de uma teoria dentro de uma área restrita de pesquisa, assim sendo podemos associar mais uma vez estes autores, vejamos como W. O. Quine se pronuncia em Palavra e objeto: A teoria como um todo – nesse caso, um capítulo da química, mais adjuntos relevantes da lógica e de outros lugares – é uma trama de frases associadas de formas variadas umas às outras e a estímulos não verbais pelo mecanismo de resposta condicionada (...) uma teoria pode ser fruto de deliberação (...) pode ser natural (...) em qualquer um dos casos, a teoria causa um compartilhar das frases de base sensorial (QUINE, 2010, p. 33). Deve ser com essa ideia diminuída de teoria, como um capítulo de alguma área de conhecimento, que se estava operando em 2000 quando foi recomposta a noção de paradigma, agora designada de léxico. Destacaremos a seguir alguns elementos que consideramos proeminentes para objetivar com mais precisão a inter-relação entre as teorias examinadas: 4.3 - Podemos fazer analogias entre a aprendizagem de uma linguagem e a aprendizagem de uma ciência? O neófito, conforme é compreendido na doutrina kuhniana aprende desenvolvendo a capacidade de identificar similaridades, diferenças e apreendendo analogias entre problemas e fenômenos: Uma vez percebida a semelhança e apreendida a analogia entre dois ou mais problemas distintos, o estudante pode estabelecer relações entre símbolos e aplicá-los à natureza segundo maneiras que já tenham demonstrado sua eficiência anteriormente (...) desta aplicação resulta a habilidade para ver semelhança entre variedades de situações. Tal habilidade me parece ser o que de mais essencial um estudante adquire (...) depois de resolver certo número de 97 problemas o estudante passa a conceber as situações que o confrontam como um cientista (KUHN, 2006b, p. 236-237). Identificadores e quantificadores eram, como já demonstramos na segunda seção deste trabalho, elementos determinantes aos aprendizes de uma linguagem conforme aludira W. O. Quine. Anotamos ainda que a ideia de aprendizagem intersubjetiva e pública da linguagem quineana encontra-se implícita na notação acima acerca da aprendizagem da ciência, todavia nem tudo nestes processos pode inicialmente ser equiparado. Ao estudar a epistemologia quineana, concordamos que o aprendizado de uma linguagem seja uma questão relevante e talvez a tese que mais lhe fornece robustez como nos recomenda Vera Vidal53. E não podemos perder de vista que o aprendizado de uma ciência possui especial relevo na filosofia da ciência de Thomas Kuhn, constituindo-se em um componente importante desta teoria. Identificamos que nestas duas concepções se confere uma relevância peculiar ao “processo de aprendizagem”. Seus mentores estão obstinados a compreender como este processo pode delimitar e construir uma relação satisfatória entre linguagem e mundo e a partir disso, cada um, de maneira própria se esforça para demarcar esta articulação. Parece ser ponto comum que a natureza e as palavras são apreendidas simultaneamente. Porém, o processo de educação, segundo Thomas Kuhn, pode determinar como isso ocorre e o resultado pode indicar um distanciamento da abordagem quineana. Em Kuhn homens diferentes que recebem o mesmo estímulo são tocados de forma diferentes por eles e estímulos diferentes podem causar sensações parecidas, contudo, o neófito bem ensinado e os cientistas compatibilizam de alguma maneira estímulos diferentes porque possuem exemplares que lhes orientam e coligam, há um consenso que possibilita este ajuste. Já W. O. Quine não aceitaria este tipo de compatibilidade no que se refere à aprendizagem de um língua nova. Lembremos que os manuais formulados pelos tradutores quineanos são todos incompatíveis entre si. Na ERC temos o detalhamento do processo de como se estabelece, se aprende e se ensina uma ciência madura, lembramos precisamente de como os neófitos precisavam ser adestrados. Em Palavra e objeto podemos acompanhar todo o processo por meio do qual se aprende, se alcança e se atinge uma linguagem desenvolvida. Nesta ocasião W. O. Quine defende um pressuposto metodológico inicial para a aquisição de uma linguagem, que é 53 Em seu texto de 1989 “contribuições do sistema filosófico de Quine para as investigações da filosofia analítica” Vera Vidal nos apresenta uma visão geral desta epistemologia e dar ênfase a tese quiniana da aprendizagem de uma linguagem. 98 qualificado como um behaviorismo, um processo de estímulo-resposta. Thomas Kuhn em 1969 se refere en passant a critérios behavioristas54, mas segue para uma direção diferente: Na medida em que os indivíduos pertencem ao mesmo grupo e compartilham a educação, a língua, a experiência e, a cultura, temos boas razões para supor que suas sensações são as mesmas. Se não fosse assim como poderíamos compreender a plenitude de sua comunicação e o caráter coletivo de suas respostas comportamentais ao meio ambiente? É preciso que vejam as coisas e processem os estímulos de uma maneira quase igual (KUHN, 2006b, p. 241). A teoria kuhniana defende, ao menos no estágio de ciência normal, certa regularidade na comunicação, W. O. Quine não admitiria esta perfeição no processo de comunicabilidade e como já pautamos outrora, ainda indicaria esta pressuposição como algo arbitrário. Ressalvamos que quando privilegia a observação pública do comportamento dos falantes, quando aposta na relação estímulo-resposta para produção de um discurso sobre o mundo, W. O. Quine é rotulado como um behaviorista, mas, como já foi possível verificar, em sua epistemologia, há um deslocamento ascendente para fases subsequentes onde se podem captar elementos que transcendem a um comportamento estimulado, ou ao menos se pode avistar enunciados pouco ligados a observação, já vimos que em fases mais desenvolvidas ocorrem os processos de abstração e de inferência subjetivas. Thomas Kuhn também não se prende a este artifício comportamental e de modo aproximado defende inferências e interferências subjetivas no ambiente científico. No entendimento de W. O. Quine, existe na linguagem a presença de enunciados “teóricos”, que advêm de ‘acordos empáticos’, de relações pragmáticas, contextuais, de onde passarão a emergir os tão desejados “significados”. Estes, conforme se radicaliza nessa abordagem, não existem jamais na mente dos indivíduos, ao contrário, frequentemente serão produzidos abertamente mediante a disposição de alguém a um determinado comportamento no interior de um contexto linguístico dado, nega-se qualquer apriorismo. Recordemos que Thomas Kuhn, em ERC também toma como relevante a explicação de como num período de ciência normal, no interior de uma comunidade científica (que como vimos pode até ser nomeada de comunidade linguística) é imprescindível que os neófitos em diálogo com professores e especialistas aprendam e domine uma linguagem específica e técnica, pertencente ao paradigma em vigência, de acordo com seu léxico, numa comunidade dada, mas talvez isso não seja suficiente para se estabelecer aqui um nexo aproximativo, dado 54 No “Posfácio” podem-se encontrar alusões aos processos de estímulo-resposta na vivência e no aprendizado dos cientistas, mesmo que este pressuposto não seja algo tão significativo na teoria kuhniana. Conferir p.240-241. 99 que em algumas ocasiões Thomas Kuhn ainda defende certo apriorismo e também conta de alguma maneira com aspectos intencionais quanto ao significado55. Queremos deixar evidente que a interface ou a semelhança conceitual talvez ocorra apenas na forma, na estrutura de pensar o problema, pois há divergências quanto ao conteúdo. Penso que seja razoável assinalar que o aprendiz de uma língua parte do nada conforme pensa W. O. Quine e que o aprendiz de uma ciência, no sentido kuhniano já possui uma língua mãe, natural, se dispondo a aprender somente uma linguagem adstrita de sua especialidade. O cientista kuhniano manuseia um léxico e o efetiva, ele realiza uma espécie de sub-linguagem. W. O. Quine assume em oportunidades mais recentes que a ciência pode ser subsumida de certa forma como uma sub-linguagem, um discurso refinado sobre o mundo. Em O alcance e a linguagem da ciência, 1995, Quine anuncia que a ciência é somente uma linguagem mais refinada que o senso comum, um tipo de segunda linguagem. Assim sendo anota-se mais uma congruência filosófica, no entanto quando se trata da questão da tradução esta harmonia não sucede. Ao retomarmos aqui a tese da aprendizagem de uma linguagem, pretendemos assinalar a relevância ao processo de aprendizagem que está ressaltada nas estruturas teóricas que estamos examinando; ao investigarmos mais esta convergência conteudística reconhecemos que se pode equiparar apenas sua estrutura de pensar os problemas. Há questões acerca do conteúdo destes processos que seguem caminhos bem diferenciados. Deste modo perguntamos se é ainda admissível comparar tais processos e avaliamos que uma comparação seja viável, porém equiparar ou igualá-los pode ser problemático. Em W. O. Quine os aprendizes de uma língua natural não possuem nenhum equipamento conceitual, teórico, partem do nada, dão um salto no escuro, e, os aprendizes de outra língua não são capazes de utilizar a língua mãe na tradução devido à questão da inescrutabilidade da referência dos termos. Os aprendizes de uma ciência nos moldes kuhnianos, ao contrário, aprendem a dominar uma linguagem de sua área, contudo já possuem uma língua vernácula bem desenvolvida. Os cientistas normais e os neófitos, no entender de Thomas Kuhn, ou se encontram em um laboratório de pesquisa e ou numa universidade, são indivíduos com capacidades cognitivas bem desenvolvidas, são especialmente homens com um sistema de valores e 55 Estamos acolhendo aqui a sugestão de Paul Hoyningen que ao tratar do problema da mudança de mundo como mudança de significado na teoria kuhniana, aponta para aspectos intencionais e extensionais do significado no interior desta teoria. Esta narrativa pode ser conferida nas páginas 209-210 de Reconstructing science revolutions: Thomas S. Kuhn´s philosophy of science. 100 crenças já arraigado e se utilizam destes em seus empreendimentos. Daí nosso convencimento de que não se possam nivelar nem o aprendiz de uma linguagem com o aprendiz de uma ciência, nem o cientista kuhniano com o tradutor quineano, atualmente a radicalidade de W. O. Quine não se repete em Thomas Kuhn. Na teoria kuhniana, a língua mãe dos cientistas pode e frequentemente é associada a termos referentes às teorias científicas em vigências e não há fissura entre elas. Notaremos uma ruptura light somente quando emergir ou se exigir dentro de um campo reservado de estudo uma “nova” rede verbal para explanar o mesmo fenômeno que antes era explicado pelo aparato conceitual de domínio do cientista. Por isso insistimos em repetir que o que nos move a estabelecer um nexo através dessa questão, entre estas concepções, dizem respeito somente as preocupações que estes apresentam quanto à aprendizagem. Por notarmos que ambos escolhem esse fundamento metodológico para dele erigir e ordenar suas teorias. Defendemos que o tradutor quineano e o operador da ciência não podem ser igualados. O argumento sobre a tradução em W. O. Quine, que como vimos é uma das pedras angulares de sua epistemologia, reza que a indeterminação da tradução ocorre pela impossibilidade de se decidir sobre a referência dos termos de uma linguagem. Se considerássemos apenas a obra kuhniana de 1962, diríamos que o cientista kuhniano, como opera com paradigmas incomensuráveis, estaria igualmente impossibilitado de traduzir um paradigma em outro subsequente e assim se assumiria uma dificuldade similar a de W. O. Quine. Contudo, verificamos que com a reconstrução do sentido original de paradigma feita na atualidade, será diminuída sua relação com o argumento da tradução quineana, mesmo que ainda mantenha certa familiaridade com aquela epistemologia, uma vez que ele é agora assumidamente um dispositivo linguístico. É certo que a cada exercício e revisão que vai sendo realizado em suas obras Thomas Kuhn parece temer o uso da categoria paradigma “embora raramente empregue esse termo hoje em dia, tendo perdido por completo o controle sobre ele, irei, a bem da brevidade, usá-lo aqui algumas vezes” (KUHN, 2000, p. 271). Mas também é verdadeiro que todo uso que se faz dele agora seja como um elemento de linguagem. Não é mais possível dizer que os paradigmas, no sentido fraco que possuem atualmente, são incomensuráveis, hoje estes correspondem apenas a um léxico pertencente a uma especialidade científica; e, mesmo porque este léxico co-existe, convive com outros sem grandes dificuldades. Lembremos que no esquema teórico quineano não se contava com a possibilidade de um léxico funcionar, uma vez que o aprisionamento aos esquemas conceituais impedia qualquer exercício de se transferir, ou intercambiar termos para outros 101 quadros conceituais. O linguista quineano é um indivíduo enjaulado como já indicamos outrora, e, o cientista kuhniano cada vez mais convive não só com seu léxico, mas com a plausibilidade de outros. Reafirmamos que a radicalidade de W. O. Quine não repercute mais na nova filosofia de Thomas Kuhn, este se utiliza das ideias daquele, mas não ratifica sua força. 4.4 - Incomensurabilidade e indeterminação da tradução: A questão da incomensurabilidade, onde se polemiza sobre a concorrência entre teorias e a subdeterminação que envolve sua escolha é, conforme alegação de seu mentor, um problema polêmico e trabalhoso nesta concepção filosófica56. E assim sendo Thomas Kuhn corre atrás de algum tipo de justificação que lhe torne mais adequada no ambiente epistemológico. Conforme entendemos a questão, tanto a construção quanto a reconstrução e reformulação desse termo se aproxima da base conceitual adotada por W. O. Quine em diferentes obras. Sugerimos que haja uma leitura das teses da indeterminação da tradução e da inescrutabilidade da referência neste exercício kuhniano, muito embora o resultado final aponte para alguma dissonância. Cremos que a resolutividade e a saída a que chega Thomas Kuhn acerca do problema da incomensurabilidade (que como já explicitamos na primeira seção, em sua versão atual é exclusivamente um conceito localizado), só é possível através do entendimento e da compreensão do que é e como se engendram as concepções quineanas de indeterminação da tradução e de inescrutabilidade da referência. Lembremos que a primeira assinala que a indeterminação ocorre pela multiplicidade dos dados da experiência e pelo uso descontrolado que se faz deles e que a segunda tem por base a crença que todo campo de observação admite infinitas descrições e o conjunto dos campos de percepção disponíveis para a análise de certo uso linguístico é limitado; as infinitas hipóteses possíveis nunca serão testáveis em sua totalidade, daí ocorrer a indeterminação. Indicamos que estes argumentos quineanos são somente inspiradores, não delimitadores do que recomenda Thomas Kuhn, especialmente em sua nova acepção – incomensurabilidade local. 56 Paul Hoyningen faz uma lista infindável dos vários autores que criticam o termo incomensurabilidade na forma como fora defendido por Thomas Kuhn, entre os mais conhecidos estão: Hacking 1982, p. 5862, Lakatos, 1970, p. 179, Laudan 1976, p. 593-596, Putnam 1981, p. 113-124. 102 Embora esta vinculação filosófica seja explícita podemos localizar em CDE uma crítica de Thomas Kuhn à questão da tradução em W. O. Quine. Na seção- o manual de tradução quineano pode-se verificar como ele organiza essa apreciação: A maioria das dificuldades consideradas aqui deriva, mais ou menos diretamente, de uma tradição que sustenta que uma tradução pode ser elaborada em termos puramente referenciais. Tenho reiterado que isso não é possível, e meus argumentos implicam pelo menos, a necessidade de se invocar alguma coisa do reino dos significados, intencionalidades e conceitos (KUHN, 2006c, p. 64). Se Thomas Kuhn tiver como defender o argumento acima nos colocará diante de uma visão diferente daquela requerida por W. O. Quine. E agindo assim permaneceria adotando um apriorismo e ou um fundacionismo na linguagem e, rejeitando as tendências behavioristas e empíricas já aludidas na epistemologia quineana. Mas sabemos das dificuldades que existem em se afastar totalmente as convicções kuhnianas do ambiente da experiência. Não seria o caso de se sugerir quanto a isto uma saída analítico-sintética? Se for Thomas Kuhn se afasta de Quine, este já aboliu essa bipartição. Mesmo identificando estas declarações contrárias à indeterminação tradução, julgamos pelo menos inicialmente que estas críticas não têm força para invalidar nosso assentimento de que é a partir da leitura desta tese que Thomas Kuhn formula e revisa sua noção de incomensurabilidade. Entretanto, não podemos negligenciar que as censuras contidas em CDE sejam marca de um desacordo; já havíamos advertido quanto às disjunções entre estes autores, elas verdadeiramente existem e nem daremos conta aqui. Percebemos numa seção desta obra intitulada “tradução versus interpretação” que Thomas Kuhn nos pede para eliminarmos a equiparação entre interpretação e tradução e ensaia a partir disso, algumas críticas a tese quineana da tradução, Kuhn chega a dizer que os exemplos elaborados por W. O. Quine são enganadores porque confundiriam interpretação e tradução. Como vimos, Quine diz não contar com nenhum componente interpretativo no ato de traduzir, o linguista tradutor citado em sua teoria sabe sua língua e desconhece totalmente a língua a ser traduzida. O tradutor kuhniano parece está em outras condições: A tradução é feita por uma pessoa que sabe duas línguas, perante um texto, escrito ou oral, em um dessas línguas, o tradutor sistematicamente substitui as palavras ou sequências de palavras do texto por palavras ou sequências de palavras da outra língua. Não é preciso, por enquanto, especificar o que significa ser um “texto equivalente”. Igualdade de significado e igualdade de referencia são ambos, desideratos óbvios, mas não os invoco ainda, digamos simplesmente 103 que o texto de tradução conta mais ou menos a mesma história, apresenta mais ou menos as mesmas ideias, ou descreve mais ou menos a mesma situação que o texto do qual ele é a tradução (KUHN, 2006c, p. 53). Observemos que a posição original para traduzir é tomada pelos dois pensadores de forma diferente, e consequentemente o exercício de traduzir, quando se conhece duas línguas muda substancialmente. É preciso deixar claro que W. O. Quine não toma a questão desta forma. Thomas Kuhn chama o ideal de tradução no sentido quineano de idealista, para ele o tradutor quineano visa uma perfeição inatingível quanto ao ato de traduzir. E, quanto ao ato de interpretar, afirma-se em CDE que esta ação pode ser realizada por antropólogos e historiadores e ao contrário do tradutor o interprete pode, inicialmente, dominar apenas uma única língua. Percebemos que Thomas Kuhn insinua que o tradutor quineano seja somente um intérprete e orienta que no tão conhecido “caso do gavagai”, ele deve agir de outra maneira “em vez de traduzir, o intérprete pode simplesmente aprender qual é o animal em questão e usar, para este animal, o termo empregado pelos nativos” (KUHN, 2000, p. 54). Contudo, na compreensão Kuhniana interpretar não impede a tradução, em sua visão o interprete pode descrever para o inglês, por exemplo, os referentes do termo “gavagai” e se a descrição for bem sucedida não haverá incomensurabilidade, mas devemos ficar atento as possibilidades disso não ocorrer, ou seja, pode haver casos onde “gavagai” permaneça um termo irremediavelmente nativo e quando isso ocorre estar-se-á diante de um caso incomum de incomensurabilidade57. Por isso incomensurabilidade é (em alguns casos raros) um tipo especial de intradutibilidade: Incomensurabilidade torna-se um tipo de intradutibilidade circunscrita a uma ou outra área em que duas taxonomias lexicais diferem. Categoriais taxonômicas compartilhadas, pelo menos numa área sob discussão, pré-requisitos para uma comunicação necessária para a avaliação das asserções de verdade. Se diferentes comunidades linguísticas têm taxonomias que diferem em alguma área localizada, então membros de uma delas podem fazer (e ocasionalmente farão) enunciados que, embora plenamente significativos nessa comunidade de discurso, não podem em princípio ser articulados pelos membros de outra (KUHN, 2006c, 118). Apesar de podermos capturar rastro de convergências acima, deve ficar manifesto que W. O. Quine não faz menção a intradutibilidade, ele nos fala de infinitas possibilidades de tradução o que não é o caso aqui em Thomas Kuhn. Mas percebemos ao mesmo tempo nessa notação que este último alimenta sua admiração pelo esquema teórico quineano. A ideia de 57 Observa-se aqui a explicação kuhniana em “O caminho desde a estrutura”, p. 55. 104 taxonomia é próxima da ideia de quadro conceitual como aludido pelo autor de epistemologia naturalizada. Incomensurabilidade, em sua versão forte de 1962, foi considerada por vários críticos de Thomas Kuhn, como uma das teses que mais deixava lacunas explicativas na estrutura interna de sua filosofia, ou seja, era um item que exigia um processo de justificação árduo, o que lhe forçou a um trabalho permanente de revisão e um apelo frequente a outras epistemologias. Avaliamos que de algum modo as ideias quineanas são as que mais se aproximavam do conceito forte de incomensurabilidade. E, quanto ao novo conceito – incomensurabilidade local- que emerge das obras kuhnianas recentes, notamos que ele guarda uma relação com a doutrina holística tão propagada na epistemologia quineana. Apesar deste autor não admitir expressamente uma dívida a W. O. Quine quanto a este quesito, e até criticar a tradução quineana, penso ser pertinente afirmar que é dali que ele consegue extrair algum tipo de corroboração para lançar esta categoria em 1962 e também para transformá-la no que ela é no momento. No entanto é importante verificar como mesmo se utilizando em grande escala das ideias quineanas e lhe tendo uma dívida considerável, Thomas Kuhn se encoraja a lhe fazer uma crítica, o que revela sua autonomia filosófica. Julgamos que a crítica a tradução seja produto da revisão que fora realizada em toda obra kuhniana, o que consequentemente força-lhe a rechaçar a radicalidade de W. O. Quine, o que nem sempre deve ser valorado como positivo, entretanto, no final das contas, nada há de grandioso nestas críticas que se possa colocar estas visões como antagônicas ou opositoras. 4.5 - Thomas Kuhn seria um epistemólogo natural nos moldes quineanos? Perguntamos se Thomas Kuhn se emolduraria na epistemologia naturalizada como dita por W. O. Quine ou se o naturalismo presente em sua filosofia da ciência não corresponderia à outra vertente do naturalismo ou se a filosofia kuhniana não escaparia deste rótulo58. Alguns críticos dizem não ser preocupante o fato de Thomas Kuhn ser ou não naturalista, mas conferimos relevância a este problema, primeiro porque suspeitamos que sua filosofia não se ajuste a muitos posicionamentos naturalistas e segundo porque em algumas passagens 58 Estou compartilhando com Philip Kitcher e Jésio Hernani, a idéia de que seja muito difícil enquadrar Thomas Kuhn como um naturalista, para isto estou usando o argumento de que esta doutrina é muito diversa, e, que este autor não reafirma a tese segundo a qual a filosofia perde seu status no entendimento do seja e o que deva ser a ciência e mais ainda que tenha se perdido o caráter normativo na epistemologia. 105 de sua vasta bibliografia encontramos uma inquietação em permanecer normativo. Para tanto se faz necessário alguns esclarecimentos sobre a epistemologia naturalizada. A epistemologia naturalizada é um empreendimento filosófico que tem como traço fundamental a crença de que é possível um método empírico na realização de tarefas filosóficas; ou seja, assim como a ciência só pode ser analisada, compreendida e descrita através de uma base empírica assim também deve ser com a epistemologia. Na epistemologia naturalizada se aposta num processo de auto-análise epistemológico e se descredencia qualquer apreciação externa que transcenda a empiria. Se a epistemologia tradicional prescrevia sobre o conhecimento, se se constituía numa ‘teoria do conhecimento’, agora o diagnóstico mais apropriado da ciência é dado pela própria ciência; defende-se somente uma vistoria naturalista. Não haveria mais neste campo uma ação normativa que preceituasse o que seja a ciência ou o que deva ser, nenhum trabalho nesse sentido é apropriado, somente a avaliação que insurja do seu próprio interior pode ser tomada como relevante. Entendemos que os conceitos e teorias epistemológicas são vulneráveis ao crivo da experiência, do mesmo modo que as teorias científicas. Em qualquer interpretação que façamos da epistemologia naturalizada fica evidente que a filosofia que se apresenta como uma disciplina a priori, de caráter normativo e livre de considerações empíricas arrefece ou cai por terra. De forma subliminar, há muito tempo tem se dado créditos a tal exercício na filosofia. Os empiristas ingleses já ensaiavam esse entendimento quando optaram por operar com a ideia de que algo que transcendesse ao fazer empírico era de segundo grau. Os positivistas do século XIX que elegeram a ciência como ‘o novo deus’ do ocidente decretaram que o estado metafísico é equivalente ao da ignorância e por ser assim deve ser rebaixado. Entretanto, estudos nos revelam que parece ser o pragmatismo de William James, o naturalismo empírico de Dewey e as ideias evolucionistas de Charles Darwin (a filosofia dita anglo-americana) que dirigem a epistemologia naturalizada ao seu cume. Só os investimentos de cunho cientificista são razoáveis nessa matriz conceitual: As mazelas da filosofia seriam resultado, para Dewey, do emprego de um método não-empírico que teria afastado a filosofia da experiência primeira, levando-a a hipostasiar uma substância imutável como realidade abstrata, eivada de categorias do pensamento (ABRANTES, 1998, p.08). Assim entendida a epistemologia naturalizada em seus princípios primeiros sugere: a) o abandono de qualquer tendência fundacionalista, intelectualista que não perceba o sujeito 106 cognoscente em plena conexão com seu meio ambiente, b) a rejeição de todo movimento que exceda o empírico e se aproxime do metafísico. Expira o normativismo e jaz o descritivismo. Cabe à epistemologia somente descrever e explicar a ciência, mas se utilizando da própria ciência para fazê-lo. No princípio a psicologia passa a ser a base onde os naturalistas se ancoram, posteriormente, as ciências cognitivas, a sociologia e por vezes a história passam a subsidiar também todo e qualquer tipo de juízo acerca a ciência. Dissolve-se a força prescritiva da epistemologia. Entretanto, revisando as análises desta estirpe filosófica nos deparamos com versões diferentes de naturalismo. São vários os tipos de naturalismo, “umas das dificuldades em se avaliar o naturalismo é a variedade de orientações englobadas nessa denominação” (ABRANTES, 1998, p. 14). Deste modo, parece ser necessário classificá-los em dois tipos e a partir daí se verificar aonde cada subtipo pode ser anexado. Existe a epistemologia naturalizada tradicional e a epistemologia naturalizada radical, a primeira está atrelada aos nomes de John Dewey, William James, Nagel e a segunda refere-se mais especialmente ao naturalismo apresentado por W. O. Quine a partir de 1969, em sua obra Epistemologia naturalizada, já explicitada nesse estudo. Quando apresentamos aqui a epistemologia naturalizada de W. O. Quine, dita agora como radical, identificamos que nela era relevante retirar da epistemologia a função normativa da qual teria se encarregado ao longo do tempo e, abandonando tal função caberia a esta apenas um trabalho descritivo. Contudo, é necessário esclarecer que a epistemologia naturalizada tradicional parece querer operar somente com uma versão módica desse descritivismo, por isto nela são atenuadas, de certo modo, as críticas à função normativa. Diante de posições bem distintas perguntamos se ainda é admissível que se nomeie, todas estas epistemologias como epistemologia naturalizada e se há alguma tese de consenso que outorgue o rótulo de naturalista a versões tão variadas. Indagamos também se não é possível afirmar uma ruptura entre os tradicionais e radicais? Porém, percebemos que há algo que conecta estas iniciativas, “não é obvio que haja um núcleo comum de compromissos aceitos por todas as variedades de naturalismo, Kitcher considera centrais dois componentes do naturalismo: a rejeição do a priori e o psicologismo” (ABRANTES, 1998, p. 14). De modo geral os naturalistas não aceitam o exercício de justificação a priori devido o caráter falível e contingente das crenças que compõem suas teses epistemológicas e, contrariamente aceitam o psicologismo porque este lhes possibilita o afastamento das idealizações feitas pela epistemologia clássica. 107 Uma epistemologia naturalizada deve levar em consideração, por exemplo, as limitações cognitivas do sujeito epistêmico, em vez de propor normas (baseadas em princípios da lógica ou da estatística, por exemplo) que não podem ser seguidas por sujeitos epistêmicos reais. A aceitação do principio ‘deve => pode’ teria, nesse sentido, um caráter eminentemente naturalista (ABRANTES, 1998, p. 15). Constatamos assim o primado do “pode” sobre o “deve”, quer sejam radicais ou tradicionais, todos acatam esse novo imperativo e é assim que se desenvolvem, umas mais outras menos, as epistemologias que derivam da matriz naturalista. Laurence Bonjour, ao fazer suas críticas à epistemologia naturalizada vai observar que existem também vários tipos de psicologismos e que há possibilidade de que alguns deles consigam conviver com a justificação a priori de determinados princípios59. Estudiosos da epistemologia naturalizada dentre os quais Philip Kitcher, Paulo Abrantes e L. Bonjour, ao listarem epistemólogos naturais enquadram Thomas Kuhn nessa relação. De fato sua filosofia da ciência parece abrigar elementos naturalistas. Todavia, sabemos que conforme já fora abordado acima, há versões e versões da epistemologia naturalizada, umas hardcore que é o caso, como se viu, do naturalismo de W. O. Quine, mas há outros tipos mais mitigados. Nossa pretensão é afastar Thomas Kuhn ao máximo do naturalismo e defender que se houver um tipo de naturalismo em sua filosofia da ciência, deverá conviver com o normativismo. Perguntamos se ceder lugar para a história da ciência, para psicologia e para sociologia da ciência em sua abordagem da ciência é abandonar de vez todo tipo de justificação? Se abraçar o psicologismo da forma como fez Thomas Kuhn lhe obriga a negar a legitimidade de justificação ou de algum fundamento na epistemologia? Já vimos com Bonjour que se pode muito bem adotar a um, sem que necessariamente tenha que consentir com o outro. Desconfiamos que a filosofia da ciência que ora nos debruçamos, conforme fora por nós elucidada, aspire preservar certo grau normativo ainda que seja uma espécie de normatividade relativa. Se voltarmos à explicação de que o naturalismo rejeita todo tipo de fundacionalismo e se prende unilateralmente à experiência imediata vemos que por alguns instantes há uma confusão na teoria kuhniana, ora vinculando-se ao segundo critério, ora mantendo um tipo de fundacionismo. Sugerimos que de alguma maneira o paradigma kuhniano em suas versões fortes e fracas corresponderia a um fundacionismo que se pensado a priori delibera sobre o 59 Na importante crítica de Laurence Bonjour em “Contra a epistemologia naturalizada” ele indicará três tipos de psicologismos, um psicologismo mínimo, um conceitual, outro meliorativo, conferir cadernos de história e filosofia da ciência, Campinas, série 3, v. 8, n. 2, p. 186-187, 1998. 108 modus faciendis das práxis científicas, o paradigma possui uma função normativa. Lembramos novamente que Margaret Masterman em sua crítica da variância de significados do termo paradigma na ERC de Kuhn, indicou um sentido metafísico de paradigma e nos advertiu que nessa acepção seu autor se apartaria da empiria requerida em outros usos do termo. Comprovamos que na sua abordagem de ciência Thomas Kuhn assume reiteradas vezes o holismo e sabemos das profundas dificuldades que persistem em se compatibilizar holismo e fundacionismo ou holismo e apriorismo. Como é possível uma posição holista resguardar algum grau de normatividade, é aceitável um holismo local? Se isto não for possível o empreendimento kuhniano se despedaça. Contudo já evidenciamos aqui seu comprometimento com uma incomensurabilidade local. É certo que em nenhuma ocasião Thomas Kuhn se assume como naturalista, mas ao mesmo tempo se auto-apresenta como um historiador e filósofo da ciência e é assim que se comporta ordinariamente. No entanto, o que é determinante para nossa pretensão de abrandar aqui o naturalismo é não detectarmos uma passagem sequer onde se defenda a eliminação da epistemologia em favor da psicologia e, sobretudo que a epistemologia perca seu caráter normativo. Em algumas linhas já desvendadas por nós Kuhn confirma que sua filosofia da ciência permanece normativa e afirma ser improvável o fosso que se estabeleceu entre o “é” (descrever) e o “deve ser” (prescrever). Outro elemento importante nessa discussão naturalista diz respeito as questões do método na filosofia e na ciência. Nessa perspectiva são atendidas duas visões metodológicas, uma monista que afirma existir um método único a ser utilizado pela filosofia e pela ciência e outra dualista que visualiza ciência e filosofia com métodos próprios e diferentes entre si. Quine é um monista metodológico (...) e Goldman opõem-se a Quine por defender claramente o status normativo da epistemologia, o que implicaria, no seu entender, que esta última dispõe de métodos próprios, não científicos (...) o confiabilismo de Goldman mantém-se naturalista na medida em que pressupõe que a justificação de uma crença é função dos processos psicológicos que a produzem e sustentam (ABRANTES, 1998, p. 21). Quanto às questões metodológicas, como já asseguramos, Thomas Kuhn ainda quer preservar um normativismo, os paradigmas, ou sua versão recente “os léxicos” são aprioristícos no sentido kantiano do termo. E assim sendo pensamos ser mais adequado aproximar a estrutura kuhniana da visão naturalista requerida por Alvin Goldman que ainda 109 resguarda caracteres normativos na epistemologia60; devemos igualmente conectá-lo ao tipo de naturalismo que é defendido por Philip Kitcher. Inferimos que a filosofia da ciência de Thomas Kuhn está para além da epistemologia naturalizada nos moldes como fora pensada por W. O. Quine e se aproximaria de outros epistemólogos menos severos. Ao destacarmos alguns pontos arrazoados por Philip Kitcher em seu paper “o retorno dos naturalistas” 61 , constatamos que seja admissível vincular o naturalismo kitcherano ao que ocorre na filosofia de Kuhn. Kitcher também assume o debate natural fazendo aparecer importantes variáveis e julgamos que estas, face a face, podem nos ajudar a entender alguma veia naturalista no empreendimento kuhniano. Em linhas gerais Kitcher parece querer apresentar uma versão alternativa para o naturalismo nos oferecendo um novo ponto de vista, uma perspectiva acrescida de elementos poucos canônicos e/ou nem aceitos pela discussão ortodoxa dessa temática. Elencaremos a seguir alguns tópicos relevantes do referido texto para ver se de algum modo podemos retirar dele um amparo plausível à nossa investigação. No início da iniciativa de Philip Kitcher, é possível anotar a reafirmação da divisão clássica do naturalismo em tradicional e radical, bem como a preferência dos radicais pela psicologia e, o consequente deslocamento da filosofia para um lugar de capítulo daquela. Uma asserção que imediatamente nos chama atenção nesta investigação é quando este estudioso nos assevera que na visão dos naturalistas “a epistemologia e a filosofia da ciência são disciplinas somente descritiva, capítulo da psicologia, neurociência, sociologia, ou história da ciência” (KITCHER, 1998, p. 34-35). Ser a filosofia da ciência apontada como capítulo da psicologia não nos aparece mais como inédito, mas o ato de adicionar à lista, a sociologia e história da ciência nos permite dizer que Kitcher pretende se comprometer com algo alternativo. Todavia, o caráter de novidade e ousadia não se localiza somente no assentimento acima, ele se evidencia mais precisamente quando este filósofo procura assegurar a viabilidade de se preservar uma essência normativa no interior de uma estrutura naturalista 62. Se for razoável o que ele pretende defender (e desconfiamos que seja), Thomas Kuhn de certo modo se vincula uma epistemologia naturalizada no modo kitcherano. Ou seja, adere 60 Conferir a exposição de Paulo Abrantes em “Naturalismo epistemológico: apresentação”, p.21, 1998. Ver também a posição de Alvin Goldman acerca da epistemologia naturaliza no paper “epistemologia naturalizada e confiabilismo” in cadernos de história e filosofia da ciência, série 3, v. 8, n. 2, p. 109-145, 1998. 61 Este texto pode ser encontrado na íntegra nos cadernos de história e filosofia da ciência, série 3, v. 8, n. 2, p.27-108, 1998. 62 Sobre isso conferir a exposição majestosa realizada por Kitcher em “O retorno dos naturalistas”, 1998, p. 35. 110 caracteres naturalistas sem abandonar a normatividade. Consequentemente, este ponto passar a ser um artefato formidável para nós. Entretanto, como já reafirmamos neste estudo, não devemos nos precipitar para aquiescer sobre isso. Mesmo Kitcher parece querer livrar Kuhn desta moldura “as visões epistemológicas complexas e às vezes evasivas de Kuhn tem inspirado numerosos empreendimentos nas abordagens naturalistas de ciência (...) mas não está claro se o próprio Kuhn adota o naturalismo” (KITCHER, 1998, p. 49). No ambiente da epistemologia, como vimos, o argumento tradicional que defende o conhecimento como crença verdadeira justificada, insere-se na seara sobre a verdade e o conhecimento desde os clássicos e é reintroduzido nos dias de hoje com muita veemência. Este é como nos assevera Kitcher, um argumento psicológico, mas como a ortodoxia epistemológica resolveu, por um bom período de tempo, respeitar somente as condições lógicas do conhecimento, a epistemologia tornou-se gradualmente apsicologista. Entretanto, o processo de recuperação do psicologismo foi ocorrendo aos poucos, ganhou um alento peremptório com W. O. Quine e a partir de 1970 surgem argumentos a favor de uma epistemologia psicologista. Com o estabelecer desse movimento a tendência é apostar que “o status epistemológico de um estado de crença depende de fatos psicológicos relativos ao sujeito” (KITCHER, 1998, p. 37). Segundo Kitcher, mesmo as respostas ao problema de Gettier63 são projetos meliorativos onde se emprega procedimentos psicológicos não implicando a perda de justificação, ao contrário, todas as respostas a este desafio proposto por Gettier visam exatamente a justificação. Destarte, a temática da psicologia se revitaliza na epistemologia e ganha força também com Kitcher. Para ele “somos todos metodologicamente imperfeitos” (KITCHER, 1998, p. 45), e por isso não devemos repelir nenhum critério, e nos põe em alerta: Há espaços para outros conceitos de racionalidade e justificação. A contrapartida da afirmação de que alguém poderia satisfazer fortuitamente o ideal externo é que um agente cognitivo possa fazer o melhor possível e ainda assim não atingilo (...) mas é importante manter o ideal externo como sendo a meta a ser atingida. (KITCHER, 1998, p. 45). 63 “O problema de Gettier” constitui-se numa crítica sob a forma de contra-exemplo à definição tripartite de conhecimento que opera considerando este último como crença verdadeira e justificada. O epistemólogo Edmund Gettier em 1973 polemiza sobre a terceira variante (a justificação) alegando que em algumas circunstâncias um sujeito S pode crer que P e está justificado em sua crença de P, mas que os procedimentos de elaboração e justificação desta crença são insuficientes para que o sujeito tenha conhecimento. Ter crença verdadeira e justificada é necessário para se ter conhecimento, mas não é suficiente. 111 É perceptível que nos acréscimos propostos por Kitcher ao debate existem elementos relevantes para compreendermos Thomas Kuhn: A história da ciência revela que os objetivos atribuídos à investigação variam amplamente de campo pra campo e de época pra época. Assim, não pode existir nenhuma epistemologia normativa universal e devemos decidir ou pela descrição dos modos como as pessoas realmente formam suas crenças ou pelas recomendações locais sobre como aqueles que operam num contexto particular devem promover os seus objetivos. Uma destacada forma contemporânea de naturalismo recorre a esta assertiva. (KITCHER, 1998, 63). Ou seja, podemos até afugentar um a priori epistemológico, mas não sugerir um abandono aos projetos normativos, “é um exagero afirmar o fim da epistemologia normativa” (KITCHER, 1998, p. 108) e, devemos, em oposição a isto, “abandonar uma única concepção de valor cognitivo” (KITCHER, 1998, p.108). Ou seja, precisamos começar a pensar somente em sua relativização. Haveria lugar para uma normatividade local, relativa. Ficamos inquietados para compreender se isto é possível e sugerimos concomitantemente que talvez seja; que deva ocorrer uma normatividade particular, um projeto de normatividade contextual. Em determinada ocasião Paul Feyerabend teria perguntado a Thomas Kuhn como deveriam ser lidas suas ambíguas observações acerca da ciência, se como prescrição ou somente como descrição64 e em CDE há uma importante resposta para esta provocação que nos serve aqui: A resposta é claro, é que devem ser lidas de ambas as maneiras ao mesmo tempo. Se tenho uma teoria de como e por que a ciência funciona, ela tem necessariamente de ter implicações para o modo como os cientistas devem comportar-se para que seu empreendimento floresça ( KUHN, 2000, p. 163). E ainda a respeito da normatividade reafirma e arremata Thomas Kuhn “meu critério para enfatizar qualquer aspecto particular do comportamento científico não é simplesmente que ele ocorre, nem simplesmente que ocorre com frequência, mas sim que se ajusta a uma teoria do conhecimento científico” (KUHN, 2000, p. 163). A partir destes achados em nossa análise, verificamos em muitas passagens da vasta bibliografia kuhniana uma série de elementos que reforçam nosso entendimento quanto 64 Esta pergunta se encontra na seção 2 do paper “Consolando o especialista” in “Crítica e o desenvolvimento do conhecimento”, LAKATOS e MUSGRAVE, p. 245, 1965. 112 a permanência de um traço normativo no interior de sua filosofia. Em vários tópicos deste exame se percebeu que, sem nenhum embaraço, assume-me um caráter prescritivo nesta epistemologia. Há elementos para além da empiria e do descritivismo em Thomas Kuhn, logo, não há como afixá-lo um rótulo de naturalista sem questionar como tal enquadramento se deu. Indagamos se não é razoável que Thomas Kuhn escape da moldura do naturalismo e, se isto não for possível, exigimos que seja atenuado ao máximo o título de naturalista que lhe concederam. Há quem diga que seu naturalismo é somente acidental e que longe de promover uma epistemologia empírica contra a idéia tradicional, o que Kuhn efetivamente teria feito foi invalidar a rígida associação entre ‘normatividade’/ racionalidade e procedimentos ‘lógicos’ e ‘algorítmicos’65. Somos compelidos também a dizer que Thomas Kuhn jamais aceitaria a radicalidade de apontar a epistemologia como capítulo da psicologia; uma vez que ele ainda permanece normativo quando recomenda que só seja admissível se analisar e compreender a ciência se se considerar seu fundamento histórico; e por fim, estamos seguros que ele recusa a separação entre o ato de descrever e o ato de prescrever, e afirma ser impossível tal cisão. Dar lugar para a história da ciência, para psicologia e para a sociologia da ciência parece não ser condição suficiente para determinar que a epistemologia kuhniana reverencie um tipo de naturalismo que não resguarde um teor normativista. Isso parece imediatamente contraditório. Inicialmente sim, mas ao levantarmos elementos prescritivos como já fizemos, cremos ser possível amenizar a contradição. Como ocorre hoje no horizonte das ideias filosóficas uma pluralidade sobre o que seja de fato a epistemologia naturalizada, qualquer tarefa de enquadramento deve passar primeiro pela investigação dos tipos de naturalismo e até sobre sua validade em nossos dias. Lembremos que Bonjour realiza uma apreciação austera da epistemologia naturalizada onde lhe descreve como um tipo de empreendimento sem sentido e lhe faz julgamentos severos, declarando inclusive sua inviabilidade. Sua crítica se direciona mais precisamente ao naturalismo de W. O. Quine, e se esta crítica, com esta gravidade, puder ser também dirigida à filosofia da ciência de Thomas Kuhn, esta se encontrará em 65 Jézio Hernani Bonfim Gutierre da UNESP nos ajuda nesta assertiva no ensaio “Kuhn: um naturalista acidental”. 113 apuros, contudo, defendemos que as contribuições kuhnianas à epistemologia permanecem relevantes. Conclusão: Ao nos dedicarmos ao estudo da filosofia da ciência de Thomas Kuhn percebemos que existem traços de outras filosofias, apesar da autonomia de muitas ideias kuhnianas. E a proximidade com a epistemologia de W. V. O. Quine que conjecturamos foi confirmada. Mesmo não assumindo esta proximidade substancial em sua obra prima de 1962, no decorrer dos anos, nos escritos posteriores a ERC vão aparecendo os sinais desta interface. No Posfácio a esta obra, publicado em 1970 se percebeu com nitidez uma aceitação significativa das ideias quineanas. No prefácio de Tensão Essencial (1977) se reafirma a referida proximidade. Em CDE (2000), a amostra para a demonstração desta interface foi dilatada haja vista o número de passagens onde se pode comprovar algum tipo de conexão entre estas concepções filosóficas. Há divergências, há distanciamentos entre Thomas Kuhn e W. O. Quine, mas existem definitivamente similaridades no modo de ver muitos problemas. 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS Há verdadeiramente uma revisão, uma atualização e consequentemente uma reconstrução conceitual na filosofia da ciência de Thomas Kuhn. Não é possível compreender o todo desta teoria se se parar na ERC. Esta obra é grandiosa, magnânima e deveria ser autônoma, mas a partir do exercício revisional que faz seu autor, ela só tem sentido se entendida numa rede que se efetiva pelo entrelaçamento entre todos os seus outros ditos e escritos. Consequentemente, só é possível uma compreensão verdadeira da epistemologia kuhniana se aceitarmos uma complementaridade e uma interdependência em seus registros, ou seja, devemos acolher a interface filosófica entre suas obras. O caráter revisional, apresentado na primeira seção desta análise, independente do que se pode inicialmente conjecturar, parece querer garantir o refinamento dos conceitos, dando as obras kuhnianas um movimento dialógico e dialético e, firmando seu caráter filosófico. Todavia, há quem diga que isso é uma temeridade e até considere que o temor das críticas o fizeram arredar de muitas convicções e, que o melhor Kuhn era mesmo o de ERC, menos filosófico, mais historiador. Após o lançamento de ERC ele quis ser mais filósofo e mesmo assim seus críticos não lhe abandonaram. Contudo, é indispensável assinalar que não se estilhaça a teoria kuhniana, o serviço de refinamento das proposições que lhe dão fundamento visa exatamente o contrário, salvaguardar o teor paradigmático da ciência. Este deve ser o elemento filosófico que arrastará boa parte destas convicções para posteridade. Na reconstrução demarcada por nós na primeira seção se verificou duas perspectivas, uma que avaliamos ser mais correta e honrada e outra um tanto confusa, por vezes até caótica. O trabalho é mais virtuoso quando visa esclarecer dubiedades e preencher lacunas, quando demonstra uma preocupação com os deslizes e até equívocos cometidos lá nas primeiras obras. Valoramos igualmente válido o enfrentamento que se trava com muitos críticos e comentadores. Talvez poucos pensadores tenham se ocupado tão seriamente em dialogar com seus críticos como fez Thomas Kuhn, embora não tenha acatado muitas das recomendações que lhe foram feitas e mesmo que se coloque, em alguns casos, na defensiva, dizendo que não foi bem compreendido e ou que fora mal interpretado. As contendas foram pertinentes. Enfrentar o impacto causado pelos assentimentos que se faz é sempre uma postura virtuosa e disso não se pode acusá-lo, neste estudo tratamos de uma estrutura teórica elaborada por alguém que passou a vida inteira se explicando. Quanto ao aspecto desordenado desta teoria, se ressalta que seu mentor não teve a coragem ou a competência de sustentar alguns posicionamentos mais severos que havia 115 adotado especialmente em ERC. Observamos que quando recua diante do que seja de fato um paradigma, se perdendo em sua ressignificação, função e aplicação dentro de uma teoria científica, quando modifica o conceito de incomensurabilidade, alterando sua força, extensão e grau de importância, imputando-lhe um rebaixamento, quando passa a afirmar revolução científica somente como revolução linguística, admitindo que revolução seja equivalente unicamente a uma mudança conceitual ou lexical, e, quando transforma comunidade científica em comunidade linguística a impressão que nos causa é que seus objetivos filosóficos foram bastante alterados. Notamos que ao invés de continuar defendendo uma abordagem alternativa de ciência como fizera de maneira ousada em 1962 pareceu querer somente compatibilizar sua filosofia da ciência com o que estava na moda, e o modismo em seu tempo e lugar é a chamada “guinada linguística”, é na direção deste movimento que sua filosofia se encaminha, o que era estrutura histórica da ciência se converte em estrutura linguística da ciência. Ele deseja ser mais filosófico abandonando talvez o que lhe fez algum dia filósofo e para isso entra na chamada “onda linguística” visando um tipo de reconhecimento que quem sabe nunca tenha alcançado. Quis evitar um dilúvio, mas viveu em meio a muitas tempestades. Constatamos que os elementos da linguagem ganham amplo espaço nesta filosofia da ciência. As obras mais recentes estão recheadas de subsídios linguísticos e comprovamos que as ideias de W. O. Quine ocupam uma posição de destaque. A interface que conjecturamos foi provada em diferentes entrecruzamentos conceituais e temáticos. Há indiscutivelmente pontos de aproximações entre W. O. Quine e Thomas Kuhn, embora possam ter sidos construídos autonomamente. Alguns entrecruzamentos foram assumidos, outros são inferências realizadas por nós. Não podemos ser negligente quanto os distanciamentos, averiguamos que em determinados tópicos destas teorias eles estão explícitos, basta recordar aqui de dois itens bem importantes: a divergência quanto à tradução e o problema acerca da normatividade, enquanto W. O. Quine quer rechaçar esta última, Thomas Kuhn quer reafirmá-la. Para os nossos propósitos atuais podemos de fato ter omitido divergências importantes, porque nos concentramos em apresentar similaridades e aproximações. Percebemos que o entendimento acerca da ciência e da linguagem como artefatos sociais foi um elemento de convergência entre ambos e que os dois entendem que no processo de aquisição de uma linguagem se apreende concomitantemente o mundo. Notou-se igualmente, que o holismo quineano foi abraçado em larga escala por Thomas Kuhn e que o naturalismo, ainda que tomado de forma diferente por cada um, é o mote que norteia a metodologia destes pensadores. 116 Não obstante, mesmo assumindo uma estrutura holista no debate epistemológico, a filosofia kuhniana quis a todo custo ainda preservar caracteres fundacionistas em sua estrutura, o que é via de rega, um problema filosófico. Independente de como se pode avaliar esta incoerência, ela está ensaiada na teoria da ciência que ora examinamos quando ainda rastreamos sinais de apriorismo e prescritivismo. Outra questão relevante é o problema da normatividade, mesmo que Thomas Kuhn tenha alertado quanto a não haver mais complicações neste campo; ele afirma ainda no Posfácio de 1970 que normativismo e descritivismo há muito são possíveis, entendemos que muitas querelas quanto ao normativismo na epistemologia ainda carecem ser elucidadas. Ele deseja insistentemente ser normativo e, reiteradas vezes afirma que sua filosofia é também prescritiva, diz inclusive que não consegue compreender como na filosofia da ciência ocorre de se descrever sem prescrever. Percebemos igualmente que naturalismo e especialmente o holismo são doutrinas que estão entremeadas no âmago das concepções kuhnianas e normalmente os preceitos destas doutrinas não combinam com o normativismo, ou pelo menos não se tem efetivado esta conexão no ambiente epistemológico. Mas há, conforme compreende Kuhn a possibilidade de uma normatividade local, contextual, difícil de ser entendida, mas segundo ele, já praticada e assim sendo salvar-se-ia a possibilidade de uma estrutura holística se auto sustentar. Deixaremos isso em aberto para futuras investigações, é impertinente para ocasião aprofundarmos este problema, mas lhe consideramos sério e desafiador. Como articular numa mesma seara filosófica descritivismo, prescritivismo e normativismo? Holismo e fundacionismo? Naturalismo e normatividade? Normalmente estes empreendimentos são vistos em quadros separados e muitas vezes como antagônicos. Colocar a todos num mesmo quadro é uma engenhosidade arriscada. Sustentar tudo isso talvez não seja possível, o que nos ocorre é que este intrépido pensador tenha terminado sua empreitada filosófica como começou: irreverente, dizendo mais do que pode. Só um ecletismo desenfreado pode acomodar tamanha diversidade. Contudo, ele nos pede que esta postura não seja interpretada como irracionalista, somente como relativista. E alerta que este deve ser o novo modo de se compreender a ciência. Perguntamos se Thomas Kuhn teria terminado a vida como começou, dizendo e escrevendo de maneira adversa dos ditames tradicionais, fazendo combinações injustificadas e apologias a um pluralismo na epistemologia? É Thomas Kuhn um anarquista como queria Feyerabend? 117 Independente do rótulo que lhe coloquem, observamos que o número de dissertações e teses que investigam a teoria kuhniana é vasto e aumenta a cada ano. O que confirma o interesse por suas ideias. Indicamos que a análise daqueles elementos da estrutura kuhniana onde se relaciona ciência e linguagem, bem como seus últimos escritos, onde compara o desenvolvimento científico ao processo de seleção natural de Charles Darwin ainda carecem de um examine mais apurado. Devemos aguardar também os escritos que ficaram sem publicação e que foram anunciados pelo próprio Thomas Kuhn em suas últimas declarações em vida. Avaliamos que esta filosofia da ciência permanece sendo um excelente objeto de análise, de onde ainda podem ser retirados subsídios para uma melhor compreensão do que seja a epistemologia em nosso tempo. 118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANTES, Paulo. Naturalizando a epistemologia. In: Epistemologia e cognição, editora da UNB, Brasília, 1993. ________________ . Naturalismo epistemológico: apresentação. In: Cadernos de história e filosofia da ciência, série 3, v. 8, n. 2, Campinas, 1998. ALVES, Rubens. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, 8ª edição. São Paulo: Loyola, 2005. BACHELARD, Gastón. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968. BASTOS, Cleverson, L; CANDIOTTO, Kleber B. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. BOMBASSARO, Luis, C. 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