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REVISTA: “Veja”
30/09/1992
MACENATO bem sucedido: Santa Rita do Sapucaí, em Minas Gerais, na contramão da roubalheira nacional: apenas um carro roubado por ano. “Revista Veja”, n.24, p.76, p.77 e p.78, il., 30/09/1992.
Macenato bem sucedido
Santa Rita do Sapucaí, em Minas Gerais, na contramão da
roubalheira nacional – apenas um carro roubado por ano
MECENATO BEM-SUCEDIDO
— Em matéria de afronta à recessão, Santa Rita do Sapucaí é caso
de estudo. Literalmente de estudo:
foi tema de tese acadêmica, apresentada à Fundação João Pinheiro,
de Belo Horizonte, pela professora
Ana Maria Rezende. Trata-se de
uma história exemplar de mecenato, num país onde a elite exerce de
preferência a sovinice. Na década
de 50, Luzia Rennó Moreira, casada com um embaixador, trouxe da
passagem do marido por um posto
no Japão a idéia de doar à cidade
uma escola técnica de alto nível.
Pensou em fazer um curso de
Química. Ao consultar professores,
decidiu-se pela Eletrônica. Surgiu
a Fundação Mindoca Rennó Moreira, homenagem à mãe da embaixatriz e tributo involuntário ao
estilo da cidade, que conserva como se fossem patrimônio público
suas raízes provincianas de produtora de leite e café.
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Da Fundação Mindoca Rennó
Moreira brotou a Escola Técnica
de Eletrônica Francisco Moreira da
Costa, ETE. Dela saiu o Instituto
Nacional de Telecomunicações,
Inatel. Da união da ETE com o
Inatel, surgiu uma enorme prole de
empresas, muitas nascidas na porta
dos cursos, como fabriquetas de
fundo de quintal. Santa Rita virou
um Vale do Silício mineiro. Até
porque teve madrinha, sua história
parece de fadas. Dona Luzia morreu sem ver a primeira formatura
de sua escola, que lança anualmente no mercado pelo menos 220
profissionais de primeiro time,
treinados para trabalhar em indústrias de ponta. Quando a produção
de técnicos de Santa Rita estava a
pleno vapor, o país parou de disputá-los na década de 70, porque
começava a andar a meia força.
Rezam as lendas do subdesenvolvimento que o milagre de Santa
Rita deveria ficar por aí.
Não ficou. Os ex-alunos da
ETE e do Inatel passaram a abrir
seus negócios ali mesmo pela cidade. E o município, além de café
e leite, passou a produzir componentes e sistemas eletrônicos. Com
tanto sucesso que, há um ano e
meio, o Intel criou uma incubadeira de microempresas. Empresta
salas e equipamentos a alunos que
encaminhem a um júri de professores projetos de execução plausível.
Como a SMFE, com menos de
dois meses de vida. Nela, três alunos na casa dos 20 anos se associaram para fazer trabalhos de animação gráfica, vinhetas para vídeo e
um revelador eletrônico de fotografia, encomendado por uma loja
de Uberlândia, que custa vinte
vezes menos do que os similares
disponíveis na praça.
Entre empresas e empresários
adultos típicos de Santa Rita estão
a Linear Equipamentos Eletrônicos
e seu dono, o engenheiro Carlos
Alberto Frutuoso. Ele exporta aparelhos de transmissão até para a
África, está faturando 3 milhões de
dólares este ano, sua fábrica tem
escritório em Miami e ele só sai de
Santa Rita do Sapucaí a passeio ou
em viagens de negócios. É mais
um que aprendeu a fugir do Brasil
para dentro. De Santa Rita tira-se a
exceção e a regra. Fundação como
a Mindoca Rennó Moreira só existe uma. Mas de amostras de investimento em educação os municípios andam cheios, confirmando
uma norma que o brasileiro Cláudio Moura Castro, agora traba-
lhando no Banco Mundial, flagrou
em seis países moídos pela recessão, num estudo para a Unesco.
Estudando o Brasil, a Hungria, a
Costa Rica, Madagascar, o Senegal
e a Tanzânia: quando se trata de
apertar os cintos, os governos de
todos eles sempre começam os
ajustes mutilando as despesas com
educação e, entre eles, os últimos a
devastar as salas de aula são as
administrações locais. Os prefeitos, aparentemente, perceberam
antes dos chefes de Estado das
nações arruinadas que a educação
saiu do rol dos gastos que se lançam numa espécie de conta de
caridade — se o dinheiro sobra,
vai para investimentos sociais. Se
falta, paciência.
SEM CARROS IMPORTADOS
— O relatório de Cláudio Moura
Castro adverte que a associação
entre resultados econômicos e treinamento “está ficando cada vez
mais íntima”. E não é preciso exagerar, com o exemplo de Santa
Rita, para ver que onde o Brasil
ficou mais moderno, de uns anos
para cá, não foi onde chegaram os
carros importados ou os leilões de
estatais, por mais bem-vindos que
ambos sejam. Mas nos municípios
que estão gastando, em média,
quase 30% de sua receita em salas
de aula. O prefeito de Icapuí, no
Ceará, chegou a resultados administrando a escassez. Com uma
economia que vive da pesca da
lagosta, da extração de coco e do
caju, fora os caraminguás dos royalties de 200 poços de petróleo (a
Petrobrás pagou ao Município 63
milhões de cruzeiros em agosto),
passou-se em quatro anos de oito
escolas, onde as crianças mal podiam sentar, para 32. Nem se fala
mais em vagas. A matrícula é automática. E Icapuí ainda nem inaugurou seus primeiros orelhões
com DDD. Deixou os símbolos
convencionais progresso para depois.
Em Santa Rita do Sapucaí, que
pode, os 7.343 alunos das escolas
públicas aprendem a usar compu104516
tador. “Aqui não tem problema de
dinheiro, aqui não há crise”, explica o prefeito Jefferson Gonçalves
Mendes, que em setembro tinha
1,86 bilhão de cruzeiros da prefeitura aplicados no mercado financeiro. Ex-motorista de praça, Jefferson circula pela cidade ao volante de seu carro particular — um
Volkswagen 1983. Uma carroça,
mas muito moderna e confortável
quando não se tem do lado de fora
uma legião de meninos de rua. Por
lar nisso: os 85 encontrados em
Santa vão bem, obrigado. Comem
e estudam semi-internato.
Não é só pela prioridade à educação que a administração das
cidades trata os brasileiros melhor
que as outras formas de governo.
Em Icapuí, o prefeito Francisco
José Teixeira, um geólogo de 30
anos que voltou à terra natal para
exibir seu jeito petista de governar,
fornece cadernetas de saúde com
fotografia das crianças por saber
que pobre raramente vê o próprio
retrato. As enfermarias têm redes
porque um paciente lembrou-lhe,
durante uma visita, que não estava
acostumado a deitar em cama.
Essas coisas ocorrem na vida dos
prefeitos, antes de mais nada, porque eles não viram autoridades
incorpóreas — embora uma das
conseqüências menos conhecidas
da Constituição de 1988, padroeira
da autonomia municipal, é que a
partir de sua promulgação todo
prefeito adquiriu o direito ao tratamento de “excelentíssimo”. Antes, “ilustríssimo” bastava, exceto
para os encarregados de cidades
com mais de 500.000 habitantes.
A SOLIDÃO DE BRIZOLA —
Em Resende, até garis chamam sua
excelência, o prefeito, pelo prenome: “Ó, Noel”. Foi numa delas que
José Carlos Pereira saiu diretamente do pátio da prisão para varrer
ruas como funcionário público.
Tomava sol, quando viu Noel de
Carvalho e puxou conversa. Não
só ganhou o emprego como até
hoje os dois conversam sempre
que se encontram. O prefeito de
Maringá, no Paraná, e o de Campo
Bom, Rio Grande do Sul, assíduos
visitantes das creches de seus municípios, são recebidos, por crianças que às vezes mal aprenderam a
falar, como “Ricardo”, “Geovani”.
Eles não usam gravata e a
maioria jamais terá visto de perto
uma legítima Hermès. Muitos governam de jeans. Mas ninguém se
iluda: estão em alta na política. O
Ibope topou casualmente com esse
prestígio ao levantar em mais de
100 cidades as prévias da eleição
municipal. Deu num veio inédito
de prestígio, sobretudo para políticos em fim de mandato. A maré
tragou um dos mais renitentes mitos brasileiros: a solidão carismática do governador Leonel Brizola
em seu PDT. Quem é melhor aposta do partido para a próxima eleição presidencial? Jaime Lerner,
prefeito de Curitiba. Quem é o
pedetista mais popular na capital
do Rio de Janeiro, berço do brizolismo desde 1982? Marcello Alencar, o prefeito da cidade. E no interior do Estado? Além de Noel de
Carvalho, Antony Garotinho, prefeito de Campos. O país talvez
ainda não tenha se dado conta do
que se passa com o conjunto dos
prefeitos. Mas não há dúvida: cada
cidade sabe direitinho o que anda
fazendo o seu.
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