As Representações Criminais Anônimas e a Justiça Constitucional Monia Lopes de Souza Ghignone INTRODUÇÃO A política desenvolvida pelos estados totalitários na primeira metade do século XX sujeitou o homem a situações de repressão e de intolerância profundamente degradantes, em um dos mais graves atentados contra os direitos humanos da história mundial. Com o final da II Guerra, o constitucionalismo passou por um processo de reconstrução, emergindo de um novo cenário político-social que procurava, acima de tudo, impedir a repetição das atrocidades recém-experimentadas pela humanidade. Nesse ambiente, o discurso jurídico se despe da sua estrutura formalista, para ser composto, também, por um núcleo axiológico fundante na dignidade da pessoa humana1. As Constituições passaram a contemplar um vasto elenco de direitos fundamentais, com força vinculativa, a fim de que o direito sirva de instrumento para promover o bem-estar do indivíduo. Imbuídos desse processo de reformulação, detentores das mais variadas ideologias juntaram-se para formular cartas constitucionais capazes de refletir e assegurar todas as posições dissonantes, sempre em busca de combater a intolerância e a segregação social e de assegurar, de forma efetiva, um núcleo de direitos considerados como fundamentais aos indivíduos. O produto desse trabalho reflete-se nas diversas Constituições dos países ocidentais, bem como nos Documentos Internacionais de Direitos Humanos, cujos enunciados estão dotados, propositadamente, de alto grau de indeterminabilidade2. 1 CHAÏM PERELMAN (Lógica jurídica, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 100/105) aponta que a importância de se introduzir concepções axiológicas na cultura jurídica, até então representada pelo legado positivista legalista, foi observada no julgamento de Nuremberg, em que prevaleceu a ideia de que, mesmo na ausência de disposições legais expressas, os crimes contra a humanidade cometidos pelos nazistas não poderiam ficar impunes, uma vez que contrariavam um princípio geral reconhecido pelos países civilizados, consubstanciado pela dignidade da pessoa humana. 2 Nesse sentido, HERNAN MOLINA GUAITÁ (La dignidad del hombre es sagrada, Revista de Derecho, año 62, nº 195, enero-junio 1994, Faculdad de Ciencias Juridicas y Sociales, Universidad de Concepción, 1994, p.93/95) afirma que a ausência de determinabilidade do conteúdo dos direitos é que permitiu que O objetivo dessa abertura semântica não reside, apenas, na ideia de integrar correntes ideológicas opostas, mas também de assegurar a preservação das Constituições no tempo, uma vez que, como peças fundamentais da engrenagem política dos países, os seus dispositivos normativos precisam corresponder, com rapidez e adequação, aos anseios da sociedade caracterizados por suas constantes mutabilidade. Na busca do equilíbrio entre o texto e o contexto3, o raciocínio formal, meramente subsuntivo, é substituído pela incorporação da realidade aos seus conteúdos4. Afinal, a Constituição se propõe a instrumentalizar a convivência social, mas é também por esta condicionada. Ao assegurar ao cidadão uma resposta efetiva às suas necessidades, promove-se a perenidade da Constituição, como também, reforça-se a legitimidade do seu texto, em face da sua utilidade e da sua capacidade concreta de transformar o quadro fático. É o Estado a serviço do homem, destinatário final e verdadeira razão de ser do modelo político-jurídico vigente. Esse fenômeno, inicialmente, detectado nos países da Europa Ocidental, replicouse, ainda que tardiamente, em meados das décadas de 70 e 80 do século passado, nos países da América Latina, egressos de ditaduras militares. Dentre as nações que adotaram esse modelo constitucional, tem-se o Brasil. Em sua Constituição de 1988 previu-se, expressamente, inúmeros direitos fundamentais, reunidos em um sistema unitário e harmônico dotado de alta carga valorativa, observando-se, no País, uma mudança significativa no processo hermenêutico. O Poder Judiciário restou fortalecido, exercendo um protagonismo na determinação de significados aos enunciados normativos constitucionais5. Na condição de guardiães da Constituição, os juízes passaram a interpretar os preceitos constitucionais com o pessoas defensoras de ideologias diversas concordassem em elencar os direitos fundamentais nas reuniões da UNESCO, na Organização das Nações Unidas. 3 Para KONRAD HESSE (“Constitución y Derecho Constitucional”. In Ernst Benda, Werner Maihofer; Hans-Jochen Vogel; Konrad Hesse (org.) Manual de derecho constitucional, Trad. Antonio López Pina, 2ª edição, Marcial Pons Ediciones Jurídicas e Sociales S.A., Madrid, 2001, p. 09) “toda Constituição é Constituição no tempo: a realidade social, a que vão referidas suas normas está submetida à mudança histórica e esta, em nenhum caso, deixa incólume o conteúdo da constituição”. 4 Cf. EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Ed. Malheiros, São Paulo, 2003, p. 30/33 e DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR, Curso de Direito Constitucional, Ed. Podium, Salvador, 2008, p. 185/187. 5 Essa afirmação não pretende confinar a interpretação a um só operador jurídico, desconsiderando o caráter pluralista da hermenêutica constitucional. As demais esferas estatais – Executivo e Legislativo – bem como os próprios cidadãos que se submetem à Constituição desempenham um papel fundamental, a depender do momento em que o processo interpretativo estiver sendo desenvolvido. objetivo de conferir-lhes significados que permitam a sua preservação diante das evoluções históricas e sociais. A partir dessas premissas, o presente trabalho busca analisar um dos dispositivos constitucionais mais singulares da Carta Magna de 1988, qual seja o artigo 5º, inciso IV, que prevê que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e sua repercussão no âmbito penal e processual penal. Mais precisamente, procura-se investigar se representações anônimas possuem amparo constitucional e podem ser utilizadas nos procedimentos criminais ou, ao contrário, se constituem provas ilícitas capazes de gerar as nulidades dos feitos processuais ab inicio. Para responder a essa indagação, é pressuposto descobrir se delações dessa natureza podem ou não ser consideradas livres manifestações do pensamento. A depender da conclusão obtida, poderá ou não incidir sobre ela a restrição que veta o anonimato. É justamente para definir o conteúdo e o alcance desse dispositivo, que o operador do direito não pode ignorar alguns dados da realidade (contexto), indispensáveis para conferir, ao final de sua atividade interpretativa, um significado definitivo ao enunciado normativo (texto). O desenvolvimento organizado da criminalidade introduziu nas sociedades modernas novas modalidades de delitos com efeitos ainda mais devastadores aos cidadãos, os quais, não raras vezes, são subjugados à condição de reféns, uma vez que não podem desenvolver suas atividades cotidianas, obrigando-se a respeitar ordens espúrias de quadrilhas que, à margem do Estado e da Constituição, ditam suas próprias regras, comandando comunidades inteiras. No Brasil, informações noticiadas pela imprensa acerca da existência de localidades em que é proibida a entrada de policiais ou que o livre trânsito dos próprios moradores é condicionado à autorização de criminosos, infelizmente, não são mais dignas de surpresa, em razão da frequência com que são vinculadas. De igual forma, não são incomuns relatos em que autoridades públicas, encarregadas de promoverem o bemestar da sociedade, aproveitam de seus cargos e das garantias deles decorrentes, para fomentarem e participarem de esquemas criminosos e de corrupção. Atreladas às novas modalidades de criminalidade, surgem peculiaridades que não podem passar despercebidas pelos operadores do direito. E uma delas refere-se ao aumento de denúncias anônimas recebidas pelos órgãos de apuração criminal, relatando fatos graves, cometidos por indivíduos de alta periculosidade, detentores, não raras vezes, de poderio político e econômico. De outro lado, admitir notícias-crime sem subscrição pode ensejar instabilidade ao ordenamento, provocada por denuncismos inverídicos. Sob o manto do anonimato, diversas calúnias podem ser declaradas, em graves danos à honra e à intimidade de cidadãos de bem, sem que se possa promover uma responsabilização direta contra quem as proferiu. Como compatibilizar interesses diametralmente antagônicos? De um lado o direito à honra e à intimidade dos investigados e de outro a segurança pública e a necessidade de preservação da vida daqueles que querem e não se sentem seguros para sustentarem, pessoalmente, os fatos de que tem conhecimento. Quais deles devem prevalecer? Há possibilidade de se fazer essa ponderação, no caso concreto, ou trata-se de assunto já definido, previamente, pelo Legislador Constituinte, no momento em que vetou o anonimato no artigo 5º, inciso IV? Para enfrentar o tema, esse trabalho divide-se em quatro capítulos, sendo que, no primeiro, tecemos breves notas sobre a interpretação constitucional e o papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário na atividade hermenêutica, a fim de desvendar a sua postura no processo de extração do sentido normativo do dispositivo constitucional, objeto da presente investigação. No próximo capítulo analisamos o direito à liberdade de expressão, tecendo-se considerações gerais sobre a sua construção dogmática. Para o desenvolvimento dessas premissas teórico-científicas, promovemos um estudo em torno do seu âmbito de proteção, sistematizando-se um acervo de proposições teóricas encontradas na doutrina, as quais contribuem para a edificação do trabalho, na medida em que revelam uma diferenciação no tratamento dogmático conferido ao direito à liberdade de expressão e as demais liberdades comunicativas que o cercam. A importância de abordar esse assunto, ainda que em linhas sumárias, decorre do fato de que é necessário delimitar o conteúdo desses direitos, para identificar os elementos essenciais que os compõem e, a seguir, verificar em qual subsistema comunicativo as representações criminais podem ser incluídas. A partir desses aportes desenvolvemos, no terceiro capítulo, o enquadramento jurídico-constitucional do problema, por meio de um processo de interpretação dos diversos dispositivos existentes na Constituição de 1988 em torno da liberdade de expressão, inclusive o artigo 5º, inciso IV, confrontando-os sob a perspectiva do chamado domínio da concorrência de direitos fundamentais. Ao final, enfrentamos a questão nuclear que se refere à possibilidade de uma notícia-crime ser considerada livre manifestação do pensamento e como tal, recair sobre ela a proibição do anonimato. Superada a questão afeta ao âmbito de proteção do enunciado constitucional e com foco na proposta por nós desenvolvida acerca do tema, entramos no quarto capítulo. Nele, são sugeridos parâmetros para racionalizar e uniformizar a recepção das denúncias anônimas pelas autoridades de combate ao crime, com o propósito de harmonizar a convivência entre os interesses conflitantes que as cercam, por meio de uma interpretação capaz de conferir unidade e força normativa ao texto constitucional. Por fim, examinamos os expedientes normativos infraconstitucionais relacionados ao tema, bem como os precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, procurando expor os contornos jurídico-normativos dispensados pelas Cortes Superiores à questão e avaliar, criticamente, os seus fundamentos, em consonância com a proposta de interpretação sustentada nesse trabalho. Tudo com o intuito de contribuir para uma compreensão mais clara do significado do artigo 5º, inciso IV e da sua suposta relação com as representações de natureza criminal. CAPÍTULO I O PODER JUDICIÁRIO E A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: BREVES NOTAS 1. Premissas Iniciais Quando se analisa a hermenêutica dos direitos fundamentais, a questão de ordem que se levanta refere-se à distinção entre o conceito de norma e de enunciado normativo. Afinal, texto e norma não possuem significados univalentes. A teoria tradicional concebia a norma como pressuposto para o exercício do processo interpretativo. Contudo, mais recentemente, a doutrina tem compreendido de forma diversa6. Por enunciados normativos constitucionais entendem-se os signos escritos que se encontram dispostos ao longo da Carta Magna. De um único enunciado, semanticamente indeterminado, podem-se retirar diversas normas, ou seja, um conjunto de significados7, os quais podem e devem acompanhar as evoluções históricas vivenciadas pela sociedade. 6 Sobre as diferenças entre normas de direitos fundamentais e enunciados de direito fundamentais consultar: JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais, Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 45/46; HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 9ª edição, Malheiros Ed., São Paulo, 2009, p. 30; ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, Malheiros Ed., São Paulo, 2008, p. 54 e EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit.,p. 26. 7 Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 54. A diferença é substancial, pois, ao contrário da corrente tradicional, entende-se que os enunciados constitucionais constituem o ponto de partida, cujo resultado final é representado pela norma8. A extração do sentido normativo dos dispositivos constitucionais depende, portanto, da hermenêutica jurídica. Mas, afinal, o que vem a ser interpretação? Trata-se de uma atividade meramente conformadora ou tem ela a liberdade de construir e recriar o objeto de sua análise? Segundo o dicionário9, interpretar é “aclarar, explicar o sentido”. Embora não se trate de um signo linguístico inequívoco, há consenso de que a atividade interpretativa busca conferir, através de um processo de construção lógica e racional, um sentido a determinado objeto10. Em sua concepção inicial, a interpretação buscava o significado proveniente das palavras proferidas pelo legislador. Com o tempo, essa relação unilateral, de decorrência direta e irrestrita entre o significado e o conteúdo das palavras contidas no texto normativo, passou a não ser suficiente para resolver os conflitos inevitáveis entre direitos e valores igualmente protegidos na Constituição. Para compatibilizar as suas convivências práticas, a dogmática atual aceita, de forma majoritária, que deve ser concedida ao intérprete certa liberdade de conformação não mais meramente subsuntiva, a fim de que se possa atrelar aos elementos decorrentes diretamente da linguagem, outros fatores externos e concretos11. 8 Para HUMBERTO ÁVILA (Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 30) não há correspondência direta entre dispositivo e norma, uma vez que, para o autor, onde houver um não terá, necessariamente, de haver a outra. Em certos casos, haverá norma sem que exista um dispositivo. Em outros, haverá apenas um dispositivo, do qual emanarão um conjunto de normas e, por fim, situações em que, apesar de existirem diferentes dispositivos, a partir deles se construirá somente uma única norma. 9 Disponível em http://www.michaelis.uol.com.br. Acesso em 15.06.2012. 10 Para DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR (Curso de Direito Constitucional, Ed. Podium, Salvador, 2008, p. 185/186) interpretar é desvendar o sentido e o alcance do enunciado constitucional. 11 VITTORIO VILLA (Conoscenza giuridica e concetto di diritto positivo: lezioni di filosofia del diritto, G. Giappichelli, Torino, 1993, p. 325/326) sustenta que a norma é sempre o resultado da interpretação desenvolvida a partir dos enunciados normativos. No entanto, os enunciados normativos desempenham um papel de fundamental importância, pois são dotados de um espaço de significação preexistente à interpretação, ainda que utilizados como uma referência, os quais não podem ser ignorados pelo intérprete. Nesse mesmo sentido, EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit., p. 26/27 e JANE REIS GONÇALVES PEREIRA, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2006, p. 46/48. Concordamos com Humberto Ávila quando o autor afirma que “interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir”12. A atuação do intérprete é de reformulação e de contextualização, transportando o texto constitucional à realidade, mas não de forma aleatória, ilimitada e segundo concepções meramente subjetivas. Ao contrário. A sua ação deve ser pautada pelos fins e valores previamente prefixados pelo Legislador constituinte, em prol da proteção dos bens jurídicos por ele eleitos. A título de exemplo, vejamos o dispositivo previsto no artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição que veda a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Ainda que o intérprete possua um posicionamento favorável a essa modalidade de pena, não poderá aplicá-la, no caso concreto, uma vez que o texto constitucional, nesse particular, é expresso, proibindo, o seu emprego, salvo em situações excepcionais já previamente definidas13. Assim, a depender da clareza do enunciado normativo, terá o intérprete maior ou menor grau de liberdade de conformação para preencher as eventuais lacunas e ambiguidades. Em relação a alguns direitos, o legislador constituinte conferiu alta densidade aos dispositivos que os tutelam, uma vez que se verifica, claramente, a natureza comportamental de seus conteúdos, em que condutas e consequências estão descritas com precisão, visando solucionar conflitos conhecidos ou antecipáveis. Observa-se, por sua vez, que a maioria dos enunciados de direitos fundamentais não possui o seu conteúdo determinado com tamanha clareza. Embora haja descrição dos fins a serem atingidos, não se definem, previamente, os comportamentos necessários para as suas obtenções, os quais são dotados de alto grau de abstração e serão realizados na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas disponíveis14. Nessa conformidade, avaliar o grau de densidade semântica do texto é crucial para delimitar a atuação do intérprete. 12 Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 33. 13 Embora o significado da expressão “guerra declarada” seja passível de densificação, uma vez definido o seu sentido e alcance, não será admissível a aplicação da pena de morte em casos que não se amoldem às hipóteses tipificadas como tal. 14 Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 90. A Constituição Brasileira é composta por dispositivos detentores de densidades variadas. Para comprovarmos essa afirmação, basta citarmos dois exemplos retirados de um mesmo artigo constitucional. Enquanto o artigo 5º, inciso XLVII proscreve a pena de morte em tempos de paz, tendo natureza de regra, o seu inciso XXXII estabelece que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Ao adotar um modelo híbrido, o legislador constituinte preocupou-se em angariar os benefícios advindos com a utilização de enunciados detentores de distintas densidades. Afinal, essas diferenças são de fundamental importância ao ordenamento, na medida em que lhe confere equilíbrio. Os dispositivos mais precisos prestigiam a segurança jurídica, enquanto que os que contêm uma natureza semanticamente aberta prestigiam a flexibilidade necessária para promover, no caso concreto e consoante as evoluções históricas e sociais, a aproximação da moral ao direito, em prol da concretização dos ideais de justiça15. Feitas as considerações acima, passaremos ao passo seguinte, que envolve outro problema basilar da teoria da interpretação, referente à postura a ser adotada pelo juiz, no exercício dessa atividade. 2. O papel do Poder Judiciário na atividade interpretativa Em que pese ter a hermenêutica constitucional um caráter aberto e pluralista, uma vez que é desenvolvida por diversos operadores jurídicos, compostos pelos poderes constituídos, bem como por todos os integrantes da sociedade que a ela se submetem16, o presente trabalho analisará a questão sob o enfoque da intervenção jurisdicional. 15 Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar, no HC 80.949. Nesse precedente, discutia-se a admissibilidade de gravação sub-reptícia em processo penal. Em seu bojo, o Relator, Min. Sepúlveda Pertence, afirmou que a ponderação entre o princípio da verdade real no processo penal e o direito de inviolabilidade das comunicações não poderia ser feito pelo intérprete, tendo em vista que o legislador constituinte já havia solucionado o conflito, previamente, proibindo a utilização de provas ilícitas. Em seu entendimento, a vedação desses meios de provas constitui uma regra, a qual deve ser aplicada pelo operador jurídico, independentemente de um juízo de proporcionalidade, uma vez que o emprego desse mecanismo pressupõe a possibilidade de ponderação entre os interesses conflitantes, o que não se fazia presente no caso em exame. 16 Cf. PETER HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição, contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição, Ed. Sérgio Antônio Fabris, Porto Alegre, 1997, p. 10/15. No entanto, concordamos com as ressalvas apresentadas por JORGE REIS NOVAIS (As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2ª edição, Coimbra Ed., Coimbra, 2010, p. 406/411) em relação à teoria desenvolvida Ao positivar valores fundamentais do ser humano no corpo da Constituição, o Poder Originário repassou aos seus intérpretes a responsabilidade de densificar os dispositivos dotados de alta carga axiológica, no momento de suas conformações práticas, a fim de sanar ambiguidades, incoerências normativas e lacunas que podem ser vislumbradas em seu bojo. Por ambiguidade entende-se a existência de palavras e expressões constantes nos textos da Constituição que possuem conceitos polissêmicos, dotados de vagueza e imprecisão semântica e/ou sintática. São vários os exemplos dessas imprecisões na Carta Magna em vigor. O artigo 5º, inciso III, estabelece que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante”, sem precisar o sentido exato do que seja tratamento desumano ou degradante. De igual forma, no inciso XLVII, alínea “c”, desse artigo, observa-se a proibição de aplicação de penas de trabalhos forçados, sem que haja especificação, no próprio texto, do que seja considerado trabalho dessa natureza. Outra dificuldade que pode ser colocada ao intérprete refere-se à incoerência normativa, consubstanciada nas ocasiões em que se verificam duas regras distintas emitindo comandos contrastantes. A Constituição de 1988 estabeleceu em seu artigo 61, § 1º, “d”, que as leis que disciplinem sobre a organização dos Ministérios Públicos da União e dos Estados são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. No entanto, o seu artigo 128 §5º conferiu igual prerrogativa aos Procuradores-Gerais respectivos17. O membro do Poder Judiciário poderá, ainda, se defrontar com um caso de lacuna constitucional, em que uma determinada situação concreta não é contemplada por um dispositivo específico na Constituição. Para exemplificar, pensemos no seguinte exemplo. Ao dispor sobre a possibilidade de interceptação das comunicações por Häberle, quando sustenta que a interpretação aberta deve ser realizada no momento de controle das restrições, quando o Estado visa limitar os direitos fundamentais com o propósito de resguardar outros interesses, não sendo cabível no momento da delimitação dos seus âmbitos de proteção, uma vez que “o momento de apuramento do conteúdo protegido dos direitos fundamentais é um problema de interpretação, nem aberta, nem fechada, mas jurídica, do conteúdo da liberdade, positiva ou negativa, objectivamente garantida pelo legislador constituinte através do direito fundamental”. 17 Essa questão foi objeto da ADI MC 400, no Supremo Tribunal Federal, que decidiu que as leis de organização dos Ministérios Públicos da União e dos Estados são de iniciativas dos respectivos Procuradores-Gerais e que há no texto constitucional uma “impropriedade terminológica”, sendo que o dispositivo previsto no artigo 61, §1º, “d”, somente pode ser interpretado com um único sentido, qual seja “o de eliminar a iniciativa parlamentar”. telefônicas, em seu artigo 5º, inciso XII, o legislador constituinte nada falou sobre a interceptação de dados informáticos, muito usuais nos tempos modernos, a partir do surgimento da internet. A lacuna pode ser verificada não somente nas hipóteses em que não há regulação expressa sobre a questão. Existem situações em que embora haja, no texto constitucional, uma solução para certo caso, tal resolução não se mostra adequada, uma vez que não aparenta ter o legislador constitucional considerado um aspecto especial, somente vislumbrado na prática. Trata-se da lacuna axiológica, em que o intérprete, utilizando-se de uma concepção valorativa, analisa as peculiaridades do caso concreto e entende por argumentos racionais, que seja necessário incluir, suprimir ou modificar algum dos elementos que a hipótese da norma indicou como relevantes18. Nesses casos, o intérprete não pode retirar do texto constitucional um significado preciso diretamente dos seus enunciados. A problemática que surge a partir disso é definir se a atividade hermenêutica deve ou não ser promovida pelo juiz de forma criativa, utilizando-se de valores substantivos não expressamente dispostos no bojo da Constituição. Nos Estados Unidos, destacam-se duas concepções em torno do tema, denominadas de interpretativismo e de não interpretativismo. A primeira delas entende que, em conformidade ao princípio da separação dos poderes, o significado das normas somente pode ser extraído da textura semântica do texto constitucional e da vontade do legislador.19 O método não interpretativista20, por sua vez, defende que os magistrados podem se utilizar de premissas axiológicas que ultrapassam os enunciados constitucionais, em busca de um ideal de justiça a ser alcançado na solução do problema concreto. Para os doutrinadores que sustentam essa posição dogmática, não há o que se falar em violação ao princípio da separação dos poderes, uma vez que a Constituição é soberana e os valores fundamentais nela inseridos não podem se subjugar ao interesse da maioria. 18 Cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 6ª edição, São Paulo, 2011, p. 102. 19 O autor J.J.GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Ed. Almedina, Coimbra, 2003, p. 1195) assinala que esse método não se confunde com o literalismo. 20 Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1196-1197 e DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 191/192. Afirmam, ainda, que a utilização de princípios abertos de justiça, igualdade e liberdade não comprometem a objetividade do julgamento, uma vez que precisam ser fundamentados racionalmente. Ademais, as utilizações desses postulados interpretativos aproximam o texto às circunstâncias fáticas, que são mutáveis, no tempo e no espaço. Na Alemanha, o desenvolvimento dos métodos interpretativos buscou analisar, também, essa problemática. O método hermenêutico-clássico21 sustentado por Ernst Forsthoff assenta-se na ideia de que a Constituição deve ser interpretada como uma lei geral, independentemente da densidade de seus textos, por meio das regras tradicionais de interpretação jurídica. Nesse sentido, a intervenção do intérprete é restrita ao texto normativo. O método científico-espiritual22 advogado por autores como Rudolph Smend, por sua vez, desenvolve a premissa de que a Constituição deve ser interpretada com base na realidade e nos valores que a integram, sendo esses e não o seu texto os verdadeiros parâmetros a serem seguidos pelo operador jurídico no momento de definir o seu conteúdo e alcance. O método tópico-problemático23 desenvolvido por Theodor Viehweg parte do problema e de suas especificidades concretas para a solução do conflito. No processo da argumentação jurídica, os dispositivos são considerados como meros topoi, de importância relativa, a ser considerada pelo intérprete juntamente com outros aspectos relevantes que possam influir no seu convencimento. Para Canotilho, a tópica seria “uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica do pensar problemático”24. Segundo esse modelo, a atuação do operador do direito mostra-se mais ampla e criativa. Outro método que merece destaque é o hermenêutico-concretizador25. Esse modelo interpretativo não desconsidera a importância do problema para a atividade 21 Cf. JANE REIS GONÇALVES PEREIRA, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, cit. p. 67. 22 Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1212. 23 Cf. PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, Malheiros Ed., São Paulo, 1999, p. 453/454. 24 Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1211. 25 KONRAD HESSE (Escritos de derecho constitucional, Trad. Pedro Cruz Villalón, 2ª edição, Fundación Coloquio Jurídica Europeo, Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, Madrid, 1992, p. 40) sustenta que, embora a Constituição Federal possua um caráter aberto e fragmentado, não há, em seu bojo, somente espaços vazios a serem preenchidos pelo intérprete. O seu conteúdo também dispõe sobre o hermenêutica, mas esse não é o seu ponto de partida. O parâmetro do qual decorre a avaliação do conflito de interesses é o texto constitucional, que servirá de limite para a atividade desempenhada pelo operador do direito. As mudanças históricas e sociais serão úteis ao intérprete, que não as pode ignorar. Contudo, a incorporação desses elementos só se faz possível nos casos em que a Constituição autoriza a sua infiltração. Se comparado aos métodos clássico, científico espiritual e tópico, o modelo hermenêutico-concretizador confere ao juiz uma intervenção intermediária, na medida em que sua atividade não fica adstrita ao texto constitucional, mas também não ignora a sua força vinculante. Todos esses métodos não estão isentos de críticas. Os defensores da corrente interpretativista entendem que a concepção não interpretativista desrespeita o princípio da separação dos poderes e permite que o intérprete assuma posições subjetivistas intoleráveis à manutenção da segurança jurídica. De outro lado, o método interpretativista é criticado por reduzir as normas constitucionais a uma concepção meramente formalista, distante dos ideais de justiça. Os métodos introduzidos pelos doutrinadores alemães também têm sido alvos de censuras. Enquanto o método clássico ignoraria as peculiaridades das normas constitucionais, inclusive no âmbito de suas densidades, os métodos científico-espiritual e tópico não considerariam, suficientemente, o caráter normativo da Constituição. De outro lado, o método hermenêutico-concretizador poderia encontrar dificuldades de ordem prática, uma vez que nem sempre o texto precisa os parâmetros que não podem ser ultrapassados pelo aplicador do direito. De qualquer forma, o que se pretende com essa breve exposição é demonstrar que a escolha do método interpretativo, bem como o papel da intervenção judicial na atividade hermenêutica constituem pontos polêmicos na dogmática jurídica. Contudo, entendemos que a atuação do aplicador do direito não pode ser restringida à mera subsunção do fato ao texto constitucional, tal como pregado pelos métodos interpretativista e clássico26. que não deve ficar em aberto. Nessa conformidade, o doutrinador frisa que “o que não aparece de forma clara como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da realidade”. 26 Como destaca CRISTINA QUEIROZ (Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 104/113) a vinculação à Isso porque a aproximação da moral ao direito introduziu nos ordenamentos, inclusive no brasileiro, proposições de ordem axiológica, dotadas de força vinculativa, que não apresentam respostas imediatas aos problemas concretos. Tais enxertos foram feitos, de maneira intencional, a fim de que os direitos fundamentais fossem efetivamente assegurados, ao longo dos tempos, independentemente da posição ideológica adotada pela maioria que exercesse o poder político, exigindo do intérprete uma postura criativa, mas provida de racionalidade e coerência, fulcrada em parâmetros objetivos27. Se a Constituição existe para ser um instrumento de convivência social, a interpretação a ela conferida não pode ignorar a realidade que a cerca, sob pena de se transformar em um mero pedaço de papel, desprovido de utilidade prática e carente de legitimidade. Em conformidade às palavras do Juiz Robert H. Jackson, da Suprema Corte Americana, a Constituição não é um pacto suicida28. Assim, a Constituição não constitui um fim em si mesmo. Ao contrário. Trata-se de um compromisso pactuado pela sociedade e que deve ser direcionado, através dos seus intérpretes, para atender aos anseios fundamentais dos cidadãos, os quais não são estáticos, tampouco podem ser sintetizados em fórmulas exatas29. 3. O artigo 5º, inciso lV, da Constituição Federal de 1988 A partir das premissas apresentadas, inicia-se o enfrentamento do problema, objeto de investigação. Constituição escrita não exclui o direito constitucional não escrito. Para a autora, os juízes tem o poder de aplicar normas constitucionais que possuam efetividade social, que estabeleçam uma “constituição vivente”. Nessa conformidade, DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR (Curso de Direito Constitucional, cit., p. 193/199) afirma que o juiz promove uma atividade de atualização constitucional, a qual não pode restringir-se aos métodos de interpretação de subsunção, uma vez que, embora os processos legislativo e jurisdicional não se confundam, “não há monopólio legislativo na formulação do direito”. 27 Nesse sentido, MAURO CAPPELLETTI, Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Ed. Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1993, p. 24/25 e GUSTAVO BINENBOJM, A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira, Legitimidade democrática e Instrumentos de realização, 3ª edição, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2010, p. 48/60. 28 Cf. precedente Terminiello v. Chicago 337 US 1 a 37 (1949) da Suprema Corte Americana. 29 A respeito da necessidade da interpretação ser realizada à luz das vicissitudes concretas, é válido mencionar o caso Brown vc. Board of Education 347 US 483 (1954), em que a Suprema Corte Americana, expressamente, declarou que a interpretação constitucional a respeito do tema não poderia regredir ao ano de 1868, data em que se firmou o precedente Plessy vs. Ferguson 163 US 537 (1896). Para o Tribunal Constitucional, a problemática em torno da educação pública e da segregação racial tinha que avançar ao momento atual da vida americana. O que se pretende é saber se representações criminais anônimas podem ser utilizadas nos procedimentos criminais, sem que sejam consideradas provas ilícitas capazes de gerar nulidade processual. Trata-se de um tema polêmico no Brasil. O debate em torno dele surgiu a partir de alguns julgados proferidos pelos Tribunais Superiores, que entenderam pela impossibilidade do emprego de notícias criminais, sem subscrição, nos procedimentos penais30, em virtude da Constituição Federal pátria prever em seu artigo 5º, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Para a análise específica da questão, faz-se necessário tecermos algumas considerações sobre esse enunciado constitucional, relacionando-o ao que foi até o momento esposado nos itens acima. A Constituição Federal de 1988 contêm inúmeros dispositivos previstos de forma dialética, em que se protege um determinado direito fundamental ao mesmo tempo em que se estabelece uma limitação ao seu exercício31. São enunciados em que o Legislador Constituinte decidiu ele próprio avaliar todos os interesses contrapostos possíveis de colisão no momento de suas aplicações concretas, estabelecendo, de imediato, as hipóteses em que determinado direito poderá ser exercido livremente pelo cidadão e sob quais condições o seu desenvolvimento será restringido32. O dispositivo analisado nesse trabalho é um deles. Afinal, a segunda parte do enunciado constitucional em exame, que veta o anonimato, corresponde a uma expressa restrição constitucional ao direito fundamental de liberdade de pensamento33. Tratam-se das denominadas restrições diretamente constitucionais apontadas por Robert Alexy34. 30 Cf. capítulo IV, item 4. O artigo 5º, inciso IV, como vimos, dispõe que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. O artigo 5º, inciso XV determina que: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. O artigo 5º, inciso XVI estabelece que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. O artigo 5º, inciso XVII giza que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”. 32 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 571. 33 Para os adeptos da teoria interna dos direitos fundamentais, a segunda parte do enunciado constitucional em exame, que veta o anonimato, corresponderia aos limites imanentes do próprio direito de livre manifestação do pensamento, não se tratando de uma restrição. Nesse trabalho, não será possível adentrar nas diferenças existentes entre as teorias interna, externa e de direitos fundamentais enquanto 31 Para tratar do tema, o autor apresenta um exemplo interessante, o qual pode ser aplicado ao caso em exame, mutatis mutandis. Trata-se do dispositivo previsto no artigo 8º, §1º, da Constituição Alemã, que consagra o direito à reunião, acrescido da expressão “pacificamente e sem armas”. O legislador constituinte, ao prever que as reuniões sejam efetuadas de forma pacífica e sem a utilização de armas restringiu, no próprio texto constitucional, a liberdade de reunião, estabelecendo uma regra de comportamento que limitou a realização desse direito35. Não se pode olvidar que, embora a regra constitucional já prescreva as condutas vedadas, há necessidade de que o intérprete a complemente, a fim de esclarecer o que vem a ser considerado como uma reunião pacífica. De igual forma, ao determinar que a manifestação do pensamento seja exercida livremente e, ao proibir o anonimato, o legislador constituinte redigiu, em um único dispositivo, expressões finalísticas semanticamente abertas (manifestação do pensamento) e expressões de natureza comportamental dotadas de significado mais preciso (vedação ao anonimato). No caso da vedação ao anonimato, entendemos que a restrição imposta pelo Poder Originário apresenta maior precisão do que no exemplo apresentado por Alexy. Afinal, o signo “anônimo” possui um conteúdo mais determinado. Entende-se por anônimo algo sem denominação ou alguém sem nome ou que não o declara, que não o escreve36. Contudo, ao garantir a livre manifestação do pensamento, o legislador constituinte o fez com certa ambiguidade, uma vez que se utilizou de uma expressão polissêmica, princípios, pela dimensão extensa que o tema apresenta, não sendo esse o objeto da presente investigação. Adotamos a teoria externa e será com base em seus preceitos que se desenvolverá o problema aqui proposto. 34 Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 286/291. Nesse mesmo sentido, J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1276. 35 Para ROBERT ALEXY (Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 287) “a cláusula ´pacificamente e sem armas` pode ser interpretada como uma formulação resumida de uma regra, que transforma os direitos prima facie decorrentes do princípio da liberdade de reunião em não-direitos definitivos. Isso corresponde exatamente à definição de restrição fornecida acima. A regra expressa pela cláusula restringe a realização de um princípio constitucional. Sua peculiaridade consiste no fato de que foi o próprio constituinte que estabeleceu a restrição definitiva. A disposição constitucional tem, nesse sentido, a natureza de regra. Mas, por trás do nível da regra, o nível de princípio mantém sua importância. Se está claro que uma reunião não é pacífica, ela não goza de proteção do art. 8º. No entanto, para se avaliar e uma reunião não é pacífica é necessária, em todos os casos duvidosos, uma intepretação do conceito de não-pacividade”. 36 Disponível em http://www.michaelis.uol.com.br. Acesso em 16.06.2012. que dá ensejo a vários sentidos, de complexa aplicação. Da sua análise literal, não há como identificar o seu âmbito de proteção, ou seja, quais as condutas protegidas, efetivamente, por esse direito fundamental, o que somente poderá ser avaliado a partir de um processo de interpretação constitucional. Portanto, é pressuposto descobrir se as notícias criminais são consideradas livres manifestações do pensamento, uma vez que o legislador constitucional não disciplinou o tema através de um dispositivo específico, existindo uma lacuna constitucional, a ser suprida pelo operador do direito. Somente após o esclarecimento dessa problemática é que se poderá analisar se a restrição que veta o anonimato incidirá ou não sobre as representações dessa natureza. Para nós, uma conclusão já pode ser obtida. A resposta ao problema não pode ser extraída diretamente do texto constitucional, de forma subsuntiva. Não se trata de um assunto já definido, previamente e de forma definitiva, pelo Legislador Constituinte, embora ele tenha estabelecido parâmetros a serem seguidos. Ao contrário. A demarcação do conteúdo, do sentido e do alcance do direito à livre manifestação do pensamento depende essencialmente da intervenção criativa do intérprete, em particular do juiz. E, é nesse contexto que não se pode deixar de considerar dados da realidade, capazes de conferir, ao final da atividade interpretativa, um significado justo e adequado ao sistema. O capítulo seguinte pretende delimitar o âmbito de proteção desse dispositivo constitucional, através de uma investigação em torno da liberdade de expressão e da sua construção dogmática, a fim de desvendar se as representações criminais anônimas que relatam a prática de crimes podem ou não serem feitas anonimamente. CAPÍTULO II A LIBERDADE DE EXPRESSÃO: DILEMAS TEÓRICOS EM TORNO DO SEU ÂMBITO DE PROTEÇÃO 1. Da delimitação do âmbito de proteção Segundo Gilmar Ferreira Mendes “a definição do âmbito de proteção configura pressuposto primário para a análise de qualquer direito fundamental37”. Delimitar o âmbito de proteção é precisar quais são os bens38 que, a princípio, estão ou não protegidos pelo direito fundamental e que poderão, posteriormente, ser restringidos pelos Poderes Públicos. Trata-se de uma fase inicial, de “apuramento dos contornos jurídicos do direito fundamental”39. Somente após um controle de constitucionalidade efetivo em relação às limitações externas estatais que eventualmente recaiam sobre esse conteúdo inicialmente protegido é que se chegará ao resultado final da equação, qual seja a identificação do conteúdo de garantia efetivo. É claro que delimitar o conteúdo do direito fundamental, nem sempre, constitui uma tarefa fácil, a não ser que se adote uma teoria ampliativa, em que tudo deve, a 37 Cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 219/220. 38 Segundo VIRGILIO AFONSO DA SILVA (Direitos fundamentais, conteúdo essencial, restrições e eficácia, Malheiros Ed., São Paulo, 2009, p. 72/73) esses bens são todas as ações, estados ou posições jurídicas que serão objeto de proteção por um determinado direito fundamental. 39 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 301. princípio, ser incluído no âmbito de proteção, para, depois, ser, eventualmente, excluído pelo intérprete, através de um processo de ponderação entre os interesses conflitantes40. Contudo, essa definição propositadamente aberta desconsidera que a precisão do âmbito de proteção do direito corresponde a uma fase essencial no processo de busca do seu conteúdo definitivo, a qual não pode ser comprimida pelo intérprete. O delineamento das ações, a priori, protegidas pelo direito fundamental é de grande valia, pois promove maior segurança jurídica, na medida em que identifica, em abstrato e, desde que fundamentadamente, as condutas passíveis de serem protegidas pelo direito fundamental, as quais poderão ser replicadas, posteriormente, de forma objetiva, ainda que sobre elas incidam futuras restrições. Se toda e qualquer conduta minimamente compatível ao direito fundamental for incluída no âmbito de proteção do direito, tal como sustentado pela teoria ampliativa, o trabalho do intérprete será muito mais dispendioso na fase seguinte, quando todos os direitos e interesses deverão ser por ele sopesados, ainda que frutos de colisões de direitos aparentes, produtos de uma má avaliação prévia do seu conteúdo normativo41. O problema é que o resultado dessas ponderações dificilmente pode ser previsto antecipadamente, uma vez que depende das peculiaridades específicas de cada caso concreto, comprometendo, muitas vezes de forma desnecessária, a estabilidade jurídica do ordenamento. Por todas essas razões, concordamos com a concepção restritiva mitigada defendida por Jorge Reis Novais42. Há ações que, de forma evidente, não podem ser incluídas no âmbito de proteção de um direito fundamental. Será que alguém defenderia que o direito à liberdade religiosa permite o sacrifício humano ou que a conduta intencional de estuprar uma mulher encontra respaldo no direito geral à liberdade? Certamente que não. 40 A concepção ampliativa do âmbito de proteção é defendida por ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 307/332. Nesse mesmo sentido, VIRGILIO AFONSO DA SILVA, Direitos fundamentais, conteúdo essencial, restrições e eficácia, cit., p. 109/113. Para esse autor, o que deve ser protegido pelo direito fundamental é “toda ação, estado ou posição jurídica que tenha alguma característica que, isoladamente considerada, faça parte do âmbito temático de um determinado direito fundamental, independentemente da consideração de outras variáveis”. 41 Cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 266. 42 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 425/436. Em situações como essas, o trabalho do intérprete pode ser desenvolvido de forma mais célere, com a exclusão, já na primeira fase de avaliação, de uma conduta do âmbito de proteção do direito fundamental, sem que seja necessário ponderar os direitos e os interesses opostos43. Afinal, por mais conciliador e por mais receptivo às posições dissonantes que um Estado Democrático de Direito pretenda ser no propósito de respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, não há o que se falar em reconhecimento de um direito de liberdade, ilimitado, capaz de permitir que cada um faça aquilo que quiser, independentemente das suas repercussões aos demais membros da comunidade. Existem comportamentos em que a consciência jurídica pacificou, de forma inquestionável, como sendo indignos de proteção jusfundamental, em razão de provocarem uma danosidade social evidente e intolerável44, tal como se verifica em determinadas condutas graves sujeitas a sanções penais, como os crimes dolosos contra a vida e contra a liberdade sexual45. De outro lado, há ações que, embora não sejam evidentemente reprováveis, também podem ser pré-excluídas do âmbito de proteção de um determinado direito fundamental, ainda que com ele apresente uma relação ocasional, uma vez que possuem uma aproximação mais específica com outro direito que, de igual forma, goza de garantia jurídica constitucional. 43 O autor JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO (A Estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, v. II, Ed. Almedina, Coimbra, 2006, p. 474) defende que em situações de dúvidas, ou seja, nos casos em que não se constata, de forma evidente, que a conduta deve ser excluída do âmbito de proteção, o conteúdo do direito fundamental deve ser delimitado de forma alargada. 44 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 427. É importante, destacar, que para o autor nem todas as condutas sujeitas às sanções penais infraconstitucionais devem ser excluídas, de plano, do âmbito de proteção de um direito fundamental, mas tão somente aqueles comportamentos cuja criminalização seja incontroversa, consensualmente necessária, de acordo com a consciência jurídica geral. Concordamos com o seu posicionamento. 45 O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre o tema, adotando, de forma reiterada, o entendimento de que o âmbito de proteção dos direitos fundamentais não podem incluir condutas ilícitas. Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes: HC 70.814, HC 79.285 e o HC 82.424. Nesse último, relacionado à liberdade de expressão, o Min. Rel. Maurício Corrêa sustentou que: “O direito à liberdade de expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdos imorais, que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ´direito à incitação ao racismo`, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica”. Não se pode olvidar que a inclusão equivocada de uma determinada conduta no bojo de um direito fundamental que com ele não possui relação jurídica estreita pode criar conflitos aparentes de interesses, mobilizando, de forma indevida, o aparelho jurídico estatal. E pior do que isso. A ponderação entre bens que não precisavam ser sopesados pode gerar insegurança jurídica ao ordenamento e produzir resultados equivocados, incapazes de promover uma interpretação uniforme e coerente do sistema. De qualquer forma, é válido repetir a advertência de que a exclusão de determinada ação do âmbito de proteção de um direito fundamental deve ser feita, sempre, motivadamente. Em alguns momentos a argumentação será construída mais facilmente, como nos casos que tratam de comportamentos claramente contrários à consciência jurídica do Estado de Direito. Mas, em outros, esse trabalho será mais complexo, como nos casos em que é necessário avaliar, com maior detalhamento, o nível de afinidade existente entre a ação, objeto de análise, e o direito fundamental46. É justamente nesse processo de identificação precisa do conteúdo do direito que a interpretação jurídica constitui um mecanismo essencial. Segundo Jorge Reis Novais, a delimitação do conteúdo de um direito fundamental será o produto de “um processo de construção dogmática do direito fundamental e, primariamente, de interpretação da conceitualidade ínsita na norma de direito fundamental, logo, com recurso aos procedimentos e princípios próprios da interpretação constitucional”47. Nesse diapasão, para precisar se as representações criminais fazem parte do conteúdo do artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, é imprescindível realizar uma análise mais pormenorizada sobre o âmbito de proteção do direito à liberdade de manifestação do pensamento, definir a sua relação com a liberdade de expressão e se existem outras liberdades comunicativas que dela decorrem e que se amoldam de forma mais específica ao direito à representação. Tudo, com o intuito final de responder a questão central dessa investigação, qual seja, se as delações anônimas criminais são admissíveis no ordenamento jurídico brasileiro. 46 Nesses casos, perfilhamos o método defining out de Schauer, em que se parte de uma análise ampla das condutas prováveis de serem abrangidas para, depois, paulatinamente, desenvolver os fundamentos que irão resultar nas suas exclusões, através da interpretação constitucional. Sobre o tema, ver JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 434. 47 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 394/395. Essas premissas teóricas, aliás, serão abordadas a seguir. 2. Considerações gerais em torno da liberdade de expressão A liberdade de expressão é considerada um dos princípios basilares de qualquer Estado Democrático de Direito48. E a sua fundamentalidade inata decorre de duas concepções distintas, mas não antagônicas. A primeira delas apresenta um caráter individualista, de índole liberal. A liberdade de expressão busca o seu fundamento no livre desenvolvimento da personalidade e no princípio da dignidade da pessoa humana49. Trata-se de um direito geral de liberdade. O Estado, em regra, deve respeitar a sua fruição, somente lhe sendo defeso limitá-la em situações excepcionais e constitucionalmente justificadas. A segunda concepção possui uma visão instrumental, eis que vislumbra na liberdade de expressão um meio para a prática da democracia50. Afinal, para que as pessoas possam opinar de forma crítica e intervir ativamente na vida política da qual fazem parte, é necessário garantir-lhes o acesso e a divulgação de informações, bem 48 A primeira vez que a liberdade de expressão foi enunciada, expressamente, no bojo de um texto normativo foi no primeiro aditamento à Constituição Americana de 1787, que estabelece que: “O Congresso não aprovará lei alguma relativa à implantação de uma religião ou proibindo o culto de alguma delas; nem lei que restrinja à liberdade de palavra ou de imprensa, nem o direito do povo de reunir pacificamente; nem de apresentar petições ao governo para reparação de situações injustas”. Na França, a liberdade de expressão foi prevista, de forma explícita, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 11, que aduz que: “a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem”. 49 A respeito da perspectiva substantiva da liberdade de expressão, DANIEL SARMENTO (“A Liberdade de Expressão e o Problema do “Hate Speech”, in Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional, Daniel Sarmento, 2ª edição, Ed. Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2010, p. 241/242) afirma que a possibilidade de cada indivíduo divulgar os seus pensamentos e de exprimir as suas manifestações artísticas constitui a dimensão essencial da dignidade da pessoa humana. Segundo o autor “quando se priva alguém dessas faculdades, restringe-se a capacidade de realizar-se como ser humano e de perseguir na vida os projetos e objetivos que escolheu”. Nesse mesmo sentido, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 92/93. 50 MANUEL MARTÍNEZ SOSPENDRA (Libertades Públicas, Tomo II, Fundación Universitaria San Pablo, CEU, Valencia, 1993, p. 239/241) defende que os direitos relacionados à liberdade de expressão possuem intensa relação com o Estado Democrático de Direito. Isto porque a liberdade de expressão serve de elemento formador da opinião pública, base da democracia, possibilitando o efetivo controle dos poderes públicos pelos cidadãos, além de constituir um instrumento necessário para o exercício de outros direitos fundamentais indispensáveis ao desenvolvimento desse regime. Veja-se, também, FRANK MICHELMAN, “Relações entre democracia e liberdade de expressão: discussão de alguns argumentos”, Trad. Marcelo Fensterseifer e Tiago Fensterseifer. Revisão da tradução por Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). In: INGO WOLFGANG SARLET. Direitos fundamentais, informática e comunicação: algumas aproximações, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007, p. 49/52. como proporcionar-lhes um ambiente em que impere o livre mercado de ideias51. Somente assim poderão formatar seus pensamentos, exprimir, entre si, suas opiniões, transmitir e receber fatos, através de um processo dialético e democraticamente salutar. Para Habermas o futuro da democracia depende essencialmente do desenvolvimento alcançado pela comunicação. A sua ideia de democracia deliberativa encontra o sustentáculo máximo no discurso, na possibilidade de haver um debate livre, racional e igualitário sobre questões fundamentais da sociedade, em busca do consenso social52. Importante contributo em defesa da liberdade de expressão, nessa vertente instrumental, também foi apresentado pelo filósofo John Stuart Mill que entende que o exercício desse direito fundamental deve ser valorizado para a identificação da verdade, uma vez que a livre manifestação de informações e de pensamentos acarreta resultados frutíferos para a sociedade, corrigindo-se eventuais equívocos e produzindo-se boas práticas53. Assim, seja para garantir a possibilidade das pessoas terem as suas próprias opiniões e efetuarem as suas próprias escolhas, seja para assegurar o livre debate de ideias e de informações, indispensável ao desenvolvimento da democracia, o fato é que a liberdade de expressão constitui um direito diretamente atrelado à própria condição do ser humano, fundamental para a sua existência como indivíduo e como membro de uma comunidade54. 51 Essa expressão teve origem no bojo de um voto vencido proferido pelo Juiz da Suprema Corte Americana, Oliver Wendell Holmes, no caso Abrahams v. United States - 250.U.S.616 (1919). 52 Cf. JÜRGEN HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa, vol. I, Ed. Taurus, México, 1988, p. 26/27. 53 Para JOHN STUART MILL (Sobre a Liberdade, Ed. 70, Coimbra, 2006, p. 49/103) há três possibilidades acerca de uma opinião, todas benéficas e úteis à comunidade: uma verdadeira, uma parcialmente verdadeira e uma totalmente falsa. Nos dois primeiros casos, a sua veiculação é fundamental, para que as pessoas tenham acesso a novas verdades. Mesmo no caso em que a opinião seja integralmente inverídica, a sua divulgação tem serventia, na medida em que permite que pessoas tenham acesso as manifestações dos seus adversários e as empregue para o melhor conhecimento das próprias opiniões. A única ressalva feita pelo filósofo liberal capaz de limitar o exercício dessa liberdade refere-se a sua utilização para a incitação da violência. 54 O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar sobre a importância da liberdade de expressão no Estado Democrático de Direito em diversas oportunidades, mas foi no bojo da ADPF nº 130 que o tema recebeu ainda mais destaque. Tratava-se de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo Partido Democrático Trabalhista com o objetivo de questionar a recepção da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967) pela Constituição de 1988. A Corte Constitucional, por maioria, entendeu pela inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, considerada incompatível com o atual ordenamento jurídico pátrio. Mas, em seus votos, os Ministros enalteceram a importância do direito à A partir dessas conclusões, é importante definir o que vem a ser a liberdade de expressão e quais são as condutas abrangidas por esse direito. 3. A liberdade de expressão e sua abrangência Por todos os valores que a liberdade de expressão representa a sua abrangência deve compreender inúmeros comportamentos e posições jurídicas, caracterizados por gestos, sinais, movimentações corporais, mensagens verbais ou escritas, representações artísticas, sons e imagens, dentre outras tantas e imprevisíveis maneiras de comunicação55. Entretanto, não se trata de um entendimento baseado na concepção ampliativa do âmbito normativo, tal como defendida por Alexy, em que toda e qualquer conduta deve, a princípio, receber proteção jusfundamental, para a seguir, ser, eventualmente, excluída pelo intérprete, por meio de um processo de ponderação entre os interesses em conflito. A doutrina vem travando debates a respeito das condutas protegidas, a priori, pelo direito à liberdade de expressão e tem entendido, de forma majoritária, que as movimentações corporais violentas estão excluídas do seu conteúdo56. Assunto que tem gerado divergência em torno do âmbito de proteção da liberdade de expressão refere-se aos discursos que propagam a prática de crimes em geral 57 e liberdade de expressão e do direito da imprensa, com base nas concepções substancialista e instrumental, as quais foram aplicadas conjuntamente. Nessa conformidade, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes pronunciou-se da seguinte forma: “Reafirmar e assim enfatizar, o significado da liberdade de imprensa no Estado Democrático de Direito não é tarefa estéril, muito menos ociosa. Se é certo que, atualmente, há uma aceitação quase absoluta de sua importância no contexto de um regime democrático e um consenso em torno de seu significado como um direito fundamental universalmente garantido (...)”. 55 A interpretação que tem sido conferida ao âmbito de proteção da Primeira Emenda da Constituição Americana, segundo JORGE REIS NOVAIS (As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 641), tem sido “de forma suficientemente lata para abranger praticamente todas as liberdades comunicativas, desde a liberdade de expressão do pensamento e de imprensa ao direito de petição, desde a liberdade de associação e reunião à liberdade de crença e de religião, da liberdade de aprender e ensinar à liberdade de arte e de investigação científica”. 56 Nesse sentido, PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 298; RAFAEL LORENZO – FERNANDEZ KOATZ, “As Liberdades de Expressão e de Imprensa na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica, Daniel Sarmento e Ingo Wolfgang Sarlet (coord.), Ed. Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 398. 57 No Brasil, são frequentes as ações judiciais interpostas com o intuito de discutir a possibilidade de se realizar protestos em vias públicas, para a liberação do comércio da maconha, cujo consumo, no país, é criminalizado. Encontra-se sob julgamento, no Supremo Tribunal Federal, a ADPF nº 187, com relatoria do Min. Celso de Mello, a qual foi proposta pelo Ministério Público Federal, pleiteando que o artigo 287, aqueles relacionados ao “hate speech”. Por discursos de incitação ao ódio entendem-se aqueles com conotação racista, preconceituosa, ofensiva e de instigação à violência58. Aqueles que defendem o abrigamento do discurso do ódio no âmbito do direito à liberdade de expressão argumentam que a sua censura não impediria a existência da intolerância, sendo sempre salutar o livre debate de opiniões na sociedade. Em contrapartida, os opositores dessa linha de entendimento sustentam que o direito à liberdade de expressão não pode ser elastecido exacerbadamente, a ponto de incluir, em sua esfera de tutela, manifestações que constituem verdadeiros ilícitos criminais59. Ainda no âmbito de proteção, outro ponto polêmico refere-se à possibilidade de, além do discurso, incluir-se em seu bojo também a conduta do indivíduo, desde que não violenta. Nos Estados Unidos, em especial, esse assunto tem sido objeto de inúmeras controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais60. do Código Penal, que veta a apologia ao crime, receba uma interpretação conforme a Constituição, permitindo que pessoas participem de protestos dessa natureza, conhecidos por “marchas da maconha”, uma vez que tal comportamento estaria, segundo o entendimento do Parquet, abrangido no conteúdo da liberdade de expressão. 58 A Constituição da África do Sul menciona, expressamente, em seu artigo 16.2.“b”, que a liberdade de expressão não abrange a violência iminente, nos seguintes termos: “The right in subsection (1) does not extend to: (...) b) incitement of iminent violence”. 59 No ano de 2003, o Supremo Tribunal Federal analisou se ilícitos criminais poderiam ser incluídos no âmbito de proteção do direito à liberdade de expressão, no denominado “caso Ellwanger”. O réu, Siegfried Ellwanger Castan, sócio da Revisão Editora Ltda., respondia processo criminal pela prática do crime de racismo, em razão de editar e publicar livros com conteúdo antissemita. Esgotados os recursos cabíveis e condenado pela prática do crime a ele imputado, Ellwanger ajuizou Habeas Corpus perante o Supremo Tribunal Federal que indeferiu a ordem pleiteada, por oito votos contra três. São válidas de nota as discordâncias constatadas no bojo dos votos dos Ministros, demostrando que o assunto é, de fato, polêmico. Para ilustrar, indicamos, resumidamente, os argumentos utilizados por dois Ministros. O Min. Gilmar Ferreira Mendes entendeu que discursos dessa natureza se encontravam, inicialmente, protegidos pela liberdade de expressão e que a situação no caso concreto deveria ser resolvida através da ponderação dos interesses envolvidos, a fim de se decidir sobre o conteúdo definitivo desse direito. Após efetuar a ponderação, o Ministro votou pela denegação da ordem de habeas corpus, entendendo que a condenação do paciente era idônea para atingir o fim pretendido, qual seja o asseguramento de uma sociedade tolerante; necessária, pois não haveria outro meio menos gravoso e igualmente eficaz para o atingimento desse fim e, por fim, proporcional, pois a liberdade de expressão não abarcaria o racismo e a incitação à violência. O Ministro Celso de Mello entendeu que o âmbito de proteção da liberdade de expressão não pode englobar manifestações criminosas, inexistindo conflito de interesses, eis que a norma constitucional não protege o delito de racismo. Com base nessas razões, votou pelo indeferimento do pleito. (HC 82.424/2003, Rel. Min. Mauricio Corrêa, publicado em DJ 19.03.2004). 60 A dicotomia entre discurso (speech) e conduta (conduct) foi objeto de análise em reiterados precedentes judiciais decididos pela Suprema Corte Americana. É interessante destacar a forma com que o Juiz Hugo Black, entre as décadas de 60 e setenta, do século passado, interpretava esses comportamentos, separando, de forma estanque, os meios simbólicos de expressão do discurso puro, sendo que, segundo o seu entendimento, somente esse último estaria protegido pelo Primeiro Aditamento. Nesse sentido, tem-se o caso Tinker v. Des Moines Independent Commune School District 393 US 503 (1969), em que o Juiz Black, em voto vencido, sustentou que a utilização de braçadeiras negras por alunos como forma de protesto à guerra do Vietnã se tratava de conduta não tutelada pela liberdade de expressão. Posteriormente, o tema continuou sendo objeto de debate na Suprema Corte Americana, destacando-se os precedentes Texas v. Johnson 491 US 397 (1989) e United States v. Eichman 496 US 310 (1990). O Outro questionamento que se levanta em torno da abrangência da liberdade de expressão refere-se a sua autonomia frente ao direito à informação. Sobre o tema a doutrina não se mostra pacífica e seus posicionamentos podem ser resumidos em duas correntes principais: A primeira entende que para atingir os seus fins substantivos e instrumentais, a liberdade de expressão em sentido amplo corresponde a um direito geral de comunicação e engloba inúmeras liberdades comunicativas, dentre as quais os direitos de opinião, de informação, de imprensa, do jornalista, de radiofusão, de petição, de livre manifestação artística, intelectual e científica, de liberdade de aprender e de ensinar61; A segunda distingue as liberdades de expressão e de informação. Para essa corrente a distinção entre ambas é tão nítida que impossibilita a sua análise sob uma única perspectiva, como se tratassem do mesmo direito. Enquanto a liberdade de expressão refere-se à exposição de ideias, opiniões, manifestações e juízos de valor, possuindo uma índole subjetiva, atrelada às manifestações do primeiro, de 1989, refere-se ao americano Gregory Lee Johnson, membro da Brigada da Juventude Revolucionária Comunista, responsável pela queima da bandeira americana, como protesto à administração realizada pelo Presidente Reagan, em uma convenção do partido republicano, em Dallas. Em razão de ter sido multado em dois mil dólares e condenado à pena de detenção de um ano, por violação a uma Lei do Estado do Texas que proibia que a bandeira dos Estados Unidos fosse vilipendiada, Gregory Lee Johnson levou o caso até a Suprema Corte Americana que decidiu, por cinco votos contra quatro, que tal conduta constituía um protesto político e recebia proteção concedida pela 1ª Emenda, uma vez que, embora tal ato causasse reprovação aos olhos da maioria da sociedade, há um princípio fundamental que se sobrepõe ao interesse dessa maioria. O Congresso americano, por sua vez, discordou do julgamento, aprovando, ainda nesse ano, uma lei de proteção em favor da bandeira nacional denominada “Flag Protection Act”, a qual foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte, no âmbito do caso United States v. Eichman, em 1990. No Brasil, é considerado crime aviltar a bandeira, nos termos da Lei nº 5.443/68, não tendo esse expediente normativo sido declarado inconstitucional. 61 Nesse sentido, JÓNATAS E.M.MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 371. É importante ressaltar que o autor diferencia a liberdade de expressão em sentido amplo, também chamada de liberdade de comunicação, da liberdade de expressão em sentido estrito, denominada de liberdade de opinião. Esse subsistema, juntamente com outras liberdades comunicativas, como a liberdade de informação, a liberdade de imprensa, dentre outras, decorrem do direito universal à liberdade de expressão, lato sensu, encontrando-se inseridas em seu âmbito de abrangência. Veja-se, ainda, PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 297; LUIZ ROBERTO BARROSO, Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, in Revista Trimestral de Direito Civil – RTC, v.16, outubro/dezembro de 2003, Ed. Padma, Rio de Janeiro, p. 59/102; RAFAEL LORENZO-FERNANDEZ KOATZ, As Liberdades de Expressão e de Imprensa na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cit., p. 398; AURELIA MARIA ROMERO COLOMA, Derecho a la Información y a la libertad de expresion, Bosch, Barcelona, 1984, p. 33 e JUAN JOSÉ SOLOZÁBAL ECHAVARRÍA, La libertad de expresión desde la teoria de los derechos fundamentales, in Revista Española de Derecho Constitucional, año 11, nº 32, mayo-agosto de 1991, Madrid, p. 81. pensamento, a liberdade de informação busca a comunicação e a recepção de fatos, de dados objetivos62. Ao analisar a questão sob a ótica dos textos internacionais, verificam-se, pelo teor dos seus conteúdos, as suas inclinações para a primeira corrente63. Em nosso entender, a livre manifestação do pensamento e o direito à informação correspondem aos “braços” de uma estrutura maior, porém única64, qual seja, a liberdade de expressão em sentido amplo, uma vez que ambos, em conjunto ou individualmente considerados, pretendem proteger as diferentes formas de interação comunicativa tuteladas por esse direito geral. Com isso não se quer afirmar que, por fazerem parte da liberdade de expressão, constituem institutos idênticos. Ao contrário. As diferenças entre eles são marcantes e possuem significativas repercussões práticas. Esse, aliás, será o tema do próximo item. 62 Adota esse posicionamento TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad, Ed. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madri, 2001, p. 122. Ao analisar a questão sob a ótica da realidade espanhola, o autor afirma que: “Por lo tanto, se puede observar que la comuncación de hechos y la expresión de ideas y opiniones presentan substanciales diferencias. Estas diferencias, junto al hecho de su reconocimiento por la Constitución em epígrafes separados, que evidencia que el constituyente pretendía garantizar um derecho diferente a la clásica libertad de expresión, nos permite llegar a la conclusión de que se trata de dos derechos fundamentales”. Com esse mesmo entendimento, destacam-se LUIS GUSTAVO GRANDINETTI CASTANHO DE CARVALHO, Direito de informação e liberdade de expressão, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1999, p. 25/55; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I (arts. 1º a 79), 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 852 e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, cit, p. 117/123. 63 A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 19, dispõe que: “Todo indivíduo tem direito a liberdade de opinião e de expressão, este direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões, o de difundi-las sem limitações de fronteiras, por qualquer meio de expressão”. De igual forma, o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos de 1950, em seu artigo 10.1, estabelece que: “Toda pessoa tem direito a liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião, a liberdade de receber ou comunicar informações e ideias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem consideração de fronteiras”. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu artigo 19.2, também, enuncia que: “Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha”. 64 Para JÓNATAS E. M. MACHADO (Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, cit., p. 372), o direito à liberdade de expressão constitui um direito mãe de todas as outras liberdades comunicativas, “devendo a tarefa de concretização hermenêutica dessas últimas reportar-se às finalidades substantivas que historicamente foram sendo adscritas, por via interpretativa, à liberdade de expressão”. 4. Pensamentos X Informações As delimitações do âmbito de proteção dos direitos que compreendem a liberdade de expressão dependem de uma melhor investigação sobre o significado de alguns dos elementos essenciais que os compõem. Mais precisamente é necessário que se compreenda o que vem a ser “pensamento” e “informação”. Os pensamentos, as exposições de ideias e de opiniões constituem expressões relacionadas à interioridade humana, a juízos de valor, sendo, portanto, de ordem subjetiva65. Seu objetivo é mais individual do que coletivo, está relacionado ao desenvolvimento da personalidade do homem. Para Jónatas E. M. Machado são reações de índole ideológica, emocional, moral ou estética66. Ao se deparar com essa forma de comunicação, não se faz possível uma análise que não seja meramente valorativa, podese concordar ou não com ela, gostar ou não, mas dificilmente se poderá exprimir uma avaliação do tipo certo ou errado, verdadeiro ou falso. O autor Tomás de Domingo Pérez resume essa forma de comunicação subjetiva em três grupos, sendo o primeiro formado pelas ideias que um indivíduo cria, em seu âmbito interior, através de um processo indutivo, a partir de suas experiências pessoais, sem vinculá-las a algum acontecimento concreto. O segundo compõe os sentimentos e as emoções de cada um e o terceiro é de ordem mais concreta, em que há a exteriorização de uma valoração acerca de um acontecimento concreto, a partir das ideias e dos sentimentos pessoais67. Por sua vez, as informações, buscam a comunicação de fatos, de acontecimentos concretos, de utilidade social, por meio de um estado de inteligibilidade, que envolve um discurso racional articulado68. Nesse caso, as manifestações são de natureza objetiva, cuja avaliação pode ser feita na modalidade certa ou errada, verdadeira ou 65 Nesse sentido, J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, artigos 1º a 107, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 572. 66 Cf. JÓNATAS E.M.MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, cit., p. 786. 67 Cf. TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad, cit., p. 210/211. 68 Para JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO (Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, cit., p. 119/121), a informação possui como requisitos a inteligibilidade, a utilidade social, a veracidade de seu conteúdo e a continência formal. Com esse mesmo posicionamento, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 848. falsa. Trata-se de situações bastante relacionadas à liberdade da imprensa, mas como veremos adiante, não somente a ela. Ressalta-se que a informação não pode dispensar o exame em torno da verdade. Afinal, a sua proteção decorre, principalmente, da necessidade da sua utilização para a formação da opinião pública, para o exercício da cidadania, enfim, para o amadurecimento do regime democrático. Qualquer manipulação desses acontecimentos concretos pode comprometer gravemente o atendimento de tais finalidades. A informação que tem assento constitucional é a verdadeira, não compreendendo a notícia falsa. Por esses motivos, são suscetíveis de prova, diferentemente das opiniões, dos pensamentos e das ideias. Ora bem. A doutrina não questiona que a informação tem que primar pela verdade. As dissidências começam a surgir em torno da avaliação que deve ser feita do termo “verdade”. É exigido daquele que transmite a informação que retrate a verdade absoluta? E mais. É possível aferir objetivamente o que seja essa verdade? Sobre o tema, a Suprema Corte Americana já se posicionou, entendendo que a verdade exigida daquele que divulga a informação não precisa ser objetiva, rigorosamente verdadeira, uma vez que nem sempre isso é possível de ser obtido. Para ela, o controle da verdade é feito de forma subjetiva, bastando que o seu conteúdo seja plausível, que o transmissor desconheça eventual falsidade e que tenha empregado diligências razoáveis no sentido de esclarecê-la, a fim de não divulgá-la de forma negligente e irresponsável69. Esse posicionamento, inclusive, tem sido adotado por outros Tribunais Constitucionais70. 69 Destaca-se o precedente New York Times Co. v. Sullivan 376 U.S. 254 (1964). Em síntese, o jornal New York Times publicou um texto de uma organização promotora da igualdade racial, que narrava, de forma inverídica, circunstâncias acerca da prisão de Martir Luther King Jr., no estado do Alabama. Ocorre que, L. B. Sullivan, comissário de polícia desse estado, considerou-se ofendido com o teor da publicação e decidiu acionar o referido meio de comunicação perante a Justiça do Alabama. Após ter sido condenado a pagar uma indenização de meio milhão de dólares, o jornal New York Times acionou a Suprema Corte Americana que decidiu que a 1ª Emenda garantia a publicação de quaisquer informações, ainda que inverídicas, desde que os responsáveis pela matéria não soubessem que se tratava de acontecimento mentiroso e tivessem agido de boa-fé, adotando as diligências necessárias ao seu esclarecimento. Nesse julgamento, o Tribunal Constitucional norte-americano entendeu, ainda, que as autoridades públicas encontravam-se mais sujeitas a críticas do que as pessoas em geral e que competia ao ofendido provar a malícia real do jornalista (actual malice) ou da sua negligente desconsideração da inveracidade da notícia por ele divulgada (reckless disregrad of falsity). 70 Como exemplo, tem-se o Tribunal Constitucional Espanhol. No acórdão STJ 123/93, a Suprema Corte Espanhola decidiu que: “Sobre la veracidad de la información, este Tribunal Constitucional há establecido uma consolidada doctrina (SSTC 6/88, 171/90, 219/92 y 240/92, entre otras), que Embora tratem de direitos com objetos e finalidades distintas, nem sempre é fácil, na prática, separar as opiniões das informações. Afinal, não são raras as hipóteses em que as narrações sobre fatos e acontecimentos concretos são acrescidas de valorações subjetivas. Para a corrente tradicional, nos casos em que uma mesma comunicação possua elementos de naturezas dúplices é importante identificar o “elemento preponderante”. Essa busca deve considerar, dentre outras circunstâncias relevantes, o contexto geral em que os fatos são apresentados, a linguagem utilizada, o grau de verificabilidade da informação e a finalidade da sua veiculação71. Esse critério, embora tenha encontrado assento em diversos Tribunais72, tem sido alvo de críticas, por parcela da doutrina, pois é dependente de valorações eminentemente subjetivas por parte do intérprete. Como alternativa, tem sido utilizado um modelo que procura separar os fatos das opiniões contidas em uma única mensagem, analisando cada um desses institutos individualmente. No que se refere à comunicação de dados, a prova da verdade será exigida, o que não ocorrerá com a expressão de opiniões73. sintetizamos, reiterando nuevamente que la regla de veracidad no exige que los hechos o expresiones contenidos em la información sean rigorosamente verdaderos, puesto que las afirmaciones errôneas o equivocadas son inevitables en un debate libre, sino que impone ao comunicador un específico deber de diligencia en la comprobación razonable de la veracidad em el sentido de que la información rectamente obtenida y razonablemente contrastada es digna de protección, aunque su total exactitud sea controvertible o se incurra en errores circunstanciales que no afecten a la esencia de lo informado, debiéndose, por el contrario, negar la garantia constitucional a quienes actuén con menosprecio de la veracidad o falsedad de lo comunicado, transmitiendo, de manera negligente o irresponsable, como hechos, simples rumores, carentes de toda constatación o meras opiniones gratuitas que, realmente, son insunuaciones insidiosas”. In TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad, cit., p. 124. 71 Para identificar esse elemento de prevalência, o autor JOSÉ MUÑOZ LORENTE (Libertad de información y Derecho al Honor en el Código Penal de 1995, Editorial Tirant Lo Blanch, Valencia, 1999, p. 115/125) entende que devem ser avaliados alguns aspectos no caso concreto, tais como a utilização de termos como “em minha opinião”, “em meu ponto de vista”; o contexto sócio-politico em que a comunicação foi transmitida e as linguagens nele utilizadas.. Veja-se, também, em JÓNATAS E.M.MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, cit., p. 788. 72 Na Suprema Corte Americana, ver caso Ollman vs. Evans e no Tribunal Constitucional Espanhol, os acórdãos STC 172/1990, 123/1993, 136/1994, 42/1995 e 200/1998, segundo estudo feito por TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ (Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad, cit., p.107). 73 Nesse sentido, aponta-se o acórdão STJ 105/1990, proferido pelo Tribunal Constitucional Espanhol, consoante estudo de TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad, cit., p.107/109. De tudo o que foi exposto, observa-se que informações, pensamentos e opiniões possuem relação direta com o direito à liberdade de expressão em sentido lato, mas pertencem a subsistemas de comunicações diferentes74 e, por esse motivo, devem ser assegurados de formas igualmente distintas. Desta feita, embora mereçam proteção constitucional, sem a qual não se pode falar em Estado Democrático de Direito, não há como considerá-los conceitos idênticos75, sob pena de se realizar uma interpretação equivocada acerca de seus significados, com graves repercussões no momento de suas efetivações. 5. Notitia criminis: manifestações do pensamento ou exercício do direito de informar? Diante de tudo o que foi exposto, é forçoso retornarmos para a problemática central do presente trabalho. São as representações que noticiam as práticas de crimes livres manifestações do pensamento? A depender da resposta, poderá ou não recair sobre elas a vedação ao anonimato, prevista no artigo 5º, inciso IV, da Constituição. Para responder esse questionamento é necessário elucidar o que é uma representação criminal76 e qual é a serventia desse instrumento, para, então, com base 74 Cf. JÓNATAS E. M. MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, in op. cit., p. 374. 75 O Ministro Celso de Mello, ao redigir o seu voto no bojo da ADI 2.566/2002, abordou tangencialmente o tema, quando analisava o mérito da ação, em que se discutia a inconstitucionalidade de um dispositivo da Lei nº 9.612/98 que vedava o “proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiofusão comunitárias”. Em seu voto, o referido Ministro mencionou os direitos à livre manifestação do pensamento e à informação como institutos distintos, ao afirmar que “a Carta Política estabelece que nenhum dispositivo pode constituir embaraço à plena liberdade de informação e à liberdade de expressão do pensamento e de difusão de ideias”. (grifo nosso) 76 No presente trabalho, os termos notícia criminal, representação, denúncia e delação estão sendo empregados como nomenclaturas equivalentes que almejam a mesma finalidade, qual seja a comunicação, perante as autoridades públicas, acerca do cometimento de delitos, com o propósito de que sejam adotadas as providências persecutórias necessárias, uma vez que essas terminologias têm sido utilizadas com esse sentido, de forma reiterada, pela doutrina e pela jurisprudência pátrias. Contudo, é importante frisar que alguns desses termos possuem, também, outros significados na técnica processualpenal brasileira. Segundo FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (Processo Penal, v. 01, 18ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 1997, p. 365), por denúncia em sentido estrito, entende-se a peça inaugural da ação penal, promovida pelo Ministério Público nos crimes de ação penal pública incondicionada e condicionada. Conforme DENILSON FEITOZA PACHECO (Direito Processual Penal, 3ª edição, Ed. Impetus, Rio de Janeiro, 2005, p. 220/222) o signo representação é empregado, ainda, como condição de procedibilidade a ser cumprida pelo ofendido e pelos seus representantes legais para a instauração de procedimentos que visam a apuração de crimes de ação penal pública condicionada. nas premissas teóricas anteriormente apresentadas, classificá-la como livre manifestação do pensamento ou como exercício do direito de informar. As notícias-crime visam comunicar as autoridades públicas acerca de fatos de interesse geral, tanto que são tipificados pelo ordenamento como delitos, a fim de que providências sejam adotadas no sentido de coibi-los77. É claro que ao denunciar a prática de um ilícito, o denunciante não deixa de exercer uma liberdade comunicativa, protegida pelo direito à liberdade de expressão lato sensu. Mas é necessário identificar os elementos essenciais que compõem esse instrumento, tal como a sua finalidade. O objetivo do direito à representação não é proferir um pensamento ou uma opinião de índole subjetiva. Não se busca emitir um juízo de valor sobre determinada situação. Ao contrário. Quando se participa a prática de crimes aos agentes públicos, a carga axiológica conferida aos dados narrados é bastante reduzida. O que se pretende é noticiar um fato e não valorá-lo. E, nessa conformidade, o que realmente importa são as informações precisas, cuja veracidade pode ser confrontada através de provas produzidas pelas autoridades competentes. Não é incorreto afirmar, portanto, que essas notícias-crime pretendem relatar acontecimentos concretos, objetivamente aferíveis, classificados como infrações penais. É justamente por isso que essas delações não podem ser confundidas com manifestações do pensamento. Afinal, não se pode comprovar a veracidade de uma opinião, de uma ideia, uma vez que essa análise é impossível de ser feita quando a discussão está no campo subjetivo. É possível concordar ou não com os seus conteúdos, achar que são corretos ou errados a depender da concepção ideológica e moral de cada um, mas não precisar, que, de fato, são verdadeiras ou falsas. É claro que, na prática, muitas dessas representações podem compreender conteúdos dúplices, de ordem objetiva e subjetiva. Quando situações como essas ocorrem, a doutrina já trilhou um caminho capaz de nortear a atuação do intérprete, seja 77 Cf. JOSÉ FREDERICO MARQUES, Elementos de Direito Processual Penal, v. 01, Ed. Bookseller, Campinas, 1998, p. 132/133; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, Processo Penal, cit., p. 205/207; EUGÊNIO PACCELI DE OLIVEIRA, Curso de Processo Penal, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2002, p. 26 e JULIO FABBRINI MIRABETE, Processo Penal, 16ª edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2004, p. 86. aplicando um critério de preponderância, seja optando por separar os fatos das opiniões, analisando-os individualmente78. Assim, em nosso entendimento, as representações que noticiam as práticas de fatos criminosos não podem ser consideradas manifestações do pensamento e sim livre exercício do direito de informar. Construídas as premissas teóricas, passaremos ao próximo passo, a fim de elucidar o tratamento dispensado pelo Legislador Constituinte ao problema, objeto da presente investigação. Para o enfrentamento do tema, faz-se imperativo identificar o âmbito de proteção do artigo 5º, inciso IV, da Constituição. E, no processo de elucidação do conteúdo desse direito fundamental, a hermenêutica, por meio dos seus variados métodos interpretativos, será um instrumento de importância fundamental. 78 Cf. capítulo II, item 4. CAPÍTULO III DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DO PROBLEMA 1. A liberdade de expressão na Constituição Federal do Brasil de 1988 Ao se fazer uma análise comparativa nas Constituições de alguns países, observa-se que não há uma uniformidade em seus textos. Alguns tratam do direito à liberdade de expressão como um todo, e outros preferem descrever, pormenorizadamente, as diversas liberdades comunicativas, separando, por exemplo, o direito de informação do direito de manifestação do pensamento79. A Carta Magna de 1988 procurou preservar amplamente o direito à liberdade de expressão através de diversos dispositivos que contemplam as liberdades comunicativas. Em seu bojo, encontram-se enunciados que visam proteger os direitos 79 O texto literal da Primeira Emenda da Constituição Americana dispõe que: O Congresso não aprovará lei alguma relativa à implantação de uma religião ou proibindo o culto de alguma delas; nem lei que restrinja à liberdade de palavra ou de imprensa; nem o direito do povo de reunir pacificamente; nem de apresentar petições ao governo para reparação de situações injustas”. O artigo 21, da Constituição Italiana prevê que: “Tutti hanno diritto di manifestare liberamente il proprio pensiero con la parola, lo scritto e ogni altro mezzo di diffusione. La stampa non può essere soggetta ad autorizzazioni o censure”. A Constituição sul-africana, em seu artigo 16, determina que: “1. Everyone has the right to freedom of expression, which includes - a) freedom of the press and other media; b) freedom to receive or impart information or ideas; c) freedom of artistic creativity; and d) academic freedom and freedom of scientific research. 2. The right in subsection (1) does not extend to a) propaganda for war; b) incitement of imminent violence; or c) advocacy of hatred that is based on race, ethnicity, gender or religion, and that constitutes incitement to cause harm”. A Constituição Portuguesa, ao tratar da liberdade de expressão e de informação, giza, em seu artigo 37, que: “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. 3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei. 4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indenização pelos danos sofridos. A Constituição Espanhola, em seu artigo 20.1. estabelece que: “Se reconocen y protegen los derechos: a) A expresar y difundir libremente los pensamientos, ideas y opiniones mediante la palabra, el escrito o cualquier otro medio de reproducción. b) A la producción y creación literaria, artística, científica y técnica. c) A la libertad de cátedra. d) A comunicar o recibir libremente información veraz por cualquier medio de difusión. La ley regulará el derecho a la cláusula de conciencia y al secreto profesional en el ejercicio de estas libertades. relacionados ao pensamento, às manifestações artísticas, científicas e de comunicação, à informação, à imprensa e de petição. A preocupação do legislador constituinte foi recompor aos cidadãos as liberdades essenciais tolhidas, no País, durante o regime militar, o qual se utilizava de subterfúgios diversos para impedir a livre manifestação das ideias e para censurar a divulgação dos fatos que lhe eram desfavoráveis80. Imbuídos desse espírito, a Assembleia Constituinte dispôs, em seu artigo 5º, caput e incisos IV, V, IX, XIV, XXXIV direitos e garantias fundamentais relacionados à liberdade de expressão, bem como em seu artigo 220, caput, disciplinando a comunicação social, nos seguintes termos: Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente da censura; XIV – É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional e; XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. 80 Cf. GUSTAVO BINENBOJM, Meios de Comunicação de Massa, Pluralismo e Democracia Deliberativa: As liberdades de expressão e de imprensa nos Estados Unidos e no Brasil, Revista da EMERJ, v. 6, nº 23, 2003, p. 360/380. O problema fulcral, objeto dessa investigação, gira em torno da constitucionalidade do emprego das representações criminais anônimas81 frente à vedação prevista no artigo 5º, inciso IV, da Constituição. E, para o seu enfrentamento, é salutar definirmos, de início, qual é o assento constitucional das denominadas notitia criminis. Ao relatar que certa conduta criminosa está sendo praticada ou que determinada pessoa está cometendo um delito, o denunciante tem como interesse comunicar às autoridades públicas que fatos de relevância pública estão ocorrendo e que providências precisam ser adotadas, a fim de que haja a devida correção jurídico-penal. É importante frisar que, mesmo sem conter um requerimento expresso pleiteando providências por parte das autoridades públicas, esse pedido é de natureza implícita, na medida em que, ao relatar fatos criminosos, o que se pretende com o oferecimento da representação e a publicidade de tais informações é justamente a adoção, pelos agentes públicos competentes, das medidas necessárias capazes de combatê-las82. Nessa conformidade, o direito de representar possui amparo constitucional previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal83, ou seja, a categoria jurídica na qual essas delações criminais se enquadram é a do direito de petição84. 81 Também chamada, por grande parte da doutrina brasileira, de noticia-crime inqualificada. Nesse sentido, FERNANDO CAPEZ, Curso de Processo Penal, 11ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 2004, p. 77 e JULIO FABBRINI MIRABETE, Código de Processo Penal Interpretado, 7ª edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2000, p. 95. 82 Ademais, no ordenamento jurídico brasileiro, a maioria das infrações penais é de ação penal pública incondicionada, o que significa que, ao tomarem conhecimento desses fatos, as autoridades têm um indisponível poder-dever de providenciar as suas apurações mediante o instrumento investigatório adequado, independentemente da vontade das partes que compõem a lide, inclusive de eventuais vítimas. Não se pode olvidar que, nesses casos, o início das investigações pode ser realizado até mesmo de ofício, pelo agente de combate ao crime, sem necessidade de provocação formal ou de assentimento de outrem. Nesse sentido, FERNANDO CAPEZ, Curso de Processo Penal, cit., p. 50/52. 83 Cf. HELY LOPES MEIRELLES/JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO/DELCIO BALESTERO ALEIXO, Direito Administrativo Brasileiro, 37ª edição, Malheiros Ed., São Paulo, 2011, p. 726. Para os autores, o direito de representar “tem assento constitucional e é incondicionado, imprescritível e independe do pagamento de taxas (CF, art 5º, XXXIV, ‘a’). Pode ser exercitado por qualquer pessoa, a qualquer tempo e em quaisquer circunstâncias: vale como informação de ilegalidades a serem conhecidas e corrigidas pelos meios que a Administração reputar convenientes”. Sobre o tema, JJ. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 695/696) entendem que o direito de petição, em sentido lato, compreende os direitos à petição, propriamente dito, à representação, à reclamação e de queixa. Segundo os seus entendimentos, o direito de petição, em sentido, estrito, corresponde a um pedido feito perante os poderes públicos solicitando ou propondo a tomada de determinadas decisões ou a adopção de certas medidas, enquanto o direito de representação consiste na impugnação de atos praticados pelas autoridades públicas. Ambos visam atender ao interesse público. De acordo com essa concepção, as notícias crime são tipificadas como exercício dos direitos de petição propriamente dito. Os autores JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 1025) diferenciam o direito de petição entre garantias petitória e impugnatória. A primeira, chamada de direito de petição em sentido estrito, refere-se ao direito de solicitar a atenção do Como se observa do enunciado constitucional, o legislador constituinte previu o exercício do direito de petição para três finalidades, quais sejam: para defesa de direitos, para combater abusos de poder e contra ilegalidades. Ao descrever o cometimento de um crime o indivíduo está justamente comunicando, aos Poderes Públicos, a prática de uma ilegalidade, para fins de promover a defesa de um interesse geral, qual seja, a segurança pública85. Ressalta-se que não se trata de qualquer ilegalidade. As delações examinadas nesse trabalho visam narrar às irregularidades consideradas mais graves em nosso sistema jurídico, tanto que foram classificadas como crimes. É claro que ao informar aos órgãos públicos sobre a realização de fatos tipificados pelo ordenamento como infrações penais e de exigir providências em relação a esses problemas de interesse público, o denunciante exerce o seu direito à livre participação política, na sociedade, mas, ao fazê-lo, é inegável que também exerce o seu direito à liberdade de expressão, em sua concepção lato sensu86. No entanto, em que pese serem as delações dessa natureza corolário do direito à liberdade de expressão, não se pode olvidar que possuem uma relação de aproximação mais específica com o direito de petição e com o direito de informar do que propriamente com o direito à livre manifestação do pensamento87. órgão competente para situações ou atos ilegais, e a segunda constitui forma de impugnação, pelos próprios lesados, em face de atos administrativos contra eles perpetrados. Nessa conformidade, as notícias-crime fazem parte das chamadas garantias petitórias. 84 É interessante frisar que, diferentemente da Carta Política de 1988, o direito de representação e o direito de petição foram previstos, expressamente e de forma individualizada, nas Constituições Federais Brasileiras de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967. 85 Para PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES (Curso de Direito Constitucional, cit., p. 518), o direito à petição compreende em seu conteúdo “qualquer pedido ou reclamação relativa ao exercício ou à atuação do Poder Público. Trata-se de um direito assegurado à brasileiros ou estrangeiros, que se presta tanto à defesa de direitos individuais contra eventuais abusos, como também para a defesa de interesse geral ou coletivo”. 86 Concordamos com JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 848 e 1025/1028) que classificam o direito de petição como um direito de estrutura complexa, eis que é composto por “uma componente de liberdade e uma componente de direito positivo”. Em relação à componente “liberdade”, os autores entendem que o direito de petição envolve o exercício do direito de liberdade de expressão, na medida em que se noticia fatos verdadeiros, como também o direito de liberdade política, quando se critica e se exige providências dos órgãos do poder em relação a problemas de interesse geral. Por fim, a estrutura positiva desse direito pode ser vislumbrada em razão dos cidadãos terem o direito de que as petições por eles protocoladas sejam devidamente admitidas, apreciadas e que os seus resultados lhes sejam informados em prazo razoável. 87 Conforme capítulo II, item 5. A questão que se levanta é saber como a Assembleia Constituinte disciplinou a liberdade de expressão e as liberdades comunicativas dela derivadas e se foram levadas em consideração as construções dogmáticas em torno do tema, uma vez que o texto constitucional não esclarece, com clareza, o conteúdo de cada um desses enunciados, dotando-os de expressões semanticamente abertas. Como ponto de partida, deve-se elucidar se o artigo 5º, inciso IV, constitui um dispositivo geral, representando a liberdade de expressão em sentido amplo ou se esse enunciado trata, apenas, de uma das liberdades comunicativas, qual seja a livre manifestação do pensamento, também conhecida por liberdade de expressão em sentido estrito. Nesse caso, o direito à liberdade de expressão, lato sensu, estaria previsto, implicitamente, no direito geral de liberdade, disposto no caput88, desse mesmo dispositivo além, evidentemente, de estar assegurado nos enunciados constitucionais que tratam, separadamente, de cada um dos subsistemas comunicativos. Identificar o âmbito de proteção do artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna, portanto, constitui um caminho imprescindível a ser percorrido para a solução do problema, sendo necessário recorrer à interpretação constitucional para a sua adequada compreensão. A depender da abrangência do seu conteúdo, será possível afirmar se as notícias-crime poderão ou não ser oferecidas de forma anônima, no ordenamento jurídico brasileiro. Se, com recurso aos procedimentos e princípios inerentes à atividade hermenêutica, a conclusão final for de que o artigo 5º, inciso IV, disciplina o direito à liberdade de expressão em sentido amplo, o comportamento individual de representar aos Poderes Públicos será simultaneamente subsumível a duas normas de igual fundamentalidade, mas com reservas distintas. Estar-se-á diante de uma clara concorrência entre direitos fundamentais com limites divergentes. De um lado, o direito à liberdade de manifestação do pensamento e, do outro, o direito de petição, sendo que o artigo 5º, 88 Para DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR (Curso de Direito Constitucional, cit., p. 642), o direito geral à liberdade “consiste na prerrogativa fundamental que investe o ser humano de um poder de autodeterminação ou de determinar-se conforme a sua própria consciência. Isto é, consiste num poder de atuação em busca de sua realização pessoal e de sua felicidade. Entre nós, compreende: a) a liberdade de ação; b) a liberdade de locomoção; c) a liberdade de opinião e pensamento; d) a liberdade de expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; e) a liberdade de informação; f) a liberdade de consciência e crença; g) a liberdade de reunião; h) a liberdade de associação e i) a liberdade de opção profissional”. inciso XXXIV é consagrado sem reserva, eis que não contém restrição expressa que veta o anonimato89. Não obstante, se a conclusão for de que o legislador constituinte disciplinou os subsistemas de comunicação através de dispositivos constitucionais diferentes, referindo-se o artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna, apenas e tão somente, ao direito à livre manifestação do pensamento, o qual não se confunde com a liberdade de expressão lato sensu, prevista, implicitamente, no artigo 5º, caput, não haverá o que se falar em concorrência entre direitos fundamentais com limites divergentes. Nesse caso, as representações criminais encontrariam respaldo constitucional em direitos que apresentam consequências jurídicas idênticas. Tanto o direito de petição, mais específico, quanto o direito à liberdade de expressão, com previsão normativa mais vasta, não possuem reservas expressas, de modo que as notícias-crime não poderiam ser restringidas, de plano, com a vedação ao anonimato. No entanto, em qualquer das hipóteses, o deslinde da questão dependerá da delimitação do âmbito de proteção dos dispositivos relacionados ao tema, o que será feito por meio da interpretação constitucional, bem como das considerações dogmáticas existentes no chamado domínio da concorrência de direitos fundamentais. 2. A interpretação a serviço da solução do problema Nem sempre o Legislador Constituinte descreve, com precisão, o que está concretamente assegurado pelo direito fundamental. É usual a utilização de palavras ou expressões de conteúdo polissêmico, recaindo sobre o intérprete o papel de compreender o sentido e o alcance dos enunciados normativos, ultrapassando a vagueza inicial dos seus termos. Não restam dúvidas de que se o texto constitucional contivesse a descrição pormenorizada dos comportamentos que compõem o âmbito de proteção do direito à 89 Além de não haver uma restrição expressamente extraída do artigo 5º, inciso XXXIV, em relação à proibição ao anonimato, a Lei 9.051/95 que regulamentou, no Brasil, o direito de petição não faz qualquer menção ao tema. É importante frisar que o referido diploma legal disciplinou mais precisamente a expedição de certidões para a defesa de direitos e não propriamente o direito de representação. De outro lado, a Lei nº 43/90 que regulamenta o direito de petição em Portugal, estabelece em seu artigo 12.2, “a”, como uma das causas de seu indeferimento o anonimato. Assim, se ela for apresentada sem subscrição e, do seu interior, não seja possível aferir a pessoa de quem provém, deverá a petição ser liminarmente indeferida. livre manifestação de pensamento, ou, então, a previsão expressa a respeito da possibilidade de oferecimento das representações criminais anônimas perante as autoridades públicas, a questão central desse trabalho seria resolvida com facilidade, a partir de uma análise literal do texto constitucional. Contudo, o artigo 5º, inciso IV, contém, em sua primeira parte, uma expressão ambígua, quando aduz que é livre a manifestação do pensamento, sem especificar o grau de sua abrangência, ou seja, se esse enunciado busca proteger a liberdade de expressão como um todo ou, tão somente, os pensamentos, as ideias e as opiniões. Ademais, observa-se uma lacuna constitucional em relação às delações criminais, inclusive as anônimas, uma vez que não há regulação da matéria na Carta Politica pátria. De uma simples leitura dos dispositivos que tratam das liberdades comunicativas não é possível compreender, com clareza, os seus âmbitos de proteção, tampouco afirmar se as notícias criminais anônimas são ou não admitidas no ordenamento. Provavelmente por essas razões, o assunto não se encontra pacificado nos tribunais, como se verá adiante90. A indeterminação do texto constitucional atrelada à oscilação jurisprudencial tem gerado muita insegurança aos operadores do direito no momento em que esses se deparam com o problema. E não são raras as vezes em que as autoridades competentes recebem representações anônimas em seus departamentos policiais e ministeriais, uma vez que esse fenômeno tem aumentado nos últimos anos, principalmente em decorrência do agravamento da criminalidade organizada no Brasil. Reflexo de que os cidadãos querem, mas não se sentem seguros, suficientemente, para contribuírem com o sistema de persecução penal nacional. E é justamente para resolver o dilema em torno dessa questão que a atividade interpretativa pode desempenhar um importante papel, a fim de esclarecer se a vedação ao anonimato deve ou não incidir sobre as representações formuladas às autoridades públicas de combate ao crime. Como visto, a interpretação constitucional constitui uma atividade de grande relevo social, principalmente porque permite identificar o conteúdo e o significado dos textos 90 Cf. capítulo IV, item 4. contidos no documento máximo de um país e conformá-los à realidade, servindo de ponte entre o mundo do ser e do dever-ser. Trata-se de um verdadeiro instrumento a serviço da solução de conflitos concretos. Para tanto, são vários os métodos interpretativos disponíveis ao operador jurídico. E, em que pese cada um deles contenha suas próprias especificidades, o fato é que a sua utilização não deve ser operacionalizada de maneira excludente91. O emprego de vários métodos pode ser engrandecedor. Afinal, a submissão do objeto da dúvida a diversos controles permite olhar a questão através de ângulos diversos92. Pois bem. Qual teria sido afinal a real intenção da Assembleia Constituinte ao prever esse dispositivo? E, para atender ao seu objetivo, deveriam as representações criminais ser incluídas no seu âmbito de proteção? Para elucidar o que pretendia o Legislador Constituinte, no momento em que estabeleceu a vedação ao anonimato como restrição ao direito a livre manifestação do pensamento, os anais da Constituição Federal de 1988 seriam de grande valia. Contudo, nem todos os relatórios redigidos pelas Comissões que compunham a Assembleia Constituinte foram divulgados, inexistindo a publicação de informações quanto a esse questionamento. Na busca de se entender o porquê da inclusão, na Constituição Federal, desse dispositivo de natureza singular, sem similitude nos demais ordenamentos constitucionais, revela-se pertinente uma investigação acerca da sua presença nas cartas brasileiras anteriores à de 1988. A avaliação desses dispositivos, no curso da história constitucional pátria, nos permite traçar um diagnóstico comum a respeito do tratamento conferido nesses textos à liberdade de expressão em sentido amplo e às liberdades comunicativas em espécie, mais precisamente aos direitos à livre manifestação do pensamento e de petição93. 91 Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 552. Ao analisar a atividade hermenêutica da Suprema Corte Americana, STEPHEN M. GRIFFIN (American constitucionalism: from theory to politics, Princenton University Press, Princenton, 1996, p. 145/148) afirmou que apesar dos métodos de interpretação possuir diferenças entre si, para ele, está evidente que a Suprema Corte dos Estados Unidos nunca elegeu um método específico de interpretação, tampouco elegeu um ranking dentre eles. Para o autor, o fato de não se escolher um determinado modelo interpretativo, demonstra que a Corte utiliza diversos deles, no exercício de suas atividades. 93 Para um exame comparativo, destacam-se, a seguir, os dispositivos constitucionais correlatos ao tema, ao longo das Constituições Brasileiras: 92 a) Constituição de 1824: “Artigo 179 - A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: (...) IV – Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos e publicá-las pela imprensa, sem dependência de censura, com tanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito e pela forma que a lei determinar. (...) XXX – Todo cidadão poderá apresentar por escrito ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo reclamações, queixas ou petições e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo perante a competente autoridade a efetiva responsabilização dos infratores”; b) Constituição de 1891: “Artigo 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) §12º - Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência da censura, respondendo cada um por abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. (...) §9º - É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilização dos culpados”; c) Constituição de 1934: “Artigo 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) §9º - Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. É segurando o direito de resposta, a publicação de livros e periódicos independentemente de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social. (...) § 10º - É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover-lhes a responsabilização”; d) Constituição de 1937: “Artigo 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade e exercer livremente a sua atividade: (...) §7º - O direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral (...) § 15º - Todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente ou por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei. A imprensa reger-se-á por lei especial, de acordo com os seguintes princípios: a) a imprensa exerce uma função de caráter público; b) nenhum jornal pode recusar a inserção de comunicados do Governo, nas dimensões taxadas em lei; c) é assegurado a todo cidadão o direito de fazer inserir gratuitamente nos jornais que o informarem ou injuriarem, resposta, defesa ou retificação; d) é proibido o anonimato; e) a responsabilidade se tornará efetiva por pena de prisão contra o diretor responsável e pena pecuniária aplicada à empresa; e) Constituição de 1946: “Artigo 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 5º - É livre a manifestação de pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicos, respondendo cada um nos casos e na forma que a lei preceituar para abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos que subvertam a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classe. (...) § 37 – É assegurado a quem quer que seja o direito de representar, mediante petição dirigida aos Poderes Públicos, contra abuso de autoridades e promover a responsabilização delas”; f) Constituição de 1967: “Artigo 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) §8º - É livre a manifestação do pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação, sem sujeição à censura, salvo quanto à espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe da licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe. (...) §30 – É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos, em defesa dos direitos ou contra abusos de autoridade”; g) Constituição de 1988: “Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV – É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material ou moral decorrente da violação. (...) XXXIV – São a Embora a Constituição de 1824 já estipulasse a livre manifestação do pensamento, o direito de imprensa e o direito de todos os cidadãos peticionarem às autoridades competentes comunicando a prática de violações constitucionais e requererem a responsabilização dos infratores, ela não mencionou a vedação ao anonimato. A primeira Constituição que tratou do tema foi a Carta Magna de 1891 e, a partir de então, o seu dispositivo foi repetido, com pequenas variações, até a presente Carta, salvo na Constituição de 1967, em que não há qualquer referência sobre as manifestações anônimas. O direito de petição, desde a constituição imperial, foi sempre disposto em local diverso à livre manifestação do pensamento, muito mais próximo aos direitos e garantias fundamentais de natureza penal e administrativa do que dos direitos de personalidade. De outro lado, observa-se que a vedação ao anonimato tem sido uma acompanhante frequente do direito de manifestação do pensamento e dos enunciados constitucionais que tratam do direito de resposta e da responsabilização daqueles que extrapolam o regular exercício do direito à livre manifestação do pensamento. Portanto, ao analisar os dispositivos sobre o tema, ao longo das constituições brasileiras, constata-se que a proibição ao anonimato visa justamente inibir abusos no gozo da liberdade de pensamento, através da exigência de identificação do seu autor, permitindo, assim, a sua responsabilização, em caso de uso arbitrário do direito94. Afinal, ao manifestar as suas opiniões, o titular do direito, não raras vezes, atinge direitos, de igual fundamentalidade, que pertencem a terceiras pessoas, como a honra e a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. 94 Segundo CARLOS MAXIMILIANO PEREIRA DOS SANTOS (Comentários à Constituição Brasileira de 1891, Ed. Senado Federal, Brasilia, 2005, p. 710/725), o objetivo da restrição constitucional prevista em 1891 era coibir os abusos decorrentes do exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, facilitando a adoção de providências contra os responsáveis pelas ofensas aos direitos à intimidade de terceiros, uma vez que as suas identificações seriam obrigatórias. Nos tempos atuais, o posicionamento doutrinário é nesse mesmo sentido. Para DARCY ARRUDA MIRANDA (Comentários à Lei de Imprensa, 3ª edição, Editora RT, São Paulo, 1995, p. 128), a vedação ao anonimato tem como único objetivo permitir que o autor da manifestação submeta-se às consequências jurídicas decorrentes de eventual abuso praticado. Destacam-se, ainda, ALEXANRE DE MORAES, Constituição do Brasil Interpretada, Ed. Atlas, São Paulo, 2002, p. 207, UADI LAMMÊGO BULOS, Constituição Federal Anotada, 4ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 2002, p. 91 e JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 19ª edição, Malheiros Ed., São Paulo, 2001, p. 248. Esse entendimento, aliás, foi sustentado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello e Cezar Peluso, ao proferirem os seus votos no julgamento do Inq. 1957-7/PR. intimidade. Portanto, não seria incorreto afirmar que, ao perceber que conflitos dessa natureza seriam inevitáveis, o Legislador Constituinte de 1891, de antemão, estabeleceu, dentre os possíveis mecanismos de controle e correção, uma restrição ao exercício da manifestação do pensamento - a vedação ao anonimato – como instrumento legítimo e idôneo ao atingimento dessa finalidade, a qual foi repetida, de forma bastante similar, nas Constituições subsequentes, com exceção da Carta de 1967. Em resumo, ao se investigar os textos constitucionais pretéritos e ao compará-los com a Constituição atual, quatro conclusões podem ser extraídas. São elas: A liberdade de manifestação do pensamento e o direito de petição sempre estiveram presentes nas Constituições Brasileiras, desde 1824. O anonimato apareceu, pela primeira vez, na Constituição de 1891 e, desde então, essa restrição tem sido repetida, na grande maioria dos textos constitucionais, com poucas alterações; A finalidade da inclusão da vedação ao anonimato pretendia e, ainda, pretende responsabilizar aquele que, no exercício do direito fundamental à livre manifestação do pensamento, o faz de forma irregular, violando interesses de terceiros95; A vedação ao anonimato está diretamente relacionada à manifestação do pensamento e não ao direito de informação ou petição, encontrando-se sempre posicionada ao lado da primeira liberdade comunicativa; Em contrapartida, o direito de petição, apesar de atrelado ao direito de liberdade de expressão em sentido amplo, tal como a livre manifestação do pensamento, 95 A identificação dos motivos que levaram a introdução dessa restrição, no bojo dos textos constitucionais, é fundamental para excluir a sua incidência nas hipóteses em que, embora afetas à manifestação do pensamento, não possuam relação com a finalidade pretendida pela criação da vedação, eis que não geram repercussão direta na esfera jusfundamental de terceiras pessoas. Pensemos no seguinte exemplo. Um grupo de moradores de uma cidade do interior decide confeccionar um documento escrito com o propósito de divulgar aos demais membros da comunidade um conjunto de razões em prol da liberação do casamento entre homossexuais no país. Contudo, em virtude do pensamento conservador da maioria dos munícipes, esse grupo, com receio de sofrer retaliações, decide não se identificar, redigindo um manifesto sem subscrição. Diante dessa situação, pergunta-se: Esse manifesto possui amparo constitucional, apesar de ser anônimo? Em nosso entendimento, a resposta somente pode ser positiva. Frise-se que o seu conteúdo não atinge direitos fundamentais de terceiras pessoas e, por essa razão não há que se falar em exercício arbitrário do direito à livre manifestação do pensamento e em responsabilização de danos. Ao contrário. O texto limita-se a transmitir uma opinião a respeito de um assunto de interesse social, através de um salutar debate de ideias, essencial ao amadurecimento de uma sociedade democrática. com ela não se confunde, tanto que ambos foram dispostos, desde a Constituição do Império, em posições topologicamente diferentes. E isso porque almejam finalidades distintas. O direito de petição busca, dentre outros objetivos, chamar a atenção do Poder Público acerca da prática de fatos, inclusive quando cometidos por autoridades públicas, os quais, por serem ilegais ou arbitrários, comprometem a defesa de direitos ou de interesses coletivos. Sua função é informativa, de controle de legalidade e, por conseguinte, de ordem objetiva. Deste modo, embora não se possa, a partir dessa análise, concluir, em definitivo, se o artigo 5º, inciso IV, refere-se à liberdade de expressão em sentido lato ou, apenas, à livre manifestação do pensamento, o fato é que os legisladores constitucionais sempre tiveram o cuidado de assegurar o direito geral à liberdade no caput dos artigos que tratavam dos direitos e liberdades individuais e de disciplinar, em posições distintas e com denominações específicas, os direitos à livre manifestação do pensamento, de petição e de imprensa ao longo dos seus respectivos incisos. Portanto, parece mais plausível deduzir que, ao se falar em manifestação do pensamento, o Poder Originário Constituinte pretendia regulamentar, precisamente, essa espécie comunicativa e não o direito à liberdade de expressão como um todo96. Não se pode negar que, se a intenção do Legislador Constituinte era a de contemplar as mais variadas liberdades comunicativas no conteúdo do artigo 5º, inciso IV e, consequentemente restringi-las com a vedação ao anonimato em toda e qualquer situação que o seu exercício pudesse interferir na esfera jusfundamental de outrem, seria coerente que o fizesse expressamente posto que a tendência natural, caso assim não proceda, é que o intérprete confira tratamentos distintos a institutos que, de fato, são diferentes. As considerações dogmáticas demonstram que os direitos à livre manifestação do pensamento e de petição, em que pese possuam conexão com a 96 JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 244/251) denomina a liberdade de expressão lato sensu como liberdade de pensamento em sentido amplo, a qual se exterioriza através de diversas formas de expressão, por meio do exercício das liberdades de comunicação, de religião, de expressão intelectual, artística, científica e cultural, de transmissão e recepção do conhecimento. Em seu entendimento, as liberdades de comunicação são compostas pela liberdade de manifestação do pensamento, pela liberdade de informação em geral e pela liberdade de informação jornalística. A liberdade de manifestação do pensamento, previsto no artigo 5º, inciso IV “constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião”. Nessa conformidade, RAFAEL LORENZOFERNANDEZ KOATZ (As Liberdades de Expressão e de Imprensa na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cit., p. 398) afirma que “no marco da sistemática engendrada pela Constituição de 1988, é possível fracionar o conteúdo da liberdade de expressão em noções específicas, como a liberdade de expressão em sentido estrito, a liberdade de informação e a liberdade de imprensa”. Para o autor, a liberdade de expressão em sentido estrito corresponde ao direito à manifestação do pensamento. liberdade de expressão lato sensu, não se confundem entre si, eis que almejam destinações variadas. Não é por acaso que possuem denominações próprias e se localizam em posições igualmente separadas no texto constitucional. Mas não é só isto. Considerar que o artigo 5º, inciso IV contempla, em seu âmbito, todos os comportamentos relacionados à liberdade de expressão em sentido amplo, pode acarretar perplexidades invencíveis. Senão vejamos. Quando se exterioriza um pensamento, o indivíduo exprime um sentimento, uma opinião pessoal e, em muitas situações, pretende persuadir o seu destinatário, convencêlo de que as suas convicções merecem prevalecer. Internamente, ele avalia se deve ou não expressar seus pensamentos, e considera, para tomar a sua decisão, todas as repercussões práticas que suas comunicações podem provocar a ele próprio e a terceiros. A partir dessas considerações íntimas, ele escolhe se, de fato, vale a pena manifestar-se e qual a melhor forma de fazê-lo. A sua decisão, a princípio, não irá repercutir diretamente na vida de outras pessoas. Pensemos no cidadão que é contrário ao casamento homossexual, por motivos religiosos, e que se encontra em um bar frequentado por diversas pessoas que têm essa opção sexual. Apesar de ter suas próprias ideias, o cidadão irá avaliar se é pertinente externar suas convicções nesse momento, no interior do estabelecimento comercial. Certamente, no seu pensamento, ele cogita que ao fazê-lo e a depender da maneira com que sua opinião será exposta ele poderá sofrer retaliações. De outro lado, pensa que, se não o fizer, nada o impedirá de continuar a pensar segundo o seu entendimento e de se manifestar sobre o assunto nas oportunidades que entender mais convenientes. Diversa é a situação de uma pessoa que tem conhecimento de um fato grave, tipificado como crime no ordenamento vigente. Ao relatar um fato, o indivíduo não pretende expressar uma opinião, um pensamento, tampouco influenciar ninguém, mas tão somente comunicar uma informação. É claro que antes de decidir o que fazer com essa informação, ele irá examinar, tal como na situação acima, as consequências decorrentes de eventual comunicação às autoridades competentes. Contudo, ao não divulgar um delito, a sua omissão irá sim, de forma mais significativa, interferir na sua realidade e na da comunidade em que a infração é cometida. Como exemplo, suponhamos a situação em que uma professora de uma escola municipal de uma localidade situada na zona rural, distante do posto policial da cidade, tem conhecimento de que sua aluna, uma criança de 10 anos, está sendo abusada sexualmente, pelo padrasto, ex-presidiário. Resta evidente que, ao se calar, a menor terá poucas chances de sobreviver a esse martírio familiar ao qual é exposta, diariamente. A pergunta que se faz é a seguinte: Quais são as chances dessa professora denunciar o infrator, em um município pequeno, em que todas as pessoas se conhecem, se não forem asseguradas, em seu favor, as mínimas garantias de que sua integridade física e psíquica, bem como a de seus familiares, não será afetada pela sua contribuição à justiça? A resposta é simples: Mínimas. Questiona-se, ainda nesses casos, se é necessário que a denunciante recorra ao anonimato para se proteger, uma vez que existiriam soluções alternativas. Uma delas seria informar à representante que, na cidade em que mora, há policiais que podem ser acionados, caso haja alguma ameaça contra a sua pessoa, por parte do denunciado. Ela também pode ser colocada à disposição de um programa de proteção a testemunhas97. A questão que se coloca é saber se promessas dessa natureza serão recebidas com confiança pela representante, a ponto de que a mesma tenha interesse em participar, na qualidade de testemunha, do processo criminal. Ocorre que o crescente recebimento de denúncias anônimas pelos órgãos de investigação criminal prova que promessas como essas têm se mostrado insuficientes. As mais variadas causas podem contribuir para o incremento desse fenômeno. A segurança pública, no Brasil, não se encontra estruturada de forma eficiente a ponto de responder a contento às crescentes demandas sociais. Os programas de proteção às testemunhas são restritos e extremamente gravosos aos seus usuários. Ademais, a evolução do crime organizado tem contribuído para que pessoas afirmem desconhecer fatos de que tem pleno conhecimento, somente para não serem chamadas a prestarem depoimentos na Justiça, e, com isso, ficarem expostas diante de criminosos de alto poderio político e econômico e sofrerem represálias e ameaças. 97 Nesse sentido, o Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 84827, manifestou o seu posicionamento no sentindo de que a Lei de Proteção a Testemunhas foi criada justamente para facilitar a denúncia de crimes, protegendo aquele que pretenda contribuir com a Justiça, uma vez que o anonimato, segundo o seu entendimento, é vetado no ordenamento brasileiro, por expressa previsão constitucional. O programa de proteção a testemunhas é regulado, no País, pela Lei nº 9.807/99. Se a hermenêutica constitucional tem como ponto de partida o enunciado constitucional, mas deve conciliá-lo, também, aos dados da realidade, as circunstâncias acima descritas não podem ser ignoradas pelo intérprete98. Caso contrário, a Constituição Federal não irá acompanhar as mudanças históricas e sociais e, portanto, não terá qualquer eficácia social. No momento de precisar o conteúdo do artigo 5º, inciso IV, ou seja, de definir o que pode ou não ser englobado como manifestação do pensamento, deve o operador jurídico avaliar essa realidade, a fim de que as normas constitucionais possam resolver, eficazmente, as atuais dificuldades decorrentes do convívio social, as quais, certamente, não são as mesmas enfrentadas em 1891, quando, pela primeira vez, o anonimato foi previsto em sede constitucional. É provável que por essas razões o legislador constituinte de 1988 tenha agido com cautela redobrada em relação aos seus antecessores, na medida em que dispôs, com maior detalhamento, sobre cada uma das liberdades comunicativas, posicionando-as em incisos separados, para que não houvesse dúvidas de que a vedação ao anonimato limitasse, apenas, a livre manifestação do pensamento e não o direito à liberdade de expressão como um todo. Assim, com um mero exemplo, comum à prática criminal, é possível demonstrar que o tratamento jurídico constitucional conferido à divulgação de ideias não pode ser idêntico ao dispensado aos fatos criminais. Nessa conformidade, as restrições que recaem sobre as primeiras não podem ser analisadas sob a mesma ótica do que as que incidem sob os segundos, sob pena de se desconsiderar o contexto atual e mais, de cometer uma disparidade ilógica de tratamento, manejando-se, igualmente, situações absolutamente desiguais, o que certamente ensejaria uma solução injusta ou inadequada ao próprio sistema constitucional99. 98 Para HELY LOPES MEIRELLES (Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 726/727), as representações anônimas não podem ser interpretadas de modo a obstar o controle de legalidade da Administração e o próprio interesse público. Para o autor, a recepção da noticia sem subscrição deve ser feita com o intuito de permitir a intervenção do Poder Público e de impedir a ocorrência de uma situação de ilicitude, desde que seja empregada com o máximo de prudência pelo agente. 99 O Supremo Tribunal Federal, em sua atividade hermenêutica, já teve oportunidade de se manifestar sobre circunstâncias constitucionalmente relevantes, não previstas, expressamente, pelo Legislador Constituinte, mas que precisavam ser consideradas pelo intérprete, sob pena de se produzir uma solução evidentemente injusta e contrária ao sistema constitucional como um todo. No RE 33.919/1957, discutiuse se uma empresa estrangeira, sem possuir sede no país, poderia suscitar, em seu favor, os direitos e garantias fundamentais previstas no artigo 141, da Constituição Federal de 1946, vigente à época. Tratava-se de uma firma portuguesa que interpôs Mandado de Segurança em desfavor do Inspetor de Alfândega de Santos o qual pretendia, sob a alegação de prática de irregularidades administrativas, expor Uma leitura dos dispositivos que tratam da liberdade de expressão na Constituição Federal de 1988 reflete, estreme de dúvidas, a percepção do Legislador Constituinte a respeito das diferenças dogmáticas existentes entre as manifestações de pensamento e a divulgação de informações, ainda que não de natureza criminosa. Ao dispor sobre o direito à informação e à imprensa, o Legislador, resguardou, expressamente, o sigilo da fonte jornalística100, restando evidente a sua intenção de não restringir o manuseio da informação com a vedação ao anonimato. A partir dessa previsão, ficou claro que a relação de confiança existente entre as fontes de informações e os jornalistas deve ser respeitada pelo Estado e pelos particulares. Em decorrência desse sigilo, o profissional de imprensa não pode ser compelido a revelar as suas fontes, uma vez que tal exigência pode provocar sérios riscos ao regular desenvolvimento da sua atividade profissional, imprescindível, por excelência, ao regime democrático101. Para Jónatas E. M. Machado trata-se de “um dever deontológico e um direito fundamental do jornalista102”. O abrigo do sigilo de fonte mostra-se essencial, portanto, para que o processo informativo do meio jornalístico não reste prejudicado diante da dificuldade de se obter informações. E, para que os seus profissionais consigam angariar à venda, por meio de leilão, setecentos e noventa caixas de cognac, de propriedade da Impetrante. No Recurso Extraordinário, travou-se a discussão acerca da admissão ou não dos remédios constitucionais em favor de estrangeiros, não residentes no país. Ao decidir, o Relator, Min. Candido Mota Filho, entendeu que seria uma incoerência não reconhecer a proteção do direito de propriedade ao estrangeiro não residente no Brasil, através dos remédios constitucionais assegurados a brasileiros e estrangeiros residentes, deferindo a medida pleiteada. 100 Cf. artigo 5º, inciso XIV, da Constituição Federal de 1988. 101 A Suprema Corte Americana, no precedente Branzburg vs. Hayes 408 US 665 (1972) excepcionou o sigilo de fonte jornalística, em virtude da necessidade da informação por ele protegida, para fins de prova em processo criminal. No Brasil, por sua vez, o entendimento majoritário da jurisprudência é no sentido de respeitar o sigilo de fonte do jornalista, ainda que esteja em causa um processo penal. Nesse sentido, destacam-se o Inq. 870 do Supremo Tribunal Federal, cuja decisão monocrática da lavra do Ministro Celso de Mello foi proferida em 08.03.1996 e o RHC 427/99, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Nesse precedente, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal, decidiu que o sigilo de fonte é um direitodever do jornalista e a sua inobservância configura manifesto constrangimento ilegal em desfavor do profissional de imprensa. Determinar que o jornalista revele a sua fonte importa em obrigá-lo a praticar conduta violadora do sigilo profissional e, de consequência, o crime previsto no artigo 154, do Código Penal. 102 Cf. JÓNATAS E.M. MACHADO (Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, cit., p. 580/582), “a proteção do sigilo profissional dos jornalistas é fundamental para a exposição da corrupção no seio dos poderes públicos, de práticas econômicas e comerciais que ponham em perigo o interesse geral, ou de quaisquer outras patologias dos diferentes subsistemas de ação social, na medida em que protegem, indiretamente, indivíduos dispostos a fazerem soar o alarme. Essa finalidade só pode ser conseguida através de um jornalismo de investigação activo e seguro da sua proteção constitucional”. os dados necessários à formação da opinião pública, devem dispor de garantias a serem oferecidas em favor daqueles que com eles venham a contribuir. No Brasil, a imprensa tem desempenhado um papel fundamental ao noticiar o crescente e espúrio estreitamento de laços entre organizações criminosas e autoridades públicas. São frequentes as matérias jornalísticas que relatam o envolvimento de policiais militares em milícias armadas patrocinadas por traficantes de drogas 103 ou a participação de políticos em esquemas de corrupção104. E, isso somente foi possível, em face do resguardo de sigilo de fonte. Se tivessem que se expor, muitas dessas pessoas, responsáveis pela transmissão das informações à imprensa, teriam se mantido silentes, com medo de sofrerem perseguições. Dito isso, deve-se avaliar se a mesma razão que baseia o sigilo da fonte no exercício da atividade jornalística, não se encontra também presente nas investigações criminais. Será que o denunciante que procura um agente público para relatar a prática de fatos delituosos, de indiscutível relevância pública, também não merece uma proteção, tal como aquele que serve de fonte informativa para um jornalista? E mais. Nos casos que envolvem a prática de crimes, o risco sofrido por aqueles que os denunciam pode ser ainda mais alto, a depender do ilícito narrado e de quem o tiver cometido105. Permitir que fontes anônimas sejam utilizadas pelos jornalistas e, por outro lado, impedir que as autoridades competentes de combate à criminalidade façam o mesmo é de absoluta incoerência. Ao considerar que ambas as situações devam receber tratamentos diferenciados, é mais aconselhável orientar o indivíduo que tem conhecimento de uma milícia no local em que mora e que, por razões óbvias, não quer se identificar, a procurar um jornalista 103 Como exemplo, destaca-se a matéria intitulada “Milícia aproveita greve para cometer onda de assassinato”, publicada no site http://www.cartacapital.com.br, em 11.02.2012; a matéria “Operação de combate à milícia armada da Baixada termina com 16 presos”, publicada no site http://www.odia.ig.com.br, em 07.03.2012 e a matéria “Polícia Militar comandava milícia, em Magé, no Rio”, publicada no site http://www.veja.abril.com.br, em 17.04.2012. Acesso em: 08.06.2012. 104 Nessa conformidade, tem-se a matéria intitulada “CPI de Cachoeira ‘promete espalhar mais sujeira do que o normal’ diz ‘Economist’”, publicada no site http://www.bbc.co.uk, em 04.05.2012 e a matéria “Deputados deporão hoje na Comissão de Sindicância” publicada no site http://www.revistaepoca.globo.com.br, em 05.06.2012. Acesso em: 08.06.2012. 105 Sobre o tema, revelam-se pertinentes as considerações feitas pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, durante o julgamento do HC 95.244, no Supremo Tribunal Federal. Ao se manifestar, esse último afirmou que: “(...) a cidadania, muitas vezes, não tem como colaborar com a investigação criminal senão mediante denúncias apócrifas. Porque a cidadania teme represália, teme perseguição, teme reação. Isso não significa, necessariamente, covardia, pusilanimidade, mau caráter (...). E quantos crimes não foram desvendados nesse país a partir de uma notitia criminis anônima?”. para denunciar o fato do que recorrer às autoridades públicas, eis que, em relação àquele profissional, o representante poderá utilizar-se do anonimato e no que se refere às autoridades, não. E o mais incongruente é que o ordenamento jurídico não proíbe que uma investigação criminal seja iniciada com base em uma notícia jornalística, ainda que seja resguardado, pelo jornalista, o anonimato da fonte. É claro que não se pode ser indiferente ao risco de que alguém se utilize do anonimato como uma máscara, com o intuito de não ser responsabilizado pelo cometimento de eventuais calúnias e difamações, capazes de denegrir a imagem e a honra de terceiros. Mas se for essa a intenção daquele que age com má-fé, é muito mais provável que, para consumar o seu intento, ele procure um jornalista do que uma autoridade pública. Primeiro, porque a divulgação do fato recebe maior publicidade ao ser veiculada pela imprensa do que quando encaminhada às autoridades. Uma vez transmitida pela mídia, o número de pessoas que com ela entram em contato é indeterminável. No âmbito dos órgãos investigativos, o dado é recebido por um número reduzido de destinatários e deve ser mantido em sigilo, até que seja esclarecido minimamente. Segundo, ainda que os jornalistas procurem verificar a veracidade dos fatos que noticiam esses profissionais, eles não possuem o mesmo preparo técnico, tampouco dispõem da mesma estrutura operacional presente nos departamentos policiais. Os servidores públicos são capacitados para promoverem uma avaliação prévia de todas as informações que lhes são trazidas, principalmente, quando anônimas, sem que haja uma intervenção direta em desfavor do denunciado. Admitir que o jornalista utilize uma fonte anônima diversamente das autoridades de combate ao crime, é aceitar uma interpretação contraditória ao próprio sistema constitucional, desconexa à realidade. Ocorre que os significados dos dispositivos constitucionais devem ser extraídos de modo a evitar contradições entre eles106. Significa dizer que, através do processo hermenêutico, o intérprete deve encontrar soluções sistemáticas que equilibrem as 106 Para JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO (Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, cit., p. 98/99), quando o conteúdo do direito à liberdade de expressão não estiver definido, com clareza, pelo Legislador Constituinte e não contiver limites lógicos expressos, deve o operador delimitá-lo através de uma interpretação sistemática da Constituição, observando os demais direitos e liberdades fundamentais que com ela tem que conviver. tensões entre as várias normas previstas na Constituição sempre em prol da sua unidade e da extração da sua força normativa107. Nas palavras de Eros Grau, “não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços”108. Desta feita, a aplicação dos métodos interpretativos reforçou o entendimento de que as representações criminais não podem ser incluídas no âmbito de proteção do direito à livre manifestação de pensamento. A divulgação de fatos ilegais, de ordem objetiva, perante autoridades públicas, bem como a exigência de providências, a fim de que se promova a defesa de interesses individuais ou coletivos, relaciona-se muito mais com o exercício dos direitos de informação e de petição do que com a liberdade comunicativa disposta no artigo 5º, inciso IV, da Constituição, a qual não se confunde com o direito à liberdade de expressão em sentido amplo. Tanto que, nas diversas Constituições pátrias, tais direitos foram disciplinados em posições topologicamente diversas. Mas, foi na Constituição de 1988 que essa distinção se mostrou ainda mais evidente, na medida em que o Legislador Constituinte previu, claramente, o respeito ao sigilo de fonte jornalística. Incluir a comunicação de fatos criminosos no âmbito normativo do direito à livre manifestação do pensamento, sujeitando-os, por conseguinte, à restrição ligada ao anonimato, ao tempo que a identidade do informante em relação a esses mesmos fatos pode ser mantida em segredo, desde que noticiados a um jornalista, gera uma disparidade desrazoável de tratamento e, mais, consequências graves práticas que não podem ser desconsideradas pelo intérprete que busca equilibrar o texto constitucional às vicissitudes sociais. 3. Da concorrência de direitos fundamentais Por concorrência de direitos fundamentais entende-se o fenômeno em que uma determinada situação ou comportamento pode ser simultaneamente subsumível ao âmbito de proteção de duas ou mais normas de igual fundamentalidade, uma vez que atendem, na integralidade ou por meio de alguns dos seus elementos essenciais, aos 107 Segundo J.J. GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, in op. cit. p. 1223/1226), o princípio da unidade da constituição visa nortear a sua interpretação de modo a evitar contradições entre as suas normas. O princípio da força normativa da Constituição, por sua vez, pretende extrair da norma constitucional significados que confiram primazia aos pontos de vista que possibilitem a “atualização normativa”, de acordo com as circunstâncias históricas do momento. 108 Cf. EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito, cit., p. 88. requisitos pertencentes a cada uma das previsões normativas109. O direito dos trabalhadores organizarem uma manifestação sindical, por exemplo, pode receber proteção jusfundamental proveniente do direito à liberdade de associação (artigo 5º, inciso XVII), mas também do direito de reunião (artigo 5º, inciso XVI) e do direito à livre manifestação do pensamento (artigo 5º, inciso IV). Em principio, a concorrência entre normas jusfundamentais não apresenta dificuldades nas hipóteses em que a intercomunicação dos direitos envolvidos produz as mesmas consequências jurídicas, o que se verifica, segundo Jorge Reis Novais, quando “há convergência nas possibilidades conferidas ao Estado de limitação de um ou de outro direito fundamental110”. Os embaraços surgem a partir do momento em que os direitos fundamentais invocados se submetem a limites divergentes, recaindo ao intérprete a obrigação de selecionar, dentre os direitos concorrentes, aquele que terá aplicação prevalecente, na solução do caso concreto e, por via de consequência, a incumbência de decidir quais serão as atuações restritivas possíveis de serem praticadas pelos poderes públicos. O direito de comunicar o cometimento de um crime às autoridades públicas e de exigir providências para a sua repressão possui respaldo constitucional conferido pelo direito de petição (artigo 5º, XXXIV), mas também pelo direito de liberdade de expressão. Contudo, os fundamentos a serem utilizados para a solução do problema variam, a depender do enquadramento jurídico-constitucional conferido a esse último direito. Por essa razão, a interpretação desenvolvida em torno do conteúdo dos direitos à liberdade de expressão e à manifestação do pensamento mostraram-se imprescindíveis. Se o entendimento for de que o direito à liberdade de expressão lato sensu está previsto, de forma implícita, no direito geral à liberdade descrito no artigo 5º, caput, da Constituição, e que o inciso IV desse mesmo artigo, trata, apenas, do direito à livre manifestação do pensamento como uma das liberdades comunicativas que se encontram 109 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 379. Sobre o tema, ver, ainda, PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 283/284 e J. J.GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 137/138) 110 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 381. disciplinadas no texto constitucional e que compõem o âmbito desse direito mais vasto, o dilema em estudo será resolvido pela doutrina de maneira incontroversa. Seguindo essa linha de entendimento, que perfilhamos, o ato de representar aos órgãos públicos noticiando a ocorrência de crimes é protegido por dois direitos fundamentais, quais sejam a liberdade de expressão (artigo 5º, caput), com conteúdo normativo mais amplo, uma vez que, além desse comportamento, assegura outras liberdades comunicativas, e o direito de petição (artigo 5º, XXXIV), de natureza específica, na medida em que compreende características adicionais da conduta, revelando elementos estruturantes mais próximos ao ato de representar, que lhe confere uma especialidade intrínseca. Utilizando-se de uma metáfora geométrica, a figura representativa seria composta por dois círculos concêntricos, em que o direito de petição estaria posicionado em um círculo menor abarcado pelo círculo maior, relacionado ao direito geral à liberdade de expressão111. Ocorre que ambos os direitos fundamentais tutelam o comportamento de forma convergente, eis que não apresentam reservas expressas, podendo ser aplicados concomitantemente ou seguindo o parâmetro da especialidade, uma vez que, independentemente do critério selecionado, o resultado final obtido será exatamente o mesmo. Afinal, as previsões constitucionais subsumíveis ao caso não contêm limites, ao menos a princípio, possibilitando que o Estado atue restritivamente em relação ao direito à privacidade dos eventuais denunciados, recepcionando e utilizando as representações criminais anônimas, desde que o faça de forma cautelosa e para fins de investigações sumárias, como se verá no capítulo seguinte. Em contrapartida quando o posicionamento adotado é no sentido de incluir o direito à liberdade de expressão lato sensu no âmbito de proteção do artigo 5º, inciso IV, verifica-se uma situação típica de concorrência de direitos fundamentais com limites divergentes. Enquanto o direito de petição encontra-se consagrado, na Carta Magna, sem reservas, o direito à livre manifestação do pensamento submete-se a uma restrição imposta diretamente pelo texto constitucional, qual seja a vedação ao anonimato. A questão que se levanta é saber se o direito de comunicar o cometimento de ilícitos 111 Cf. BLECKMANN/WIETHOFF, “Zur Grundrechtskonkurrenz, in DöV, 1991, 17, p. 723, apud JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizados pela Constituição, cit., p. 380. penais poderá ou não ser exercido de forma anônima. E, a resposta a essa indagação depende, essencialmente, da escolha do direito fundamental prevalecente. A doutrina tem estabelecido alguns critérios para a seleção do direito que deve preponderar nos casos que envolvam a concorrência de direitos com limites divergentes. Em se tratando de concorrência inautêntica ou imparcial112 observada nos casos em que um comportamento envolve, ao mesmo tempo, a disputa entre um dispositivo geral e um dispositivo especial, a proteção a ser conferida deve ser amparada pelo direito fundamental especial. De outro lado, quando os enunciados fundamentais concorrentes possuam somente natureza especial ou nos casos em que não haja entre eles qualquer relação de especialidade, as posições doutrinárias são bastante divergentes. Nessas situações, também chamadas de concorrência autêntica, o entendimento majoritário é de que prevalece o direito fundamental que estiver suscetível a uma restrição menos incisiva, intitulado de direito mais forte113. Contudo, discordamos desse critério, na medida em que constrói uma hierarquização abstrata dos direitos fundamentais, baseada na suposta força ou fraqueza que as restrições lhes conferem, como se fosse possível analisá-los através de uma concepção pré-fixada, desconexa às peculiaridades, as quais somente são visíveis a partir dos casos concretos. Assim, a aplicação desse entendimento pode ocasionar graves repercussões práticas, ao impedir que o Poder Público atue restritivamente em situações justificáveis, que se evidenciem necessárias para a salvaguarda de outros interesses igualmente merecedores de proteção estatal114. 112 Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1269. Em que pese seja esse o critério mais sufragado pela doutrina, deve-se destacar, ainda, duas outras correntes. Uma que defende a prevalência da incidência do direito fundamental suscetível de restrição mais incisiva, em detrimento do direito mais forte, ou seja, menos limitável, bem como outra que sustenta a aplicação cumulativa de ambas as normas concorrentes, a fim de exaurir toda a proteção jusfundamental possível de ser delas retirada. Abordando mais detalhadamente o tema e apontando críticas, com as quais concordamos, em face de ambas as concepções, JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 384/389. 114 Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 389/390. O autor apresentou um interessante exemplo, o qual é capaz de demonstrar as incoerências práticas provenientes da utilização de critérios que promovam um escalonamento abstrato entre os direitos concorrentes. Embora seja assente o entendimento de que o direito de propriedade é passível de limites em nome do direito ao ambiente, à segurança e à saúde, se o Estado limitasse uma construção com vista a resguardar os interesses referidos bastaria que o particular invocasse o direito à criação artística do trabalho arquitetônico envolvido ou o direito à liberdade de 113 Pois bem. Retornando à problemática central, referente às representações criminais, observa-se que ambos os direitos concorrentes – direito à livre manifestação do pensamento e direito de petição - possuem uma relação de especialidade entre si. O direito à livre manifestação do pensamento concebido como sinônimo do direito à liberdade de expressão em sentido lato representa uma previsão normativa geral que tutela diversas liberdades comunicativas, dentre as quais, o direito de petição, também invocável para resguardar o comportamento em exame. Nessa medida, embora possua uma relação com o direito à livre manifestação do pensamento, a notícia-crime apresenta uma aproximação ainda mais específica com o conteúdo do direito de petição. Por essas razões, a norma fundamental extraída do artigo 5º, inciso XXXIV, a qual é consagrada sem reservas expressas, terá preferência de aplicação sobre a norma contida no artigo 5º inciso IV, desse mesmo diploma. Não seria incorreto afirmar, portanto, que, consoante esse posicionamento, o Estado não estaria, sumariamente, tolhido de se utilizar das representações criminais anônimas que recebe, a fim de investigar e combater os ilícitos noticiados. Frise-se que ao se admitir que os poderes públicos recebam as delações anônimas de natureza criminal não se está ignorando a possibilidade de cidadãos, detentores de máfé, utilizarem desse mecanismo de controle social para fins espúrios, com o objetivo de caluniar terceiras pessoas. De igual forma, não se está desprezando os efeitos danosos que tais comportamentos podem gerar à honra e à imagem das vítimas. Embora se trate de uma hipótese plenamente possível e que deve ser objeto de uma avalição criteriosa pelo intérprete, verifica-se que esse sopesamento deve ser feito posteriormente, mediante as circunstâncias da situação concreta. Afinal, ao considerar constitucional a utilização da representação criminal anônima não se está afirmando que a sua admissão será feita de forma aleatória, desprovida de critérios objetivos, tampouco que o seu emprego permitirá todo e qualquer tipo de violação aos direitos à intimidade. Pelo contrário. Em caso de colisão entre direitos fundamentais e bens crença, caso a obra tivesse destinação religiosa, para que o Poder Público ficasse impedido de intervir restritivamente. Tratando-se de concorrência de direitos fundamentais e partindo-se da concepção doutrinária aqui criticada, o comportamento individual de construir a edificação estaria protegido por normas constitucionais não sujeitas a limites e, por essa razão, seriam merecedoras de aplicação prevalecente frente às normas suscetíveis de restrições mais incisivas, independentemente das peculiaridades do caso concreto, podendo conduzir, muitas vezes, a resultados irracionais e inoportunos. constitucionalmente protegidos pelo ordenamento, deve-se ponderar os interesses em jogo, a fim de selecionar o prevalecente, no caso específico. Por hora, o que interessa saber é se as notícias criminais anônimas podem, em tese, ser utilizadas pelo Estado. E, quanto a essa indagação, como expusemos acima, a resposta é positiva. O que varia são os fundamentos aplicáveis na solução do problema, uma vez que dependem da concepção dogmática adotada pelo intérprete em relação ao âmbito de proteção do artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna e, por sua vez da modalidade de concorrência de direitos fundamentais a ser avaliada. CAPÍTULO IV PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS PARA A UTILIZAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES CRIMINAIS ANÔNIMAS PELOS ÓRGÃOS DE DEFESA SOCIAL 1. A tensão existente entre o direito à privacidade do investigado e o interesse da coletividade na apuração e na punição de delitos Conforme exposto, o oferecimento de uma representação criminal perante as autoridades públicas constitui um comportamento cuja proteção jusfundamental é conferida, preferencialmente, pelo direito de petição. E, embora se trate de um direito consagrado sem reservas expressas não se pode concluir, a partir disso, que toda e qualquer delação anônima deve, sempre, ser recebida pelas autoridades públicas, uma vez que a sua admissibilidade dependerá das circunstâncias do caso concreto. Qualquer tentativa de solucionar o problema de forma categórica e abstrata pode provocar graves desvantagens práticas e ensejar incoerências no sistema jurídico constitucional115. Afinal, o uso das representações sem subscrições gera tensões entre interesses antagônicos, de igual fundamentalidade, os quais não são absolutos. De um lado têm-se os direitos fundamentais à honra, à imagem e à intimidade dos representados e, do outro, a ordem e a segurança pública, ou seja, a necessidade da coletividade de ter conhecimento dos crimes praticados na sociedade e de puni-los exemplarmente, bem como os direitos dos demais membros da comunidade de comunicarem os fatos ilícitos cometidos por terceiras pessoas, sem que as suas seguranças sejam comprometidas116. 115 Em que pese existam diversas formas de solucionar as controvérsias surgidas nos casos de colisões de direitos fundamentais, a exemplo dos métodos da categorização, da hierarquização e da ponderação, entendemos ser essa última a ferramenta metodológica mais adequada, a fim de esclarecer quais são os interesses que devem prevalecer e quais os que devem ceder, pois confere maior transparência ao processo de decisão, na medida em que o intérprete precisa descrever, através do uso de uma fundamentação racional, todos as circunstâncias específicas do caso e indicar os passos por ele percorridos para o deslinde da questão concreta. 116 A este respeito, o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece que: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique outro: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como única baliza a que assegura aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Essas balizas só podem ser determinadas pela Lei”. É claro que não constitui uma tarefa Trata-se de conflitos em sentido amplo, representados por diferentes interesses de liberdade, pertencentes a titulares igualmente distintos, em que colidem direitos fundamentais e bens e valores de interesses coletivos117. Considerando que a prevalência de um bem não pode ser fixada abstratamente, a questão é definir em que medida a utilização de uma representação anônima pelos poderes públicos pode restringir os direitos à intimidade, à honra e à imagem, previstos no artigo 5º, inciso X, da Constituição. Não se discute que o respeito ao direito à privacidade é uma necessidade elementar do ser humano, essencial ao regular exercício dos direitos de personalidade, os quais encontram amparo constitucional expresso118. Trata-se de direitos que buscam evitar a exposição desnecessária de dados pessoais e de características particulares do indivíduo aos demais membros da sociedade. Em seu âmbito, podem ser incluídas inúmeras condutas que buscam resguardar a honra, a imagem e a intimidade das pessoas. As dificuldades surgem no momento de compatibilizar tais conteúdos, de natureza particular, com os demais bens e valores coletivos, que possuem igual fundamentalidade e são assegurados em prol do regular convívio social119. O que deve permanecer fácil compatibilizar a convivência harmônica entre tais interesses, pois ao proteger a liberdade de alguns, o Estado estará restringindo a liberdade de outros, afetados com a sua intervenção. 117 É válido frisar que não compartilhamos do posicionamento defendido por parte da doutrina, de que os direitos fundamentais individuais não são passíveis de serem ponderados com bens e valores de interesse coletivos. Perfilhamos do entendimento de que os direitos fundamentais gozam de uma prioridade apenas prima facie e não incondicional em relação às necessidades da vida em comunidade e dos direitos fundamentais dos outros e, por esse motivo, podem ser sopesados entre si. 118 A Constituição Federal protege os direitos à intimidade e à vida privada em diversos dispositivos. O artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, dispõe que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Merecem destaques, ainda, os incisos XI e XII, do artigo 5º, da Carta Magna, que disciplinam as inviolabilidades domiciliar, bem como de dados, das comunicações telefônicas e telegráficas, respectivamente. 119 O conflito entre o direito à vida privada e o interesse público foi objeto de interessante discussão no bojo da Rcl 2.040/DF, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Min. Néri da Silveira. Em síntese, uma cantora de nacionalidade mexicana encontrava-se recolhida na carceragem da polícia federal brasileira, enquanto tramitava seu processo de extradição, oportunidade em que sustentou ter sido vítima de estupro por parte de policiais, o que resultou na sua gravidez. Em virtude da repercussão do caso e do comprometimento da imagem institucional da polícia federal, o Ministério Público Federal requereu a realização de exame de DNA, mediante a coleta de material biológico da placenta, a fim de confirmar a autoria do ilícito imputado. Ocorre que a extraditanda recusou-se a participar do exame, invocando em seu benefício o artigo 5º, incisos X e XLIX da Constituição Federal. Na tutela dos seus interesses, ajuizou Reclamação Constitucional com o propósito de impedir o recolhimento do material genético pleiteado. Ao analisar o caso, a Corte entendeu que os direitos fundamentais à honra e à intimidade da extraditanda não são absolutos e devem ser ponderados com outros bens jurídicos, de igual fundamentalidade, tais como a “moralidade administrativa”, a “persecução penal pública”, a “segurança pública”, além da honra reservado ao indivíduo e ao seu círculo pessoal e o que não pode ser furtado à consideração do público? A doutrina costuma responder a esses questionamentos, utilizando-se a denominada “teoria das esferas da intimidade120”. Segundo esse entendimento, os direitos atinentes à intimidade seriam divididos em três círculos concêntricos, compostos pelas esferas íntima, privada e pública. A depender do enquadramento da conduta praticada, seria ela passível de exposição ou não. A esfera íntima corresponde às ações realizadas em um campo absolutamente pessoal, inatingível pelos demais membros da comunidade. A esfera privada equivale a condutas de natureza mais reservada, de acesso restrito a um grupo pré-selecionado de pessoas. Por sua vez, a esfera pública envolveria os comportamentos passíveis de serem conhecidos por todos os indivíduos, eis que contêm interesse geral. Ocorre que esse enquadramento nem sempre é simples de ser concretizado, sendo necessário sopesar argumentos e contra-argumentos que permitam compatibilizar, ao final, a conduta analisada à esfera respectiva. Nesse processo, identificar se o comportamento sobre o qual versa a controvérsia possui relação direta com o interesse público121 pode ser de grande valia. Significa dizer que as informações dotadas de evidente relevância social, que contribuam para a formação da opinião pública, necessárias, por exemplo, à proteção da saúde pública, da transparência do processo político de um país e da segurança pública122 devem, em regra e desde que e da imagem dos policiais federais envolvidos. Após ponderar os interesses em jogo, o Supremo Tribunal Federal autorizou a realização do exame de DNA. 120 Sobre o tema ver JOÃO BOSCO ARAÚJO FONTES JUNIOR, Liberdades Fundamentais e Segurança Pública. Do Direito à Imagem ao Direito à Intimidade: A Garantia Constitucional do Efetivo Estado de Inocência, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 122/123 e LUÍS ROBERTO BARROSO, Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, cit., p. 65/80. 121 Nesse sentido, merece destaque a ressalva feita por PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES (Curso de Direito Constitucional, cit., p. 321) ao mencionarem que interesse público não é sinônimo de interesse do público. O primeiro envolve informações de relevância pública, importantes para a formação do cidadão e, portanto, possuem uma presunção relativa de prevalência em relação ao direito à vida privada. O segundo pode conter relação com assuntos de relevância pública, como também pode não apresentar qualquer vinculação nesse sentido, tratando-se de fatos que busquem, apenas, atender a mera curiosidade ociosa do público. Nesses casos, o direito à liberdade de expressão não se encontra apto a prevalecer, prima facie, frente à garantia da privacidade. 122 Concordamos com o autor LUÍS ROBERTO BARROSO (Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, cit., p. 65/75) quando defende que há indiscutível interesse público na motivadamente, ser tipificadas como de interesse geral, ainda que em prejuízo da vida íntima do particular123. Afinal, embora possam ter relação com a esfera privada, extrapolam o seu âmbito, apresentando conteúdos de grande relevo na vida de todos que, por essa razão, merecem, a princípio, ser divulgados. Outro critério que pode auxiliar na identificação da conduta detentora de interesse geral relaciona-se ao caráter público da pessoa envolvida. Existem indivíduos que sofrem limitações mais significativas na sua esfera privada que outros, em razão da profissão que desenvolvem ou da posição social que ocupam. É claro que o interesse público existente em torno das ações desenvolvidas por agentes políticos é maior se comparado a um cidadão comum. A necessidade de se controlar os atos praticados por aqueles que exercem o poder é inerente ao regime democrático e legitima, a priori, um abrandamento do direito à intimidade, desde que os fatos divulgados sejam afetos às funções por eles desempenhadas124. Assim, critérios como a relevância pública das informações e a qualidade das pessoas nelas envolvidas, embora não possam ser recepcionados com absoluta rigidez, servem de parâmetros capazes de orientar o intérprete no momento de avaliar a possibilidade de fatores externos limitarem os direitos fundamentais relacionados à vida privada, com o propósito de preservar bens jurídicos necessários à convivência social. De outro lado, deve-se tomar cuidado para que conceitos, como o de ordem pública ou de segurança pública, dotados de alta carga de indeterminação e vagueza, não sejam utilizados aleatoriamente pelos poderes estatais, uma vez que podem ensejar resultados imprevisíveis, capazes de justificar os mais variados pontos de vista. Os valores e os bens que visam promover a adequada convivência da comunidade precisam, como apontado por Jorge Reis Novais, ser compatibilizados com o Estado Democrático de divulgação de fatos qualificados como crimes, os quais, por sua própria natureza, repercutem em toda a sociedade. 123 Sobre o tema, é válido mencionar a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no bojo da Ap. nº 3.059/91, em que considerou que uma matéria divulgada em revista de circulação nacional, sob o título “Como os artistas se protegem da AIDS”, a qual elencava personalidades brasileiras portadoras do vírus HIV, sem as suas permissões, não atendia ao interesse público, invadindo, de forma indevida, a esfera privada desses profissionais e provocando graves danos à honra e ao decoro dos mesmos. 124 Há alguns anos, foi veiculada, na imprensa, notícia de que um Ministro de Estado estaria passando férias com sua família em uma ilha brasileira, mas que o seu deslocamento foi feito através de um jato da Força Aérea Brasileira, as expensas do erário público, sendo inquestionável o interesse público da notícia, apesar de tratar, aparentemente, de questão afeta à sua esfera privada. Para uma análise pormenorizada do caso, ver a Rcl nº 2.138/DF, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, em 13/06/2007 e a matéria intitulada “Nas asas da mordomia”, publicada no site www.istoe.com.br, em 19.05.1999. Acesso em 09.06.2012. Direito125. A liberdade conferida aos poderes constituídos no exercício de suas funções não é ilimitada. É justamente para evitar o uso arbitrário do poder que se faz indispensável um controle de constitucionalidade sobre as restrições que afetam os direitos fundamentais, instituídas em nome do bem comum. A escolha do interesse prevalecente será o resultado do sopesamento entre direitos fundamentais e bens igualmente dignos de proteção que se contrapõem, no caso concreto126. Mas, não se trata de uma ponderação meramente dicotômica entre grandezas distintas, em que o intérprete escolhe se prefere privilegiar o direito à vida privada do representado, o direito à integridade física e psíquica do informante ou à ordem e à segurança pública. O emprego dessa metodologia deve envolver um processo de comparação global entre possibilidades alternativas127 e não pode prescindir de critérios racionais, devidamente organizados, que permitam o seu balizamento e impeçam a prática de subjetivismos indesejáveis, em que definições legislativas e governamentais sejam substituídas, aleatoriamente, por decisões judiciais. Nesse sentido, princípios estruturantes como o da proporcionalidade e da dignidade da pessoa 125 Cf. JORGE REIS NOVAIS (As restrições dos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 481) a ordem pública deve ser concebida de acordo com uma sociedade democrática. Para o autor: “(...) a dignidade da pessoa humana e as liberdades fundamentais são, elas próprias e enquanto tais, elementos constitutivos da ordem pública que a atividade de polícia tem de preservar”. 126 Em relação à necessidade de se avaliar a ocorrência de violações à honra e à intimidade de terceiros a partir das circunstâncias do caso concreto, destaca-se o HC 72.062, relatado pelo Ministro Celso de Mello, no Supremo Tribunal Federal. Em resumo, o caso referia-se a um abaixo-assinado subscrito por trinta e cinco alunos de uma Universidade do Estado de São Paulo, dirigido ao Departamento Acadêmico, requerendo a substituição do professor na disciplina de processo penal, noticiando que o comportamento, em sala de aula, da docente, ora denunciada, não era condizente com o ambiente acadêmico, uma vez que a mesma se utilizava de gestos e palavras extremamente constrangedoras e grosseiras. Irresignada com as acusações, a representada formulou Queixa-Crime em desfavor dos ex-alunos, imputando-lhes a prática de crimes contra a honra. A Queixa-Crime foi rejeitada em primeiro grau, sob o argumento de que os alunos não agiram com a intenção de lesionar a honra da querelada, mas tão somente com o propósito de comunicar fatos relacionados ao seu comportamento. Essa decisão foi revista em segundo grau, tendo sido formulado Habeas Corpus para o trancamento da Ação Penal. No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Celso de Mello entendeu que o abaixo-assinado constituiu o livre exercício do direito de petição, tendo a narrativa dos fatos sido objetiva e impessoal, não se vislumbrando dolo por parte dos seus subscritores, para a prática de crimes contra a honra. Em seu voto, manifestou-se nos seguintes termos: “A necessidade de narrar ou de criticar atua como fator de descaracterização do tipo subjetivo peculiar aos crimes contra a honra, especialmente quando a manifestação considerada ofensiva decorre do regular exercício, pelo agente, de um direito que lhe assiste (direito de petição) e de cuja prática não transparece o pravus animus, que constitui elemento essencial à positivação dos delitos de calúnia, difamação e/ou injúria”. 127 Concordamos com JORGE REIS NOVAIS (As restrições dos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 701), quando esclarece que a ponderação de bens corresponde a uma valoração que ultrapassa a mera avaliação das vantagens e desvantagens entre os bens em conflito, devendo-se considerar, além dessas considerações, as vantagens e as desvantagens provenientes de uma proposta alternativa que não contivesse a restrição. A comparação entre essas opções, vistas sob uma perspectiva global, entre todos os benefícios e sacrifícios marginais delas decorrentes, é que seria objeto de ponderação pelo operador jurídico. humana podem contribuir para a construção de uma fundamentação racional e transparente a ser desenvolvida pelo Poder Judiciário. 2. Parâmetros objetivos para a ponderação de interesses na hipótese de colisão A partir das premissas teóricas, sinteticamente, apresentadas no item anterior, é necessário estabelecer parâmetros mais concretos para o deslinde do seguinte questionamento: quando uma representação criminal anônima poderá ser utilizada pela autoridade pública sem que constitua uma intervenção restritiva inconstitucional? O desenvolvimento organizado da criminalidade inseriu nas sociedades modernas a necessidade de criação de novos mecanismos de combate ao crime, a fim de proteger, eficazmente, quem tem interesse em contribuir com a Justiça, mas não se sente seguro o suficiente para fazê-lo, sem que a sua identidade seja mantida no anonimato. Em contrapartida, ao aceitarem uma noticia criminal sem subscrição, as autoridades públicas estarão restringindo o direito à privacidade do investigado, uma vez que será mais difícil para ele ser indenizado, nos casos de danos à sua esfera privada. No entanto, existem situações em que essa alternativa revela-se imprescindível ao interesse público, contanto que o exercício do direito individual não seja integralmente inviabilizado128. É claro que encontrar o ponto de equilíbrio não constitui tarefa fácil. Saber se essa restrição é ou não inconstitucional dependerá, essencialmente, das circunstâncias do caso concreto. Contudo, é possível mapear um caminho a ser percorrido pelo intérprete diante de conflitos dessa natureza. Para tanto, o princípio da proporcionalidade constitui uma ferramenta indispensável. O primeiro questionamento que deve ser feito é saber se o meio é apto para concretizar o fim por ele almejado e se essa finalidade possui amparo constitucional. A princípio, a representação criminal anônima constitui um meio idôneo para que os agentes públicos tenham conhecimento do cometimento de ilegalidades e possam coibir 128 A respeito do tema, ANTONIO SCARANCE FERNANDES (Processo Penal Constitucional, 3ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003, p. 83/84) entende que: “Não se pode, em nome da segurança social, compreender uma garantia absoluta da privacidade, do sigilo, no processo penal, mas também não se pode conceber, em homenagem ao princípio da verdade real, que a busca incontrolada e desmedida da prova possa, sem motivos ponderáveis e sem observância de um critério de proporcionalidade, ofender sem necessidade o investigado ou o acusado em seus direitos fundamentais”. as suas práticas, promovendo a segurança do informante e da comunidade em geral. Ademais, a segurança pública é um fim legítimo, que possui respaldo constitucional expresso129. Nessa conformidade, as delações anônimas não constituem meios evidentemente inócuos, capazes de serem considerados, de plano, inconstitucionais. Ao contrário. Esses institutos têm se mostrado, principalmente após as experiências vivenciadas com os disque-denúncias130, úteis à persecução criminal e, por conseguinte, hábeis ao combate ao crime. O segundo ponto a ser enfrentado corresponde a identificar se há algum meio disponível aos poderes públicos que seja igualmente eficaz à segurança pública, mas menos gravoso à vida privada dos denunciados. Para tal mister, deve-se procurar obter um leque amplo de alternativas que possam ser objeto de comparações com a medida restritiva em exame. Senão vejamos. A delação anônima é admitida com o escopo de facilitar a comunicação de informações relevantes pelos cidadãos aos poderes públicos. Trata-se de um mecanismo vantajoso ao Estado, pois tem produzido resultados significativos a um baixo custo, bem como ao usuário do sistema que, ao não precisar se identificar, permanece em segurança e, por isso, sente-se mais confortável em contribuir. De outro lado, é gravoso ao representado que encontra maior dificuldade em responsabilizar quem noticia informação inverídica, em seu desfavor. Frise-se, no entanto, que essa dificuldade não elimina, totalmente, o exercício do seu direito à indenização por danos provocados à sua esfera moral e material, uma vez que é possível responsabilizar as autoridades públicas que ajam de forma negligente no manuseio da informação anônima por elas recebida. Por sua vez, a utilização de representações criminais anônimas não constitui o único mecanismo no ordenamento jurídico brasileiro capaz de incentivar a população a 129 A segurança pública encontra-se prevista em duas oportunidades, na Constituição de 1988. No artigo 6º caput, ela é arrolada, expressamente, como um direito social fundamental. No artigo 144, caput, é concebida como: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (...)”. Não se pode esquecer, ainda, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos também prevê que os direitos fundamentais podem ser limitados em respeito aos direitos e às liberdades dos outros e em prol da ordem pública, nos termos do seu artigo 29, nº 2. 130 Vide capítulo IV, item 3. contribuir com a segurança pública. Existem outros meios, como a inclusão do delator em programas de proteção a testemunhas, os quais, por não precisarem se utilizar do anonimato, facilitam a responsabilização daqueles que, no exercício abusivo do direito à liberdade de expressão, causem danos ao patrimônio pessoal de terceiros. A questão é saber se, embora apresentem um grau de restrição menor ao direito à privacidade do particular, são esses meios igualmente eficazes ao atingimento do fim ou se produzem externalidades negativas significativas a outros direitos e bens constitucionais131, que impedem a exclusão, de plano, da delação anônima como mecanismo necessário para o resguardo da segurança pública. Em relação ao programa de proteção a testemunhas, embora seja um mecanismo essencial ao combate ao crime, não se pode deixar de considerar que, sob a perspectiva do informante, trata-se de um programa extremamente penoso, uma vez que sua identidade é revelada no processo132, o que pode comprometer a sua segurança, razão pela qual são exigidas modificações significativas em seu modo de vida, para fins de garantir a sua integridade, tais como escolta policial permanente, alteração do domicílio e da profissão e, em alguns casos, da sua própria identificação civil. Sem dúvida, tais dificuldades repercutem negativamente, na medida em que reduz o número de adesões, prejudicando o seu grau de eficiência. Ademais, o custo de manutenção desse meio é muito mais alto para o Estado. Assim, através de uma avalição tendencialmente objetiva, não se faz possível excluir a utilização das denúncias anônimas por parte das autoridades públicas, substituindo-o por outro meio, igualmente idôneo e eficaz, mas menos agressivo. A pergunta seguinte é saber se os benefícios concretos obtidos com a recepção da delação anônima justificam os sacrifícios reais impostos ao afetado com a intervenção estatal. E nesse processo de avaliação é fundamental considerar a justificativa que motivou o Poder Público, naquela situação específica, a realizar a intervenção restritiva, bem como as alegações suscitadas pelo particular acerca da desproporcionalidade da 131 Cf. JÓNATAS E. M. MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, cit., p. 736. 132 Em Portugal, a Lei nº 93/99 que disciplinou a proteção de testemunhas em processos criminais permite a não revelação da identidade da testemunha ou a ocultação da mesma, com a possibilidade de distorção da sua voz e/ou imagem. No sistema brasileiro, não há dispositivo semelhante na Lei nº 9.807/99, que disciplina o tema. De igual forma, o Código de Processo Penal é silente sobre a questão. Por essa razão, há, no ordenamento pátrio, a necessidade de se disponibilizar as informações pessoais da testemunha beneficiária do programa para todas as partes que participam do processo. medida. No fundo, uma conclusão é certa: nem toda representação anônima será empregada pelos órgãos de Defesa Social, tampouco deflagrará, necessariamente, uma persecução criminal. Para tomar uma decisão, principalmente nos casos em que a representação criminal anônima não esteja expressamente disciplinada nos expedientes normativos infraconstitucionais133, deve a autoridade proceder com cautela, promovendo diligências mínimas que permitam uma projeção, ainda que sumária, sobre as vantagens a serem obtidas com a utilização desse mecanismo e se esses possíveis benefícios superam as prováveis desvantagens provocadas na esfera privada de terceiros. São justamente os argumentos e contra-argumentos desse processo dialético que serão sopesados, pelo Poder Judiciário, caso a medida restritiva seja impugnada. Ao receber uma delação dessa natureza compete ao agente público verificar o seu conteúdo mediante a utilização de recursos ordinários de investigação que não violem, de forma intolerável, as liberdades públicas instituídas constitucionalmente134. Para tal 133 Vide capítulo IV, item 3. Nos Estados Unidos, essa questão tem sido objeto de discussão na doutrina e na jurisprudência, principalmente nos casos que têm como objeto principal a análise de constitucionalidade das abordagens policiais frente à Quarta Emenda da Constituição americana. Segundo Michele McKay McCoy (Anonymous Tips, Reasonable Suspicion and Dui Stops), para que as delações anônimas sejam admitidas e possam, temporariamente, deter um suspeito devem ser analisadas as especificidades do caso concreto. Para gerarem um grau de suspeita razoável aos agentes públicos, a notícia de natureza criminal anônima deve conter detalhes suficientes sobre o denunciado e sobre o local em que se encontra, deve ser contemporânea aos fatos narrados e as suas circunstâncias devem ser checadas, minimamente, pela autoridade policial, a fim de demonstrar a sua verossimilhança. Disponível: http: //www.tdcorg.com/dowload/AnonymousTipsReasonableSuspicionPart2.pdf. Acesso em 01.05.2012. A Suprema Corte da Califórnia já foi acionada para tratar do tema no caso People v. Dolly 40 Cal. 4th 458 (2007). Em resumo, o serviço 911 havia recebido duas ligações em que o mesmo denunciante narrava ter sido vítima de ameaça, através do emprego de arma de fogo. Na primeira ligação, o denunciante manteve-se anônimo e, na segunda oportunidade, identificou-se, apenas, como “Drew”. Contatada, a polícia se dirigiu ao local indicado na denúncia e encontrou um indivíduo detentor das características descritas na denúncia. Por essas razões, o suspeito foi abordado e, no interior do seu veículo, foi encontrada uma arma ilegal. Ao decidir, a Suprema Corte da Califórnia posicionou-se pela admissibilidade da denúncia anônima, uma vez que continha informações graves, descritas de forma minuciosa, comprometedoras da segurança pública e, portanto, capazes de gerar, à polícia, suspeitas razoáveis sobre o comportamento ilícito do cidadão, sendo constitucional a abordagem policial realizada. Disponível em http://www.FDAP.org/dowload/articles_and_outlines/anonymous-tips.pdf. Acesso em 01.05.2012. A Corte de Apelação da Califórnia, no caso United States v. Palos-Marquez 591.272 (2010), também posicionou-se favoravelmente à utilização da denúncia anônima, entendendo não haver contaminação nas provas produzidas posteriormente e que dela derivaram. Em resumo, a polícia rodoviária do estado da Califórnia recebeu uma ligação anônima de que um veículo trafegava em uma estrada, na divisa com o México, promovendo o tráfico ilegal de pessoas. Na ligação, o denunciante informou, em detalhe, as características do veículo. Acionada, a polícia determinou que houvesse patrulhamento na área. Ao localizarem o veículo, os policiais observaram que o motorista aparentava estar nervoso, além de estar conduzindo em alta velocidade. Por essas razões, os policiais decidiram abordar o automóvel e encontraram, em seu interior, imigrantes ilegais, sendo confirmada a denúncia anônima recebida. O caso 134 mister, a autoridade deve adotar providências que lhe permitam constatar se a notícia sem subscrição encaminhada é verossímil e imprescindível. Por sua vez, ao Judiciário, poder responsável pelo controle do ato administrativo, cabe o papel de avaliar se esses requisitos foram, de fato, observados pelos poderes públicos e se justificam os danos eventualmente provocados na esfera privada do denunciado135. A verossimilhança busca demonstrar a plausibilidade do conteúdo informativo da representação, com o propósito de saber se o Estado, ao investigar o particular com base em uma delação anônima, não está interferindo nos seus direitos fundamentais com escassa probabilidade de atingir resultados exitosos à segurança pública. Para tanto, devem ser observados: O nível de detalhamento da informação, a qual deverá indicar os fatos criminais a serem investigados, os locais dos seus cometimentos, bem como a qualificação mínima do infrator, a fim de possibilitar a sua identificação; A forma com que os dados foram obtidos pelo informante, ou seja, se a informação foi angariada pelo próprio delator ou mediante comentários de terceiros; se o representante possui ou não condições próprias de conseguir os chegou até a Corte Californiana que entendeu que existia suspeita razoável capaz de permitir a abordagem policial, a qual foi gerada, inicialmente, pela denúncia anônima, mas, posteriormente, confirmada através de diligências realizadas pelos próprios agentes rodoviários. Além disso, o fato do motorista encontrar-se em alta velocidade, adotar um comportamento suspeito e percorrer uma rodovia com alto índice de tráfico ilegal de pessoas serviu de subsídio para a plausibilidade da denúncia anônima, fazendo com que a intervenção policial não violasse a Quarta Emenda da Constituição Americana. Disponível: http://www.sdsheriff.net/legalupdates/docs/0610.pdf. Acesso em 01.05.2012. A mesma Corte de Justiça deparou-se com a questão afeta à delação anônima no precedente Richard G. 173 Cal. App 4 1252 (2009) (Second District, Division six). A polícia da Califórnia recebeu uma representação anônima, durante a madrugada, noticiando que dois homens estavam causando perturbação à ordem pública, provavelmente na posse de armas de fogo, nas proximidades de uma residência que já havia sido alvo de intervenção policial, dias antes, envolvendo a participação de gangues, oportunidade em que duas armas foram apreendidas. Ao se dirigir ao local, a polícia encontrou, nas imediações da residência, duas pessoas com as características indicadas na denúncia, sendo que um deles, menor de idade, reagiu à atuação policial. Após realizarem busca pessoal, os policiais encontraram armas. No entanto, o menor questionou a constitucionalidade da abordagem policial tendo o caso chegado até o Tribunal de Apelação da Califórnia que decidiu que a detalhada denuncia anônima, acrescida da reação do menor e da recém intervenção policial, no mesmo local, pelos mesmos fatos criminosos é suficiente para gerar uma suspeita razoável aos agentes e, por conseguinte, a sua abordagem, a qual não violou a Quarta Emenda Americana.Disponível:http://www.FDAP.org/dowload/articles_and_outlines/anonymoustips.pdf. Acesso em 01.05.2012. 135 Nesse sentido concordamos com HUMBERTO ÁVILA (Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 174) quando o autor afirma que: “incumbe ao Poder Judiciário ´avaliar a avaliação` feita pelo Poder Legislativo (ou pelo Poder Executivo), relativamente a premissa escolhida, justamente porque o Poder Legislativo só irá realizar ao máximo o princípio democrático se escolher a premissa concreta que melhor promova a finalidade pública que motivou sua ação ou se tiver uma razão justificadora para ter se afastado da escolha da melhor premissa”. dados noticiados, em razão de manter relações pessoais, empregatícias ou de outra natureza com o representado e se foram empregados métodos lícitos ou a produção da informação é proveniente do uso de meios ilícitos; As causas que motivaram o delator a procurar as autoridades públicas e a contribuir com a segurança pública. Assim, a depender da qualidade das informações contidas na representação, a autoridade pública terá condições de, com a realização de diligências investigatórias prévias, apreciar o potencial de verossimilhança do seu conteúdo. Pensemos no seguinte caso: Uma circunscrição da polícia civil recebe uma carta anônima noticiando que um indivíduo, devidamente identificado, encontra-se praticando crime de tráfico de drogas na porta de uma escola municipal e que o responsável pela denúncia presenciou, pessoalmente e em diversas oportunidades, o cometimento de tais fatos, em razão de trabalhar no referido estabelecimento de ensino. No documento, o informante aduz, ainda, que não tem interesse em se identificar por medo de sofrer retaliações, embora pretenda que os policiais adotem providências com o propósito de reprimirem o cometimento da ilegalidade relatada. Não se pode olvidar que se trata de uma denúncia grave e que compete às autoridades de combate ao crime o dever de promoverem a sua averiguação. No entanto, antes de realizar qualquer diligência que atinja frontalmente as liberdades constitucionais do suposto infrator, cabem aos agentes públicos aferir o grau de probabilidade acerca da veracidade dos fatos noticiados. Uma consulta no sistema integrado de informações da Secretaria de Segurança Pública pode, por exemplo, demonstrar se o cidadão denunciado é primário ou reincidente, se possui antecedentes criminais, se é morador das imediações da escola municipal mencionada, se possui trabalho fixo, dentre outros dados relevantes. Com um mero exame e sem provocar danos diretos na sua esfera privada, a autoridade policial consegue descobrir se o denunciado é fugitivo da Justiça, se já cumpriu pena no sistema prisional ou, então, se é pessoa falecida ou residente e trabalhador em outro estado de federação. Enfim, a partir do resultado obtido com esse breve levantamento a polícia tem condições de formular um juízo, mesmo que prévio, acerca da representação recebida. A intervenção estatal dependerá, portanto, do grau de suspeita razoável produzido com o cotejamento dos elementos trazidos no bojo da delação. Em sendo verossímil, o agente público deve, ainda, examinar se a recepção da denúncia anônima, com todos os ônus dela decorrentes, é, realmente, necessária para a obtenção da informação criminosa. Com esse propósito, é válido averiguar: Se existem outros elementos de prova que já tenham chegado ao conhecimento dos agentes públicos narrando os mesmos fatos, mas que não se utilizem do anonimato, os quais devem ser priorizados; Em caso de inexistência de outras provas é importante observar se existem razões que realmente justifiquem o anonimato, comum, por exemplo, nos casos em que se faz necessário resguardar a segurança de quem formula a notícia criminal. Nessas situações, deve-se considerar a gravidade dos delitos narrados; a qualidade pessoal do denunciado, ou seja, se é detentor de poderio politico, econômico ou se compõe organizações criminosas; a existência de casos anteriores em que testemunhas e demais colaboradores tenham sido ameaçados ou mortos em processos envolvendo os mesmos representados. Tudo com o propósito de verificar o risco potencial a que o delator poderá ser exposto, caso se identifique; É importante observar, ainda, se foram disponibilizados ao representante meios alternativos, não recobertos pelo anonimato, para a obtenção da informação pretendida, tais como a sua inserção no programa de proteção a testemunhas. Somente a partir dessas avaliações prévias é que a autoridade pública decidirá pelo recebimento das representações criminais anônimas. E, ainda que a opção escolhida seja pela sua admissão, deve-se, no passo seguinte avaliar em que medida a delação será empregada e qual a intensidade da interferência a ser provocada na esfera privada do denunciado por meio do instrumento apócrifo, isoladamente considerado. Todas essas ilações feitas, inicialmente, pela autoridade receptora da notícia sem subscrição, se mostram essenciais para que, depois, o Poder Judiciário possa avaliar a proporcionalidade da medida restritiva em exame. Afinal, com base na denúncia anônima recebida, o agente poderá adotar uma postura mais intervencionista, deflagrando, de imediato, uma investigação criminal em desfavor do representado ou, até mesmo, formular requerimentos judiciais restritivos de garantias constitucionais, tais como busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica e prisão cautelar. De outro lado, a autoridade pode posicionar-se de forma mais cautelosa, utilizando a delação anônima não como uma prova em si136, mas apenas como um norte informativo no sentido de direcionar os esforços estatais para a obtenção, com prudência e discrição137, de um corpo probatório robusto e independente da notícia criminal sem subscrição, suficiente para coibir as ilegalidades praticadas. Entendemos que o manuseio das informações recebidas, anonimamente, deve ser efetuado com o máximo de cuidado pelos poderes públicos. Não se discute que compete aos órgãos de investigação criminal apurar as notícias que chegam até o seu conhecimento, para que a intervenção estatal não seja desenvolvida de forma negligente, deixando de investigar fatos que são, ao menos em princípio, de relevância social. Entretanto, ao mesmo tempo em que desempenham esse múnus, os agentes não podem invadir a esfera privada do particular de forma demasiada e desproporcional, sem que haja indícios razoáveis acerca da plausibilidade da notícia crime. A partir dessas inferências, pode-se formular a seguinte máxima: quanto maior for a restrição a ser feita na esfera privada do indivíduo, maior deve ser a certeza do agente público quanto à veracidade das informações contidas na representação. O comportamento negligente por parte do servidor público frente aos direitos fundamentais da parte adversa pode, inclusive, ensejar a sua responsabilização, bem como a do órgão no qual está lotado138. Em breve síntese: 136 O autor JOSÉ MANUEL DE ARRUDA ALVIM (Manual de Direito Processual Civil, 9ª edição, Ed. RT, São Paulo, 2005, p. 380/382) conceitua prova como meio idôneo capaz de demonstrar a verdade de determinados fatos, os quais chegaram ao conhecimento do juiz, em decorrência da atividade desenvolvida principalmente pelos litigantes. 137 Cf. JOSÉ FREDERICO MARQUES, Elementos de Direito Processual Penal, cit., p. 140/151. Nesse mesmo sentido, JULO FABBRINI MIRABETE, Processo Penal, cit., p. 87 e ROGÉRIO LAURIA TUCCI, Persecução penal, prisão e liberdade, Ed. Saraiva, São Paulo, 1980, p. 34/36. 138 Nesse sentido, destaca-se o voto proferido pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, nos autos do acórdão MS 24.405. Não se pode olvidar, ainda, que, assim como ocorre com os servidores públicos de combate ao crime, as condutas dos jornalistas, para quem o sigilo de fonte é previsto expressamente no texto constitucional, não estão isentas de responsabilização. Em relação a esses profissionais, é pacífico o entendimento de que são civilmente responsáveis pelos danos provocados no exercício de suas atividades laborativas. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, formulou a Súmula 221, que estabelece que: “são civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”. A utilização da delação anônima pelos órgãos de Defesa Social nem sempre constitui uma intervenção inconstitucional e, por esse motivo, não gera, de per si, a nulidade das provas dela decorrentes; Em regra, ao receberem uma representação apócrifa, as autoridades públicas devem apurar a sua plausibilidade, através de um procedimento informal, de cognição sumária, angariando elementos de convicção não revestidos pelo anonimato, capazes de embasar a formalização de uma investigação criminal; O emprego da notícia-crime sem subscrição, isoladamente considerada, somente pode ensejar a deflagração de uma persecução penal ou subsidiar a formulação de requerimentos cautelares que se contraponham às liberdades asseguradas pela Constituição com a chancela de inviolabilidade, em situações excepcionalíssimas, de extrema gravidade e urgência, competindo aos poderes públicos o ônus de comprovar a ocorrência de tais hipóteses; Nos casos em que a intervenção estatal seja impugnada, deve o Poder Judiciário verificar se, ao decidirem fazer uso de uma denúncia anônima, os agentes públicos atenderam, minimamente, os critérios objetivos necessários para o seu recebimento, tais como a verossimilhança do seu conteúdo e a imprescindibilidade do seu emprego. De igual forma, o poder de controle deve averiguar se os órgãos de Defesa Social agiram, com zelo, ao interferirem na vida privada do denunciado, ou se eventuais intervenções restritivas nulificaram por completo o exercício do direito fundamental à intimidade por seu titular, transformando-o em mero objeto139 de investigação criminal, o que constitui um comportamento inaceitável à luz dos princípios estruturantes de qualquer Estado de Direito, como a dignidade da pessoa humana140. Tais considerações, portanto, são de extrema valia para que o julgador decida se, no caso concreto, o sacrifício imposto ao particular com a intervenção restritiva é 139 Cf. INGO WOLFGANG SARLET, “Notas sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” in Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica, Daniel Sarmento e Ingo Wolfgang Sarlet (coord.) Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 64/65. 140 Concordamos com o posicionamento defendido, de forma pioneira, por JORGE REIS NOVAIS (As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, op. cit., p. 766) ao incluir, no âmbito do princípio da proibição do excesso, o critério da razoabilidade, o qual fulcra a verificação do excesso sob a ótica da gravidade que a restrição provoca na esfera do afetado, não podendo ser imposta ao titular do direito uma restrição que retire proteções mínimas da sua liberdade e da sua autonomia individual, consideradas imprescindíveis em qualquer Estado de Direito. demasiadamente desrazoável frente às razões que justificam a utilização da delação anônima ou, então, se o seu uso encontra fundamento na situação específica, a ponto de fazer prevalecer o interesse coletivo em desfavor do direito individual. Afinal, não existem direitos absolutos, sendo necessária uma convivência harmônica entre todos os valores e direitos previstos na Carta Magna, o que somente se faz possível a partir de uma atividade hermenêutica fulcrada em regras transparentes de argumentação, mas também preocupada em conciliar norma e realidade, texto e contexto, sempre em prol da preservação do texto constitucional às vicissitudes sociais. Como bem ponderado por José Melo Alexandrino, “os direitos não se resumem a si próprios, já que nasceram em contexto, vivem em contexto e se projectam em contexto”141. O passo seguinte busca analisar como as representações criminais anônimas têm sido tratadas pelo ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro e pelos Tribunais Superiores. 3. As notitia criminis no ordenamento jurídico infraconstitucional Como visto, há uma lacuna na Constituição a respeito da admissibilidade das delações anônimas de caráter criminal no sistema jurídico vigente, sendo que o único dispositivo constitucional que menciona o anonimato é ambíguo, pois contém termos dotados de vagueza semântica que não definem, com precisão, as situações capazes de serem consideradas como livres manifestações do pensamento. É claro que contribuem para essa omissão as múltiplas derivações dos direitos de petição, de informação e de livre manifestação do pensamento, as quais são impossíveis de serem integralmente previstas pelo Legislador Constituinte, de forma abstrata, em face das suas inúmeras peculiaridades e complexidades, muitas vezes, visíveis apenas no transcurso da vida prática. De outro lado, a ausência de previsão expressa na Carta Magna a respeito das notitia criminis anônimas não constitui, evidentemente, a única lacuna constitucional. Ainda no 141 Cf. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 480. campo criminal, observam-se inúmeras “situações constitucionalmente relevantes não previstas142”. Como exemplo, cite-se a discussão até recentemente enfrentada em torno da possibilidade de interceptação dos dados de sistemas de informática e de telemática, para fins penais. O artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal, disciplinou a inviolabilidade do sigilo de correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, sendo que em relação a essas últimas, o Legislador Constituinte admitiu a quebra dos seus sigilos, desde que por ordem judicial e para fins de investigações e de processos de natureza penal. Como se observa, o sigilo dos dados de sistemas de informática e de telemática não chegou a ser regulamentado pela Assembleia Constituinte. Ocorre que, em plena era da informática, caracterizada principalmente pelo advento da internet, frise-se, pouco desenvolvida em 1988, o tema acabou sendo objeto de intensos debates na comunidade acadêmica. O transcurso do tempo produziu impactos nas comunicações sociais, principalmente em decorrência das evoluções tecnológicas apresentadas na virada do século XXI. As comunicações passaram a ser desenvolvidas cada vez mais através dos meios eletrônicos do que por intermédio das comunicações telegráficas, por exemplo. E, diante dessa realidade, começou-se a questionar, inevitavelmente, se os e-mails, tal como as conversas telefônicas, também poderiam ser interceptados pelas autoridades públicas de combate ao crime. Sobre o tema, a doutrina dividiu-se, essencialmente, em dois grupos. Uma corrente contrária à interceptação de dados dessa natureza, por ausência de previsão constitucional143 e outro favorável, sob a alegação de que a hermenêutica constitucional deve acompanhar as evoluções da humanidade, inclusive tecnológicas, sendo possível suprir, com a utilização de valores substantivos e com recurso ao princípio da proporcionalidade, as omissões, as ambiguidades e as incoerências do sistema. Nessa conformidade, posicionavam-se favoravelmente à interceptação desses dados, desde que para atender finalidade criminal e mediante autorização judicial. 142 Cf. JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 457. 143 Cf. VICENTE GRECO FILHO, Interceptação Telefônica, Ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 10/19. Essas divergências persistiram até que o Legislador infraconstitucional enfrentou a problemática e, sanou a lacuna existente no ordenamento, através da edição da Lei nº 9.296/96, a qual admitiu a interceptação de comunicações dessa natureza, mediante o cumprimento de condições específicas, previstas no mesmo expediente normativo. Ressalta-se que essa lei não foi declarada inconstitucional, encontrando-se em plena vigência. Contudo, diferentemente das interceptações de comunicações em sistema de informática ou telemática, as notícias-crime anônimas não foram regulamentadas, através de leis, pelo legislador infraconstitucional144. Apesar das leis ordinárias tratarem do tema de forma vaga, na medida em que não admitem expressamente o uso das delações criminais anônimas, mas também não a proíbem145, não se pode deixar de mencionar expedientes normativos, os quais, ainda que não provenientes do Poder Legislativo, disciplinam a questão de forma mais pormenorizada. É através do cotejamento dos seus conteúdos, aliás, que se conclui que a utilização das representações anônimas constitui um mecanismo idôneo para a comunicação de crimes perante as autoridades. A recepção das delações anônimas foi introduzida no ordenamento através dos diversos “disque-denúncias146” instalados no país, os quais foram criados pelo Governo, 144 O Decreto-Lei nº 3.689/1941 que instituiu o Código de Processo Penal, embora tenha previsto a possibilidade de qualquer pessoa comunicar fatos criminosos às autoridades públicas, não disciplinou se essas notícias poderiam ou não ser concretizadas anonimamente. O seu artigo 5º, § 3º, estabelece, apenas, que: “Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunica-la à autoridade policial e, esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito”. De igual forma, a Lei nº 9.051/95 que regulamentou o direito de petição, no País, não faz qualquer menção em relação ao anonimato. 145 Na Constituição da Itália, não se observa qualquer menção ao anonimato. Contudo, diversamente do Brasil, o Código de Processo Penal italiano contém dispositivos expressos tratando da matéria, prescrevendo que as denúncias criminais anônimas somente serão admitidas no ordenamento quando contiverem informações que constituam o próprio corpo de delito ou quando provierem do próprio investigado. O seu artigo 240, giza que: “Documenti anonimi – 1. I documenti che contengono dichiarazioni anonime non possono essere acquisiti né in alcun modo utilizzati salvo che constituiscano corpo del reato o provengano comunque dall´imputado”. A doutrina italiana, de outro lado, tem considerado possível, apesar do dispositivo legal referido, o uso da denúncia anônima ainda que não para as finalidades especificadas no dispositivo legal, desde que utilizada como um norte capaz de direcionar as autoridades públicas de combate ao crime. Somente após a confirmação da plausibilidade do seu conteúdo é que os agentes poderiam instaurar os procedimentos investigatórios pertinentes, contanto que as provas relacionadas ao ilícito possam ser obtidas por outros meios que não a denúncia anônima. Nesse sentido, PAOLO TONINI, A prova no processo penal italiano, Trad. Daniela Mróz e Alexandra Martins, Ed. RT, São Paulo, 2002, p. 70/85. 146 O primeiro disque-denúncia, no Brasil, foi criado em 1995, no Rio de Janeiro, inspirado no sistema americano denominado Crime Stoppers. Trata-se de um serviço de atendimento telefônico disponibilizado ao cidadão, para que esse ajude no combate ao crime, denunciando a prática de delitos de através de expedientes normativos administrativos. Por meio desse mecanismo de denúncia, qualquer pessoa, sem precisar se identificar, contata com os órgãos públicos, a fim de relatar o cometimento de delitos. Por sua vez, ao tomarem conhecimento da prática de delitos, as autoridades competentes adotam as providências necessárias para investigá-los147. Ressalta-se que desde as suas criações, a constitucionalidade desses mecanismos não foi questionada nos Tribunais Superiores148 e têm se proliferado por todos os entes da federação. E isto porque os resultados obtidos com as suas implantações têm se mostrado exitosos. Como modelo, destaca-se o “disque-denúncia” implantado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, instituído para auxiliar no combate aos crimes de abuso e exploração sexual praticados contra crianças e adolescentes. De 2003, ano de sua criação, até 2011, o número de municípios contemplados pelo sistema passou de 892 para 4.994. Os atendimentos também cresceram, vertiginosamente. Em 2003, foram constatados 4.499 atendimentos. Em 2011, o número saltou para 380.619. Durante os oito anos em que o serviço foi disponibilizado à população foram registrados, formalmente, 195.932 denúncias149. que tem conhecimento, sem que precise se identificar. Atualmente, existem inúmeros disques-denúncias implantados no país, com o objetivo de facilitar o combate aos crimes de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes, à violência contra a mulher, ao tráfico de pessoas e ao tráfico de drogas, dentre outros. Disponível em http://www.pt.wikipedia.org/wiki/disque_denuncia. Acesso em 02.03.2012. 147 Nos Estados Unidos, não há previsão constitucional ou infraconstitucional expressa sobre as delações criminais anônimas. Contudo, a comunicação de crimes sem subscrição constitui uma prática bastante comum e plenamente difundida no ordenamento jurídico americano. Como exemplo, cite-se o site do Departamento de Polícia do Estado de Nova York. No formulário específico para o recebimento de denúncias de crimes, existe advertência explícita para que o representante não apresente a sua identificação, bem como não salve o formulário no seu computador ou o imprima, por razões de segurança. Caso o delator pretenda se identificar, deve se dirigir para outro ícone do site, local em que poderá, apenas, indicar um email para ser contatado, posteriormente, pelas autoridades, mas ainda assim, sem que haja a descrição dos seus dados pessoais. Disponível em http://www.nyc.gov/nypd. Acesso em 20.06.2012. 148 Ao se efetuar uma pesquisa de jurisprudência nos Tribunais Superiores, não se encontrou ações que questionassem a constitucionalidade dos “disque-denúncias” existentes em todo o país. É válido mencionar que, embora não se tratasse do mérito da ação, o emprego desses mecanismos de combate ao crime foi abordado, no bojo do HC/MC/RO 100.042, julgado em 08/10/2009, tendo o Ministro Celso de Mello afirmado que o artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal tem que ser interpretado de forma a possibilitar a apuração de crimes e a observância do princípio constitucional da publicidade. Segundo o Ministro, ao ser provocado anonimamente, através, por exemplo, de disque-denúncias, o Poder Público deve adotar as medidas informais necessárias para investigar, “com prudência e discrição”, a prática de eventual crime. E, em sendo confirmada a sua ocorrência, deve a autoridade instaurar o pertinente controle de legalidade, baseado em provas desvinculadas das peças apócrifas. 149 Os dados disponíveis no sistema, relativo ao ano de 2011, referem-se ao período de janeiro a agosto desse ano. É válido destacar, ainda que, dos 100% das denúncias formuladas, 35% delas referem-se à violência física e psicológica, 37% às negligências em geral e 28% dizem respeito à violência sexual cometidos contra crianças e adolescentes, demonstrando a importância da implantação do programa para Outro expediente que recepciona a delação anônima como forma de comunicação de atos ilícitos é a Resoluções nº 13/2006150, editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, a qual possui força normativa no ordenamento pátrio e disciplina a instauração e a tramitação das investigações criminais. Nesse regulamento, há possibilidade de que as investigações sejam iniciadas pelo Ministério Público a partir de denúncias anônimas, desde que as delações contenham informações mínimas sobre os fatos a serem apurados, ou seja, desde que possuam elementos suficientes que permitam aos membros do Parquet aferir as suas plausibilidades, antes da adoção de qualquer providência mais invasiva na esfera privada de terceiros. É digno de nota que tais expedientes normativos também não foram objeto de impugnações acerca de suas constitucionalidades, encontrando-se em plena vigência. Assim, pode-se concluir que as representações anônimas com o objetivo de denunciar a prática de crimes têm sido admitidas, paulatinamente, no sistema jurídico brasileiro151. A seguir, passamos a investigar os posicionamentos adotados pelos Tribunais Superiores em relação ao problema, objeto dessa investigação. a defesa de interesses de relevância social. Disponível em http://www1. direitoshumanos.gov.br/spdca/exploracao_sexual/Acoes_PPCAM/disque_denuncia.Acesso 20.06.2012. 150 O seu artigo 4º, caput, dispõe que: “O procedimento investigatório criminal será instaurado por portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada, com a indicação dos fatos a serem investigados e deverá conter, sempre que possível, o nome e a qualificação do autor da representação e a determinação das diligências iniciais”. O Conselho Nacional do Ministério Público editou, também, a Resolução nº 23/2007, a qual disciplina as investigações ministeriais acerca dos ilícitos de natureza civil, como atos de improbidade administrativa. Nesse expediente, o tema também é regulamentado. Em seu artigo 2º, §3º, o Conselho Nacional do Ministério Público estabelece que os inquéritos civis serão instaurados mediante portaria, de ofício, por designação do Procurador Geral de Justiça ou por meio de representação e que o conhecimento dos fatos por manifestação anônima, devidamente justificada, não implicará ausência de providências por parte dos membros do Parquet, desde que obedecidos os mesmos requisitos para as representações em geral, constantes no artigo 2º, II, desta Resolução. Os requisitos referidos correspondem às informações sobre os fatos, bem como a qualificação mínima do suposto infrator, a fim de que seja possível a sua identificação. 151 A doutrina tem se posicionado em relação ao problema. O entendimento majoritário é favorável à admissibilidade da noticia-crime inqualificada, desde que a autoridade, destinatária dessa denúncia anônima, atue, com prudência e discrição, na apuração preliminar das informações nela contidas. Seguindo esse posicionamento, destacam-se ROGÉRIO LAURIA TUCCI, Persecução penal, prisão e liberdade, cit., p. 34/36; FERNANDO CAPEZ, Curso de Processo Penal, cit., p. 77; JULIO FABBRINI MIRABETE, Código de Processo Penal Interpretado, p. 95/96 e GUILHERME DE SOUZA NUCCI, Código de Processo Penal Comentado, Ed. RT, São Paulo, 2002, p. 68. 4. As notitia criminis e a jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios No que pertine à jurisprudência dos Tribunais Superiores, os posicionamentos são bastante dissonantes, como se verá a seguir. Sem abordar expressamente o tema em torno da concorrência de direitos, a posição jurisprudencial majoritária entende que a representação criminal compõe o âmbito de proteção do direito à livre manifestação do pensamento, uma vez que o dispositivo previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, corresponde ao direito à liberdade de expressão em sentido lato. Ocorre que mesmo para aqueles que adotam essa concepção dogmática, a admissibilidade da denúncia criminal anônima no ordenamento jurídico não é pacífica, identificando-se na jurisprudência dois posicionamentos, antagônicos entre si. O primeiro, de natureza absoluta, considera a restrição constitucional que veda o anonimato uma regra, a qual deve ser aplicada de forma subsuntiva, nos moldes do “tudo ou nada”, em relação a todas as hipóteses afetas à manifestação do pensamento. Para essa corrente jurisprudencial, a representação de natureza criminal encontra-se inserida no conteúdo do artigo 5º, inciso IV e, por essa razão, a previsão que proíbe o anonimato deve incidir também em seu desfavor. Nessa conformidade, a delação sem subscrição deve ser sumariamente considerada inconstitucional, em todo e qualquer caso, provocando a nulidade dos atos dela decorrentes, independentemente da situação concreta que a tenha gerado152. 152 Nesse sentido, destacam-se os seguintes acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça: AgrReg Inq 355/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, publicado DJe 17.05.2004; HC 95.838, Rel. Min. Nilson Naves, publicado DJe 17.03.2008; AgReg na Sd 100/TO, Rel. Min. Nilson Naves, publicado na DJe 30.04.2009 e QO NC 280/TO, Rel. Min. Nilson Naves, publicado DJe 05.04.2005, cuja ementa resume o posicionamento adotado nos demais acórdãos referidos, nos seguintes termos: “Competência do Superior Tribunal (originária). Notícia-Crime (delação anônima). Anonimato (vedação). Relator (competência). 1. Compete ao Superior Tribunal processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, entre outras pessoas, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados. 2. O ordenamento jurídico brasileiro, inquestionavelmente, requer – e é bom que assim requeira – que também o processo preliminar – preparatório da ação penal – inicie-se sem mácula. 3. Se as investigações preliminares foram iniciadas a partir de correspondência anônima, as aqui feitas tiveram início, então, repletas de nódoas, melhor dizendo, nasceram mortas ou, tendo vindo à luz com sinais de vida, logo morreram. 4. Cabe ao Ministério Público, entre outras funções, a defesa da ordem jurídica, ordem que, entre nós, repele o anonimato (Constituição, art. 5º, IV). 5. Questão de ordem que, submetida pelo Relator à Corte Especial (Regimento, art. 34, IV), foi pela Corte acolhida a fim de se determinar o arquivamento dos autos. Votos vencidos”. O segundo entendimento, por sua vez, é mais flexível, na medida em que entende que a restrição que veta o anonimato nem sempre deve ser aplicada incondicionalmente a toda e qualquer manifestação do pensamento, uma vez que a sua incidência pode ser excepcionada pelo intérprete, a depender das especificidades do caso analisado153. O O Supremo Tribunal Federal já se posicionou nesse sentido, através dos acórdãos como MS 24.405, Rel. Min. Carlos Veloso, DJE 23.04.2004 e o HC 84.827/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 23.11.2007. Nesse precedente, o Relator entendeu que a manifestação do pensamento, embora protegida no texto constitucional, restou restringida pelo próprio Legislador Cosntituinte Originário, que determinou a vedação ao anonimato. Por essa razão, a notícia da prática criminosa sem identificação da autoria não serve à persecução criminal. Para o Ministro Marco Aurélio o objetivo é “evitar o denuncismo irresponsável, inescrupuloso” e permitir a responsabilidade daquele que abusou do seu direito. Trata-se de uma regra, cuja única exceção diz respeito ao exercício profissional do jornalista. A ementa do acórdão resume a corrente de pensamento por ele defendida: “Anonimato – Notícia de prática criminosa – persecução criminal – impropriedade. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente”. 153 Nessa linha de entendimento, destacam-se os seguintes acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça: HC 97.212/PE, Relª. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), DJe 30.06.2008; HC 38.093, Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 17.12.2004; HC 64.096/PR, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 04.08.2008; HC 114.846/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 02.08.2010; HC 44.649/SP, Relª. Min. Laurita Vaz, DJe 08.10.2007; HC 7.329/GO, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe 04.05.1998; HC 76.749/SP, Relª. Min. Laurita Vaz, DJe 11.05.2009; HC 83.830/PR, Relª. Min. Laurita Vaz, DJe 09.03.2009 e HC 93.421/RO, Rel. Min. Felix Fisher, DJe 09.03.2009, cuja ementa resume o posicionamento adotado nos acórdãos mencionados, nos seguintes termos: “Penal e processual penal. Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário. Arts. 342, 343 e 344 do Código Penal. Instauração de inquérito policial a partir de denúncia anônima. Admissibilidade. De acordo com a jurisprudência da Quinta Turma desta Corte, não há ilegalidade na instauração de inquérito policial com base em investigações deflagradas por denúncia anônima, eis que a autoridade policial tem o dever de apurar a veracidade dos fatos alegados, desde que se proceda com a devida cautela (HC 38.093/AM, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 17/12/2004). Além disso, as notícias-crime levadas ao conhecimento do Estado sob o manto do anonimato têm auxiliado de forma significativa na repressão ao crime (HC 64.096/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 04/08/2008). À propósito, na mesma linha, recentemente decidiu a Sexta Turma desta Corte no HC 97.212/PE, Relª. Minª. Jane Silva Desembargadora Convocada do TJ/MG -, DJ de 30/06/2008: “(...) Enfim, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a determinar a instauração de inquérito policial, desde que contenham elementos informativos idôneos suficientes para tal medida, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado (HC 44.649/SP, 5ª Turma, Relª.Minª. Laurita Vaz, DJ de 08/10/2007). Habeas corpus denegado”. Nesse mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou nos seguintes acórdãos: HC 95.244/2010, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 30.04.2010; HC 99.490/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 01.02.2011; HC 86.082, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, DJe 22.08.2008; HC 90.178, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 26.03.2010; Inq. 1.957-7/PR, Rel. Min. Carlos Veloso, DJe 11.05.2005; MS 27.339/DF, Rel. Min. Menezes Direito, DJe 06.03.2009; HC 74.195, Rel. Min. Sidney Sanches, DJe 13.09.1996 e MS 24.369/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Inf./STF 286/2002, cuja ementa encontra-se descrita a seguir: “Delação Anônima. Comunicação de fatos graves que teriam sido praticados no âmbito da Administração Pública. Situações que se revestem, em tese, de ilicitude (procedimentos licitatórios supostamente direcionados e alegado pagamento de diárias exorbitantes). A questão da vedação constitucional do anonimato (art. 5º, IV, in fine), em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais desviantes. Obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público. Razões de interesse social em possível conflito com a exigência de proteção à incolumidade moral das pessoas (CF, art. 5º, X). O direito público subjetivo do cidadão ao fiel desempenho, pelos agentes estatais, do dever de probidade constituiria uma limitação externa aos direitos da personalidade? Liberdades em antagonismo. Situação de tensão dialética entre princípios estruturantes da ordem constitucional. Colisão de direitos que se raciocínio dogmático construído pelos adeptos desse posicionamento parte da ideia que a vedação ao anonimato surgiu com o propósito de inibir excessos cometidos no exercício concreto do direito à liberdade de expressão do pensamento, viabilizando a adoção de medidas de responsabilização contra aqueles que ofendam o patrimônio moral de terceiras pessoas, vítimas dos abusos cometidos. Entretanto, embora a sua criação busque preservar os princípios fundamentais relacionados à incolumidade dos direitos da personalidade, como a honra, a intimidade e a imagem154, tais direitos não podem ser apreciados isoladamente, tampouco de forma absoluta. Ao lado desses princípios, existem outros, de idêntica estatura constitucional, que buscam resguardar a ordem e a segurança pública, amoldando à lei condutas individuais graves, merecedoras de reprovação social, tanto que foram consideradas como infrações sujeitas a sanções penais pelo legislador. Logo, essa linha de entendimento sustenta que proibir, de plano, a utilização de delações anônimas prejudica a manutenção desses bens de interesse coletivo, ao mesmo tempo em que admitir os empregos das representações apócrifas, de forma automática, pode ensejar violações, na esfera pessoal, dos denunciados, caracterizando um nítido conflito entre direitos fundamentais, o qual deve ser decidido pelo intérprete constitucional, através do método ponderativo, levando em consideração o contexto em que se apresentam. Tais posicionamentos não estão isentos de críticas. A inclusão das representações criminais no âmbito de proteção do dispositivo previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, desconsidera, ao nosso ver, as construções dogmáticas em torno dos direitos à livre manifestação do pensamento, de informação e de petição, conferindo tratamento igualitário a situações que são evidentemente díspares. resolve, em cada caso, ocorrente mediante ponderação dos valores e interesses em conflito. Considerações doutrinárias. Liminar indeferida”. 154 Ao proferir o seu voto no bojo do Inq. 1.957-7/PR, o Ministro Celso de Mello manifestou-se sobre o veto constitucional ao anonimato, afirmando que: “Essa cláusula de vedação - que jamais deverá ser interpretada como forma de nulificação das liberdades de pensamento – surgiu, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72, §12). Com tal proibição, o legislador constituinte, ao não permitir o anonimato, objetivava inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, para, desse modo, viabilizar a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais, panfletos ou denúncias apócrifas, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele estatuto Fundamental”. A concepção dogmática defendida pela corrente absoluta produz graves consequências práticas, na medida em que as restrições específicas às opiniões e aos pensamentos passam também a ser aplicadas às informações de fatos criminosos, cujo conhecimento é de inquestionável relevância para a sociedade e que, por essa razão, não poderiam ser restringidas, de plano e abstratamente, pela vedação ao anonimato. Tal interpretação, portanto, revela-se desconexa à realidade e incoerente do ponto de vista sistêmico constitucional. Por sua vez, a concepção relativa, embora defenda o posicionamento de que não se pode vetar, de imediato, as delações anônimas no ordenamento jurídico, o faz, segundo o nosso entender, a partir de premissas equivocadas, pois inclui as notícias criminais no âmbito de proteção do direito livre expressão do pensamento sem efetuar qualquer menção à concorrência de direitos fundamentais com limites divergentes, o que dificulta a sustentação do método ponderativo empregado por essa linha jurisprudencial na solução dos conflitos de interesses concretos. Afinal, ao advogarem que as delações criminais possuem amparo constitucional apenas e tão somente no dispositivo disposto no artigo 5º, inciso IV e ao excepcionarem a restrição constitucional expressa que o acompanha, os Tribunais Superiores usurpam faculdades que já foram exercidas em relação a esse enunciado específico, de forma peremptória, pelo Poder Originário. Em assim procedendo, comprometem a força normativa do texto constitucional uma vez que, nessa seara, o legislador constituinte avaliou os possíveis conflitos provenientes do exercício desse direito e, após ponderar todos os potenciais interesses em jogo, optou por resguardar à incolumidade dos direitos da personalidade, vetando o anonimato nas manifestações de opiniões e de pensamentos. Apenas a título comparativo, pensemos no artigo 5º, inciso XLVII, “a”, da Carta Magna, que veda a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Uma vez definidas as hipóteses de guerra declarada, compete ao intérprete cumprir o quanto descrito no dispositivo, sendo-lhe defeso admitir a pena de morte, segundo uma análise subjetiva e circunstancial. Entendimento contrário concederia ao operador jurídico a faculdade de excepcionar a regra constitucional, de acordo com o caso concreto, admitindo, por exemplo, essa espécie punitiva em desfavor de um criminoso, somente porque o mesmo praticou, de forma contumaz, infrações penais ou em decorrência da gravidade dos atos por ele perpetrados. Por fim, não se pode deixar de destacar um terceiro entendimento encontrado na jurisprudência, o qual, apesar de minoritário, amolda-se, em grande parte, ao posicionamento aqui defendido. Segundo essa linha de entendimento, o apuramento dos contornos jurídicos das representações criminais faz com que tais institutos não sejam inseridos no âmbito normativo do direito à livre manifestação do pensamento, previsto no artigo 5º, inciso IV155. As eventuais colisões entre os princípios relacionados à incolumidade dos direitos da personalidade e a ordem pública poderão ser ponderados, posteriormente, pelo intérprete, uma vez que a Constituição somente vetou o anonimato em relação às opiniões e às exposições de ideias e não no que concerne à divulgação de informações de natureza criminal. Nesse campo, não há restrição expressa a ser extraída do texto constitucional, tendo o legislador constituinte conferido uma margem discricionária aos poderes constituídos para que, nos casos concretos, compatibilizem os bens e os interesses contrapostos. Assim, para evitar as incongruências diagnosticadas nas decisões produzidas de acordo com a corrente majoritária dos Tribunais Superiores é que sustentamos que o problema precisa ser enfrentado de acordo com as diferenças dogmáticas existentes entre os direitos à liberdade de expressão lato sensu, à livre manifestação do pensamento e de petição, observando-se o chamado domínio da concorrência de direitos fundamentais. Sendo certo que somente por essa via o texto constitucional receberá uma interpretação capaz de respeitar a sua unidade sistêmica e de atender, de forma efetiva, aos anseios sociais. 155 O Ministro Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal, sustentou, em diversas oportunidades, a diferença existente entre manifestações do pensamento e delações criminais anônimas. No bojo do HC 95.244, explicitou que a Constituição, quando fala da proibição do anonimato, o faz em outro contexto, restringindo-se a situações relacionadas à manifestação do pensamento, mas não referente à matéria criminal. Para ele “a Constituição nunca proibiu a denúncia anônima”. De igual forma, no HC 84.827/TO, defendeu que o anonimato foi tratado no texto constitucional em uma única passagem, no âmbito do artigo 5º, inciso IV, quando tratou da manifestação do pensamento. Contudo, de forma expressa, afirmou que delações anônimas para fins penais não podem ser consideradas manifestações do pensamento. Segundo o seu entendimento, enquanto as manifestações do pensamento correspondem a pontos de vista, opiniões e ideias de ordem subjetiva, as denúncias criminais são “noticias de fatos empíricos, legalmente descritos como infrações penais. Logo, não são mais que meros repasses de informações obtidas ora por ciência própria, ora ´por ouvir dizer´”. Para o Ministro, essas distinções foram levadas em consideração pelo Legislador Constituinte tanto que esse posicionou o direito à liberdade de manifestação do pensamento e a vedação ao anonimato no campo civil das liberdades públicas diferentemente das garantias penais e processuais penais, disciplinadas em espaços topologicamente separados. Por fim, posicionou-se favoravelmente à utilização desse instituto, aduzindo “que admitir as delações anônimas é assegurar o direito de participar criticamente da vida pública. É permitir o exercício da cidadania, que é um dos fundamentos da República”. CONSIDERAÇÕES FINAIS De tudo o que foi exposto até o momento é possível tecermos algumas conclusões derradeiras. Em resumo: 1. A extração do sentido normativo dos enunciados constitucionais pelo intérprete depende, essencialmente, do grau de liberdade de conformação conferido pelo legislador constituinte. Nessa conformidade, a avaliação da densidade semântica do texto é crucial para delimitar a sua atuação. 2. Com a previsão do artigo 5º, inciso IV, o legislador constituinte determinou que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Em assim procedendo, criou um dispositivo de natureza dúplice, pois ao mesmo tempo em que protegeu a liberdade de manifestação do pensamento, estabeleceu uma limitação ao seu exercício. 3. O Poder Originário Constituinte, ao assegurar a livre de manifestação do pensamento, utilizou-se de uma expressão polissêmica que dá ensejo a vários sentidos, sendo, por esse motivo, de complexa aplicação. Da análise literal do artigo 5º, inciso IV, não é possível identificar o seu conteúdo. As condutas protegidas por esse direito fundamental somente serão delimitadas a partir de um processo de interpretação constitucional que envolve, inevitavelmente, considerações dogmáticas em torno do direito à liberdade de expressão e das liberdades comunicativas que o cerca. 4. Ao adentrarmos nesse campo de investigação, concordamos com a corrente doutrinária que considera a liberdade de expressão em sentido amplo como um direito geral de comunicação, que engloba inúmeras liberdades, tais como a livre manifestação do pensamento, também chamado de liberdade de expressão em sentido estrito, a livre manifestação artística, intelectual e científica, os direitos de imprensa, do jornalista, de informação, de petição e de aprender e de ensinar. Assim, o direito de informar e o direito de manifestar suas próprias opiniões, dentre outras liberdades comunicativas, correspondem aos “braços” de uma estrutura maior, porém única, representada pelo direito do indivíduo à liberdade de expressão lato sensu. 5. Porém, embora façam parte da liberdade de expressão em sentido amplo, o direito de informar e o direito à livre manifestação do pensamento não são institutos idênticos, uma vez que são formados por elementos essenciais distintos. Enquanto os pensamentos são exposições de ideias e de opiniões que se relacionam com a interioridade humana, sendo, portanto, de ordem subjetiva, as informações buscam a comunicação de fatos, de acontecimentos concretos, logo, de natureza objetiva. 6. Os elementos essenciais que compõem as representações criminais são, primordialmente, de ordem informativa, uma vez que buscam participar as autoridades públicas acerca da prática de fatos ilícitos, de interesse geral, tanto que são tipificados como delitos no ordenamento, a fim de que providências sejam adotadas a fim de coibilos. Significa dizer que as notícias criminais são instrumentos de comunicação de acontecimentos concretos, de ordem objetiva e de controle de legalidade. E é justamente por essas razões que apresentam uma relação mais estreita com o direito de informar, não podendo ser confundidos como corolários das manifestações do pensamento. 7. Interpretando-se os dispositivos constitucionais que tratam da liberdade de expressão na Carta Magna de 1988, chegamos à conclusão de que o legislador constituinte levou em consideração as construções dogmáticas em torno do tema, tanto que procurou preservar amplamente o direito à liberdade de expressão através de dispositivos que contemplam as mais diversas liberdades comunicativas. Em seu bojo, encontram-se enunciados que visam proteger os direitos relacionados ao pensamento, às manifestações artísticas, científicas e de comunicação, à informação, à imprensa e de petição. 8. Mais precisamente, o direito de informar o cometimento de crimes encontra amparo no texto constitucional vigente através da norma que trata do direito de petição, descrita no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição. Em seu bojo, o legislador constituinte garantiu a todos o direito de peticionar aos poderes públicos para, dentre outras finalidades, noticiar a prática de ilegalidades. Mas, ao fazê-lo, teve o cuidado de disciplinar esse direito fundamental em posição topologicamente diversa ao direito à livre manifestação do pensamento, no intuito de destacar as suas especificidades, conferindo tratamentos diferentes a institutos que são, de fato, distintos. 9. A vedação ao anonimato, por sua vez, foi prevista como um limite ao direito à livre manifestação do pensamento e não ao direito de petição. O propósito de sua criação foi o de facilitar a responsabilização daquele que, no exercício desse direito fundamental, o faz de forma abusiva, violando interesses de terceiros. Não é à toa que se encontra redigido ao lado dos dispositivos que tratam dessa responsabilização. 10. Tal distinção dogmática mostrou-se ainda mais evidente na medida em que o Poder Originário Constituinte previu, explicitamente, o respeito ao sigilo de fonte jornalística. Incluir a comunicação de fatos criminosos no âmbito normativo do direito à livre manifestação do pensamento, sujeitando-os, por conseguinte, à restrição ligada ao anonimato, ao tempo que a identidade do informante em relação a esses mesmos fatos pode ser mantida em segredo, desde que noticiados a um jornalista, gera uma disparidade desrazoável de tratamento e, mais, consequências graves práticas que não podem ser desconsideradas pelo intérprete que busca conferir uma interpretação unitária e sistêmica da Constituição, equilibrando o texto constitucional às vicissitudes sociais. 11. Assim, em nosso entender, o Poder Originário Constituinte disciplinou os subsistemas de comunicação através de dispositivos constitucionais diferentes, referindo-se o artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna apenas e tão somente ao direito à livre manifestação do pensamento, o qual não se confunde com a liberdade de expressão lato sensu, prevista, implicitamente, no artigo 5º, caput, não havendo o que se falar em concorrência entre direitos fundamentais com limites divergentes. E isto porque as representações criminais encontram respaldo constitucional em direitos que apresentam consequências jurídicas idênticas. Tanto o direito de petição, considerado um direito mais específico, quanto o direito à liberdade de expressão, com previsão normativa mais vasta, não possuem reservas expressas, de modo que as notícias-crime não podem ser restringidas, de plano, com a vedação ao anonimato. 12. Com isso não se está afirmando que toda e qualquer delação anônima deve, sempre, ser recebida pelas autoridades públicas, uma vez que a sua admissibilidade dependerá das circunstâncias concretas do caso em exame. 13. Afinal, o emprego de representações apócrifas, não raras vezes, gera tensões entre interesses antagônicos, de igual fundamentalidade, os quais não são absolutos. De um lado, têm-se os direitos fundamentais à honra, à imagem e à intimidade dos representados e, do outro, a ordem e a segurança pública, ou seja, a necessidade da coletividade de ter conhecimento dos crimes praticados na sociedade e de puni-los exemplarmente, a fim de que não haja a repetição de comportamentos violadores dos direitos dos seus outros integrantes. 14. A escolha do interesse prevalecente será o resultado do sopesamento desenvolvido entre os interesses contrapostos, mediante o emprego de critérios objetivos e racionais. Nesse sentido, princípios estruturantes como o da proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana constituem uma ferramenta primordial. 15. Ao avaliar se os benefícios concretos obtidos com a utilização da delação anônima justificam os sacrifícios reais impostos ao particular, parâmetros como a verossimilhança do seu conteúdo e a imprescindibilidade do seu emprego devem ser observados pelo intérprete. 16. Para a aferição da intensidade do dano provocado na esfera privada do representado deve-se respeitar, ainda, a seguinte máxima: quanto maior for a restrição a ser feita nos direitos fundamentais do particular, maior deve ser a certeza do agente público quanto à veracidade das informações contidas na representação. 17. É válido reconhecer que, com cada vez com mais frequência, o ordenamento infraconstitucional e a jurisprudência dos Tribunais Superiores têm voltado as suas atenções para a regulamentação do tema. E isso porque a utilização dessas representações pela população tem aumentado, principalmente em decorrência do agravamento da criminalidade organizada. Reflexo de que os cidadãos querem, mas não se sentem seguros, suficientemente, para contribuírem com o sistema de persecução penal pátrio. 18. Não se pode admitir, contudo, que, em nome da ordem pública, o combate a essa criminalidade crescente seja realizada pelos poderes constituídos de forma incontrolada e desmedida. Ao contrário. A segurança da comunidade pode e deve ser promovida, mas em conformidade aos princípios estruturantes de um Estado Democrático de Direito. E mais. É necessário assegurar ao cidadão mecanismos efetivos de controle de constitucionalidade que lhe permita contrapor-se, quando necessário, aos arbítrios praticados pelos órgãos oficiais, sob pena de regresso aos tempos de repressão e de intolerância vivenciados nos estados totalitários da primeira metade do século XX. A abordagem constitucional conferida ao problema, no desenvolvimento do presente trabalho, teve justamente o propósito de tratar do tema sob essa perspectiva, apresentando soluções que compatibilizem o texto constitucional à realidade, mas sempre de acordo com os valores fundamentais que norteiam o Estado Democrático de Direito Brasileiro. BIBLIOGRAFIA ALEXANDRINO, José de Melo, A estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, v. II, Editora Almedina, Coimbra, 2006. ____, Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, Coimbra Editora, Coimbra, 1998. ALEXY, Robert, Teoria dos Direitos Fundamentais, Trad. Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores, São Paulo, 2008. ARRUDA ALVIM, José Manuel, Manual de Direito Processual Civil, 9ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005. ÁVILA, Humberto, Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 9ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2009. 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