As Representações Criminais Anônimas e a Justiça

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As Representações Criminais Anônimas e a Justiça Constitucional
Monia Lopes de Souza Ghignone
INTRODUÇÃO
A política desenvolvida pelos estados totalitários na primeira metade do século XX
sujeitou o homem a situações de repressão e de intolerância profundamente degradantes,
em um dos mais graves atentados contra os direitos humanos da história mundial.
Com o final da II Guerra, o constitucionalismo passou por um processo de
reconstrução, emergindo de um novo cenário político-social que procurava, acima de
tudo, impedir a repetição das atrocidades recém-experimentadas pela humanidade.
Nesse ambiente, o discurso jurídico se despe da sua estrutura formalista, para ser
composto, também, por um núcleo axiológico fundante na dignidade da pessoa
humana1. As Constituições passaram a contemplar um vasto elenco de direitos
fundamentais, com força vinculativa, a fim de que o direito sirva de instrumento para
promover o bem-estar do indivíduo.
Imbuídos desse processo de reformulação, detentores das mais variadas ideologias
juntaram-se para formular cartas constitucionais capazes de refletir e assegurar todas as
posições dissonantes, sempre em busca de combater a intolerância e a segregação social
e de assegurar, de forma efetiva, um núcleo de direitos considerados como fundamentais
aos indivíduos. O produto desse trabalho reflete-se nas diversas Constituições dos
países ocidentais, bem como nos Documentos Internacionais de Direitos Humanos,
cujos enunciados estão dotados, propositadamente, de alto grau de indeterminabilidade2.
1
CHAÏM PERELMAN (Lógica jurídica, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 100/105) aponta que a
importância de se introduzir concepções axiológicas na cultura jurídica, até então representada pelo
legado positivista legalista, foi observada no julgamento de Nuremberg, em que prevaleceu a ideia de
que, mesmo na ausência de disposições legais expressas, os crimes contra a humanidade cometidos pelos
nazistas não poderiam ficar impunes, uma vez que contrariavam um princípio geral reconhecido pelos
países civilizados, consubstanciado pela dignidade da pessoa humana.
2
Nesse sentido, HERNAN MOLINA GUAITÁ (La dignidad del hombre es sagrada, Revista de Derecho,
año 62, nº 195, enero-junio 1994, Faculdad de Ciencias Juridicas y Sociales, Universidad de Concepción,
1994, p.93/95) afirma que a ausência de determinabilidade do conteúdo dos direitos é que permitiu que
O objetivo dessa abertura semântica não reside, apenas, na ideia de integrar
correntes ideológicas opostas, mas também de assegurar a preservação das
Constituições no tempo, uma vez que, como peças fundamentais da engrenagem política
dos países, os seus dispositivos normativos precisam corresponder, com rapidez e
adequação, aos anseios da sociedade caracterizados por suas constantes mutabilidade.
Na busca do equilíbrio entre o texto e o contexto3, o raciocínio formal, meramente
subsuntivo, é substituído pela incorporação da realidade aos seus conteúdos4. Afinal, a
Constituição se propõe a instrumentalizar a convivência social, mas é também por esta
condicionada. Ao assegurar ao cidadão uma resposta efetiva às suas necessidades,
promove-se a perenidade da Constituição, como também, reforça-se a legitimidade do
seu texto, em face da sua utilidade e da sua capacidade concreta de transformar o quadro
fático. É o Estado a serviço do homem, destinatário final e verdadeira razão de ser do
modelo político-jurídico vigente.
Esse fenômeno, inicialmente, detectado nos países da Europa Ocidental, replicouse, ainda que tardiamente, em meados das décadas de 70 e 80 do século passado, nos
países da América Latina, egressos de ditaduras militares.
Dentre as nações que adotaram esse modelo constitucional, tem-se o Brasil. Em sua
Constituição de 1988 previu-se, expressamente, inúmeros direitos fundamentais,
reunidos em um sistema unitário e harmônico dotado de alta carga valorativa,
observando-se, no País, uma mudança significativa no processo hermenêutico.
O Poder Judiciário restou fortalecido, exercendo um protagonismo na determinação
de significados aos enunciados normativos constitucionais5. Na condição de guardiães
da Constituição, os juízes passaram a interpretar os preceitos constitucionais com o
pessoas defensoras de ideologias diversas concordassem em elencar os direitos fundamentais nas reuniões
da UNESCO, na Organização das Nações Unidas.
3
Para KONRAD HESSE (“Constitución y Derecho Constitucional”. In Ernst Benda, Werner Maihofer;
Hans-Jochen Vogel; Konrad Hesse (org.) Manual de derecho constitucional, Trad. Antonio López Pina,
2ª edição, Marcial Pons Ediciones Jurídicas e Sociales S.A., Madrid, 2001, p. 09) “toda Constituição é
Constituição no tempo: a realidade social, a que vão referidas suas normas está submetida à mudança
histórica e esta, em nenhum caso, deixa incólume o conteúdo da constituição”.
4
Cf. EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. Ed.
Malheiros, São Paulo, 2003, p. 30/33 e DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR, Curso de Direito Constitucional,
Ed. Podium, Salvador, 2008, p. 185/187.
5
Essa afirmação não pretende confinar a interpretação a um só operador jurídico, desconsiderando o
caráter pluralista da hermenêutica constitucional. As demais esferas estatais – Executivo e Legislativo –
bem como os próprios cidadãos que se submetem à Constituição desempenham um papel fundamental, a
depender do momento em que o processo interpretativo estiver sendo desenvolvido.
objetivo de conferir-lhes significados que permitam a sua preservação diante das
evoluções históricas e sociais.
A partir dessas premissas, o presente trabalho busca analisar um dos dispositivos
constitucionais mais singulares da Carta Magna de 1988, qual seja o artigo 5º, inciso IV,
que prevê que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e sua
repercussão no âmbito penal e processual penal.
Mais precisamente, procura-se investigar se representações anônimas possuem
amparo constitucional e podem ser utilizadas nos procedimentos criminais ou, ao
contrário, se constituem provas ilícitas capazes de gerar as nulidades dos feitos
processuais ab inicio.
Para responder a essa indagação, é pressuposto descobrir se delações dessa natureza
podem ou não ser consideradas livres manifestações do pensamento. A depender da
conclusão obtida, poderá ou não incidir sobre ela a restrição que veta o anonimato.
É justamente para definir o conteúdo e o alcance desse dispositivo, que o operador
do direito não pode ignorar alguns dados da realidade (contexto), indispensáveis para
conferir, ao final de sua atividade interpretativa, um significado definitivo ao enunciado
normativo (texto).
O desenvolvimento organizado da criminalidade introduziu nas sociedades
modernas novas modalidades de delitos com efeitos ainda mais devastadores aos
cidadãos, os quais, não raras vezes, são subjugados à condição de reféns, uma vez que
não podem desenvolver suas atividades cotidianas, obrigando-se a respeitar ordens
espúrias de quadrilhas que, à margem do Estado e da Constituição, ditam suas próprias
regras, comandando comunidades inteiras.
No Brasil, informações noticiadas pela imprensa acerca da existência de localidades
em que é proibida a entrada de policiais ou que o livre trânsito dos próprios moradores é
condicionado à autorização de criminosos, infelizmente, não são mais dignas de
surpresa, em razão da frequência com que são vinculadas. De igual forma, não são
incomuns relatos em que autoridades públicas, encarregadas de promoverem o bemestar da sociedade, aproveitam de seus cargos e das garantias deles decorrentes, para
fomentarem e participarem de esquemas criminosos e de corrupção.
Atreladas às novas modalidades de criminalidade, surgem peculiaridades que não
podem passar despercebidas pelos operadores do direito. E uma delas refere-se ao
aumento de denúncias anônimas recebidas pelos órgãos de apuração criminal, relatando
fatos graves, cometidos por indivíduos de alta periculosidade, detentores, não raras
vezes, de poderio político e econômico.
De outro lado, admitir notícias-crime sem subscrição pode ensejar instabilidade ao
ordenamento, provocada por denuncismos inverídicos. Sob o manto do anonimato,
diversas calúnias podem ser declaradas, em graves danos à honra e à intimidade de
cidadãos de bem, sem que se possa promover uma responsabilização direta contra quem
as proferiu.
Como compatibilizar interesses diametralmente antagônicos? De um lado o direito
à honra e à intimidade dos investigados e de outro a segurança pública e a necessidade
de preservação da vida daqueles que querem e não se sentem seguros para sustentarem,
pessoalmente, os fatos de que tem conhecimento. Quais deles devem prevalecer? Há
possibilidade de se fazer essa ponderação, no caso concreto, ou trata-se de assunto já
definido, previamente, pelo Legislador Constituinte, no momento em que vetou o
anonimato no artigo 5º, inciso IV?
Para enfrentar o tema, esse trabalho divide-se em quatro capítulos, sendo que, no
primeiro, tecemos breves notas sobre a interpretação constitucional e o papel a ser
desempenhado pelo Poder Judiciário na atividade hermenêutica, a fim de desvendar a
sua postura no processo de extração do sentido normativo do dispositivo constitucional,
objeto da presente investigação.
No próximo capítulo analisamos o direito à liberdade de expressão, tecendo-se
considerações gerais sobre a sua construção dogmática. Para o desenvolvimento dessas
premissas teórico-científicas, promovemos um estudo em torno do seu âmbito de
proteção, sistematizando-se um acervo de proposições teóricas encontradas na doutrina,
as quais contribuem para a edificação do trabalho, na medida em que revelam uma
diferenciação no tratamento dogmático conferido ao direito à liberdade de expressão e
as demais liberdades comunicativas que o cercam. A importância de abordar esse
assunto, ainda que em linhas sumárias, decorre do fato de que é necessário delimitar o
conteúdo desses direitos, para identificar os elementos essenciais que os compõem e, a
seguir, verificar em qual subsistema comunicativo as representações criminais podem
ser incluídas.
A partir desses aportes desenvolvemos, no terceiro capítulo, o enquadramento
jurídico-constitucional do problema, por meio de um processo de interpretação dos
diversos dispositivos existentes na Constituição de 1988 em torno da liberdade de
expressão, inclusive o artigo 5º, inciso IV, confrontando-os sob a perspectiva do
chamado domínio da concorrência de direitos fundamentais. Ao final, enfrentamos a
questão nuclear que se refere à possibilidade de uma notícia-crime ser considerada livre
manifestação do pensamento e como tal, recair sobre ela a proibição do anonimato.
Superada a questão afeta ao âmbito de proteção do enunciado constitucional e com
foco na proposta por nós desenvolvida acerca do tema, entramos no quarto capítulo.
Nele, são sugeridos parâmetros para racionalizar e uniformizar a recepção das denúncias
anônimas pelas autoridades de combate ao crime, com o propósito de harmonizar a
convivência entre os interesses conflitantes que as cercam, por meio de uma
interpretação capaz de conferir unidade e força normativa ao texto constitucional.
Por fim, examinamos os expedientes normativos infraconstitucionais relacionados
ao tema, bem como os precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal, procurando expor os contornos jurídico-normativos
dispensados pelas Cortes Superiores à questão e avaliar, criticamente, os seus
fundamentos, em consonância com a proposta de interpretação sustentada nesse
trabalho. Tudo com o intuito de contribuir para uma compreensão mais clara do
significado do artigo 5º, inciso IV e da sua suposta relação com as representações de
natureza criminal.
CAPÍTULO I
O PODER JUDICIÁRIO E A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS: BREVES NOTAS
1. Premissas Iniciais
Quando se analisa a hermenêutica dos direitos fundamentais, a questão de ordem
que se levanta refere-se à distinção entre o conceito de norma e de enunciado
normativo. Afinal, texto e norma não possuem significados univalentes.
A teoria tradicional concebia a norma como pressuposto para o exercício do
processo interpretativo. Contudo, mais recentemente, a doutrina tem compreendido de
forma diversa6. Por enunciados normativos constitucionais entendem-se os signos
escritos que se encontram dispostos ao longo da Carta Magna. De um único enunciado,
semanticamente indeterminado, podem-se retirar diversas normas, ou seja, um conjunto
de significados7, os quais podem e devem acompanhar as evoluções históricas
vivenciadas pela sociedade.
6
Sobre as diferenças entre normas de direitos fundamentais e enunciados de direito fundamentais
consultar: JORGE REIS NOVAIS, Direitos Sociais, Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto
Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 45/46; HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos
Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 9ª edição, Malheiros Ed., São Paulo, 2009,
p. 30; ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, Malheiros Ed., São Paulo, 2008, p. 54 e
EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, cit.,p. 26.
7
Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 54.
A diferença é substancial, pois, ao contrário da corrente tradicional, entende-se que
os enunciados constitucionais constituem o ponto de partida, cujo resultado final é
representado pela norma8.
A extração do sentido normativo dos dispositivos constitucionais depende,
portanto, da hermenêutica jurídica. Mas, afinal, o que vem a ser interpretação? Trata-se
de uma atividade meramente conformadora ou tem ela a liberdade de construir e recriar
o objeto de sua análise?
Segundo o dicionário9, interpretar é “aclarar, explicar o sentido”. Embora não se
trate de um signo linguístico inequívoco, há consenso de que a atividade interpretativa
busca conferir, através de um processo de construção lógica e racional, um sentido a
determinado objeto10.
Em sua concepção inicial, a interpretação buscava o significado proveniente das
palavras proferidas pelo legislador. Com o tempo, essa relação unilateral, de decorrência
direta e irrestrita entre o significado e o conteúdo das palavras contidas no texto
normativo, passou a não ser suficiente para resolver os conflitos inevitáveis entre
direitos e valores igualmente protegidos na Constituição.
Para compatibilizar as suas convivências práticas, a dogmática atual aceita, de
forma majoritária, que deve ser concedida ao intérprete certa liberdade de conformação
não mais meramente subsuntiva, a fim de que se possa atrelar aos elementos decorrentes
diretamente da linguagem, outros fatores externos e concretos11.
8
Para HUMBERTO ÁVILA (Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
cit., p. 30) não há correspondência direta entre dispositivo e norma, uma vez que, para o autor, onde
houver um não terá, necessariamente, de haver a outra. Em certos casos, haverá norma sem que exista um
dispositivo. Em outros, haverá apenas um dispositivo, do qual emanarão um conjunto de normas e, por
fim, situações em que, apesar de existirem diferentes dispositivos, a partir deles se construirá somente
uma única norma.
9
Disponível em http://www.michaelis.uol.com.br. Acesso em 15.06.2012.
10
Para DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR (Curso de Direito Constitucional, Ed. Podium, Salvador, 2008, p.
185/186) interpretar é desvendar o sentido e o alcance do enunciado constitucional.
11
VITTORIO VILLA (Conoscenza giuridica e concetto di diritto positivo: lezioni di filosofia del diritto,
G. Giappichelli, Torino, 1993, p. 325/326) sustenta que a norma é sempre o resultado da interpretação
desenvolvida a partir dos enunciados normativos. No entanto, os enunciados normativos desempenham
um papel de fundamental importância, pois são dotados de um espaço de significação preexistente à
interpretação, ainda que utilizados como uma referência, os quais não podem ser ignorados pelo
intérprete. Nesse mesmo sentido, EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito, cit., p. 26/27 e JANE REIS GONÇALVES PEREIRA, Interpretação
Constitucional e Direitos Fundamentais, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2006, p. 46/48.
Concordamos com Humberto Ávila quando o autor afirma que “interpretar é
construir a partir de algo, por isso significa reconstruir”12. A atuação do intérprete é de
reformulação e de contextualização, transportando o texto constitucional à realidade,
mas não de forma aleatória, ilimitada e segundo concepções meramente subjetivas. Ao
contrário. A sua ação deve ser pautada pelos fins e valores previamente prefixados pelo
Legislador constituinte, em prol da proteção dos bens jurídicos por ele eleitos.
A título de exemplo, vejamos o dispositivo previsto no artigo 5º, inciso XLVII, da
Constituição que veda a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Ainda que o
intérprete possua um posicionamento favorável a essa modalidade de pena, não poderá
aplicá-la, no caso concreto, uma vez que o texto constitucional, nesse particular, é
expresso, proibindo, o seu emprego, salvo em situações excepcionais já previamente
definidas13.
Assim, a depender da clareza do enunciado normativo, terá o intérprete maior ou
menor grau de liberdade de conformação para preencher as eventuais lacunas e
ambiguidades.
Em relação a alguns direitos, o legislador constituinte conferiu alta densidade aos
dispositivos que os tutelam, uma vez que se verifica, claramente, a natureza
comportamental de seus conteúdos, em que condutas e consequências estão descritas
com precisão, visando solucionar conflitos conhecidos ou antecipáveis.
Observa-se, por sua vez, que a maioria dos enunciados de direitos fundamentais não
possui o seu conteúdo determinado com tamanha clareza. Embora haja descrição dos
fins a serem atingidos, não se definem, previamente, os comportamentos necessários
para as suas obtenções, os quais são dotados de alto grau de abstração e serão realizados
na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas disponíveis14.
Nessa conformidade, avaliar o grau de densidade semântica do texto é crucial para
delimitar a atuação do intérprete.
12
Cf. HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos,
cit., p. 33.
13
Embora o significado da expressão “guerra declarada” seja passível de densificação, uma vez definido
o seu sentido e alcance, não será admissível a aplicação da pena de morte em casos que não se amoldem
às hipóteses tipificadas como tal.
14
Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 90.
A Constituição Brasileira é composta por dispositivos detentores de densidades
variadas. Para comprovarmos essa afirmação, basta citarmos dois exemplos retirados de
um mesmo artigo constitucional. Enquanto o artigo 5º, inciso XLVII proscreve a pena
de morte em tempos de paz, tendo natureza de regra, o seu inciso XXXII estabelece que
“o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
Ao adotar um modelo híbrido, o legislador constituinte preocupou-se em angariar
os benefícios advindos com a utilização de enunciados detentores de distintas
densidades. Afinal, essas diferenças são de fundamental importância ao ordenamento,
na medida em que lhe confere equilíbrio. Os dispositivos mais precisos prestigiam a
segurança jurídica, enquanto que os que contêm uma natureza semanticamente aberta
prestigiam a flexibilidade necessária para promover, no caso concreto e consoante as
evoluções históricas e sociais, a aproximação da moral ao direito, em prol da
concretização dos ideais de justiça15.
Feitas as considerações acima, passaremos ao passo seguinte, que envolve outro
problema basilar da teoria da interpretação, referente à postura a ser adotada pelo juiz,
no exercício dessa atividade.
2. O papel do Poder Judiciário na atividade interpretativa
Em que pese ter a hermenêutica constitucional um caráter aberto e pluralista, uma
vez que é desenvolvida por diversos operadores jurídicos, compostos pelos poderes
constituídos, bem como por todos os integrantes da sociedade que a ela se submetem16,
o presente trabalho analisará a questão sob o enfoque da intervenção jurisdicional.
15
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar, no HC 80.949. Nesse
precedente, discutia-se a admissibilidade de gravação sub-reptícia em processo penal. Em seu bojo, o
Relator, Min. Sepúlveda Pertence, afirmou que a ponderação entre o princípio da verdade real no
processo penal e o direito de inviolabilidade das comunicações não poderia ser feito pelo intérprete, tendo
em vista que o legislador constituinte já havia solucionado o conflito, previamente, proibindo a utilização
de provas ilícitas. Em seu entendimento, a vedação desses meios de provas constitui uma regra, a qual
deve ser aplicada pelo operador jurídico, independentemente de um juízo de proporcionalidade, uma vez
que o emprego desse mecanismo pressupõe a possibilidade de ponderação entre os interesses conflitantes,
o que não se fazia presente no caso em exame.
16
Cf. PETER HÄBERLE, Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
constituição, contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição, Ed. Sérgio
Antônio Fabris, Porto Alegre, 1997, p. 10/15. No entanto, concordamos com as ressalvas apresentadas
por JORGE REIS NOVAIS (As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, 2ª edição, Coimbra Ed., Coimbra, 2010, p. 406/411) em relação à teoria desenvolvida
Ao positivar valores fundamentais do ser humano no corpo da Constituição, o
Poder Originário repassou aos seus intérpretes a responsabilidade de densificar os
dispositivos dotados de alta carga axiológica, no momento de suas conformações
práticas, a fim de sanar ambiguidades, incoerências normativas e lacunas que podem ser
vislumbradas em seu bojo.
Por ambiguidade entende-se a existência de palavras e expressões constantes nos
textos da Constituição que possuem conceitos polissêmicos, dotados de vagueza e
imprecisão semântica e/ou sintática. São vários os exemplos dessas imprecisões na
Carta Magna em vigor. O artigo 5º, inciso III, estabelece que “ninguém será submetido
a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante”, sem precisar o sentido exato do
que seja tratamento desumano ou degradante. De igual forma, no inciso XLVII, alínea
“c”, desse artigo, observa-se a proibição de aplicação de penas de trabalhos forçados,
sem que haja especificação, no próprio texto, do que seja considerado trabalho dessa
natureza.
Outra dificuldade que pode ser colocada ao intérprete refere-se à incoerência
normativa, consubstanciada nas ocasiões em que se verificam duas regras distintas
emitindo comandos contrastantes. A Constituição de 1988 estabeleceu em seu artigo 61,
§ 1º, “d”, que as leis que disciplinem sobre a organização dos Ministérios Públicos da
União e dos Estados são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. No
entanto, o seu artigo 128 §5º conferiu igual prerrogativa aos Procuradores-Gerais
respectivos17.
O membro do Poder Judiciário poderá, ainda, se defrontar com um caso de lacuna
constitucional, em que uma determinada situação concreta não é contemplada por um
dispositivo específico na Constituição. Para exemplificar, pensemos no seguinte
exemplo. Ao dispor sobre a possibilidade de interceptação das comunicações
por Häberle, quando sustenta que a interpretação aberta deve ser realizada no momento de controle das
restrições, quando o Estado visa limitar os direitos fundamentais com o propósito de resguardar outros
interesses, não sendo cabível no momento da delimitação dos seus âmbitos de proteção, uma vez que “o
momento de apuramento do conteúdo protegido dos direitos fundamentais é um problema de
interpretação, nem aberta, nem fechada, mas jurídica, do conteúdo da liberdade, positiva ou negativa,
objectivamente garantida pelo legislador constituinte através do direito fundamental”.
17
Essa questão foi objeto da ADI MC 400, no Supremo Tribunal Federal, que decidiu que as leis de
organização dos Ministérios Públicos da União e dos Estados são de iniciativas dos respectivos
Procuradores-Gerais e que há no texto constitucional uma “impropriedade terminológica”, sendo que o
dispositivo previsto no artigo 61, §1º, “d”, somente pode ser interpretado com um único sentido, qual seja
“o de eliminar a iniciativa parlamentar”.
telefônicas, em seu artigo 5º, inciso XII, o legislador constituinte nada falou sobre a
interceptação de dados informáticos, muito usuais nos tempos modernos, a partir do
surgimento da internet.
A lacuna pode ser verificada não somente nas hipóteses em que não há regulação
expressa sobre a questão. Existem situações em que embora haja, no texto
constitucional, uma solução para certo caso, tal resolução não se mostra adequada, uma
vez que não aparenta ter o legislador constitucional considerado um aspecto especial,
somente vislumbrado na prática. Trata-se da lacuna axiológica, em que o intérprete,
utilizando-se de uma concepção valorativa, analisa as peculiaridades do caso concreto e
entende por argumentos racionais, que seja necessário incluir, suprimir ou modificar
algum dos elementos que a hipótese da norma indicou como relevantes18.
Nesses casos, o intérprete não pode retirar do texto constitucional um significado
preciso diretamente dos seus enunciados. A problemática que surge a partir disso é
definir se a atividade hermenêutica deve ou não ser promovida pelo juiz de forma
criativa, utilizando-se de valores substantivos não expressamente dispostos no bojo da
Constituição.
Nos Estados Unidos, destacam-se duas concepções em torno do tema, denominadas
de interpretativismo e de não interpretativismo.
A primeira delas entende que, em conformidade ao princípio da separação dos
poderes, o significado das normas somente pode ser extraído da textura semântica do
texto constitucional e da vontade do legislador.19
O método não interpretativista20, por sua vez, defende que os magistrados podem se
utilizar de premissas axiológicas que ultrapassam os enunciados constitucionais, em
busca de um ideal de justiça a ser alcançado na solução do problema concreto. Para os
doutrinadores que sustentam essa posição dogmática, não há o que se falar em violação
ao princípio da separação dos poderes, uma vez que a Constituição é soberana e os
valores fundamentais nela inseridos não podem se subjugar ao interesse da maioria.
18
Cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito
Constitucional, Ed. Saraiva, 6ª edição, São Paulo, 2011, p. 102.
19
O autor J.J.GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Ed.
Almedina, Coimbra, 2003, p. 1195) assinala que esse método não se confunde com o literalismo.
20
Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1196-1197 e
DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 191/192.
Afirmam, ainda, que a utilização de princípios abertos de justiça, igualdade e liberdade
não comprometem a objetividade do julgamento, uma vez que precisam ser
fundamentados racionalmente. Ademais, as utilizações desses postulados interpretativos
aproximam o texto às circunstâncias fáticas, que são mutáveis, no tempo e no espaço.
Na Alemanha, o desenvolvimento dos métodos interpretativos buscou analisar,
também, essa problemática.
O método hermenêutico-clássico21 sustentado por Ernst Forsthoff assenta-se na
ideia de que a Constituição deve ser interpretada como uma lei geral,
independentemente da densidade de seus textos, por meio das regras tradicionais de
interpretação jurídica. Nesse sentido, a intervenção do intérprete é restrita ao texto
normativo.
O método científico-espiritual22 advogado por autores como Rudolph Smend, por
sua vez, desenvolve a premissa de que a Constituição deve ser interpretada com base na
realidade e nos valores que a integram, sendo esses e não o seu texto os verdadeiros
parâmetros a serem seguidos pelo operador jurídico no momento de definir o seu
conteúdo e alcance.
O método tópico-problemático23 desenvolvido por Theodor Viehweg parte do
problema e de suas especificidades concretas para a solução do conflito. No processo da
argumentação jurídica, os dispositivos são considerados como meros topoi, de
importância relativa, a ser considerada pelo intérprete juntamente com outros aspectos
relevantes que possam influir no seu convencimento. Para Canotilho, a tópica seria
“uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica do pensar problemático”24.
Segundo esse modelo, a atuação do operador do direito mostra-se mais ampla e criativa.
Outro método que merece destaque é o hermenêutico-concretizador25. Esse modelo
interpretativo não desconsidera a importância do problema para a atividade
21
Cf. JANE REIS GONÇALVES PEREIRA, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, cit.
p. 67.
22
Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1212.
23
Cf. PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, Malheiros Ed., São Paulo, 1999, p.
453/454.
24
Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1211.
25
KONRAD HESSE (Escritos de derecho constitucional, Trad. Pedro Cruz Villalón, 2ª edição,
Fundación Coloquio Jurídica Europeo, Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, Madrid, 1992, p.
40) sustenta que, embora a Constituição Federal possua um caráter aberto e fragmentado, não há, em seu
bojo, somente espaços vazios a serem preenchidos pelo intérprete. O seu conteúdo também dispõe sobre o
hermenêutica, mas esse não é o seu ponto de partida. O parâmetro do qual decorre a
avaliação do conflito de interesses é o texto constitucional, que servirá de limite para a
atividade desempenhada pelo operador do direito. As mudanças históricas e sociais
serão úteis ao intérprete, que não as pode ignorar. Contudo, a incorporação desses
elementos só se faz possível nos casos em que a Constituição autoriza a sua infiltração.
Se comparado aos métodos clássico, científico espiritual e tópico, o modelo
hermenêutico-concretizador confere ao juiz uma intervenção intermediária, na medida
em que sua atividade não fica adstrita ao texto constitucional, mas também não ignora a
sua força vinculante.
Todos esses métodos não estão isentos de críticas. Os defensores da corrente
interpretativista entendem que a concepção não interpretativista desrespeita o princípio
da separação dos poderes e permite que o intérprete assuma posições subjetivistas
intoleráveis à manutenção da segurança jurídica. De outro lado, o método
interpretativista é criticado por reduzir as normas constitucionais a uma concepção
meramente formalista, distante dos ideais de justiça.
Os métodos introduzidos pelos doutrinadores alemães também têm sido alvos de
censuras. Enquanto o método clássico ignoraria as peculiaridades das normas
constitucionais, inclusive no âmbito de suas densidades, os métodos científico-espiritual
e tópico não considerariam, suficientemente, o caráter normativo da Constituição. De
outro lado, o método hermenêutico-concretizador poderia encontrar dificuldades de
ordem prática, uma vez que nem sempre o texto precisa os parâmetros que não podem
ser ultrapassados pelo aplicador do direito.
De qualquer forma, o que se pretende com essa breve exposição é demonstrar que a
escolha do método interpretativo, bem como o papel da intervenção judicial na
atividade hermenêutica constituem pontos polêmicos na dogmática jurídica. Contudo,
entendemos que a atuação do aplicador do direito não pode ser restringida à mera
subsunção do fato ao texto constitucional, tal como pregado pelos métodos
interpretativista e clássico26.
que não deve ficar em aberto. Nessa conformidade, o doutrinador frisa que “o que não aparece de forma
clara como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da
realidade”.
26
Como destaca CRISTINA QUEIROZ (Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a
epistemologia da construção constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 104/113) a vinculação à
Isso porque a aproximação da moral ao direito introduziu nos ordenamentos,
inclusive no brasileiro, proposições de ordem axiológica, dotadas de força vinculativa,
que não apresentam respostas imediatas aos problemas concretos. Tais enxertos foram
feitos, de maneira intencional, a fim de que os direitos fundamentais fossem
efetivamente assegurados, ao longo dos tempos, independentemente da posição
ideológica adotada pela maioria que exercesse o poder político, exigindo do intérprete
uma postura criativa, mas provida de racionalidade e coerência, fulcrada em parâmetros
objetivos27.
Se a Constituição existe para ser um instrumento de convivência social, a
interpretação a ela conferida não pode ignorar a realidade que a cerca, sob pena de se
transformar em um mero pedaço de papel, desprovido de utilidade prática e carente de
legitimidade. Em conformidade às palavras do Juiz Robert H. Jackson, da Suprema
Corte Americana, a Constituição não é um pacto suicida28. Assim, a Constituição não
constitui um fim em si mesmo. Ao contrário. Trata-se de um compromisso pactuado
pela sociedade e que deve ser direcionado, através dos seus intérpretes, para atender aos
anseios fundamentais dos cidadãos, os quais não são estáticos, tampouco podem ser
sintetizados em fórmulas exatas29.
3. O artigo 5º, inciso lV, da Constituição Federal de 1988
A partir das premissas apresentadas, inicia-se o enfrentamento do problema, objeto
de investigação.
Constituição escrita não exclui o direito constitucional não escrito. Para a autora, os juízes tem o poder de
aplicar normas constitucionais que possuam efetividade social, que estabeleçam uma “constituição
vivente”. Nessa conformidade, DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR (Curso de Direito Constitucional, cit., p.
193/199) afirma que o juiz promove uma atividade de atualização constitucional, a qual não pode
restringir-se aos métodos de interpretação de subsunção, uma vez que, embora os processos legislativo e
jurisdicional não se confundam, “não há monopólio legislativo na formulação do direito”.
27
Nesse sentido, MAURO CAPPELLETTI, Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira, Ed. Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1993, p. 24/25 e GUSTAVO BINENBOJM, A Nova
Jurisdição Constitucional Brasileira, Legitimidade democrática e Instrumentos de realização, 3ª edição,
Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2010, p. 48/60.
28
Cf. precedente Terminiello v. Chicago 337 US 1 a 37 (1949) da Suprema Corte Americana.
29
A respeito da necessidade da interpretação ser realizada à luz das vicissitudes concretas, é válido
mencionar o caso Brown vc. Board of Education 347 US 483 (1954), em que a Suprema Corte
Americana, expressamente, declarou que a interpretação constitucional a respeito do tema não poderia
regredir ao ano de 1868, data em que se firmou o precedente Plessy vs. Ferguson 163 US 537 (1896).
Para o Tribunal Constitucional, a problemática em torno da educação pública e da segregação racial tinha
que avançar ao momento atual da vida americana.
O que se pretende é saber se representações criminais anônimas podem ser
utilizadas nos procedimentos criminais, sem que sejam consideradas provas ilícitas
capazes de gerar nulidade processual.
Trata-se de um tema polêmico no Brasil. O debate em torno dele surgiu a partir de
alguns julgados proferidos pelos Tribunais Superiores, que entenderam pela
impossibilidade do emprego de notícias criminais, sem subscrição, nos procedimentos
penais30, em virtude da Constituição Federal pátria prever em seu artigo 5º, inciso IV,
que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Para a análise específica da questão, faz-se necessário tecermos algumas
considerações sobre esse enunciado constitucional, relacionando-o ao que foi até o
momento esposado nos itens acima.
A Constituição Federal de 1988 contêm inúmeros dispositivos previstos de forma
dialética, em que se protege um determinado direito fundamental ao mesmo tempo em
que se estabelece uma limitação ao seu exercício31. São enunciados em que o Legislador
Constituinte decidiu ele próprio avaliar todos os interesses contrapostos possíveis de
colisão no momento de suas aplicações concretas, estabelecendo, de imediato, as
hipóteses em que determinado direito poderá ser exercido livremente pelo cidadão e sob
quais condições o seu desenvolvimento será restringido32.
O dispositivo analisado nesse trabalho é um deles. Afinal, a segunda parte do
enunciado constitucional em exame, que veta o anonimato, corresponde a uma expressa
restrição constitucional ao direito fundamental de liberdade de pensamento33. Tratam-se
das denominadas restrições diretamente constitucionais apontadas por Robert Alexy34.
30
Cf. capítulo IV, item 4.
O artigo 5º, inciso IV, como vimos, dispõe que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato”. O artigo 5º, inciso XV determina que: “é livre a locomoção no território nacional em tempo
de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
O artigo 5º, inciso XVI estabelece que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais
abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade
competente”. O artigo 5º, inciso XVII giza que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada
a de caráter paramilitar”.
32
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 571.
33
Para os adeptos da teoria interna dos direitos fundamentais, a segunda parte do enunciado
constitucional em exame, que veta o anonimato, corresponderia aos limites imanentes do próprio direito
de livre manifestação do pensamento, não se tratando de uma restrição. Nesse trabalho, não será possível
adentrar nas diferenças existentes entre as teorias interna, externa e de direitos fundamentais enquanto
31
Para tratar do tema, o autor apresenta um exemplo interessante, o qual pode ser
aplicado ao caso em exame, mutatis mutandis. Trata-se do dispositivo previsto no artigo
8º, §1º, da Constituição Alemã, que consagra o direito à reunião, acrescido da expressão
“pacificamente e sem armas”.
O legislador constituinte, ao prever que as reuniões sejam efetuadas de forma
pacífica e sem a utilização de armas restringiu, no próprio texto constitucional, a
liberdade de reunião, estabelecendo uma regra de comportamento que limitou a
realização desse direito35.
Não se pode olvidar que, embora a regra constitucional já prescreva as condutas
vedadas, há necessidade de que o intérprete a complemente, a fim de esclarecer o que
vem a ser considerado como uma reunião pacífica.
De igual forma, ao determinar que a manifestação do pensamento seja exercida
livremente e, ao proibir o anonimato, o legislador constituinte redigiu, em um único
dispositivo,
expressões
finalísticas
semanticamente
abertas
(manifestação
do
pensamento) e expressões de natureza comportamental dotadas de significado mais
preciso (vedação ao anonimato).
No caso da vedação ao anonimato, entendemos que a restrição imposta pelo Poder
Originário apresenta maior precisão do que no exemplo apresentado por Alexy. Afinal,
o signo “anônimo” possui um conteúdo mais determinado. Entende-se por anônimo
algo sem denominação ou alguém sem nome ou que não o declara, que não o escreve36.
Contudo, ao garantir a livre manifestação do pensamento, o legislador constituinte
o fez com certa ambiguidade, uma vez que se utilizou de uma expressão polissêmica,
princípios, pela dimensão extensa que o tema apresenta, não sendo esse o objeto da presente investigação.
Adotamos a teoria externa e será com base em seus preceitos que se desenvolverá o problema aqui
proposto.
34
Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 286/291. Nesse mesmo sentido, J.J.
GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1276.
35
Para ROBERT ALEXY (Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 287) “a cláusula ´pacificamente e
sem armas` pode ser interpretada como uma formulação resumida de uma regra, que transforma os
direitos prima facie decorrentes do princípio da liberdade de reunião em não-direitos definitivos. Isso
corresponde exatamente à definição de restrição fornecida acima. A regra expressa pela cláusula restringe
a realização de um princípio constitucional. Sua peculiaridade consiste no fato de que foi o próprio
constituinte que estabeleceu a restrição definitiva. A disposição constitucional tem, nesse sentido, a
natureza de regra. Mas, por trás do nível da regra, o nível de princípio mantém sua importância. Se está
claro que uma reunião não é pacífica, ela não goza de proteção do art. 8º. No entanto, para se avaliar e
uma reunião não é pacífica é necessária, em todos os casos duvidosos, uma intepretação do conceito de
não-pacividade”.
36
Disponível em http://www.michaelis.uol.com.br. Acesso em 16.06.2012.
que dá ensejo a vários sentidos, de complexa aplicação. Da sua análise literal, não há
como identificar o seu âmbito de proteção, ou seja, quais as condutas protegidas,
efetivamente, por esse direito fundamental, o que somente poderá ser avaliado a partir
de um processo de interpretação constitucional.
Portanto, é pressuposto descobrir se as notícias criminais são consideradas livres
manifestações do pensamento, uma vez que o legislador constitucional não disciplinou
o tema através de um dispositivo específico, existindo uma lacuna constitucional, a ser
suprida pelo operador do direito. Somente após o esclarecimento dessa problemática é
que se poderá analisar se a restrição que veta o anonimato incidirá ou não sobre as
representações dessa natureza.
Para nós, uma conclusão já pode ser obtida. A resposta ao problema não pode ser
extraída diretamente do texto constitucional, de forma subsuntiva. Não se trata de um
assunto já definido, previamente e de forma definitiva, pelo Legislador Constituinte,
embora ele tenha estabelecido parâmetros a serem seguidos. Ao contrário. A
demarcação do conteúdo, do sentido e do alcance do direito à livre manifestação do
pensamento depende essencialmente da intervenção criativa do intérprete, em particular
do juiz. E, é nesse contexto que não se pode deixar de considerar dados da realidade,
capazes de conferir, ao final da atividade interpretativa, um significado justo e adequado
ao sistema.
O capítulo seguinte pretende delimitar o âmbito de proteção desse dispositivo
constitucional, através de uma investigação em torno da liberdade de expressão e da sua
construção dogmática, a fim de desvendar se as representações criminais anônimas que
relatam a prática de crimes podem ou não serem feitas anonimamente.
CAPÍTULO II
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO: DILEMAS TEÓRICOS EM TORNO DO SEU
ÂMBITO DE PROTEÇÃO
1. Da delimitação do âmbito de proteção
Segundo Gilmar Ferreira Mendes “a definição do âmbito de proteção configura
pressuposto primário para a análise de qualquer direito fundamental37”.
Delimitar o âmbito de proteção é precisar quais são os bens38 que, a princípio, estão
ou não protegidos pelo direito fundamental e que poderão, posteriormente, ser
restringidos pelos Poderes Públicos. Trata-se de uma fase inicial, de “apuramento dos
contornos jurídicos do direito fundamental”39.
Somente após um controle de constitucionalidade efetivo em relação às limitações
externas estatais que eventualmente recaiam sobre esse conteúdo inicialmente protegido
é que se chegará ao resultado final da equação, qual seja a identificação do conteúdo de
garantia efetivo.
É claro que delimitar o conteúdo do direito fundamental, nem sempre, constitui
uma tarefa fácil, a não ser que se adote uma teoria ampliativa, em que tudo deve, a
37
Cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito
Constitucional, cit., p. 219/220.
38
Segundo VIRGILIO AFONSO DA SILVA (Direitos fundamentais, conteúdo essencial, restrições e
eficácia, Malheiros Ed., São Paulo, 2009, p. 72/73) esses bens são todas as ações, estados ou posições
jurídicas que serão objeto de proteção por um determinado direito fundamental.
39
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição Federal, cit., p. 301.
princípio, ser incluído no âmbito de proteção, para, depois, ser, eventualmente, excluído
pelo intérprete, através de um processo de ponderação entre os interesses conflitantes40.
Contudo, essa definição propositadamente aberta desconsidera que a precisão do
âmbito de proteção do direito corresponde a uma fase essencial no processo de busca do
seu conteúdo definitivo, a qual não pode ser comprimida pelo intérprete.
O delineamento das ações, a priori, protegidas pelo direito fundamental é de grande
valia, pois promove maior segurança jurídica, na medida em que identifica, em abstrato
e, desde que fundamentadamente, as condutas passíveis de serem protegidas pelo direito
fundamental, as quais poderão ser replicadas, posteriormente, de forma objetiva, ainda
que sobre elas incidam futuras restrições.
Se toda e qualquer conduta minimamente compatível ao direito fundamental for
incluída no âmbito de proteção do direito, tal como sustentado pela teoria ampliativa, o
trabalho do intérprete será muito mais dispendioso na fase seguinte, quando todos os
direitos e interesses deverão ser por ele sopesados, ainda que frutos de colisões de
direitos aparentes, produtos de uma má avaliação prévia do seu conteúdo normativo41.
O problema é que o resultado dessas ponderações dificilmente pode ser previsto
antecipadamente, uma vez que depende das peculiaridades específicas de cada caso
concreto, comprometendo, muitas vezes de forma desnecessária, a estabilidade jurídica
do ordenamento.
Por todas essas razões, concordamos com a concepção restritiva mitigada defendida
por Jorge Reis Novais42. Há ações que, de forma evidente, não podem ser incluídas no
âmbito de proteção de um direito fundamental. Será que alguém defenderia que o direito
à liberdade religiosa permite o sacrifício humano ou que a conduta intencional de
estuprar uma mulher encontra respaldo no direito geral à liberdade? Certamente que
não.
40
A concepção ampliativa do âmbito de proteção é defendida por ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos
Fundamentais, cit., p. 307/332. Nesse mesmo sentido, VIRGILIO AFONSO DA SILVA, Direitos
fundamentais, conteúdo essencial, restrições e eficácia, cit., p. 109/113. Para esse autor, o que deve ser
protegido pelo direito fundamental é “toda ação, estado ou posição jurídica que tenha alguma
característica que, isoladamente considerada, faça parte do âmbito temático de um determinado direito
fundamental, independentemente da consideração de outras variáveis”.
41
Cf. PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito
Constitucional, cit., p. 266.
42
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 425/436.
Em situações como essas, o trabalho do intérprete pode ser desenvolvido de forma
mais célere, com a exclusão, já na primeira fase de avaliação, de uma conduta do âmbito
de proteção do direito fundamental, sem que seja necessário ponderar os direitos e os
interesses opostos43.
Afinal, por mais conciliador e por mais receptivo às posições dissonantes que um
Estado Democrático de Direito pretenda ser no propósito de respeitar os direitos
fundamentais dos cidadãos, não há o que se falar em reconhecimento de um direito de
liberdade, ilimitado, capaz de permitir que cada um faça aquilo que quiser,
independentemente das suas repercussões aos demais membros da comunidade.
Existem comportamentos em que a consciência jurídica pacificou, de forma
inquestionável, como sendo indignos de proteção jusfundamental, em razão de
provocarem uma danosidade social evidente e intolerável44, tal como se verifica em
determinadas condutas graves sujeitas a sanções penais, como os crimes dolosos contra
a vida e contra a liberdade sexual45.
De outro lado, há ações que, embora não sejam evidentemente reprováveis, também
podem ser pré-excluídas do âmbito de proteção de um determinado direito fundamental,
ainda que com ele apresente uma relação ocasional, uma vez que possuem uma
aproximação mais específica com outro direito que, de igual forma, goza de garantia
jurídica constitucional.
43
O autor JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO (A Estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e
Garantias na Constituição Portuguesa, v. II, Ed. Almedina, Coimbra, 2006, p. 474) defende que em
situações de dúvidas, ou seja, nos casos em que não se constata, de forma evidente, que a conduta deve
ser excluída do âmbito de proteção, o conteúdo do direito fundamental deve ser delimitado de forma
alargada.
44
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 427. É importante, destacar, que para o autor nem todas as condutas sujeitas às
sanções penais infraconstitucionais devem ser excluídas, de plano, do âmbito de proteção de um direito
fundamental, mas tão somente aqueles comportamentos cuja criminalização seja incontroversa,
consensualmente necessária, de acordo com a consciência jurídica geral. Concordamos com o seu
posicionamento.
45
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre o tema, adotando, de forma reiterada, o
entendimento de que o âmbito de proteção dos direitos fundamentais não podem incluir condutas ilícitas.
Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes: HC 70.814, HC 79.285 e o HC 82.424. Nesse
último, relacionado à liberdade de expressão, o Min. Rel. Maurício Corrêa sustentou que: “O direito à
liberdade de expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdos imorais, que
implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de
maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º,
primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ´direito à incitação ao
racismo`, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas,
como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e
da igualdade jurídica”.
Não se pode olvidar que a inclusão equivocada de uma determinada conduta no
bojo de um direito fundamental que com ele não possui relação jurídica estreita pode
criar conflitos aparentes de interesses, mobilizando, de forma indevida, o aparelho
jurídico estatal. E pior do que isso. A ponderação entre bens que não precisavam ser
sopesados pode gerar insegurança jurídica ao ordenamento e produzir resultados
equivocados, incapazes de promover uma interpretação uniforme e coerente do sistema.
De qualquer forma, é válido repetir a advertência de que a exclusão de determinada
ação do âmbito de proteção de um direito fundamental deve ser feita, sempre,
motivadamente. Em alguns momentos a argumentação será construída mais facilmente,
como nos casos que tratam de comportamentos claramente contrários à consciência
jurídica do Estado de Direito. Mas, em outros, esse trabalho será mais complexo, como
nos casos em que é necessário avaliar, com maior detalhamento, o nível de afinidade
existente entre a ação, objeto de análise, e o direito fundamental46.
É justamente nesse processo de identificação precisa do conteúdo do direito que a
interpretação jurídica constitui um mecanismo essencial. Segundo Jorge Reis Novais, a
delimitação do conteúdo de um direito fundamental será o produto de “um processo de
construção dogmática do direito fundamental e, primariamente, de interpretação da
conceitualidade ínsita na norma de direito fundamental, logo, com recurso aos
procedimentos e princípios próprios da interpretação constitucional”47.
Nesse diapasão, para precisar se as representações criminais fazem parte do
conteúdo do artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, é imprescindível realizar uma
análise mais pormenorizada sobre o âmbito de proteção do direito à liberdade de
manifestação do pensamento, definir a sua relação com a liberdade de expressão e se
existem outras liberdades comunicativas que dela decorrem e que se amoldam de forma
mais específica ao direito à representação. Tudo, com o intuito final de responder a
questão central dessa investigação, qual seja, se as delações anônimas criminais são
admissíveis no ordenamento jurídico brasileiro.
46
Nesses casos, perfilhamos o método defining out de Schauer, em que se parte de uma análise ampla das
condutas prováveis de serem abrangidas para, depois, paulatinamente, desenvolver os fundamentos que
irão resultar nas suas exclusões, através da interpretação constitucional. Sobre o tema, ver JORGE REIS
NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição,
cit., p. 434.
47
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 394/395.
Essas premissas teóricas, aliás, serão abordadas a seguir.
2. Considerações gerais em torno da liberdade de expressão
A liberdade de expressão é considerada um dos princípios basilares de qualquer
Estado Democrático de Direito48. E a sua fundamentalidade inata decorre de duas
concepções distintas, mas não antagônicas.
A primeira delas apresenta um caráter individualista, de índole liberal. A liberdade
de expressão busca o seu fundamento no livre desenvolvimento da personalidade e no
princípio da dignidade da pessoa humana49. Trata-se de um direito geral de liberdade. O
Estado, em regra, deve respeitar a sua fruição, somente lhe sendo defeso limitá-la em
situações excepcionais e constitucionalmente justificadas.
A segunda concepção possui uma visão instrumental, eis que vislumbra na
liberdade de expressão um meio para a prática da democracia50. Afinal, para que as
pessoas possam opinar de forma crítica e intervir ativamente na vida política da qual
fazem parte, é necessário garantir-lhes o acesso e a divulgação de informações, bem
48
A primeira vez que a liberdade de expressão foi enunciada, expressamente, no bojo de um texto
normativo foi no primeiro aditamento à Constituição Americana de 1787, que estabelece que: “O
Congresso não aprovará lei alguma relativa à implantação de uma religião ou proibindo o culto de alguma
delas; nem lei que restrinja à liberdade de palavra ou de imprensa, nem o direito do povo de reunir
pacificamente; nem de apresentar petições ao governo para reparação de situações injustas”. Na França, a
liberdade de expressão foi prevista, de forma explícita, na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, em seu artigo 11, que aduz que: “a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos
mais preciosos direitos do Homem”.
49
A respeito da perspectiva substantiva da liberdade de expressão, DANIEL SARMENTO (“A Liberdade
de Expressão e o Problema do “Hate Speech”, in Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional,
Daniel Sarmento, 2ª edição, Ed. Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2010, p. 241/242) afirma que a
possibilidade de cada indivíduo divulgar os seus pensamentos e de exprimir as suas manifestações
artísticas constitui a dimensão essencial da dignidade da pessoa humana. Segundo o autor “quando se
priva alguém dessas faculdades, restringe-se a capacidade de realizar-se como ser humano e de perseguir
na vida os projetos e objetivos que escolheu”. Nesse mesmo sentido, JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO,
Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 92/93.
50
MANUEL MARTÍNEZ SOSPENDRA (Libertades Públicas, Tomo II, Fundación Universitaria San
Pablo, CEU, Valencia, 1993, p. 239/241) defende que os direitos relacionados à liberdade de expressão
possuem intensa relação com o Estado Democrático de Direito. Isto porque a liberdade de expressão
serve de elemento formador da opinião pública, base da democracia, possibilitando o efetivo controle dos
poderes públicos pelos cidadãos, além de constituir um instrumento necessário para o exercício de outros
direitos fundamentais indispensáveis ao desenvolvimento desse regime. Veja-se, também, FRANK
MICHELMAN, “Relações entre democracia e liberdade de expressão: discussão de alguns argumentos”,
Trad. Marcelo Fensterseifer e Tiago Fensterseifer. Revisão da tradução por Ingo Wolfgang Sarlet (Org.).
In: INGO WOLFGANG SARLET. Direitos fundamentais, informática e comunicação: algumas
aproximações, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007, p. 49/52.
como proporcionar-lhes um ambiente em que impere o livre mercado de ideias51.
Somente assim poderão formatar seus pensamentos, exprimir, entre si, suas opiniões,
transmitir e receber fatos, através de um processo dialético e democraticamente salutar.
Para
Habermas
o
futuro
da
democracia
depende
essencialmente
do
desenvolvimento alcançado pela comunicação. A sua ideia de democracia deliberativa
encontra o sustentáculo máximo no discurso, na possibilidade de haver um debate livre,
racional e igualitário sobre questões fundamentais da sociedade, em busca do consenso
social52.
Importante contributo em defesa da liberdade de expressão, nessa vertente
instrumental, também foi apresentado pelo filósofo John Stuart Mill que entende que o
exercício desse direito fundamental deve ser valorizado para a identificação da verdade,
uma vez que a livre manifestação de informações e de pensamentos acarreta resultados
frutíferos para a sociedade, corrigindo-se eventuais equívocos e produzindo-se boas
práticas53.
Assim, seja para garantir a possibilidade das pessoas terem as suas próprias
opiniões e efetuarem as suas próprias escolhas, seja para assegurar o livre debate de
ideias e de informações, indispensável ao desenvolvimento da democracia, o fato é que
a liberdade de expressão constitui um direito diretamente atrelado à própria condição do
ser humano, fundamental para a sua existência como indivíduo e como membro de uma
comunidade54.
51
Essa expressão teve origem no bojo de um voto vencido proferido pelo Juiz da Suprema Corte
Americana, Oliver Wendell Holmes, no caso Abrahams v. United States - 250.U.S.616 (1919).
52
Cf. JÜRGEN HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa, vol. I, Ed. Taurus, México, 1988, p.
26/27.
53
Para JOHN STUART MILL (Sobre a Liberdade, Ed. 70, Coimbra, 2006, p. 49/103) há três
possibilidades acerca de uma opinião, todas benéficas e úteis à comunidade: uma verdadeira, uma
parcialmente verdadeira e uma totalmente falsa. Nos dois primeiros casos, a sua veiculação é
fundamental, para que as pessoas tenham acesso a novas verdades. Mesmo no caso em que a opinião seja
integralmente inverídica, a sua divulgação tem serventia, na medida em que permite que pessoas tenham
acesso as manifestações dos seus adversários e as empregue para o melhor conhecimento das próprias
opiniões. A única ressalva feita pelo filósofo liberal capaz de limitar o exercício dessa liberdade refere-se
a sua utilização para a incitação da violência.
54
O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar sobre a importância da liberdade de
expressão no Estado Democrático de Direito em diversas oportunidades, mas foi no bojo da ADPF nº 130
que o tema recebeu ainda mais destaque. Tratava-se de Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental proposta pelo Partido Democrático Trabalhista com o objetivo de questionar a recepção da
Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967) pela Constituição de 1988. A Corte Constitucional, por maioria,
entendeu pela inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, considerada incompatível com o atual
ordenamento jurídico pátrio. Mas, em seus votos, os Ministros enalteceram a importância do direito à
A partir dessas conclusões, é importante definir o que vem a ser a liberdade de
expressão e quais são as condutas abrangidas por esse direito.
3. A liberdade de expressão e sua abrangência
Por todos os valores que a liberdade de expressão representa a sua abrangência
deve compreender inúmeros comportamentos e posições jurídicas, caracterizados por
gestos, sinais, movimentações corporais, mensagens verbais ou escritas, representações
artísticas, sons e imagens, dentre outras tantas e imprevisíveis maneiras de
comunicação55.
Entretanto, não se trata de um entendimento baseado na concepção ampliativa do
âmbito normativo, tal como defendida por Alexy, em que toda e qualquer conduta deve,
a princípio, receber proteção jusfundamental, para a seguir, ser, eventualmente, excluída
pelo intérprete, por meio de um processo de ponderação entre os interesses em conflito.
A doutrina vem travando debates a respeito das condutas protegidas, a priori, pelo
direito à liberdade de expressão e tem entendido, de forma majoritária, que as
movimentações corporais violentas estão excluídas do seu conteúdo56.
Assunto que tem gerado divergência em torno do âmbito de proteção da liberdade
de expressão refere-se aos discursos que propagam a prática de crimes em geral 57 e
liberdade de expressão e do direito da imprensa, com base nas concepções substancialista e instrumental,
as quais foram aplicadas conjuntamente. Nessa conformidade, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes
pronunciou-se da seguinte forma: “Reafirmar e assim enfatizar, o significado da liberdade de imprensa no
Estado Democrático de Direito não é tarefa estéril, muito menos ociosa. Se é certo que, atualmente, há
uma aceitação quase absoluta de sua importância no contexto de um regime democrático e um consenso
em torno de seu significado como um direito fundamental universalmente garantido (...)”.
55
A interpretação que tem sido conferida ao âmbito de proteção da Primeira Emenda da Constituição
Americana, segundo JORGE REIS NOVAIS (As restrições aos Direitos Fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição, cit., p. 641), tem sido “de forma suficientemente lata para
abranger praticamente todas as liberdades comunicativas, desde a liberdade de expressão do pensamento
e de imprensa ao direito de petição, desde a liberdade de associação e reunião à liberdade de crença e de
religião, da liberdade de aprender e ensinar à liberdade de arte e de investigação científica”.
56
Nesse sentido, PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de
Direito Constitucional, cit., p. 298; RAFAEL LORENZO – FERNANDEZ KOATZ, “As Liberdades de
Expressão e de Imprensa na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais no
Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica, Daniel Sarmento e Ingo Wolfgang Sarlet (coord.), Ed.
Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 398.
57
No Brasil, são frequentes as ações judiciais interpostas com o intuito de discutir a possibilidade de se
realizar protestos em vias públicas, para a liberação do comércio da maconha, cujo consumo, no país, é
criminalizado. Encontra-se sob julgamento, no Supremo Tribunal Federal, a ADPF nº 187, com relatoria
do Min. Celso de Mello, a qual foi proposta pelo Ministério Público Federal, pleiteando que o artigo 287,
aqueles relacionados ao “hate speech”. Por discursos de incitação ao ódio entendem-se
aqueles com conotação racista, preconceituosa, ofensiva e de instigação à violência58.
Aqueles que defendem o abrigamento do discurso do ódio no âmbito do direito à
liberdade de expressão argumentam que a sua censura não impediria a existência da
intolerância, sendo sempre salutar o livre debate de opiniões na sociedade. Em
contrapartida, os opositores dessa linha de entendimento sustentam que o direito à
liberdade de expressão não pode ser elastecido exacerbadamente, a ponto de incluir, em
sua esfera de tutela, manifestações que constituem verdadeiros ilícitos criminais59.
Ainda no âmbito de proteção, outro ponto polêmico refere-se à possibilidade de,
além do discurso, incluir-se em seu bojo também a conduta do indivíduo, desde que não
violenta. Nos Estados Unidos, em especial, esse assunto tem sido objeto de inúmeras
controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais60.
do Código Penal, que veta a apologia ao crime, receba uma interpretação conforme a Constituição,
permitindo que pessoas participem de protestos dessa natureza, conhecidos por “marchas da maconha”,
uma vez que tal comportamento estaria, segundo o entendimento do Parquet, abrangido no conteúdo da
liberdade de expressão.
58
A Constituição da África do Sul menciona, expressamente, em seu artigo 16.2.“b”, que a liberdade de
expressão não abrange a violência iminente, nos seguintes termos: “The right in subsection (1) does not
extend to: (...) b) incitement of iminent violence”.
59
No ano de 2003, o Supremo Tribunal Federal analisou se ilícitos criminais poderiam ser incluídos no
âmbito de proteção do direito à liberdade de expressão, no denominado “caso Ellwanger”. O réu,
Siegfried Ellwanger Castan, sócio da Revisão Editora Ltda., respondia processo criminal pela prática do
crime de racismo, em razão de editar e publicar livros com conteúdo antissemita. Esgotados os recursos
cabíveis e condenado pela prática do crime a ele imputado, Ellwanger ajuizou Habeas Corpus perante o
Supremo Tribunal Federal que indeferiu a ordem pleiteada, por oito votos contra três. São válidas de nota
as discordâncias constatadas no bojo dos votos dos Ministros, demostrando que o assunto é, de fato,
polêmico. Para ilustrar, indicamos, resumidamente, os argumentos utilizados por dois Ministros. O Min.
Gilmar Ferreira Mendes entendeu que discursos dessa natureza se encontravam, inicialmente, protegidos
pela liberdade de expressão e que a situação no caso concreto deveria ser resolvida através da ponderação
dos interesses envolvidos, a fim de se decidir sobre o conteúdo definitivo desse direito. Após efetuar a
ponderação, o Ministro votou pela denegação da ordem de habeas corpus, entendendo que a condenação
do paciente era idônea para atingir o fim pretendido, qual seja o asseguramento de uma sociedade
tolerante; necessária, pois não haveria outro meio menos gravoso e igualmente eficaz para o atingimento
desse fim e, por fim, proporcional, pois a liberdade de expressão não abarcaria o racismo e a incitação à
violência. O Ministro Celso de Mello entendeu que o âmbito de proteção da liberdade de expressão não
pode englobar manifestações criminosas, inexistindo conflito de interesses, eis que a norma constitucional
não protege o delito de racismo. Com base nessas razões, votou pelo indeferimento do pleito. (HC
82.424/2003, Rel. Min. Mauricio Corrêa, publicado em DJ 19.03.2004).
60
A dicotomia entre discurso (speech) e conduta (conduct) foi objeto de análise em reiterados precedentes
judiciais decididos pela Suprema Corte Americana. É interessante destacar a forma com que o Juiz Hugo
Black, entre as décadas de 60 e setenta, do século passado, interpretava esses comportamentos, separando,
de forma estanque, os meios simbólicos de expressão do discurso puro, sendo que, segundo o seu
entendimento, somente esse último estaria protegido pelo Primeiro Aditamento. Nesse sentido, tem-se o
caso Tinker v. Des Moines Independent Commune School District 393 US 503 (1969), em que o Juiz
Black, em voto vencido, sustentou que a utilização de braçadeiras negras por alunos como forma de
protesto à guerra do Vietnã se tratava de conduta não tutelada pela liberdade de expressão.
Posteriormente, o tema continuou sendo objeto de debate na Suprema Corte Americana, destacando-se os
precedentes Texas v. Johnson 491 US 397 (1989) e United States v. Eichman 496 US 310 (1990). O
Outro questionamento que se levanta em torno da abrangência da liberdade de
expressão refere-se a sua autonomia frente ao direito à informação. Sobre o tema a
doutrina não se mostra pacífica e seus posicionamentos podem ser resumidos em duas
correntes principais:
 A primeira entende que para atingir os seus fins substantivos e instrumentais, a
liberdade de expressão em sentido amplo corresponde a um direito geral de
comunicação e engloba inúmeras liberdades comunicativas, dentre as quais os
direitos de opinião, de informação, de imprensa, do jornalista, de radiofusão, de
petição, de livre manifestação artística, intelectual e científica, de liberdade de
aprender e de ensinar61;
 A segunda distingue as liberdades de expressão e de informação. Para essa
corrente a distinção entre ambas é tão nítida que impossibilita a sua análise sob
uma única perspectiva, como se tratassem do mesmo direito. Enquanto a
liberdade de expressão refere-se à exposição de ideias, opiniões, manifestações e
juízos de valor, possuindo uma índole subjetiva, atrelada às manifestações do
primeiro, de 1989, refere-se ao americano Gregory Lee Johnson, membro da Brigada da Juventude
Revolucionária Comunista, responsável pela queima da bandeira americana, como protesto à
administração realizada pelo Presidente Reagan, em uma convenção do partido republicano, em Dallas.
Em razão de ter sido multado em dois mil dólares e condenado à pena de detenção de um ano, por
violação a uma Lei do Estado do Texas que proibia que a bandeira dos Estados Unidos fosse vilipendiada,
Gregory Lee Johnson levou o caso até a Suprema Corte Americana que decidiu, por cinco votos contra
quatro, que tal conduta constituía um protesto político e recebia proteção concedida pela 1ª Emenda, uma
vez que, embora tal ato causasse reprovação aos olhos da maioria da sociedade, há um princípio
fundamental que se sobrepõe ao interesse dessa maioria. O Congresso americano, por sua vez, discordou
do julgamento, aprovando, ainda nesse ano, uma lei de proteção em favor da bandeira nacional
denominada “Flag Protection Act”, a qual foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte, no âmbito
do caso United States v. Eichman, em 1990. No Brasil, é considerado crime aviltar a bandeira, nos termos
da Lei nº 5.443/68, não tendo esse expediente normativo sido declarado inconstitucional.
61
Nesse sentido, JÓNATAS E.M.MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da
esfera pública no sistema social, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 371. É importante ressaltar que o
autor diferencia a liberdade de expressão em sentido amplo, também chamada de liberdade de
comunicação, da liberdade de expressão em sentido estrito, denominada de liberdade de opinião. Esse
subsistema, juntamente com outras liberdades comunicativas, como a liberdade de informação, a
liberdade de imprensa, dentre outras, decorrem do direito universal à liberdade de expressão, lato sensu,
encontrando-se inseridas em seu âmbito de abrangência. Veja-se, ainda, PAULO GUSTAVO GONET
BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 297; LUIZ
ROBERTO BARROSO, Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de
Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, in
Revista Trimestral de Direito Civil – RTC, v.16, outubro/dezembro de 2003, Ed. Padma, Rio de Janeiro,
p. 59/102; RAFAEL LORENZO-FERNANDEZ KOATZ, As Liberdades de Expressão e de Imprensa na
Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cit., p. 398; AURELIA MARIA ROMERO COLOMA,
Derecho a la Información y a la libertad de expresion, Bosch, Barcelona, 1984, p. 33 e JUAN JOSÉ
SOLOZÁBAL ECHAVARRÍA, La libertad de expresión desde la teoria de los derechos fundamentales,
in Revista Española de Derecho Constitucional, año 11, nº 32, mayo-agosto de 1991, Madrid, p. 81.
pensamento, a liberdade de informação busca a comunicação e a recepção de
fatos, de dados objetivos62.
Ao analisar a questão sob a ótica dos textos internacionais, verificam-se, pelo teor
dos seus conteúdos, as suas inclinações para a primeira corrente63.
Em nosso entender, a livre manifestação do pensamento e o direito à informação
correspondem aos “braços” de uma estrutura maior, porém única64, qual seja, a
liberdade de expressão em sentido amplo, uma vez que ambos, em conjunto ou
individualmente considerados, pretendem proteger as diferentes formas de interação
comunicativa tuteladas por esse direito geral.
Com isso não se quer afirmar que, por fazerem parte da liberdade de expressão,
constituem institutos idênticos. Ao contrário. As diferenças entre eles são marcantes e
possuem significativas repercussões práticas. Esse, aliás, será o tema do próximo item.
62
Adota esse posicionamento TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos
fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y
los derechos al honor y a la intimidad, Ed. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madri, 2001,
p. 122. Ao analisar a questão sob a ótica da realidade espanhola, o autor afirma que: “Por lo tanto, se
puede observar que la comuncación de hechos y la expresión de ideas y opiniones presentan substanciales
diferencias. Estas diferencias, junto al hecho de su reconocimiento por la Constitución em epígrafes
separados, que evidencia que el constituyente pretendía garantizar um derecho diferente a la clásica
libertad de expresión, nos permite llegar a la conclusión de que se trata de dos derechos fundamentales”.
Com esse mesmo entendimento, destacam-se LUIS GUSTAVO GRANDINETTI CASTANHO DE
CARVALHO, Direito de informação e liberdade de expressão, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1999, p.
25/55; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I (arts. 1º a 79),
2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 852 e JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Estatuto
Constitucional da Actividade de Televisão, cit, p. 117/123.
63
A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 19, dispõe que: “Todo indivíduo
tem direito a liberdade de opinião e de expressão, este direito inclui o de não ser molestado por causa de
suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões, o de difundi-las sem limitações de
fronteiras, por qualquer meio de expressão”. De igual forma, o Convênio Europeu para a Proteção dos
Direitos Humanos de 1950, em seu artigo 10.1, estabelece que: “Toda pessoa tem direito a liberdade de
expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião, a liberdade de receber ou comunicar
informações e ideias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem consideração de
fronteiras”. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu artigo 19.2, também,
enuncia que: “Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a
liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de
fronteiras, sob forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha”.
64
Para JÓNATAS E. M. MACHADO (Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera
pública no sistema social, cit., p. 372), o direito à liberdade de expressão constitui um direito mãe de
todas as outras liberdades comunicativas, “devendo a tarefa de concretização hermenêutica dessas últimas
reportar-se às finalidades substantivas que historicamente foram sendo adscritas, por via interpretativa, à
liberdade de expressão”.
4. Pensamentos X Informações
As delimitações do âmbito de proteção dos direitos que compreendem a liberdade
de expressão dependem de uma melhor investigação sobre o significado de alguns dos
elementos essenciais que os compõem. Mais precisamente é necessário que se
compreenda o que vem a ser “pensamento” e “informação”.
Os pensamentos, as exposições de ideias e de opiniões constituem expressões
relacionadas à interioridade humana, a juízos de valor, sendo, portanto, de ordem
subjetiva65. Seu objetivo é mais individual do que coletivo, está relacionado ao
desenvolvimento da personalidade do homem. Para Jónatas E. M. Machado são reações
de índole ideológica, emocional, moral ou estética66. Ao se deparar com essa forma de
comunicação, não se faz possível uma análise que não seja meramente valorativa, podese concordar ou não com ela, gostar ou não, mas dificilmente se poderá exprimir uma
avaliação do tipo certo ou errado, verdadeiro ou falso.
O autor Tomás de Domingo Pérez resume essa forma de comunicação subjetiva em
três grupos, sendo o primeiro formado pelas ideias que um indivíduo cria, em seu
âmbito interior, através de um processo indutivo, a partir de suas experiências pessoais,
sem vinculá-las a algum acontecimento concreto. O segundo compõe os sentimentos e
as emoções de cada um e o terceiro é de ordem mais concreta, em que há a
exteriorização de uma valoração acerca de um acontecimento concreto, a partir das
ideias e dos sentimentos pessoais67.
Por sua vez, as informações, buscam a comunicação de fatos, de acontecimentos
concretos, de utilidade social, por meio de um estado de inteligibilidade, que envolve
um discurso racional articulado68. Nesse caso, as manifestações são de natureza
objetiva, cuja avaliação pode ser feita na modalidade certa ou errada, verdadeira ou
65
Nesse sentido, J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, artigos 1º a 107, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 572.
66
Cf. JÓNATAS E.M.MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera
pública no sistema social, cit., p. 786.
67
Cf. TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las
relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad,
cit., p. 210/211.
68
Para JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO (Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, cit., p.
119/121), a informação possui como requisitos a inteligibilidade, a utilidade social, a veracidade de seu
conteúdo e a continência formal. Com esse mesmo posicionamento, JORGE MIRANDA/RUI
MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 848.
falsa. Trata-se de situações bastante relacionadas à liberdade da imprensa, mas como
veremos adiante, não somente a ela.
Ressalta-se que a informação não pode dispensar o exame em torno da verdade.
Afinal, a sua proteção decorre, principalmente, da necessidade da sua utilização para a
formação da opinião pública, para o exercício da cidadania, enfim, para o
amadurecimento do regime democrático. Qualquer manipulação desses acontecimentos
concretos pode comprometer gravemente o atendimento de tais finalidades. A
informação que tem assento constitucional é a verdadeira, não compreendendo a notícia
falsa. Por esses motivos, são suscetíveis de prova, diferentemente das opiniões, dos
pensamentos e das ideias.
Ora bem. A doutrina não questiona que a informação tem que primar pela verdade.
As dissidências começam a surgir em torno da avaliação que deve ser feita do termo
“verdade”. É exigido daquele que transmite a informação que retrate a verdade
absoluta? E mais. É possível aferir objetivamente o que seja essa verdade?
Sobre o tema, a Suprema Corte Americana já se posicionou, entendendo que a
verdade exigida daquele que divulga a informação não precisa ser objetiva,
rigorosamente verdadeira, uma vez que nem sempre isso é possível de ser obtido. Para
ela, o controle da verdade é feito de forma subjetiva, bastando que o seu conteúdo seja
plausível, que o transmissor desconheça eventual falsidade e que tenha empregado
diligências razoáveis no sentido de esclarecê-la, a fim de não divulgá-la de forma
negligente e irresponsável69. Esse posicionamento, inclusive, tem sido adotado por
outros Tribunais Constitucionais70.
69
Destaca-se o precedente New York Times Co. v. Sullivan 376 U.S. 254 (1964). Em síntese, o jornal New
York Times publicou um texto de uma organização promotora da igualdade racial, que narrava, de forma
inverídica, circunstâncias acerca da prisão de Martir Luther King Jr., no estado do Alabama. Ocorre que,
L. B. Sullivan, comissário de polícia desse estado, considerou-se ofendido com o teor da publicação e
decidiu acionar o referido meio de comunicação perante a Justiça do Alabama. Após ter sido condenado a
pagar uma indenização de meio milhão de dólares, o jornal New York Times acionou a Suprema Corte
Americana que decidiu que a 1ª Emenda garantia a publicação de quaisquer informações, ainda que
inverídicas, desde que os responsáveis pela matéria não soubessem que se tratava de acontecimento
mentiroso e tivessem agido de boa-fé, adotando as diligências necessárias ao seu esclarecimento. Nesse
julgamento, o Tribunal Constitucional norte-americano entendeu, ainda, que as autoridades públicas
encontravam-se mais sujeitas a críticas do que as pessoas em geral e que competia ao ofendido provar a
malícia real do jornalista (actual malice) ou da sua negligente desconsideração da inveracidade da notícia
por ele divulgada (reckless disregrad of falsity).
70
Como exemplo, tem-se o Tribunal Constitucional Espanhol. No acórdão STJ 123/93, a Suprema Corte
Espanhola decidiu que: “Sobre la veracidad de la información, este Tribunal Constitucional há
establecido uma consolidada doctrina (SSTC 6/88, 171/90, 219/92 y 240/92, entre otras), que
Embora tratem de direitos com objetos e finalidades distintas, nem sempre é fácil,
na prática, separar as opiniões das informações. Afinal, não são raras as hipóteses em
que as narrações sobre fatos e acontecimentos concretos são acrescidas de valorações
subjetivas.
Para a corrente tradicional, nos casos em que uma mesma comunicação possua
elementos de naturezas dúplices é importante identificar o “elemento preponderante”.
Essa busca deve considerar, dentre outras circunstâncias relevantes, o contexto geral em
que os fatos são apresentados, a linguagem utilizada, o grau de verificabilidade da
informação e a finalidade da sua veiculação71.
Esse critério, embora tenha encontrado assento em diversos Tribunais72, tem sido
alvo de críticas, por parcela da doutrina, pois é dependente de valorações
eminentemente subjetivas por parte do intérprete. Como alternativa, tem sido utilizado
um modelo que procura separar os fatos das opiniões contidas em uma única
mensagem, analisando cada um desses institutos individualmente. No que se refere à
comunicação de dados, a prova da verdade será exigida, o que não ocorrerá com a
expressão de opiniões73.
sintetizamos, reiterando nuevamente que la regla de veracidad no exige que los hechos o expresiones
contenidos em la información sean rigorosamente verdaderos, puesto que las afirmaciones errôneas o
equivocadas son inevitables en un debate libre, sino que impone ao comunicador un específico deber de
diligencia en la comprobación razonable de la veracidad em el sentido de que la información rectamente
obtenida y razonablemente contrastada es digna de protección, aunque su total exactitud sea
controvertible o se incurra en errores circunstanciales que no afecten a la esencia de lo informado,
debiéndose, por el contrario, negar la garantia constitucional a quienes actuén con menosprecio de la
veracidad o falsedad de lo comunicado, transmitiendo, de manera negligente o irresponsable, como
hechos, simples rumores, carentes de toda constatación o meras opiniones gratuitas que, realmente, son
insunuaciones insidiosas”. In TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos
fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y
los derechos al honor y a la intimidad, cit., p. 124.
71
Para identificar esse elemento de prevalência, o autor JOSÉ MUÑOZ LORENTE (Libertad de
información y Derecho al Honor en el Código Penal de 1995, Editorial Tirant Lo Blanch, Valencia, 1999,
p. 115/125) entende que devem ser avaliados alguns aspectos no caso concreto, tais como a utilização de
termos como “em minha opinião”, “em meu ponto de vista”; o contexto sócio-politico em que a
comunicação foi transmitida e as linguagens nele utilizadas.. Veja-se, também, em JÓNATAS
E.M.MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema
social, cit., p. 788.
72
Na Suprema Corte Americana, ver caso Ollman vs. Evans e no Tribunal Constitucional Espanhol, os
acórdãos STC 172/1990, 123/1993, 136/1994, 42/1995 e 200/1998, segundo estudo feito por TOMÁS DE
DOMINGO PÉREZ (Conflictos entre derechos fundamentales?: un análisis desde las relaciones entre
los derechos a la libre expresión e información y los derechos al honor y a la intimidad, cit., p.107).
73
Nesse sentido, aponta-se o acórdão STJ 105/1990, proferido pelo Tribunal Constitucional Espanhol,
consoante estudo de TOMÁS DE DOMINGO PÉREZ, Conflictos entre derechos fundamentales?: un
análisis desde las relaciones entre los derechos a la libre expresión e información y los derechos al
honor y a la intimidad, cit., p.107/109.
De tudo o que foi exposto, observa-se que informações, pensamentos e opiniões
possuem relação direta com o direito à liberdade de expressão em sentido lato, mas
pertencem a subsistemas de comunicações diferentes74 e, por esse motivo, devem ser
assegurados de formas igualmente distintas.
Desta feita, embora mereçam proteção constitucional, sem a qual não se pode falar
em Estado Democrático de Direito, não há como considerá-los conceitos idênticos75,
sob pena de se realizar uma interpretação equivocada acerca de seus significados, com
graves repercussões no momento de suas efetivações.
5. Notitia criminis: manifestações do pensamento ou exercício do direito de
informar?
Diante de tudo o que foi exposto, é forçoso retornarmos para a problemática central
do presente trabalho. São as representações que noticiam as práticas de crimes livres
manifestações do pensamento? A depender da resposta, poderá ou não recair sobre elas
a vedação ao anonimato, prevista no artigo 5º, inciso IV, da Constituição.
Para responder esse questionamento é necessário elucidar o que é uma
representação criminal76 e qual é a serventia desse instrumento, para, então, com base
74
Cf. JÓNATAS E. M. MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera
pública no sistema social, in op. cit., p. 374.
75
O Ministro Celso de Mello, ao redigir o seu voto no bojo da ADI 2.566/2002, abordou tangencialmente
o tema, quando analisava o mérito da ação, em que se discutia a inconstitucionalidade de um dispositivo
da Lei nº 9.612/98 que vedava o “proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de
radiofusão comunitárias”. Em seu voto, o referido Ministro mencionou os direitos à livre manifestação do
pensamento e à informação como institutos distintos, ao afirmar que “a Carta Política estabelece que
nenhum dispositivo pode constituir embaraço à plena liberdade de informação e à liberdade de expressão
do pensamento e de difusão de ideias”. (grifo nosso)
76
No presente trabalho, os termos notícia criminal, representação, denúncia e delação estão sendo
empregados como nomenclaturas equivalentes que almejam a mesma finalidade, qual seja a
comunicação, perante as autoridades públicas, acerca do cometimento de delitos, com o propósito de que
sejam adotadas as providências persecutórias necessárias, uma vez que essas terminologias têm sido
utilizadas com esse sentido, de forma reiterada, pela doutrina e pela jurisprudência pátrias. Contudo, é
importante frisar que alguns desses termos possuem, também, outros significados na técnica processualpenal brasileira. Segundo FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (Processo Penal, v. 01, 18ª
edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 1997, p. 365), por denúncia em sentido estrito, entende-se a peça
inaugural da ação penal, promovida pelo Ministério Público nos crimes de ação penal pública
incondicionada e condicionada. Conforme DENILSON FEITOZA PACHECO (Direito Processual Penal,
3ª edição, Ed. Impetus, Rio de Janeiro, 2005, p. 220/222) o signo representação é empregado, ainda,
como condição de procedibilidade a ser cumprida pelo ofendido e pelos seus representantes legais para a
instauração de procedimentos que visam a apuração de crimes de ação penal pública condicionada.
nas premissas teóricas anteriormente apresentadas, classificá-la como livre manifestação
do pensamento ou como exercício do direito de informar.
As notícias-crime visam comunicar as autoridades públicas acerca de fatos de
interesse geral, tanto que são tipificados pelo ordenamento como delitos, a fim de que
providências sejam adotadas no sentido de coibi-los77.
É claro que ao denunciar a prática de um ilícito, o denunciante não deixa de exercer
uma liberdade comunicativa, protegida pelo direito à liberdade de expressão lato sensu.
Mas é necessário identificar os elementos essenciais que compõem esse instrumento, tal
como a sua finalidade.
O objetivo do direito à representação não é proferir um pensamento ou uma opinião
de índole subjetiva. Não se busca emitir um juízo de valor sobre determinada situação.
Ao contrário. Quando se participa a prática de crimes aos agentes públicos, a carga
axiológica conferida aos dados narrados é bastante reduzida. O que se pretende é
noticiar um fato e não valorá-lo. E, nessa conformidade, o que realmente importa são as
informações precisas, cuja veracidade pode ser confrontada através de provas
produzidas pelas autoridades competentes.
Não é incorreto afirmar, portanto, que essas notícias-crime pretendem relatar
acontecimentos concretos, objetivamente aferíveis, classificados como infrações penais.
É justamente por isso que essas delações não podem ser confundidas com
manifestações do pensamento. Afinal, não se pode comprovar a veracidade de uma
opinião, de uma ideia, uma vez que essa análise é impossível de ser feita quando a
discussão está no campo subjetivo. É possível concordar ou não com os seus conteúdos,
achar que são corretos ou errados a depender da concepção ideológica e moral de cada
um, mas não precisar, que, de fato, são verdadeiras ou falsas.
É claro que, na prática, muitas dessas representações podem compreender
conteúdos dúplices, de ordem objetiva e subjetiva. Quando situações como essas
ocorrem, a doutrina já trilhou um caminho capaz de nortear a atuação do intérprete, seja
77
Cf. JOSÉ FREDERICO MARQUES, Elementos de Direito Processual Penal, v. 01, Ed. Bookseller,
Campinas, 1998, p. 132/133; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, Processo Penal, cit., p.
205/207; EUGÊNIO PACCELI DE OLIVEIRA, Curso de Processo Penal, Ed. Del Rey, Belo Horizonte,
2002, p. 26 e JULIO FABBRINI MIRABETE, Processo Penal, 16ª edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2004, p.
86.
aplicando um critério de preponderância, seja optando por separar os fatos das opiniões,
analisando-os individualmente78.
Assim, em nosso entendimento, as representações que noticiam as práticas de fatos
criminosos não podem ser consideradas manifestações do pensamento e sim livre
exercício do direito de informar.
Construídas as premissas teóricas, passaremos ao próximo passo, a fim de elucidar
o tratamento dispensado pelo Legislador Constituinte ao problema, objeto da presente
investigação.
Para o enfrentamento do tema, faz-se imperativo identificar o âmbito de proteção
do artigo 5º, inciso IV, da Constituição. E, no processo de elucidação do conteúdo desse
direito fundamental, a hermenêutica, por meio dos seus variados métodos
interpretativos, será um instrumento de importância fundamental.
78
Cf. capítulo II, item 4.
CAPÍTULO III
DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DO PROBLEMA
1. A liberdade de expressão na Constituição Federal do Brasil de 1988
Ao se fazer uma análise comparativa nas Constituições de alguns países, observa-se
que não há uma uniformidade em seus textos. Alguns tratam do direito à liberdade de
expressão como um todo, e outros preferem descrever, pormenorizadamente, as diversas
liberdades comunicativas, separando, por exemplo, o direito de informação do direito de
manifestação do pensamento79.
A Carta Magna de 1988 procurou preservar amplamente o direito à liberdade de
expressão
através
de
diversos
dispositivos
que
contemplam
as
liberdades
comunicativas. Em seu bojo, encontram-se enunciados que visam proteger os direitos
79
O texto literal da Primeira Emenda da Constituição Americana dispõe que: O Congresso não aprovará
lei alguma relativa à implantação de uma religião ou proibindo o culto de alguma delas; nem lei que
restrinja à liberdade de palavra ou de imprensa; nem o direito do povo de reunir pacificamente; nem de
apresentar petições ao governo para reparação de situações injustas”.
O artigo 21, da Constituição Italiana prevê que: “Tutti hanno diritto di manifestare liberamente il proprio
pensiero con la parola, lo scritto e ogni altro mezzo di diffusione. La stampa non può essere soggetta ad
autorizzazioni o censure”.
A Constituição sul-africana, em seu artigo 16, determina que: “1. Everyone has the right to freedom of
expression, which includes - a) freedom of the press and other media; b) freedom to receive or impart
information or ideas; c) freedom of artistic creativity; and d) academic freedom and freedom of scientific
research. 2. The right in subsection (1) does not extend to a) propaganda for war; b) incitement of
imminent violence; or c) advocacy of hatred that is based on race, ethnicity, gender or religion, and that
constitutes incitement to cause harm”.
A Constituição Portuguesa, ao tratar da liberdade de expressão e de informação, giza, em seu artigo 37,
que: “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela
imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados,
sem impedimentos nem discriminações. 2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado
por qualquer tipo ou forma de censura. 3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam
submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua
apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa
independente, nos termos da lei. 4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em
condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a
indenização pelos danos sofridos.
A Constituição Espanhola, em seu artigo 20.1. estabelece que: “Se reconocen y protegen los derechos: a)
A expresar y difundir libremente los pensamientos, ideas y opiniones mediante la palabra, el escrito o
cualquier otro medio de reproducción. b) A la producción y creación literaria, artística, científica y
técnica. c) A la libertad de cátedra. d) A comunicar o recibir libremente información veraz por cualquier
medio de difusión. La ley regulará el derecho a la cláusula de conciencia y al secreto profesional en el
ejercicio de estas libertades.
relacionados ao pensamento, às manifestações artísticas, científicas e de comunicação, à
informação, à imprensa e de petição.
A preocupação do legislador constituinte foi recompor aos cidadãos as liberdades
essenciais tolhidas, no País, durante o regime militar, o qual se utilizava de subterfúgios
diversos para impedir a livre manifestação das ideias e para censurar a divulgação dos
fatos que lhe eram desfavoráveis80.
Imbuídos desse espírito, a Assembleia Constituinte dispôs, em seu artigo 5º, caput e
incisos IV, V, IX, XIV, XXXIV direitos e garantias fundamentais relacionados à
liberdade de expressão, bem como em seu artigo 220, caput, disciplinando a
comunicação social, nos seguintes termos:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato;
V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além
da indenização por dano material, moral ou à imagem;
IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente da censura;
XIV – É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o
sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional e;
XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento
de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de
direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.
Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
80
Cf. GUSTAVO BINENBOJM, Meios de Comunicação de Massa, Pluralismo e Democracia
Deliberativa: As liberdades de expressão e de imprensa nos Estados Unidos e no Brasil, Revista da
EMERJ, v. 6, nº 23, 2003, p. 360/380.
O problema fulcral, objeto dessa investigação, gira em torno da constitucionalidade
do emprego das representações criminais anônimas81 frente à vedação prevista no artigo
5º, inciso IV, da Constituição. E, para o seu enfrentamento, é salutar definirmos, de
início, qual é o assento constitucional das denominadas notitia criminis.
Ao relatar que certa conduta criminosa está sendo praticada ou que determinada
pessoa está cometendo um delito, o denunciante tem como interesse comunicar às
autoridades públicas que fatos de relevância pública estão ocorrendo e que providências
precisam ser adotadas, a fim de que haja a devida correção jurídico-penal.
É importante frisar que, mesmo sem conter um requerimento expresso pleiteando
providências por parte das autoridades públicas, esse pedido é de natureza implícita, na
medida em que, ao relatar fatos criminosos, o que se pretende com o oferecimento da
representação e a publicidade de tais informações é justamente a adoção, pelos agentes
públicos competentes, das medidas necessárias capazes de combatê-las82.
Nessa conformidade, o direito de representar possui amparo constitucional previsto
no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal83, ou seja, a categoria
jurídica na qual essas delações criminais se enquadram é a do direito de petição84.
81
Também chamada, por grande parte da doutrina brasileira, de noticia-crime inqualificada. Nesse
sentido, FERNANDO CAPEZ, Curso de Processo Penal, 11ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 2004, p. 77
e JULIO FABBRINI MIRABETE, Código de Processo Penal Interpretado, 7ª edição, Ed. Atlas, São
Paulo, 2000, p. 95.
82
Ademais, no ordenamento jurídico brasileiro, a maioria das infrações penais é de ação penal pública
incondicionada, o que significa que, ao tomarem conhecimento desses fatos, as autoridades têm um
indisponível poder-dever de providenciar as suas apurações mediante o instrumento investigatório
adequado, independentemente da vontade das partes que compõem a lide, inclusive de eventuais vítimas.
Não se pode olvidar que, nesses casos, o início das investigações pode ser realizado até mesmo de ofício,
pelo agente de combate ao crime, sem necessidade de provocação formal ou de assentimento de outrem.
Nesse sentido, FERNANDO CAPEZ, Curso de Processo Penal, cit., p. 50/52.
83
Cf. HELY LOPES MEIRELLES/JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO/DELCIO BALESTERO
ALEIXO, Direito Administrativo Brasileiro, 37ª edição, Malheiros Ed., São Paulo, 2011, p. 726. Para os
autores, o direito de representar “tem assento constitucional e é incondicionado, imprescritível e
independe do pagamento de taxas (CF, art 5º, XXXIV, ‘a’). Pode ser exercitado por qualquer pessoa, a
qualquer tempo e em quaisquer circunstâncias: vale como informação de ilegalidades a serem conhecidas
e corrigidas pelos meios que a Administração reputar convenientes”. Sobre o tema, JJ. GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 695/696)
entendem que o direito de petição, em sentido lato, compreende os direitos à petição, propriamente dito, à
representação, à reclamação e de queixa. Segundo os seus entendimentos, o direito de petição, em
sentido, estrito, corresponde a um pedido feito perante os poderes públicos solicitando ou propondo a
tomada de determinadas decisões ou a adopção de certas medidas, enquanto o direito de representação
consiste na impugnação de atos praticados pelas autoridades públicas. Ambos visam atender ao interesse
público. De acordo com essa concepção, as notícias crime são tipificadas como exercício dos direitos de
petição propriamente dito. Os autores JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa
Anotada, cit., p. 1025) diferenciam o direito de petição entre garantias petitória e impugnatória. A
primeira, chamada de direito de petição em sentido estrito, refere-se ao direito de solicitar a atenção do
Como se observa do enunciado constitucional, o legislador constituinte previu o
exercício do direito de petição para três finalidades, quais sejam: para defesa de direitos,
para combater abusos de poder e contra ilegalidades. Ao descrever o cometimento de
um crime o indivíduo está justamente comunicando, aos Poderes Públicos, a prática de
uma ilegalidade, para fins de promover a defesa de um interesse geral, qual seja, a
segurança pública85.
Ressalta-se que não se trata de qualquer ilegalidade. As delações examinadas nesse
trabalho visam narrar às irregularidades consideradas mais graves em nosso sistema
jurídico, tanto que foram classificadas como crimes.
É claro que ao informar aos órgãos públicos sobre a realização de fatos tipificados
pelo ordenamento como infrações penais e de exigir providências em relação a esses
problemas de interesse público, o denunciante exerce o seu direito à livre participação
política, na sociedade, mas, ao fazê-lo, é inegável que também exerce o seu direito à
liberdade de expressão, em sua concepção lato sensu86.
No entanto, em que pese serem as delações dessa natureza corolário do direito à
liberdade de expressão, não se pode olvidar que possuem uma relação de aproximação
mais específica com o direito de petição e com o direito de informar do que
propriamente com o direito à livre manifestação do pensamento87.
órgão competente para situações ou atos ilegais, e a segunda constitui forma de impugnação, pelos
próprios lesados, em face de atos administrativos contra eles perpetrados. Nessa conformidade, as
notícias-crime fazem parte das chamadas garantias petitórias.
84
É interessante frisar que, diferentemente da Carta Política de 1988, o direito de representação e o direito
de petição foram previstos, expressamente e de forma individualizada, nas Constituições Federais
Brasileiras de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967.
85
Para PAULO GUSTAVO GONET BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES (Curso de Direito
Constitucional, cit., p. 518), o direito à petição compreende em seu conteúdo “qualquer pedido ou
reclamação relativa ao exercício ou à atuação do Poder Público. Trata-se de um direito assegurado à
brasileiros ou estrangeiros, que se presta tanto à defesa de direitos individuais contra eventuais abusos,
como também para a defesa de interesse geral ou coletivo”.
86
Concordamos com JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, cit., p.
848 e 1025/1028) que classificam o direito de petição como um direito de estrutura complexa, eis que é
composto por “uma componente de liberdade e uma componente de direito positivo”. Em relação à
componente “liberdade”, os autores entendem que o direito de petição envolve o exercício do direito de
liberdade de expressão, na medida em que se noticia fatos verdadeiros, como também o direito de
liberdade política, quando se critica e se exige providências dos órgãos do poder em relação a problemas
de interesse geral. Por fim, a estrutura positiva desse direito pode ser vislumbrada em razão dos cidadãos
terem o direito de que as petições por eles protocoladas sejam devidamente admitidas, apreciadas e que os
seus resultados lhes sejam informados em prazo razoável.
87
Conforme capítulo II, item 5.
A questão que se levanta é saber como a Assembleia Constituinte disciplinou a
liberdade de expressão e as liberdades comunicativas dela derivadas e se foram levadas
em consideração as construções dogmáticas em torno do tema, uma vez que o texto
constitucional não esclarece, com clareza, o conteúdo de cada um desses enunciados,
dotando-os de expressões semanticamente abertas.
Como ponto de partida, deve-se elucidar se o artigo 5º, inciso IV, constitui um
dispositivo geral, representando a liberdade de expressão em sentido amplo ou se esse
enunciado trata, apenas, de uma das liberdades comunicativas, qual seja a livre
manifestação do pensamento, também conhecida por liberdade de expressão em sentido
estrito. Nesse caso, o direito à liberdade de expressão, lato sensu, estaria previsto,
implicitamente, no direito geral de liberdade, disposto no caput88, desse mesmo
dispositivo além, evidentemente, de estar assegurado nos enunciados constitucionais
que tratam, separadamente, de cada um dos subsistemas comunicativos.
Identificar o âmbito de proteção do artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna, portanto,
constitui um caminho imprescindível a ser percorrido para a solução do problema,
sendo necessário recorrer à interpretação constitucional para a sua adequada
compreensão. A depender da abrangência do seu conteúdo, será possível afirmar se as
notícias-crime poderão ou não ser oferecidas de forma anônima, no ordenamento
jurídico brasileiro.
Se, com recurso aos procedimentos e princípios inerentes à atividade hermenêutica,
a conclusão final for de que o artigo 5º, inciso IV, disciplina o direito à liberdade de
expressão em sentido amplo, o comportamento individual de representar aos Poderes
Públicos será simultaneamente subsumível a duas normas de igual fundamentalidade,
mas com reservas distintas. Estar-se-á diante de uma clara concorrência entre direitos
fundamentais com limites divergentes. De um lado, o direito à liberdade de
manifestação do pensamento e, do outro, o direito de petição, sendo que o artigo 5º,
88
Para DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR (Curso de Direito Constitucional, cit., p. 642), o direito geral à
liberdade “consiste na prerrogativa fundamental que investe o ser humano de um poder de
autodeterminação ou de determinar-se conforme a sua própria consciência. Isto é, consiste num poder de
atuação em busca de sua realização pessoal e de sua felicidade. Entre nós, compreende: a) a liberdade de
ação; b) a liberdade de locomoção; c) a liberdade de opinião e pensamento; d) a liberdade de expressão de
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação; e) a liberdade de informação; f) a liberdade de
consciência e crença; g) a liberdade de reunião; h) a liberdade de associação e i) a liberdade de opção
profissional”.
inciso XXXIV é consagrado sem reserva, eis que não contém restrição expressa que
veta o anonimato89.
Não obstante, se a conclusão for de que o legislador constituinte disciplinou os
subsistemas de comunicação através de dispositivos constitucionais diferentes,
referindo-se o artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna, apenas e tão somente, ao direito à
livre manifestação do pensamento, o qual não se confunde com a liberdade de expressão
lato sensu, prevista, implicitamente, no artigo 5º, caput, não haverá o que se falar em
concorrência entre direitos fundamentais com limites divergentes. Nesse caso, as
representações criminais encontrariam respaldo constitucional em direitos que
apresentam consequências jurídicas idênticas. Tanto o direito de petição, mais
específico, quanto o direito à liberdade de expressão, com previsão normativa mais
vasta, não possuem reservas expressas, de modo que as notícias-crime não poderiam ser
restringidas, de plano, com a vedação ao anonimato.
No entanto, em qualquer das hipóteses, o deslinde da questão dependerá da
delimitação do âmbito de proteção dos dispositivos relacionados ao tema, o que será
feito por meio da interpretação constitucional, bem como das considerações dogmáticas
existentes no chamado domínio da concorrência de direitos fundamentais.
2. A interpretação a serviço da solução do problema
Nem sempre o Legislador Constituinte descreve, com precisão, o que está
concretamente assegurado pelo direito fundamental. É usual a utilização de palavras ou
expressões de conteúdo polissêmico, recaindo sobre o intérprete o papel de
compreender o sentido e o alcance dos enunciados normativos, ultrapassando a vagueza
inicial dos seus termos.
Não restam dúvidas de que se o texto constitucional contivesse a descrição
pormenorizada dos comportamentos que compõem o âmbito de proteção do direito à
89
Além de não haver uma restrição expressamente extraída do artigo 5º, inciso XXXIV, em relação à
proibição ao anonimato, a Lei 9.051/95 que regulamentou, no Brasil, o direito de petição não faz qualquer
menção ao tema. É importante frisar que o referido diploma legal disciplinou mais precisamente a
expedição de certidões para a defesa de direitos e não propriamente o direito de representação. De outro
lado, a Lei nº 43/90 que regulamenta o direito de petição em Portugal, estabelece em seu artigo 12.2, “a”,
como uma das causas de seu indeferimento o anonimato. Assim, se ela for apresentada sem subscrição e,
do seu interior, não seja possível aferir a pessoa de quem provém, deverá a petição ser liminarmente
indeferida.
livre manifestação de pensamento, ou, então, a previsão expressa a respeito da
possibilidade de oferecimento das representações criminais anônimas perante as
autoridades públicas, a questão central desse trabalho seria resolvida com facilidade, a
partir de uma análise literal do texto constitucional.
Contudo, o artigo 5º, inciso IV, contém, em sua primeira parte, uma expressão
ambígua, quando aduz que é livre a manifestação do pensamento, sem especificar o
grau de sua abrangência, ou seja, se esse enunciado busca proteger a liberdade de
expressão como um todo ou, tão somente, os pensamentos, as ideias e as opiniões.
Ademais, observa-se uma lacuna constitucional em relação às delações criminais,
inclusive as anônimas, uma vez que não há regulação da matéria na Carta Politica
pátria.
De uma simples leitura dos dispositivos que tratam das liberdades comunicativas
não é possível compreender, com clareza, os seus âmbitos de proteção, tampouco
afirmar se as notícias criminais anônimas são ou não admitidas no ordenamento.
Provavelmente por essas razões, o assunto não se encontra pacificado nos tribunais,
como se verá adiante90.
A indeterminação do texto constitucional atrelada à oscilação jurisprudencial tem
gerado muita insegurança aos operadores do direito no momento em que esses se
deparam com o problema. E não são raras as vezes em que as autoridades competentes
recebem representações anônimas em seus departamentos policiais e ministeriais, uma
vez que esse fenômeno tem aumentado nos últimos anos, principalmente em
decorrência do agravamento da criminalidade organizada no Brasil. Reflexo de que os
cidadãos querem, mas não se sentem seguros, suficientemente, para contribuírem com o
sistema de persecução penal nacional.
E é justamente para resolver o dilema em torno dessa questão que a atividade
interpretativa pode desempenhar um importante papel, a fim de esclarecer se a vedação
ao anonimato deve ou não incidir sobre as representações formuladas às autoridades
públicas de combate ao crime.
Como visto, a interpretação constitucional constitui uma atividade de grande relevo
social, principalmente porque permite identificar o conteúdo e o significado dos textos
90
Cf. capítulo IV, item 4.
contidos no documento máximo de um país e conformá-los à realidade, servindo de
ponte entre o mundo do ser e do dever-ser. Trata-se de um verdadeiro instrumento a
serviço da solução de conflitos concretos.
Para tanto, são vários os métodos interpretativos disponíveis ao operador jurídico.
E, em que pese cada um deles contenha suas próprias especificidades, o fato é que a sua
utilização não deve ser operacionalizada de maneira excludente91. O emprego de vários
métodos pode ser engrandecedor. Afinal, a submissão do objeto da dúvida a diversos
controles permite olhar a questão através de ângulos diversos92.
Pois bem. Qual teria sido afinal a real intenção da Assembleia Constituinte ao
prever esse dispositivo? E, para atender ao seu objetivo, deveriam as representações
criminais ser incluídas no seu âmbito de proteção?
Para elucidar o que pretendia o Legislador Constituinte, no momento em que
estabeleceu a vedação ao anonimato como restrição ao direito a livre manifestação do
pensamento, os anais da Constituição Federal de 1988 seriam de grande valia. Contudo,
nem todos os relatórios redigidos pelas Comissões que compunham a Assembleia
Constituinte foram divulgados, inexistindo a publicação de informações quanto a esse
questionamento.
Na busca de se entender o porquê da inclusão, na Constituição Federal, desse
dispositivo de natureza singular, sem similitude nos demais ordenamentos
constitucionais, revela-se pertinente uma investigação acerca da sua presença nas cartas
brasileiras anteriores à de 1988. A avaliação desses dispositivos, no curso da história
constitucional pátria, nos permite traçar um diagnóstico comum a respeito do tratamento
conferido nesses textos à liberdade de expressão em sentido amplo e às liberdades
comunicativas em espécie, mais precisamente aos direitos à livre manifestação do
pensamento e de petição93.
91
Cf. ROBERT ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 552.
Ao analisar a atividade hermenêutica da Suprema Corte Americana, STEPHEN M. GRIFFIN
(American constitucionalism: from theory to politics, Princenton University Press, Princenton, 1996, p.
145/148) afirmou que apesar dos métodos de interpretação possuir diferenças entre si, para ele, está
evidente que a Suprema Corte dos Estados Unidos nunca elegeu um método específico de interpretação,
tampouco elegeu um ranking dentre eles. Para o autor, o fato de não se escolher um determinado modelo
interpretativo, demonstra que a Corte utiliza diversos deles, no exercício de suas atividades.
93
Para um exame comparativo, destacam-se, a seguir, os dispositivos constitucionais correlatos ao tema,
ao longo das Constituições Brasileiras:
92
a) Constituição de 1824: “Artigo 179 - A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela
Constituição do Império, pela maneira seguinte: (...) IV – Todos podem comunicar os seus pensamentos,
por palavras, escritos e publicá-las pela imprensa, sem dependência de censura, com tanto que hajam de
responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito e pela forma que a lei determinar. (...)
XXX – Todo cidadão poderá apresentar por escrito ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo
reclamações, queixas ou petições e até expor qualquer infração da Constituição, requerendo perante a
competente autoridade a efetiva responsabilização dos infratores”;
b) Constituição de 1891: “Artigo 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos
termos seguintes: (...) §12º - Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou
pela tribuna, sem dependência da censura, respondendo cada um por abusos que cometer, nos casos e pela
forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. (...) §9º - É permitido a quem quer que seja
representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a
responsabilização dos culpados”;
c) Constituição de 1934: “Artigo 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) §9º - Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento,
sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos
abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. É
segurando o direito de resposta, a publicação de livros e periódicos independentemente de licença do
Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra ou de processos violentos, para subverter
a ordem política ou social. (...) § 10º - É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição,
aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover-lhes a responsabilização”;
d) Constituição de 1937: “Artigo 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes
no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade e exercer livremente a sua atividade:
(...) §7º - O direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do
interesse geral (...) § 15º - Todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente ou por
escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei. A imprensa
reger-se-á por lei especial, de acordo com os seguintes princípios: a) a imprensa exerce uma função de
caráter público; b) nenhum jornal pode recusar a inserção de comunicados do Governo, nas dimensões
taxadas em lei; c) é assegurado a todo cidadão o direito de fazer inserir gratuitamente nos jornais que o
informarem ou injuriarem, resposta, defesa ou retificação; d) é proibido o anonimato; e) a
responsabilidade se tornará efetiva por pena de prisão contra o diretor responsável e pena pecuniária
aplicada à empresa;
e) Constituição de 1946: “Artigo 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e
à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 5º - É livre a manifestação de pensamento, sem que dependa
de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicos, respondendo cada um nos casos e na forma
que a lei preceituar para abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de
resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será,
porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos que subvertam a ordem política e social ou
de preconceitos de raça ou de classe. (...) § 37 – É assegurado a quem quer que seja o direito de
representar, mediante petição dirigida aos Poderes Públicos, contra abuso de autoridades e promover a
responsabilização delas”;
f) Constituição de 1967: “Artigo 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: (...) §8º - É livre a manifestação do pensamento, de convicção política
ou filosófica e a prestação de informação, sem sujeição à censura, salvo quanto à espetáculos de diversões
públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de
resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe da licença da autoridade. Não será,
porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe.
(...) §30 – É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos,
em defesa dos direitos ou contra abusos de autoridade”;
g) Constituição de 1988: “Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV – É livre a manifestação
do pensamento, sendo vedado o anonimato; V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao
agravo, além da indenização por dano material ou moral decorrente da violação. (...) XXXIV – São a
Embora a Constituição de 1824 já estipulasse a livre manifestação do pensamento,
o direito de imprensa e o direito de todos os cidadãos peticionarem às autoridades
competentes comunicando a prática de violações constitucionais e requererem a
responsabilização dos infratores, ela não mencionou a vedação ao anonimato. A
primeira Constituição que tratou do tema foi a Carta Magna de 1891 e, a partir de então,
o seu dispositivo foi repetido, com pequenas variações, até a presente Carta, salvo na
Constituição de 1967, em que não há qualquer referência sobre as manifestações
anônimas.
O direito de petição, desde a constituição imperial, foi sempre disposto em local
diverso à livre manifestação do pensamento, muito mais próximo aos direitos e
garantias fundamentais de natureza penal e administrativa do que dos direitos de
personalidade.
De outro lado, observa-se que a vedação ao anonimato tem sido uma acompanhante
frequente do direito de manifestação do pensamento e dos enunciados constitucionais
que tratam do direito de resposta e da responsabilização daqueles que extrapolam o
regular exercício do direito à livre manifestação do pensamento.
Portanto, ao analisar os dispositivos sobre o tema, ao longo das constituições
brasileiras, constata-se que a proibição ao anonimato visa justamente inibir abusos no
gozo da liberdade de pensamento, através da exigência de identificação do seu autor,
permitindo, assim, a sua responsabilização, em caso de uso arbitrário do direito94.
Afinal, ao manifestar as suas opiniões, o titular do direito, não raras vezes, atinge
direitos, de igual fundamentalidade, que pertencem a terceiras pessoas, como a honra e a
todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes
Públicos, em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.
94
Segundo CARLOS MAXIMILIANO PEREIRA DOS SANTOS (Comentários à Constituição
Brasileira de 1891, Ed. Senado Federal, Brasilia, 2005, p. 710/725), o objetivo da restrição constitucional
prevista em 1891 era coibir os abusos decorrentes do exercício concreto da liberdade de manifestação do
pensamento, facilitando a adoção de providências contra os responsáveis pelas ofensas aos direitos à
intimidade de terceiros, uma vez que as suas identificações seriam obrigatórias. Nos tempos atuais, o
posicionamento doutrinário é nesse mesmo sentido. Para DARCY ARRUDA MIRANDA (Comentários à
Lei de Imprensa, 3ª edição, Editora RT, São Paulo, 1995, p. 128), a vedação ao anonimato tem como
único objetivo permitir que o autor da manifestação submeta-se às consequências jurídicas decorrentes de
eventual abuso praticado. Destacam-se, ainda, ALEXANRE DE MORAES, Constituição do Brasil
Interpretada, Ed. Atlas, São Paulo, 2002, p. 207, UADI LAMMÊGO BULOS, Constituição Federal
Anotada, 4ª edição, Ed. Saraiva, São Paulo, 2002, p. 91 e JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito
Constitucional Positivo, 19ª edição, Malheiros Ed., São Paulo, 2001, p. 248. Esse entendimento, aliás, foi
sustentado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello e Cezar Peluso, ao proferirem
os seus votos no julgamento do Inq. 1957-7/PR.
intimidade. Portanto, não seria incorreto afirmar que, ao perceber que conflitos dessa
natureza seriam inevitáveis, o Legislador Constituinte de 1891, de antemão, estabeleceu,
dentre os possíveis mecanismos de controle e correção, uma restrição ao exercício da
manifestação do pensamento - a vedação ao anonimato – como instrumento legítimo e
idôneo ao atingimento dessa finalidade, a qual foi repetida, de forma bastante similar,
nas Constituições subsequentes, com exceção da Carta de 1967.
Em resumo, ao se investigar os textos constitucionais pretéritos e ao compará-los
com a Constituição atual, quatro conclusões podem ser extraídas. São elas:
 A liberdade de manifestação do pensamento e o direito de petição sempre
estiveram presentes nas Constituições Brasileiras, desde 1824. O anonimato
apareceu, pela primeira vez, na Constituição de 1891 e, desde então, essa
restrição tem sido repetida, na grande maioria dos textos constitucionais, com
poucas alterações;
 A finalidade da inclusão da vedação ao anonimato pretendia e, ainda, pretende
responsabilizar aquele que, no exercício do direito fundamental à livre
manifestação do pensamento, o faz de forma irregular, violando interesses de
terceiros95;
 A vedação ao anonimato está diretamente relacionada à manifestação do
pensamento e não ao direito de informação ou petição, encontrando-se sempre
posicionada ao lado da primeira liberdade comunicativa;
 Em contrapartida, o direito de petição, apesar de atrelado ao direito de liberdade
de expressão em sentido amplo, tal como a livre manifestação do pensamento,
95
A identificação dos motivos que levaram a introdução dessa restrição, no bojo dos textos
constitucionais, é fundamental para excluir a sua incidência nas hipóteses em que, embora afetas à
manifestação do pensamento, não possuam relação com a finalidade pretendida pela criação da vedação,
eis que não geram repercussão direta na esfera jusfundamental de terceiras pessoas. Pensemos no seguinte
exemplo. Um grupo de moradores de uma cidade do interior decide confeccionar um documento escrito
com o propósito de divulgar aos demais membros da comunidade um conjunto de razões em prol da
liberação do casamento entre homossexuais no país. Contudo, em virtude do pensamento conservador da
maioria dos munícipes, esse grupo, com receio de sofrer retaliações, decide não se identificar, redigindo
um manifesto sem subscrição. Diante dessa situação, pergunta-se: Esse manifesto possui amparo
constitucional, apesar de ser anônimo? Em nosso entendimento, a resposta somente pode ser positiva.
Frise-se que o seu conteúdo não atinge direitos fundamentais de terceiras pessoas e, por essa razão não há
que se falar em exercício arbitrário do direito à livre manifestação do pensamento e em responsabilização
de danos. Ao contrário. O texto limita-se a transmitir uma opinião a respeito de um assunto de interesse
social, através de um salutar debate de ideias, essencial ao amadurecimento de uma sociedade
democrática.
com ela não se confunde, tanto que ambos foram dispostos, desde a Constituição
do Império, em posições topologicamente diferentes. E isso porque almejam
finalidades distintas. O direito de petição busca, dentre outros objetivos, chamar
a atenção do Poder Público acerca da prática de fatos, inclusive quando
cometidos por autoridades públicas, os quais, por serem ilegais ou arbitrários,
comprometem a defesa de direitos ou de interesses coletivos. Sua função é
informativa, de controle de legalidade e, por conseguinte, de ordem objetiva.
Deste modo, embora não se possa, a partir dessa análise, concluir, em definitivo, se
o artigo 5º, inciso IV, refere-se à liberdade de expressão em sentido lato ou, apenas, à
livre manifestação do pensamento, o fato é que os legisladores constitucionais sempre
tiveram o cuidado de assegurar o direito geral à liberdade no caput dos artigos que
tratavam dos direitos e liberdades individuais e de disciplinar, em posições distintas e
com denominações específicas, os direitos à livre manifestação do pensamento, de
petição e de imprensa ao longo dos seus respectivos incisos. Portanto, parece mais
plausível deduzir que, ao se falar em manifestação do pensamento, o Poder Originário
Constituinte pretendia regulamentar, precisamente, essa espécie comunicativa e não o
direito à liberdade de expressão como um todo96.
Não se pode negar que, se a intenção do Legislador Constituinte era a de contemplar
as mais variadas liberdades comunicativas no conteúdo do artigo 5º, inciso IV e,
consequentemente restringi-las com a vedação ao anonimato em toda e qualquer
situação que o seu exercício pudesse interferir na esfera jusfundamental de outrem, seria
coerente que o fizesse expressamente posto que a tendência natural, caso assim não
proceda, é que o intérprete confira tratamentos distintos a institutos que, de fato, são
diferentes. As considerações dogmáticas demonstram que os direitos à livre
manifestação do pensamento e de petição, em que pese possuam conexão com a
96
JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., p. 244/251) denomina a
liberdade de expressão lato sensu como liberdade de pensamento em sentido amplo, a qual se exterioriza
através de diversas formas de expressão, por meio do exercício das liberdades de comunicação, de
religião, de expressão intelectual, artística, científica e cultural, de transmissão e recepção do
conhecimento. Em seu entendimento, as liberdades de comunicação são compostas pela liberdade de
manifestação do pensamento, pela liberdade de informação em geral e pela liberdade de informação
jornalística. A liberdade de manifestação do pensamento, previsto no artigo 5º, inciso IV “constitui um
dos aspectos externos da liberdade de opinião”. Nessa conformidade, RAFAEL LORENZOFERNANDEZ KOATZ (As Liberdades de Expressão e de Imprensa na Jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, cit., p. 398) afirma que “no marco da sistemática engendrada pela Constituição de
1988, é possível fracionar o conteúdo da liberdade de expressão em noções específicas, como a liberdade
de expressão em sentido estrito, a liberdade de informação e a liberdade de imprensa”. Para o autor, a
liberdade de expressão em sentido estrito corresponde ao direito à manifestação do pensamento.
liberdade de expressão lato sensu, não se confundem entre si, eis que almejam
destinações variadas. Não é por acaso que possuem denominações próprias e se
localizam em posições igualmente separadas no texto constitucional.
Mas não é só isto. Considerar que o artigo 5º, inciso IV contempla, em seu âmbito,
todos os comportamentos relacionados à liberdade de expressão em sentido amplo, pode
acarretar perplexidades invencíveis. Senão vejamos.
Quando se exterioriza um pensamento, o indivíduo exprime um sentimento, uma
opinião pessoal e, em muitas situações, pretende persuadir o seu destinatário, convencêlo de que as suas convicções merecem prevalecer. Internamente, ele avalia se deve ou
não expressar seus pensamentos, e considera, para tomar a sua decisão, todas as
repercussões práticas que suas comunicações podem provocar a ele próprio e a
terceiros. A partir dessas considerações íntimas, ele escolhe se, de fato, vale a pena
manifestar-se e qual a melhor forma de fazê-lo. A sua decisão, a princípio, não irá
repercutir diretamente na vida de outras pessoas.
Pensemos no cidadão que é contrário ao casamento homossexual, por motivos
religiosos, e que se encontra em um bar frequentado por diversas pessoas que têm essa
opção sexual. Apesar de ter suas próprias ideias, o cidadão irá avaliar se é pertinente
externar suas convicções nesse momento, no interior do estabelecimento comercial.
Certamente, no seu pensamento, ele cogita que ao fazê-lo e a depender da maneira com
que sua opinião será exposta ele poderá sofrer retaliações. De outro lado, pensa que, se
não o fizer, nada o impedirá de continuar a pensar segundo o seu entendimento e de se
manifestar sobre o assunto nas oportunidades que entender mais convenientes.
Diversa é a situação de uma pessoa que tem conhecimento de um fato grave,
tipificado como crime no ordenamento vigente. Ao relatar um fato, o indivíduo não
pretende expressar uma opinião, um pensamento, tampouco influenciar ninguém, mas
tão somente comunicar uma informação. É claro que antes de decidir o que fazer com
essa informação, ele irá examinar, tal como na situação acima, as consequências
decorrentes de eventual comunicação às autoridades competentes. Contudo, ao não
divulgar um delito, a sua omissão irá sim, de forma mais significativa, interferir na sua
realidade e na da comunidade em que a infração é cometida.
Como exemplo, suponhamos a situação em que uma professora de uma escola
municipal de uma localidade situada na zona rural, distante do posto policial da cidade,
tem conhecimento de que sua aluna, uma criança de 10 anos, está sendo abusada
sexualmente, pelo padrasto, ex-presidiário. Resta evidente que, ao se calar, a menor terá
poucas chances de sobreviver a esse martírio familiar ao qual é exposta, diariamente.
A pergunta que se faz é a seguinte: Quais são as chances dessa professora denunciar
o infrator, em um município pequeno, em que todas as pessoas se conhecem, se não
forem asseguradas, em seu favor, as mínimas garantias de que sua integridade física e
psíquica, bem como a de seus familiares, não será afetada pela sua contribuição à
justiça? A resposta é simples: Mínimas.
Questiona-se, ainda nesses casos, se é necessário que a denunciante recorra ao
anonimato para se proteger, uma vez que existiriam soluções alternativas. Uma delas
seria informar à representante que, na cidade em que mora, há policiais que podem ser
acionados, caso haja alguma ameaça contra a sua pessoa, por parte do denunciado. Ela
também pode ser colocada à disposição de um programa de proteção a testemunhas97. A
questão que se coloca é saber se promessas dessa natureza serão recebidas com
confiança pela representante, a ponto de que a mesma tenha interesse em participar, na
qualidade de testemunha, do processo criminal.
Ocorre que o crescente recebimento de denúncias anônimas pelos órgãos de
investigação criminal prova que promessas como essas têm se mostrado insuficientes.
As mais variadas causas podem contribuir para o incremento desse fenômeno. A
segurança pública, no Brasil, não se encontra estruturada de forma eficiente a ponto de
responder a contento às crescentes demandas sociais. Os programas de proteção às
testemunhas são restritos e extremamente gravosos aos seus usuários. Ademais, a
evolução do crime organizado tem contribuído para que pessoas afirmem desconhecer
fatos de que tem pleno conhecimento, somente para não serem chamadas a prestarem
depoimentos na Justiça, e, com isso, ficarem expostas diante de criminosos de alto
poderio político e econômico e sofrerem represálias e ameaças.
97
Nesse sentido, o Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 84827,
manifestou o seu posicionamento no sentindo de que a Lei de Proteção a Testemunhas foi criada
justamente para facilitar a denúncia de crimes, protegendo aquele que pretenda contribuir com a Justiça,
uma vez que o anonimato, segundo o seu entendimento, é vetado no ordenamento brasileiro, por expressa
previsão constitucional. O programa de proteção a testemunhas é regulado, no País, pela Lei nº 9.807/99.
Se a hermenêutica constitucional tem como ponto de partida o enunciado
constitucional, mas deve conciliá-lo, também, aos dados da realidade, as circunstâncias
acima descritas não podem ser ignoradas pelo intérprete98. Caso contrário, a
Constituição Federal não irá acompanhar as mudanças históricas e sociais e, portanto,
não terá qualquer eficácia social. No momento de precisar o conteúdo do artigo 5º,
inciso IV, ou seja, de definir o que pode ou não ser englobado como manifestação do
pensamento, deve o operador jurídico avaliar essa realidade, a fim de que as normas
constitucionais possam resolver, eficazmente, as atuais dificuldades decorrentes do
convívio social, as quais, certamente, não são as mesmas enfrentadas em 1891, quando,
pela primeira vez, o anonimato foi previsto em sede constitucional.
É provável que por essas razões o legislador constituinte de 1988 tenha agido com
cautela redobrada em relação aos seus antecessores, na medida em que dispôs, com
maior detalhamento, sobre cada uma das liberdades comunicativas, posicionando-as em
incisos separados, para que não houvesse dúvidas de que a vedação ao anonimato
limitasse, apenas, a livre manifestação do pensamento e não o direito à liberdade de
expressão como um todo.
Assim, com um mero exemplo, comum à prática criminal, é possível demonstrar
que o tratamento jurídico constitucional conferido à divulgação de ideias não pode ser
idêntico ao dispensado aos fatos criminais. Nessa conformidade, as restrições que
recaem sobre as primeiras não podem ser analisadas sob a mesma ótica do que as que
incidem sob os segundos, sob pena de se desconsiderar o contexto atual e mais, de
cometer uma disparidade ilógica de tratamento, manejando-se, igualmente, situações
absolutamente desiguais, o que certamente ensejaria uma solução injusta ou inadequada
ao próprio sistema constitucional99.
98
Para HELY LOPES MEIRELLES (Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 726/727), as
representações anônimas não podem ser interpretadas de modo a obstar o controle de legalidade da
Administração e o próprio interesse público. Para o autor, a recepção da noticia sem subscrição deve ser
feita com o intuito de permitir a intervenção do Poder Público e de impedir a ocorrência de uma situação
de ilicitude, desde que seja empregada com o máximo de prudência pelo agente.
99
O Supremo Tribunal Federal, em sua atividade hermenêutica, já teve oportunidade de se manifestar
sobre circunstâncias constitucionalmente relevantes, não previstas, expressamente, pelo Legislador
Constituinte, mas que precisavam ser consideradas pelo intérprete, sob pena de se produzir uma solução
evidentemente injusta e contrária ao sistema constitucional como um todo. No RE 33.919/1957, discutiuse se uma empresa estrangeira, sem possuir sede no país, poderia suscitar, em seu favor, os direitos e
garantias fundamentais previstas no artigo 141, da Constituição Federal de 1946, vigente à época.
Tratava-se de uma firma portuguesa que interpôs Mandado de Segurança em desfavor do Inspetor de
Alfândega de Santos o qual pretendia, sob a alegação de prática de irregularidades administrativas, expor
Uma leitura dos dispositivos que tratam da liberdade de expressão na Constituição
Federal de 1988 reflete, estreme de dúvidas, a percepção do Legislador Constituinte a
respeito das diferenças dogmáticas existentes entre as manifestações de pensamento e a
divulgação de informações, ainda que não de natureza criminosa.
Ao dispor sobre o direito à informação e à imprensa, o Legislador, resguardou,
expressamente, o sigilo da fonte jornalística100, restando evidente a sua intenção de não
restringir o manuseio da informação com a vedação ao anonimato.
A partir dessa previsão, ficou claro que a relação de confiança existente entre as
fontes de informações e os jornalistas deve ser respeitada pelo Estado e pelos
particulares. Em decorrência desse sigilo, o profissional de imprensa não pode ser
compelido a revelar as suas fontes, uma vez que tal exigência pode provocar sérios
riscos ao regular desenvolvimento da sua atividade profissional, imprescindível, por
excelência, ao regime democrático101.
Para Jónatas E. M. Machado trata-se de “um dever deontológico e um direito
fundamental do jornalista102”. O abrigo do sigilo de fonte mostra-se essencial, portanto,
para que o processo informativo do meio jornalístico não reste prejudicado diante da
dificuldade de se obter informações. E, para que os seus profissionais consigam angariar
à venda, por meio de leilão, setecentos e noventa caixas de cognac, de propriedade da Impetrante. No
Recurso Extraordinário, travou-se a discussão acerca da admissão ou não dos remédios constitucionais
em favor de estrangeiros, não residentes no país. Ao decidir, o Relator, Min. Candido Mota Filho,
entendeu que seria uma incoerência não reconhecer a proteção do direito de propriedade ao estrangeiro
não residente no Brasil, através dos remédios constitucionais assegurados a brasileiros e estrangeiros
residentes, deferindo a medida pleiteada.
100
Cf. artigo 5º, inciso XIV, da Constituição Federal de 1988.
101
A Suprema Corte Americana, no precedente Branzburg vs. Hayes 408 US 665 (1972) excepcionou o
sigilo de fonte jornalística, em virtude da necessidade da informação por ele protegida, para fins de prova
em processo criminal. No Brasil, por sua vez, o entendimento majoritário da jurisprudência é no sentido
de respeitar o sigilo de fonte do jornalista, ainda que esteja em causa um processo penal. Nesse sentido,
destacam-se o Inq. 870 do Supremo Tribunal Federal, cuja decisão monocrática da lavra do Ministro
Celso de Mello foi proferida em 08.03.1996 e o RHC 427/99, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Nesse precedente, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal, decidiu que o sigilo de fonte é um direitodever do jornalista e a sua inobservância configura manifesto constrangimento ilegal em desfavor do
profissional de imprensa. Determinar que o jornalista revele a sua fonte importa em obrigá-lo a praticar
conduta violadora do sigilo profissional e, de consequência, o crime previsto no artigo 154, do Código
Penal.
102
Cf. JÓNATAS E.M. MACHADO (Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera
pública no sistema social, cit., p. 580/582), “a proteção do sigilo profissional dos jornalistas é
fundamental para a exposição da corrupção no seio dos poderes públicos, de práticas econômicas e
comerciais que ponham em perigo o interesse geral, ou de quaisquer outras patologias dos diferentes
subsistemas de ação social, na medida em que protegem, indiretamente, indivíduos dispostos a fazerem
soar o alarme. Essa finalidade só pode ser conseguida através de um jornalismo de investigação activo e
seguro da sua proteção constitucional”.
os dados necessários à formação da opinião pública, devem dispor de garantias a serem
oferecidas em favor daqueles que com eles venham a contribuir.
No Brasil, a imprensa tem desempenhado um papel fundamental ao noticiar o
crescente e espúrio estreitamento de laços entre organizações criminosas e autoridades
públicas. São frequentes as matérias jornalísticas que relatam o envolvimento de
policiais militares em milícias armadas patrocinadas por traficantes de drogas 103 ou a
participação de políticos em esquemas de corrupção104. E, isso somente foi possível, em
face do resguardo de sigilo de fonte. Se tivessem que se expor, muitas dessas pessoas,
responsáveis pela transmissão das informações à imprensa, teriam se mantido silentes,
com medo de sofrerem perseguições.
Dito isso, deve-se avaliar se a mesma razão que baseia o sigilo da fonte no exercício
da atividade jornalística, não se encontra também presente nas investigações criminais.
Será que o denunciante que procura um agente público para relatar a prática de fatos
delituosos, de indiscutível relevância pública, também não merece uma proteção, tal
como aquele que serve de fonte informativa para um jornalista? E mais. Nos casos que
envolvem a prática de crimes, o risco sofrido por aqueles que os denunciam pode ser
ainda mais alto, a depender do ilícito narrado e de quem o tiver cometido105.
Permitir que fontes anônimas sejam utilizadas pelos jornalistas e, por outro lado,
impedir que as autoridades competentes de combate à criminalidade façam o mesmo é
de absoluta incoerência.
Ao considerar que ambas as situações devam receber tratamentos diferenciados, é
mais aconselhável orientar o indivíduo que tem conhecimento de uma milícia no local
em que mora e que, por razões óbvias, não quer se identificar, a procurar um jornalista
103
Como exemplo, destaca-se a matéria intitulada “Milícia aproveita greve para cometer onda de
assassinato”, publicada no site http://www.cartacapital.com.br, em 11.02.2012; a matéria “Operação de
combate à milícia armada da Baixada termina com 16 presos”, publicada no site
http://www.odia.ig.com.br, em 07.03.2012 e a matéria “Polícia Militar comandava milícia, em Magé, no
Rio”, publicada no site http://www.veja.abril.com.br, em 17.04.2012. Acesso em: 08.06.2012.
104
Nessa conformidade, tem-se a matéria intitulada “CPI de Cachoeira ‘promete espalhar mais sujeira do
que o normal’ diz ‘Economist’”, publicada no site http://www.bbc.co.uk, em 04.05.2012 e a matéria
“Deputados
deporão
hoje
na
Comissão
de
Sindicância”
publicada
no
site
http://www.revistaepoca.globo.com.br, em 05.06.2012. Acesso em: 08.06.2012.
105
Sobre o tema, revelam-se pertinentes as considerações feitas pelos Ministros Ricardo Lewandowski e
Ayres Britto, durante o julgamento do HC 95.244, no Supremo Tribunal Federal. Ao se manifestar, esse
último afirmou que: “(...) a cidadania, muitas vezes, não tem como colaborar com a investigação criminal
senão mediante denúncias apócrifas. Porque a cidadania teme represália, teme perseguição, teme reação.
Isso não significa, necessariamente, covardia, pusilanimidade, mau caráter (...). E quantos crimes não
foram desvendados nesse país a partir de uma notitia criminis anônima?”.
para denunciar o fato do que recorrer às autoridades públicas, eis que, em relação àquele
profissional, o representante poderá utilizar-se do anonimato e no que se refere às
autoridades, não. E o mais incongruente é que o ordenamento jurídico não proíbe que
uma investigação criminal seja iniciada com base em uma notícia jornalística, ainda que
seja resguardado, pelo jornalista, o anonimato da fonte.
É claro que não se pode ser indiferente ao risco de que alguém se utilize do
anonimato como uma máscara, com o intuito de não ser responsabilizado pelo
cometimento de eventuais calúnias e difamações, capazes de denegrir a imagem e a
honra de terceiros. Mas se for essa a intenção daquele que age com má-fé, é muito mais
provável que, para consumar o seu intento, ele procure um jornalista do que uma
autoridade pública.
Primeiro, porque a divulgação do fato recebe maior publicidade ao ser veiculada
pela imprensa do que quando encaminhada às autoridades. Uma vez transmitida pela
mídia, o número de pessoas que com ela entram em contato é indeterminável. No
âmbito dos órgãos investigativos, o dado é recebido por um número reduzido de
destinatários e deve ser mantido em sigilo, até que seja esclarecido minimamente.
Segundo, ainda que os jornalistas procurem verificar a veracidade dos fatos que
noticiam esses profissionais, eles não possuem o mesmo preparo técnico, tampouco
dispõem da mesma estrutura operacional presente nos departamentos policiais. Os
servidores públicos são capacitados para promoverem uma avaliação prévia de todas as
informações que lhes são trazidas, principalmente, quando anônimas, sem que haja uma
intervenção direta em desfavor do denunciado.
Admitir que o jornalista utilize uma fonte anônima diversamente das autoridades de
combate ao crime, é aceitar uma interpretação contraditória ao próprio sistema
constitucional, desconexa à realidade.
Ocorre que os significados dos dispositivos constitucionais devem ser extraídos de
modo a evitar contradições entre eles106. Significa dizer que, através do processo
hermenêutico, o intérprete deve encontrar soluções sistemáticas que equilibrem as
106
Para JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO (Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, cit., p.
98/99), quando o conteúdo do direito à liberdade de expressão não estiver definido, com clareza, pelo
Legislador Constituinte e não contiver limites lógicos expressos, deve o operador delimitá-lo através de
uma interpretação sistemática da Constituição, observando os demais direitos e liberdades fundamentais
que com ela tem que conviver.
tensões entre as várias normas previstas na Constituição sempre em prol da sua unidade
e da extração da sua força normativa107. Nas palavras de Eros Grau, “não se interpreta o
direito em tiras, aos pedaços”108.
Desta feita, a aplicação dos métodos interpretativos reforçou o entendimento de que
as representações criminais não podem ser incluídas no âmbito de proteção do direito à
livre manifestação de pensamento. A divulgação de fatos ilegais, de ordem objetiva,
perante autoridades públicas, bem como a exigência de providências, a fim de que se
promova a defesa de interesses individuais ou coletivos, relaciona-se muito mais com o
exercício dos direitos de informação e de petição do que com a liberdade comunicativa
disposta no artigo 5º, inciso IV, da Constituição, a qual não se confunde com o direito à
liberdade de expressão em sentido amplo. Tanto que, nas diversas Constituições pátrias,
tais direitos foram disciplinados em posições topologicamente diversas.
Mas, foi na Constituição de 1988 que essa distinção se mostrou ainda mais evidente,
na medida em que o Legislador Constituinte previu, claramente, o respeito ao sigilo de
fonte jornalística. Incluir a comunicação de fatos criminosos no âmbito normativo do
direito à livre manifestação do pensamento, sujeitando-os, por conseguinte, à restrição
ligada ao anonimato, ao tempo que a identidade do informante em relação a esses
mesmos fatos pode ser mantida em segredo, desde que noticiados a um jornalista, gera
uma disparidade desrazoável de tratamento e, mais, consequências graves práticas que
não podem ser desconsideradas pelo intérprete que busca equilibrar o texto
constitucional às vicissitudes sociais.
3. Da concorrência de direitos fundamentais
Por concorrência de direitos fundamentais entende-se o fenômeno em que uma
determinada situação ou comportamento pode ser simultaneamente subsumível ao
âmbito de proteção de duas ou mais normas de igual fundamentalidade, uma vez que
atendem, na integralidade ou por meio de alguns dos seus elementos essenciais, aos
107
Segundo J.J. GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, in op. cit. p.
1223/1226), o princípio da unidade da constituição visa nortear a sua interpretação de modo a evitar
contradições entre as suas normas. O princípio da força normativa da Constituição, por sua vez, pretende
extrair da norma constitucional significados que confiram primazia aos pontos de vista que possibilitem a
“atualização normativa”, de acordo com as circunstâncias históricas do momento.
108
Cf. EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito, cit., p. 88.
requisitos pertencentes a cada uma das previsões normativas109. O direito dos
trabalhadores organizarem uma manifestação sindical, por exemplo, pode receber
proteção jusfundamental proveniente do direito à liberdade de associação (artigo 5º,
inciso XVII), mas também do direito de reunião (artigo 5º, inciso XVI) e do direito à
livre manifestação do pensamento (artigo 5º, inciso IV).
Em principio, a concorrência entre normas jusfundamentais não apresenta
dificuldades nas hipóteses em que a intercomunicação dos direitos envolvidos produz as
mesmas consequências jurídicas, o que se verifica, segundo Jorge Reis Novais, quando
“há convergência nas possibilidades conferidas ao Estado de limitação de um ou de
outro direito fundamental110”.
Os embaraços surgem a partir do momento em que os direitos fundamentais
invocados se submetem a limites divergentes, recaindo ao intérprete a obrigação de
selecionar, dentre os direitos concorrentes, aquele que terá aplicação prevalecente, na
solução do caso concreto e, por via de consequência, a incumbência de decidir quais
serão as atuações restritivas possíveis de serem praticadas pelos poderes públicos.
O direito de comunicar o cometimento de um crime às autoridades públicas e de
exigir providências para a sua repressão possui respaldo constitucional conferido pelo
direito de petição (artigo 5º, XXXIV), mas também pelo direito de liberdade de
expressão. Contudo, os fundamentos a serem utilizados para a solução do problema
variam, a depender do enquadramento jurídico-constitucional conferido a esse último
direito. Por essa razão, a interpretação desenvolvida em torno do conteúdo dos direitos
à liberdade de expressão e à manifestação do pensamento
mostraram-se
imprescindíveis.
Se o entendimento for de que o direito à liberdade de expressão lato sensu está
previsto, de forma implícita, no direito geral à liberdade descrito no artigo 5º, caput, da
Constituição, e que o inciso IV desse mesmo artigo, trata, apenas, do direito à livre
manifestação do pensamento como uma das liberdades comunicativas que se encontram
109
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 379. Sobre o tema, ver, ainda, PAULO GUSTAVO GONET
BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES, Curso de Direito Constitucional, cit., p. 283/284 e J.
J.GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora,
Coimbra, 1991, p. 137/138)
110
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição, cit., p. 381.
disciplinadas no texto constitucional e que compõem o âmbito desse direito mais vasto,
o dilema em estudo será resolvido pela doutrina de maneira incontroversa.
Seguindo essa linha de entendimento, que perfilhamos, o ato de representar aos
órgãos públicos noticiando a ocorrência de crimes é protegido por dois direitos
fundamentais, quais sejam a liberdade de expressão (artigo 5º, caput), com conteúdo
normativo mais amplo, uma vez que, além desse comportamento, assegura outras
liberdades comunicativas, e o direito de petição (artigo 5º, XXXIV), de natureza
específica, na medida em que compreende características adicionais da conduta,
revelando elementos estruturantes mais próximos ao ato de representar, que lhe confere
uma especialidade intrínseca. Utilizando-se de uma metáfora geométrica, a figura
representativa seria composta por dois círculos concêntricos, em que o direito de petição
estaria posicionado em um círculo menor abarcado pelo círculo maior, relacionado ao
direito geral à liberdade de expressão111.
Ocorre que ambos os direitos fundamentais tutelam o comportamento de forma
convergente, eis que não apresentam reservas expressas, podendo ser aplicados
concomitantemente ou seguindo o parâmetro da especialidade, uma vez que,
independentemente do critério selecionado, o resultado final obtido será exatamente o
mesmo. Afinal, as previsões constitucionais subsumíveis ao caso não contêm limites, ao
menos a princípio, possibilitando que o Estado atue restritivamente em relação ao
direito à privacidade dos eventuais denunciados, recepcionando e utilizando as
representações criminais anônimas, desde que o faça de forma cautelosa e para fins de
investigações sumárias, como se verá no capítulo seguinte.
Em contrapartida quando o posicionamento adotado é no sentido de incluir o direito
à liberdade de expressão lato sensu no âmbito de proteção do artigo 5º, inciso IV,
verifica-se uma situação típica de concorrência de direitos fundamentais com limites
divergentes. Enquanto o direito de petição encontra-se consagrado, na Carta Magna,
sem reservas, o direito à livre manifestação do pensamento submete-se a uma restrição
imposta diretamente pelo texto constitucional, qual seja a vedação ao anonimato. A
questão que se levanta é saber se o direito de comunicar o cometimento de ilícitos
111
Cf. BLECKMANN/WIETHOFF, “Zur Grundrechtskonkurrenz, in DöV, 1991, 17, p. 723, apud
JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizados pela
Constituição, cit., p. 380.
penais poderá ou não ser exercido de forma anônima. E, a resposta a essa indagação
depende, essencialmente, da escolha do direito fundamental prevalecente.
A doutrina tem estabelecido alguns critérios para a seleção do direito que deve
preponderar nos casos que envolvam a concorrência de direitos com limites divergentes.
Em se tratando de concorrência inautêntica ou imparcial112 observada nos casos em
que um comportamento envolve, ao mesmo tempo, a disputa entre um dispositivo geral
e um dispositivo especial, a proteção a ser conferida deve ser amparada pelo direito
fundamental especial.
De outro lado, quando os enunciados fundamentais concorrentes possuam somente
natureza especial ou nos casos em que não haja entre eles qualquer relação de
especialidade, as posições doutrinárias são bastante divergentes. Nessas situações,
também chamadas de concorrência autêntica, o entendimento majoritário é de que
prevalece o direito fundamental que estiver suscetível a uma restrição menos incisiva,
intitulado de direito mais forte113.
Contudo, discordamos desse critério, na medida em que constrói uma
hierarquização abstrata dos direitos fundamentais, baseada na suposta força ou fraqueza
que as restrições lhes conferem, como se fosse possível analisá-los através de uma
concepção pré-fixada, desconexa às peculiaridades, as quais somente são visíveis a
partir dos casos concretos. Assim, a aplicação desse entendimento pode ocasionar
graves repercussões práticas, ao impedir que o Poder Público atue restritivamente em
situações justificáveis, que se evidenciem necessárias para a salvaguarda de outros
interesses igualmente merecedores de proteção estatal114.
112
Cf. J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1269.
Em que pese seja esse o critério mais sufragado pela doutrina, deve-se destacar, ainda, duas outras
correntes. Uma que defende a prevalência da incidência do direito fundamental suscetível de restrição
mais incisiva, em detrimento do direito mais forte, ou seja, menos limitável, bem como outra que sustenta
a aplicação cumulativa de ambas as normas concorrentes, a fim de exaurir toda a proteção jusfundamental
possível de ser delas retirada. Abordando mais detalhadamente o tema e apontando críticas, com as quais
concordamos, em face de ambas as concepções, JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos
Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 384/389.
114
Cf. JORGE REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição Federal, cit., p. 389/390. O autor apresentou um interessante exemplo, o qual é capaz
de demonstrar as incoerências práticas provenientes da utilização de critérios que promovam um
escalonamento abstrato entre os direitos concorrentes. Embora seja assente o entendimento de que o
direito de propriedade é passível de limites em nome do direito ao ambiente, à segurança e à saúde, se o
Estado limitasse uma construção com vista a resguardar os interesses referidos bastaria que o particular
invocasse o direito à criação artística do trabalho arquitetônico envolvido ou o direito à liberdade de
113
Pois bem. Retornando à problemática central, referente às representações criminais,
observa-se que ambos os direitos concorrentes – direito à livre manifestação do
pensamento e direito de petição - possuem uma relação de especialidade entre si.
O direito à livre manifestação do pensamento concebido como sinônimo do direito à
liberdade de expressão em sentido lato representa uma previsão normativa geral que
tutela diversas liberdades comunicativas, dentre as quais, o direito de petição, também
invocável para resguardar o comportamento em exame. Nessa medida, embora possua
uma relação com o direito à livre manifestação do pensamento, a notícia-crime
apresenta uma aproximação ainda mais específica com o conteúdo do direito de petição.
Por essas razões, a norma fundamental extraída do artigo 5º, inciso XXXIV, a qual é
consagrada sem reservas expressas, terá preferência de aplicação sobre a norma contida
no artigo 5º inciso IV, desse mesmo diploma. Não seria incorreto afirmar, portanto, que,
consoante esse posicionamento, o Estado não estaria, sumariamente, tolhido de se
utilizar das representações criminais anônimas que recebe, a fim de investigar e
combater os ilícitos noticiados.
Frise-se que ao se admitir que os poderes públicos recebam as delações anônimas de
natureza criminal não se está ignorando a possibilidade de cidadãos, detentores de máfé, utilizarem desse mecanismo de controle social para fins espúrios, com o objetivo de
caluniar terceiras pessoas. De igual forma, não se está desprezando os efeitos danosos
que tais comportamentos podem gerar à honra e à imagem das vítimas.
Embora se trate de uma hipótese plenamente possível e que deve ser objeto de uma
avalição criteriosa pelo intérprete, verifica-se que esse sopesamento deve ser feito
posteriormente, mediante as circunstâncias da situação concreta. Afinal, ao considerar
constitucional a utilização da representação criminal anônima não se está afirmando que
a sua admissão será feita de forma aleatória, desprovida de critérios objetivos, tampouco
que o seu emprego permitirá todo e qualquer tipo de violação aos direitos à intimidade.
Pelo
contrário.
Em
caso
de
colisão
entre
direitos
fundamentais
e
bens
crença, caso a obra tivesse destinação religiosa, para que o Poder Público ficasse impedido de intervir
restritivamente. Tratando-se de concorrência de direitos fundamentais e partindo-se da concepção
doutrinária aqui criticada, o comportamento individual de construir a edificação estaria protegido por
normas constitucionais não sujeitas a limites e, por essa razão, seriam merecedoras de aplicação
prevalecente frente às normas suscetíveis de restrições mais incisivas, independentemente das
peculiaridades do caso concreto, podendo conduzir, muitas vezes, a resultados irracionais e inoportunos.
constitucionalmente protegidos pelo ordenamento, deve-se ponderar os interesses em
jogo, a fim de selecionar o prevalecente, no caso específico.
Por hora, o que interessa saber é se as notícias criminais anônimas podem, em tese, ser
utilizadas pelo Estado. E, quanto a essa indagação, como expusemos acima, a resposta é
positiva. O que varia são os fundamentos aplicáveis na solução do problema, uma vez
que dependem da concepção dogmática adotada pelo intérprete em relação ao âmbito de
proteção do artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna e, por sua vez da modalidade de
concorrência de direitos fundamentais a ser avaliada.
CAPÍTULO IV
PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS PARA A UTILIZAÇÃO DAS
REPRESENTAÇÕES CRIMINAIS ANÔNIMAS PELOS ÓRGÃOS DE DEFESA
SOCIAL
1. A tensão existente entre o direito à privacidade do investigado e o interesse
da coletividade na apuração e na punição de delitos
Conforme exposto, o oferecimento de uma representação criminal perante as
autoridades públicas constitui um comportamento cuja proteção jusfundamental é
conferida, preferencialmente, pelo direito de petição. E, embora se trate de um direito
consagrado sem reservas expressas não se pode concluir, a partir disso, que toda e
qualquer delação anônima deve, sempre, ser recebida pelas autoridades públicas, uma
vez que a sua admissibilidade dependerá das circunstâncias do caso concreto. Qualquer
tentativa de solucionar o problema de forma categórica e abstrata pode provocar graves
desvantagens práticas e ensejar incoerências no sistema jurídico constitucional115.
Afinal, o uso das representações sem subscrições gera tensões entre interesses
antagônicos, de igual fundamentalidade, os quais não são absolutos. De um lado têm-se
os direitos fundamentais à honra, à imagem e à intimidade dos representados e, do
outro, a ordem e a segurança pública, ou seja, a necessidade da coletividade de ter
conhecimento dos crimes praticados na sociedade e de puni-los exemplarmente, bem
como os direitos dos demais membros da comunidade de comunicarem os fatos ilícitos
cometidos por terceiras pessoas, sem que as suas seguranças sejam comprometidas116.
115
Em que pese existam diversas formas de solucionar as controvérsias surgidas nos casos de colisões de
direitos fundamentais, a exemplo dos métodos da categorização, da hierarquização e da ponderação,
entendemos ser essa última a ferramenta metodológica mais adequada, a fim de esclarecer quais são os
interesses que devem prevalecer e quais os que devem ceder, pois confere maior transparência ao
processo de decisão, na medida em que o intérprete precisa descrever, através do uso de uma
fundamentação racional, todos as circunstâncias específicas do caso e indicar os passos por ele
percorridos para o deslinde da questão concreta.
116
A este respeito, o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece que: “A
liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique outro: assim, o exercício dos direitos naturais
de cada homem tem como única baliza a que assegura aos outros membros da sociedade o gozo dos
mesmos direitos. Essas balizas só podem ser determinadas pela Lei”. É claro que não constitui uma tarefa
Trata-se de conflitos em sentido amplo, representados por diferentes interesses de
liberdade, pertencentes a titulares igualmente distintos, em que colidem direitos
fundamentais e bens e valores de interesses coletivos117. Considerando que a
prevalência de um bem não pode ser fixada abstratamente, a questão é definir em que
medida a utilização de uma representação anônima pelos poderes públicos pode
restringir os direitos à intimidade, à honra e à imagem, previstos no artigo 5º, inciso X,
da Constituição.
Não se discute que o respeito ao direito à privacidade é uma necessidade elementar
do ser humano, essencial ao regular exercício dos direitos de personalidade, os quais
encontram amparo constitucional expresso118. Trata-se de direitos que buscam evitar a
exposição desnecessária de dados pessoais e de características particulares do indivíduo
aos demais membros da sociedade.
Em seu âmbito, podem ser incluídas inúmeras condutas que buscam resguardar a
honra, a imagem e a intimidade das pessoas.
As dificuldades surgem no momento de compatibilizar tais conteúdos, de natureza
particular, com os demais bens e valores coletivos, que possuem igual fundamentalidade
e são assegurados em prol do regular convívio social119. O que deve permanecer
fácil compatibilizar a convivência harmônica entre tais interesses, pois ao proteger a liberdade de alguns,
o Estado estará restringindo a liberdade de outros, afetados com a sua intervenção.
117
É válido frisar que não compartilhamos do posicionamento defendido por parte da doutrina, de que os
direitos fundamentais individuais não são passíveis de serem ponderados com bens e valores de interesse
coletivos. Perfilhamos do entendimento de que os direitos fundamentais gozam de uma prioridade apenas
prima facie e não incondicional em relação às necessidades da vida em comunidade e dos direitos
fundamentais dos outros e, por esse motivo, podem ser sopesados entre si.
118
A Constituição Federal protege os direitos à intimidade e à vida privada em diversos dispositivos. O
artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, dispõe que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação”. Merecem destaques, ainda, os incisos XI e XII, do artigo 5º, da Carta Magna, que
disciplinam as inviolabilidades domiciliar, bem como de dados, das comunicações telefônicas e
telegráficas, respectivamente.
119
O conflito entre o direito à vida privada e o interesse público foi objeto de interessante discussão no
bojo da Rcl 2.040/DF, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Min. Néri da Silveira. Em
síntese, uma cantora de nacionalidade mexicana encontrava-se recolhida na carceragem da polícia federal
brasileira, enquanto tramitava seu processo de extradição, oportunidade em que sustentou ter sido vítima
de estupro por parte de policiais, o que resultou na sua gravidez. Em virtude da repercussão do caso e do
comprometimento da imagem institucional da polícia federal, o Ministério Público Federal requereu a
realização de exame de DNA, mediante a coleta de material biológico da placenta, a fim de confirmar a
autoria do ilícito imputado. Ocorre que a extraditanda recusou-se a participar do exame, invocando em
seu benefício o artigo 5º, incisos X e XLIX da Constituição Federal. Na tutela dos seus interesses, ajuizou
Reclamação Constitucional com o propósito de impedir o recolhimento do material genético pleiteado.
Ao analisar o caso, a Corte entendeu que os direitos fundamentais à honra e à intimidade da extraditanda
não são absolutos e devem ser ponderados com outros bens jurídicos, de igual fundamentalidade, tais
como a “moralidade administrativa”, a “persecução penal pública”, a “segurança pública”, além da honra
reservado ao indivíduo e ao seu círculo pessoal e o que não pode ser furtado à
consideração do público?
A doutrina costuma responder a esses questionamentos, utilizando-se a denominada
“teoria das esferas da intimidade120”. Segundo esse entendimento, os direitos atinentes à
intimidade seriam divididos em três círculos concêntricos, compostos pelas esferas
íntima, privada e pública.
A depender do enquadramento da conduta praticada, seria ela passível de exposição
ou não. A esfera íntima corresponde às ações realizadas em um campo absolutamente
pessoal, inatingível pelos demais membros da comunidade. A esfera privada equivale a
condutas de natureza mais reservada, de acesso restrito a um grupo pré-selecionado de
pessoas. Por sua vez, a esfera pública envolveria os comportamentos passíveis de serem
conhecidos por todos os indivíduos, eis que contêm interesse geral.
Ocorre que esse enquadramento nem sempre é simples de ser concretizado, sendo
necessário sopesar argumentos e contra-argumentos que permitam compatibilizar, ao
final, a conduta analisada à esfera respectiva. Nesse processo, identificar se o
comportamento sobre o qual versa a controvérsia possui relação direta com o interesse
público121 pode ser de grande valia. Significa dizer que as informações dotadas de
evidente relevância social, que contribuam para a formação da opinião pública,
necessárias, por exemplo, à proteção da saúde pública, da transparência do processo
político de um país e da segurança pública122 devem, em regra e desde que
e da imagem dos policiais federais envolvidos. Após ponderar os interesses em jogo, o Supremo Tribunal
Federal autorizou a realização do exame de DNA.
120
Sobre o tema ver JOÃO BOSCO ARAÚJO FONTES JUNIOR, Liberdades Fundamentais e
Segurança Pública. Do Direito à Imagem ao Direito à Intimidade: A Garantia Constitucional do Efetivo
Estado de Inocência, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 122/123 e LUÍS ROBERTO BARROSO,
Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação.
Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa, cit., p. 65/80.
121
Nesse sentido, merece destaque a ressalva feita por PAULO GUSTAVO GONET
BRANCO/GILMAR FERREIRA MENDES (Curso de Direito Constitucional, cit., p. 321) ao
mencionarem que interesse público não é sinônimo de interesse do público. O primeiro envolve
informações de relevância pública, importantes para a formação do cidadão e, portanto, possuem uma
presunção relativa de prevalência em relação ao direito à vida privada. O segundo pode conter relação
com assuntos de relevância pública, como também pode não apresentar qualquer vinculação nesse
sentido, tratando-se de fatos que busquem, apenas, atender a mera curiosidade ociosa do público. Nesses
casos, o direito à liberdade de expressão não se encontra apto a prevalecer, prima facie, frente à garantia
da privacidade.
122
Concordamos com o autor LUÍS ROBERTO BARROSO (Colisão entre Liberdade de Expressão e
Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do
Código Civil e da Lei de Imprensa, cit., p. 65/75) quando defende que há indiscutível interesse público na
motivadamente, ser tipificadas como de interesse geral, ainda que em prejuízo da vida
íntima do particular123. Afinal, embora possam ter relação com a esfera privada,
extrapolam o seu âmbito, apresentando conteúdos de grande relevo na vida de todos
que, por essa razão, merecem, a princípio, ser divulgados.
Outro critério que pode auxiliar na identificação da conduta detentora de interesse
geral relaciona-se ao caráter público da pessoa envolvida. Existem indivíduos que
sofrem limitações mais significativas na sua esfera privada que outros, em razão da
profissão que desenvolvem ou da posição social que ocupam. É claro que o interesse
público existente em torno das ações desenvolvidas por agentes políticos é maior se
comparado a um cidadão comum. A necessidade de se controlar os atos praticados por
aqueles que exercem o poder é inerente ao regime democrático e legitima, a priori, um
abrandamento do direito à intimidade, desde que os fatos divulgados sejam afetos às
funções por eles desempenhadas124.
Assim, critérios como a relevância pública das informações e a qualidade das
pessoas nelas envolvidas, embora não possam ser recepcionados com absoluta rigidez,
servem de parâmetros capazes de orientar o intérprete no momento de avaliar a
possibilidade de fatores externos limitarem os direitos fundamentais relacionados à vida
privada, com o propósito de preservar bens jurídicos necessários à convivência social.
De outro lado, deve-se tomar cuidado para que conceitos, como o de ordem pública
ou de segurança pública, dotados de alta carga de indeterminação e vagueza, não sejam
utilizados aleatoriamente pelos poderes estatais, uma vez que podem ensejar resultados
imprevisíveis, capazes de justificar os mais variados pontos de vista. Os valores e os
bens que visam promover a adequada convivência da comunidade precisam, como
apontado por Jorge Reis Novais, ser compatibilizados com o Estado Democrático de
divulgação de fatos qualificados como crimes, os quais, por sua própria natureza, repercutem em toda a
sociedade.
123
Sobre o tema, é válido mencionar a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no
bojo da Ap. nº 3.059/91, em que considerou que uma matéria divulgada em revista de circulação nacional,
sob o título “Como os artistas se protegem da AIDS”, a qual elencava personalidades brasileiras
portadoras do vírus HIV, sem as suas permissões, não atendia ao interesse público, invadindo, de forma
indevida, a esfera privada desses profissionais e provocando graves danos à honra e ao decoro dos
mesmos.
124
Há alguns anos, foi veiculada, na imprensa, notícia de que um Ministro de Estado estaria passando
férias com sua família em uma ilha brasileira, mas que o seu deslocamento foi feito através de um jato da
Força Aérea Brasileira, as expensas do erário público, sendo inquestionável o interesse público da notícia,
apesar de tratar, aparentemente, de questão afeta à sua esfera privada. Para uma análise pormenorizada do
caso, ver a Rcl nº 2.138/DF, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, em 13/06/2007 e a matéria intitulada
“Nas asas da mordomia”, publicada no site www.istoe.com.br, em 19.05.1999. Acesso em 09.06.2012.
Direito125. A liberdade conferida aos poderes constituídos no exercício de suas funções
não é ilimitada.
É justamente para evitar o uso arbitrário do poder que se faz
indispensável um controle de constitucionalidade sobre as restrições que afetam os
direitos fundamentais, instituídas em nome do bem comum.
A escolha do interesse prevalecente será o resultado do sopesamento entre direitos
fundamentais e bens igualmente dignos de proteção que se contrapõem, no caso
concreto126. Mas, não se trata de uma ponderação meramente dicotômica entre
grandezas distintas, em que o intérprete escolhe se prefere privilegiar o direito à vida
privada do representado, o direito à integridade física e psíquica do informante ou à
ordem e à segurança pública. O emprego dessa metodologia deve envolver um processo
de comparação global entre possibilidades alternativas127 e não pode prescindir de
critérios racionais, devidamente organizados, que permitam o seu balizamento e
impeçam a prática de subjetivismos indesejáveis, em que definições legislativas e
governamentais sejam substituídas, aleatoriamente, por decisões judiciais. Nesse
sentido, princípios estruturantes como o da proporcionalidade e da dignidade da pessoa
125
Cf. JORGE REIS NOVAIS (As restrições dos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição Federal, cit., p. 481) a ordem pública deve ser concebida de acordo com uma sociedade
democrática. Para o autor: “(...) a dignidade da pessoa humana e as liberdades fundamentais são, elas
próprias e enquanto tais, elementos constitutivos da ordem pública que a atividade de polícia tem de
preservar”.
126
Em relação à necessidade de se avaliar a ocorrência de violações à honra e à intimidade de terceiros a
partir das circunstâncias do caso concreto, destaca-se o HC 72.062, relatado pelo Ministro Celso de
Mello, no Supremo Tribunal Federal. Em resumo, o caso referia-se a um abaixo-assinado subscrito por
trinta e cinco alunos de uma Universidade do Estado de São Paulo, dirigido ao Departamento Acadêmico,
requerendo a substituição do professor na disciplina de processo penal, noticiando que o comportamento,
em sala de aula, da docente, ora denunciada, não era condizente com o ambiente acadêmico, uma vez que
a mesma se utilizava de gestos e palavras extremamente constrangedoras e grosseiras. Irresignada com as
acusações, a representada formulou Queixa-Crime em desfavor dos ex-alunos, imputando-lhes a prática
de crimes contra a honra. A Queixa-Crime foi rejeitada em primeiro grau, sob o argumento de que os
alunos não agiram com a intenção de lesionar a honra da querelada, mas tão somente com o propósito de
comunicar fatos relacionados ao seu comportamento. Essa decisão foi revista em segundo grau, tendo
sido formulado Habeas Corpus para o trancamento da Ação Penal. No Supremo Tribunal Federal, o
Ministro Celso de Mello entendeu que o abaixo-assinado constituiu o livre exercício do direito de petição,
tendo a narrativa dos fatos sido objetiva e impessoal, não se vislumbrando dolo por parte dos seus
subscritores, para a prática de crimes contra a honra. Em seu voto, manifestou-se nos seguintes termos:
“A necessidade de narrar ou de criticar atua como fator de descaracterização do tipo subjetivo peculiar
aos crimes contra a honra, especialmente quando a manifestação considerada ofensiva decorre do regular
exercício, pelo agente, de um direito que lhe assiste (direito de petição) e de cuja prática não transparece o
pravus animus, que constitui elemento essencial à positivação dos delitos de calúnia, difamação e/ou
injúria”.
127
Concordamos com JORGE REIS NOVAIS (As restrições dos Direitos Fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição Federal, cit., p. 701), quando esclarece que a ponderação de
bens corresponde a uma valoração que ultrapassa a mera avaliação das vantagens e desvantagens entre os
bens em conflito, devendo-se considerar, além dessas considerações, as vantagens e as desvantagens
provenientes de uma proposta alternativa que não contivesse a restrição. A comparação entre essas
opções, vistas sob uma perspectiva global, entre todos os benefícios e sacrifícios marginais delas
decorrentes, é que seria objeto de ponderação pelo operador jurídico.
humana podem contribuir para a construção de uma fundamentação racional e
transparente a ser desenvolvida pelo Poder Judiciário.
2. Parâmetros objetivos para a ponderação de interesses na hipótese de colisão
A partir das premissas teóricas, sinteticamente, apresentadas no item anterior, é
necessário estabelecer parâmetros mais concretos para o deslinde do seguinte
questionamento: quando uma representação criminal anônima poderá ser utilizada pela
autoridade pública sem que constitua uma intervenção restritiva inconstitucional?
O desenvolvimento organizado da criminalidade inseriu nas sociedades modernas a
necessidade de criação de novos mecanismos de combate ao crime, a fim de proteger,
eficazmente, quem tem interesse em contribuir com a Justiça, mas não se sente seguro o
suficiente para fazê-lo, sem que a sua identidade seja mantida no anonimato.
Em contrapartida, ao aceitarem uma noticia criminal sem subscrição, as autoridades
públicas estarão restringindo o direito à privacidade do investigado, uma vez que será
mais difícil para ele ser indenizado, nos casos de danos à sua esfera privada. No entanto,
existem situações em que essa alternativa revela-se imprescindível ao interesse público,
contanto que o exercício do direito individual não seja integralmente inviabilizado128.
É claro que encontrar o ponto de equilíbrio não constitui tarefa fácil. Saber se essa
restrição é ou não inconstitucional dependerá, essencialmente, das circunstâncias do
caso concreto. Contudo, é possível mapear um caminho a ser percorrido pelo intérprete
diante de conflitos dessa natureza. Para tanto, o princípio da proporcionalidade constitui
uma ferramenta indispensável.
O primeiro questionamento que deve ser feito é saber se o meio é apto para
concretizar o fim por ele almejado e se essa finalidade possui amparo constitucional. A
princípio, a representação criminal anônima constitui um meio idôneo para que os
agentes públicos tenham conhecimento do cometimento de ilegalidades e possam coibir
128
A respeito do tema, ANTONIO SCARANCE FERNANDES (Processo Penal Constitucional, 3ª
edição, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2003, p. 83/84) entende que: “Não se pode, em nome da
segurança social, compreender uma garantia absoluta da privacidade, do sigilo, no processo penal, mas
também não se pode conceber, em homenagem ao princípio da verdade real, que a busca incontrolada e
desmedida da prova possa, sem motivos ponderáveis e sem observância de um critério de
proporcionalidade, ofender sem necessidade o investigado ou o acusado em seus direitos fundamentais”.
as suas práticas, promovendo a segurança do informante e da comunidade em geral.
Ademais, a segurança pública é um fim legítimo, que possui respaldo constitucional
expresso129.
Nessa conformidade, as delações anônimas não constituem meios evidentemente
inócuos, capazes de serem considerados, de plano, inconstitucionais. Ao contrário.
Esses institutos têm se mostrado, principalmente após as experiências vivenciadas com
os disque-denúncias130, úteis à persecução criminal e, por conseguinte, hábeis ao
combate ao crime.
O segundo ponto a ser enfrentado corresponde a identificar se há algum meio
disponível aos poderes públicos que seja igualmente eficaz à segurança pública, mas
menos gravoso à vida privada dos denunciados. Para tal mister, deve-se procurar obter
um leque amplo de alternativas que possam ser objeto de comparações com a medida
restritiva em exame. Senão vejamos.
A delação anônima é admitida com o escopo de facilitar a comunicação de
informações relevantes pelos cidadãos aos poderes públicos. Trata-se de um mecanismo
vantajoso ao Estado, pois tem produzido resultados significativos a um baixo custo,
bem como ao usuário do sistema que, ao não precisar se identificar, permanece em
segurança e, por isso, sente-se mais confortável em contribuir.
De outro lado, é gravoso ao representado que encontra maior dificuldade em
responsabilizar quem noticia informação inverídica, em seu desfavor. Frise-se, no
entanto, que essa dificuldade não elimina, totalmente, o exercício do seu direito à
indenização por danos provocados à sua esfera moral e material, uma vez que é possível
responsabilizar as autoridades públicas que ajam de forma negligente no manuseio da
informação anônima por elas recebida.
Por sua vez, a utilização de representações criminais anônimas não constitui o
único mecanismo no ordenamento jurídico brasileiro capaz de incentivar a população a
129
A segurança pública encontra-se prevista em duas oportunidades, na Constituição de 1988. No artigo
6º caput, ela é arrolada, expressamente, como um direito social fundamental. No artigo 144, caput, é
concebida como: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida
para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (...)”. Não se pode
esquecer, ainda, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos também prevê que os direitos
fundamentais podem ser limitados em respeito aos direitos e às liberdades dos outros e em prol da ordem
pública, nos termos do seu artigo 29, nº 2.
130
Vide capítulo IV, item 3.
contribuir com a segurança pública. Existem outros meios, como a inclusão do delator
em programas de proteção a testemunhas, os quais, por não precisarem se utilizar do
anonimato, facilitam a responsabilização daqueles que, no exercício abusivo do direito à
liberdade de expressão, causem danos ao patrimônio pessoal de terceiros.
A questão é saber se, embora apresentem um grau de restrição menor ao direito à
privacidade do particular, são esses meios igualmente eficazes ao atingimento do fim ou
se produzem externalidades negativas significativas a outros direitos e bens
constitucionais131, que impedem a exclusão, de plano, da delação anônima como
mecanismo necessário para o resguardo da segurança pública.
Em relação ao programa de proteção a testemunhas, embora seja um mecanismo
essencial ao combate ao crime, não se pode deixar de considerar que, sob a perspectiva
do informante, trata-se de um programa extremamente penoso, uma vez que sua
identidade é revelada no processo132, o que pode comprometer a sua segurança, razão
pela qual são exigidas modificações significativas em seu modo de vida, para fins de
garantir a sua integridade, tais como escolta policial permanente, alteração do domicílio
e da profissão e, em alguns casos, da sua própria identificação civil. Sem dúvida, tais
dificuldades repercutem negativamente, na medida em que reduz o número de adesões,
prejudicando o seu grau de eficiência. Ademais, o custo de manutenção desse meio é
muito mais alto para o Estado.
Assim, através de uma avalição tendencialmente objetiva, não se faz possível
excluir a utilização das denúncias anônimas por parte das autoridades públicas,
substituindo-o por outro meio, igualmente idôneo e eficaz, mas menos agressivo.
A pergunta seguinte é saber se os benefícios concretos obtidos com a recepção da
delação anônima justificam os sacrifícios reais impostos ao afetado com a intervenção
estatal. E nesse processo de avaliação é fundamental considerar a justificativa que
motivou o Poder Público, naquela situação específica, a realizar a intervenção restritiva,
bem como as alegações suscitadas pelo particular acerca da desproporcionalidade da
131
Cf. JÓNATAS E. M. MACHADO, Liberdade de Expressão. Dimensões constitucionais da esfera
pública no sistema social, cit., p. 736.
132
Em Portugal, a Lei nº 93/99 que disciplinou a proteção de testemunhas em processos criminais permite
a não revelação da identidade da testemunha ou a ocultação da mesma, com a possibilidade de distorção
da sua voz e/ou imagem. No sistema brasileiro, não há dispositivo semelhante na Lei nº 9.807/99, que
disciplina o tema. De igual forma, o Código de Processo Penal é silente sobre a questão. Por essa razão,
há, no ordenamento pátrio, a necessidade de se disponibilizar as informações pessoais da testemunha
beneficiária do programa para todas as partes que participam do processo.
medida. No fundo, uma conclusão é certa: nem toda representação anônima será
empregada pelos órgãos de Defesa Social, tampouco deflagrará, necessariamente, uma
persecução criminal.
Para tomar uma decisão, principalmente nos casos em que a representação criminal
anônima não esteja expressamente disciplinada nos expedientes normativos
infraconstitucionais133, deve a autoridade proceder com cautela, promovendo diligências
mínimas que permitam uma projeção, ainda que sumária, sobre as vantagens a serem
obtidas com a utilização desse mecanismo e se esses possíveis benefícios superam as
prováveis desvantagens provocadas na esfera privada de terceiros. São justamente os
argumentos e contra-argumentos desse processo dialético que serão sopesados, pelo
Poder Judiciário, caso a medida restritiva seja impugnada.
Ao receber uma delação dessa natureza compete ao agente público verificar o seu
conteúdo mediante a utilização de recursos ordinários de investigação que não violem,
de forma intolerável, as liberdades públicas instituídas constitucionalmente134. Para tal
133
Vide capítulo IV, item 3.
Nos Estados Unidos, essa questão tem sido objeto de discussão na doutrina e na jurisprudência,
principalmente nos casos que têm como objeto principal a análise de constitucionalidade das abordagens
policiais frente à Quarta Emenda da Constituição americana. Segundo Michele McKay McCoy
(Anonymous Tips, Reasonable Suspicion and Dui Stops), para que as delações anônimas sejam admitidas
e possam, temporariamente, deter um suspeito devem ser analisadas as especificidades do caso concreto.
Para gerarem um grau de suspeita razoável aos agentes públicos, a notícia de natureza criminal anônima
deve conter detalhes suficientes sobre o denunciado e sobre o local em que se encontra, deve ser
contemporânea aos fatos narrados e as suas circunstâncias devem ser checadas, minimamente, pela
autoridade policial, a fim de demonstrar a sua verossimilhança. Disponível: http:
//www.tdcorg.com/dowload/AnonymousTipsReasonableSuspicionPart2.pdf. Acesso em 01.05.2012.
A Suprema Corte da Califórnia já foi acionada para tratar do tema no caso People v. Dolly 40 Cal. 4th
458 (2007). Em resumo, o serviço 911 havia recebido duas ligações em que o mesmo denunciante narrava
ter sido vítima de ameaça, através do emprego de arma de fogo. Na primeira ligação, o denunciante
manteve-se anônimo e, na segunda oportunidade, identificou-se, apenas, como “Drew”. Contatada, a
polícia se dirigiu ao local indicado na denúncia e encontrou um indivíduo detentor das características
descritas na denúncia. Por essas razões, o suspeito foi abordado e, no interior do seu veículo, foi
encontrada uma arma ilegal. Ao decidir, a Suprema Corte da Califórnia posicionou-se pela
admissibilidade da denúncia anônima, uma vez que continha informações graves, descritas de forma
minuciosa, comprometedoras da segurança pública e, portanto, capazes de gerar, à polícia, suspeitas
razoáveis sobre o comportamento ilícito do cidadão, sendo constitucional a abordagem policial realizada.
Disponível em http://www.FDAP.org/dowload/articles_and_outlines/anonymous-tips.pdf. Acesso em
01.05.2012.
A Corte de Apelação da Califórnia, no caso United States v. Palos-Marquez 591.272 (2010), também
posicionou-se favoravelmente à utilização da denúncia anônima, entendendo não haver contaminação nas
provas produzidas posteriormente e que dela derivaram. Em resumo, a polícia rodoviária do estado da
Califórnia recebeu uma ligação anônima de que um veículo trafegava em uma estrada, na divisa com o
México, promovendo o tráfico ilegal de pessoas. Na ligação, o denunciante informou, em detalhe, as
características do veículo. Acionada, a polícia determinou que houvesse patrulhamento na área. Ao
localizarem o veículo, os policiais observaram que o motorista aparentava estar nervoso, além de estar
conduzindo em alta velocidade. Por essas razões, os policiais decidiram abordar o automóvel e
encontraram, em seu interior, imigrantes ilegais, sendo confirmada a denúncia anônima recebida. O caso
134
mister, a autoridade deve adotar providências que lhe permitam constatar se a notícia
sem subscrição encaminhada é verossímil e imprescindível. Por sua vez, ao Judiciário,
poder responsável pelo controle do ato administrativo, cabe o papel de avaliar se esses
requisitos foram, de fato, observados pelos poderes públicos e se justificam os danos
eventualmente provocados na esfera privada do denunciado135.
A verossimilhança busca demonstrar a plausibilidade do conteúdo informativo da
representação, com o propósito de saber se o Estado, ao investigar o particular com base
em uma delação anônima, não está interferindo nos seus direitos fundamentais com
escassa probabilidade de atingir resultados exitosos à segurança pública. Para tanto,
devem ser observados:
 O nível de detalhamento da informação, a qual deverá indicar os fatos criminais
a serem investigados, os locais dos seus cometimentos, bem como a qualificação
mínima do infrator, a fim de possibilitar a sua identificação;
 A forma com que os dados foram obtidos pelo informante, ou seja, se a
informação foi angariada pelo próprio delator ou mediante comentários de
terceiros; se o representante possui ou não condições próprias de conseguir os
chegou até a Corte Californiana que entendeu que existia suspeita razoável capaz de permitir a abordagem
policial, a qual foi gerada, inicialmente, pela denúncia anônima, mas, posteriormente, confirmada através
de diligências realizadas pelos próprios agentes rodoviários. Além disso, o fato do motorista encontrar-se
em alta velocidade, adotar um comportamento suspeito e percorrer uma rodovia com alto índice de tráfico
ilegal de pessoas serviu de subsídio para a plausibilidade da denúncia anônima, fazendo com que a
intervenção policial não violasse a Quarta Emenda da Constituição Americana. Disponível:
http://www.sdsheriff.net/legalupdates/docs/0610.pdf. Acesso em 01.05.2012.
A mesma Corte de Justiça deparou-se com a questão afeta à delação anônima no precedente Richard G.
173 Cal. App 4 1252 (2009) (Second District, Division six). A polícia da Califórnia recebeu uma
representação anônima, durante a madrugada, noticiando que dois homens estavam causando perturbação
à ordem pública, provavelmente na posse de armas de fogo, nas proximidades de uma residência que já
havia sido alvo de intervenção policial, dias antes, envolvendo a participação de gangues, oportunidade
em que duas armas foram apreendidas. Ao se dirigir ao local, a polícia encontrou, nas imediações da
residência, duas pessoas com as características indicadas na denúncia, sendo que um deles, menor de
idade, reagiu à atuação policial. Após realizarem busca pessoal, os policiais encontraram armas. No
entanto, o menor questionou a constitucionalidade da abordagem policial tendo o caso chegado até o
Tribunal de Apelação da Califórnia que decidiu que a detalhada denuncia anônima, acrescida da reação
do menor e da recém intervenção policial, no mesmo local, pelos mesmos fatos criminosos é suficiente
para gerar uma suspeita razoável aos agentes e, por conseguinte, a sua abordagem, a qual não violou a
Quarta Emenda Americana.Disponível:http://www.FDAP.org/dowload/articles_and_outlines/anonymoustips.pdf. Acesso em 01.05.2012.
135
Nesse sentido concordamos com HUMBERTO ÁVILA (Teoria dos Princípios, da definição à
aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 174) quando o autor afirma que: “incumbe ao Poder Judiciário
´avaliar a avaliação` feita pelo Poder Legislativo (ou pelo Poder Executivo), relativamente a premissa
escolhida, justamente porque o Poder Legislativo só irá realizar ao máximo o princípio democrático se
escolher a premissa concreta que melhor promova a finalidade pública que motivou sua ação ou se tiver
uma razão justificadora para ter se afastado da escolha da melhor premissa”.
dados noticiados, em razão de manter relações pessoais, empregatícias ou de
outra natureza com o representado e se foram empregados métodos lícitos ou a
produção da informação é proveniente do uso de meios ilícitos;
 As causas que motivaram o delator a procurar as autoridades públicas e a
contribuir com a segurança pública.
Assim, a depender da qualidade das informações contidas na representação, a
autoridade pública terá condições de, com a realização de diligências investigatórias
prévias, apreciar o potencial de verossimilhança do seu conteúdo. Pensemos no seguinte
caso: Uma circunscrição da polícia civil recebe uma carta anônima noticiando que um
indivíduo, devidamente identificado, encontra-se praticando crime de tráfico de drogas
na porta de uma escola municipal e que o responsável pela denúncia presenciou,
pessoalmente e em diversas oportunidades, o cometimento de tais fatos, em razão de
trabalhar no referido estabelecimento de ensino. No documento, o informante aduz,
ainda, que não tem interesse em se identificar por medo de sofrer retaliações, embora
pretenda que os policiais adotem providências com o propósito de reprimirem o
cometimento da ilegalidade relatada. Não se pode olvidar que se trata de uma denúncia
grave e que compete às autoridades de combate ao crime o dever de promoverem a sua
averiguação. No entanto, antes de realizar qualquer diligência que atinja frontalmente as
liberdades constitucionais do suposto infrator, cabem aos agentes públicos aferir o grau
de probabilidade acerca da veracidade dos fatos noticiados. Uma consulta no sistema
integrado de informações da Secretaria de Segurança Pública pode, por exemplo,
demonstrar se o cidadão denunciado é primário ou reincidente, se possui antecedentes
criminais, se é morador das imediações da escola municipal mencionada, se possui
trabalho fixo, dentre outros dados relevantes. Com um mero exame e sem provocar
danos diretos na sua esfera privada, a autoridade policial consegue descobrir se o
denunciado é fugitivo da Justiça, se já cumpriu pena no sistema prisional ou, então, se é
pessoa falecida ou residente e trabalhador em outro estado de federação. Enfim, a partir
do resultado obtido com esse breve levantamento a polícia tem condições de formular
um juízo, mesmo que prévio, acerca da representação recebida. A intervenção estatal
dependerá, portanto, do grau de suspeita razoável produzido com o cotejamento dos
elementos trazidos no bojo da delação.
Em sendo verossímil, o agente público deve, ainda, examinar se a recepção da
denúncia anônima, com todos os ônus dela decorrentes, é, realmente, necessária para a
obtenção da informação criminosa. Com esse propósito, é válido averiguar:
 Se existem outros elementos de prova que já tenham chegado ao conhecimento
dos agentes públicos narrando os mesmos fatos, mas que não se utilizem do
anonimato, os quais devem ser priorizados;
 Em caso de inexistência de outras provas é importante observar se existem
razões que realmente justifiquem o anonimato, comum, por exemplo, nos casos
em que se faz necessário resguardar a segurança de quem formula a notícia
criminal. Nessas situações, deve-se considerar a gravidade dos delitos narrados;
a qualidade pessoal do denunciado, ou seja, se é detentor de poderio politico,
econômico ou se compõe organizações criminosas; a existência de casos
anteriores em que testemunhas e demais colaboradores tenham sido ameaçados
ou mortos em processos envolvendo os mesmos representados. Tudo com o
propósito de verificar o risco potencial a que o delator poderá ser exposto, caso
se identifique;
 É importante observar, ainda, se foram disponibilizados ao representante meios
alternativos, não recobertos pelo anonimato, para a obtenção da informação
pretendida, tais como a sua inserção no programa de proteção a testemunhas.
Somente a partir dessas avaliações prévias é que a autoridade pública decidirá pelo
recebimento das representações criminais anônimas. E, ainda que a opção escolhida seja
pela sua admissão, deve-se, no passo seguinte avaliar em que medida a delação será
empregada e qual a intensidade da interferência a ser provocada na esfera privada do
denunciado por meio do instrumento apócrifo, isoladamente considerado. Todas essas
ilações feitas, inicialmente, pela autoridade receptora da notícia sem subscrição, se
mostram essenciais para que, depois, o Poder Judiciário possa avaliar a
proporcionalidade da medida restritiva em exame.
Afinal, com base na denúncia anônima recebida, o agente poderá adotar uma postura
mais intervencionista, deflagrando, de imediato, uma investigação criminal em desfavor
do representado ou, até mesmo, formular requerimentos judiciais restritivos de garantias
constitucionais, tais como busca e apreensão domiciliar, interceptação telefônica e
prisão cautelar.
De outro lado, a autoridade pode posicionar-se de forma mais cautelosa, utilizando a
delação anônima não como uma prova em si136, mas apenas como um norte informativo
no sentido de direcionar os esforços estatais para a obtenção, com prudência e
discrição137, de um corpo probatório robusto e independente da notícia criminal sem
subscrição, suficiente para coibir as ilegalidades praticadas.
Entendemos que o manuseio das informações recebidas, anonimamente, deve ser
efetuado com o máximo de cuidado pelos poderes públicos. Não se discute que compete
aos órgãos de investigação criminal apurar as notícias que chegam até o seu
conhecimento, para que a intervenção estatal não seja desenvolvida de forma
negligente, deixando de investigar fatos que são, ao menos em princípio, de relevância
social. Entretanto, ao mesmo tempo em que desempenham esse múnus, os agentes não
podem invadir a esfera privada do particular de forma demasiada e desproporcional,
sem que haja indícios razoáveis acerca da plausibilidade da notícia crime.
A partir dessas inferências, pode-se formular a seguinte máxima: quanto maior for a
restrição a ser feita na esfera privada do indivíduo, maior deve ser a certeza do agente
público quanto à veracidade das informações contidas na representação.
O comportamento negligente por parte do servidor público frente aos direitos
fundamentais da parte adversa pode, inclusive, ensejar a sua responsabilização, bem
como a do órgão no qual está lotado138.
Em breve síntese:
136
O autor JOSÉ MANUEL DE ARRUDA ALVIM (Manual de Direito Processual Civil, 9ª edição, Ed.
RT, São Paulo, 2005, p. 380/382) conceitua prova como meio idôneo capaz de demonstrar a verdade de
determinados fatos, os quais chegaram ao conhecimento do juiz, em decorrência da atividade
desenvolvida principalmente pelos litigantes.
137
Cf. JOSÉ FREDERICO MARQUES, Elementos de Direito Processual Penal, cit., p. 140/151. Nesse
mesmo sentido, JULO FABBRINI MIRABETE, Processo Penal, cit., p. 87 e ROGÉRIO LAURIA
TUCCI, Persecução penal, prisão e liberdade, Ed. Saraiva, São Paulo, 1980, p. 34/36.
138
Nesse sentido, destaca-se o voto proferido pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson
Jobim, nos autos do acórdão MS 24.405. Não se pode olvidar, ainda, que, assim como ocorre com os
servidores públicos de combate ao crime, as condutas dos jornalistas, para quem o sigilo de fonte é
previsto expressamente no texto constitucional, não estão isentas de responsabilização. Em relação a esses
profissionais, é pacífico o entendimento de que são civilmente responsáveis pelos danos provocados no
exercício de suas atividades laborativas. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, formulou a Súmula
221, que estabelece que: “são civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de
publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”.
 A utilização da delação anônima pelos órgãos de Defesa Social nem sempre
constitui uma intervenção inconstitucional e, por esse motivo, não gera, de per
si, a nulidade das provas dela decorrentes;
 Em regra, ao receberem uma representação apócrifa, as autoridades públicas
devem apurar a sua plausibilidade, através de um procedimento informal, de
cognição sumária, angariando elementos de convicção não revestidos pelo
anonimato, capazes de embasar a formalização de uma investigação criminal;
 O emprego da notícia-crime sem subscrição, isoladamente considerada, somente
pode ensejar a deflagração de uma persecução penal ou subsidiar a formulação
de requerimentos cautelares que se contraponham às liberdades asseguradas pela
Constituição
com
a
chancela
de
inviolabilidade,
em
situações
excepcionalíssimas, de extrema gravidade e urgência, competindo aos poderes
públicos o ônus de comprovar a ocorrência de tais hipóteses;
 Nos casos em que a intervenção estatal seja impugnada, deve o Poder Judiciário
verificar se, ao decidirem fazer uso de uma denúncia anônima, os agentes
públicos atenderam, minimamente, os critérios objetivos necessários para o seu
recebimento,
tais
como
a
verossimilhança
do
seu
conteúdo
e
a
imprescindibilidade do seu emprego. De igual forma, o poder de controle deve
averiguar se os órgãos de Defesa Social agiram, com zelo, ao interferirem na
vida privada do denunciado, ou se eventuais intervenções restritivas nulificaram
por completo o exercício do direito fundamental à intimidade por seu titular,
transformando-o em mero objeto139 de investigação criminal, o que constitui um
comportamento inaceitável à luz dos princípios estruturantes de qualquer Estado
de Direito, como a dignidade da pessoa humana140.
Tais considerações, portanto, são de extrema valia para que o julgador decida se, no
caso concreto, o sacrifício imposto ao particular com a intervenção restritiva é
139
Cf. INGO WOLFGANG SARLET, “Notas sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal” in Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica,
Daniel Sarmento e Ingo Wolfgang Sarlet (coord.) Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2011, p. 64/65.
140
Concordamos com o posicionamento defendido, de forma pioneira, por JORGE REIS NOVAIS (As
Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, op. cit., p. 766)
ao incluir, no âmbito do princípio da proibição do excesso, o critério da razoabilidade, o qual fulcra a
verificação do excesso sob a ótica da gravidade que a restrição provoca na esfera do afetado, não podendo
ser imposta ao titular do direito uma restrição que retire proteções mínimas da sua liberdade e da sua
autonomia individual, consideradas imprescindíveis em qualquer Estado de Direito.
demasiadamente desrazoável frente às razões que justificam a utilização da delação
anônima ou, então, se o seu uso encontra fundamento na situação específica, a ponto de
fazer prevalecer o interesse coletivo em desfavor do direito individual. Afinal, não
existem direitos absolutos, sendo necessária uma convivência harmônica entre todos os
valores e direitos previstos na Carta Magna, o que somente se faz possível a partir de
uma atividade hermenêutica fulcrada em regras transparentes de argumentação, mas
também preocupada em conciliar norma e realidade, texto e contexto, sempre em prol
da preservação do texto constitucional às vicissitudes sociais. Como bem ponderado por
José Melo Alexandrino, “os direitos não se resumem a si próprios, já que nasceram em
contexto, vivem em contexto e se projectam em contexto”141.
O passo seguinte busca analisar como as representações criminais anônimas têm
sido tratadas pelo ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro e pelos Tribunais
Superiores.
3. As notitia criminis no ordenamento jurídico infraconstitucional
Como visto, há uma lacuna na Constituição a respeito da admissibilidade das
delações anônimas de caráter criminal no sistema jurídico vigente, sendo que o único
dispositivo constitucional que menciona o anonimato é ambíguo, pois contém termos
dotados de vagueza semântica que não definem, com precisão, as situações capazes de
serem consideradas como livres manifestações do pensamento.
É claro que contribuem para essa omissão as múltiplas derivações dos direitos de
petição, de informação e de livre manifestação do pensamento, as quais são impossíveis
de serem integralmente previstas pelo Legislador Constituinte, de forma abstrata, em
face das suas inúmeras peculiaridades e complexidades, muitas vezes, visíveis apenas
no transcurso da vida prática.
De outro lado, a ausência de previsão expressa na Carta Magna a respeito das notitia
criminis anônimas não constitui, evidentemente, a única lacuna constitucional. Ainda no
141
Cf. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A Estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e
Garantias na Constituição Portuguesa, cit., p. 480.
campo criminal, observam-se inúmeras “situações constitucionalmente relevantes não
previstas142”.
Como exemplo, cite-se a discussão até recentemente enfrentada em torno da
possibilidade de interceptação dos dados de sistemas de informática e de telemática,
para fins penais. O artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal, disciplinou a
inviolabilidade do sigilo de correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e
das comunicações telefônicas, sendo que em relação a essas últimas, o Legislador
Constituinte admitiu a quebra dos seus sigilos, desde que por ordem judicial e para fins
de investigações e de processos de natureza penal.
Como se observa, o sigilo dos dados de sistemas de informática e de telemática não
chegou a ser regulamentado pela Assembleia Constituinte. Ocorre que, em plena era da
informática, caracterizada principalmente pelo advento da internet, frise-se, pouco
desenvolvida em 1988, o tema acabou sendo objeto de intensos debates na comunidade
acadêmica.
O transcurso do tempo produziu impactos nas comunicações sociais, principalmente
em decorrência das evoluções tecnológicas apresentadas na virada do século XXI. As
comunicações passaram a ser desenvolvidas cada vez mais através dos meios
eletrônicos do que por intermédio das comunicações telegráficas, por exemplo. E, diante
dessa realidade, começou-se a questionar, inevitavelmente, se os e-mails, tal como as
conversas telefônicas, também poderiam ser interceptados pelas autoridades públicas de
combate ao crime.
Sobre o tema, a doutrina dividiu-se, essencialmente, em dois grupos. Uma corrente
contrária à interceptação de dados dessa natureza, por ausência de previsão
constitucional143 e outro favorável, sob a alegação de que a hermenêutica constitucional
deve acompanhar as evoluções da humanidade, inclusive tecnológicas, sendo possível
suprir, com a utilização de valores substantivos e com recurso ao princípio da
proporcionalidade, as omissões, as ambiguidades e as incoerências do sistema. Nessa
conformidade, posicionavam-se favoravelmente à interceptação desses dados, desde que
para atender finalidade criminal e mediante autorização judicial.
142
Cf. JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p.
457.
143
Cf. VICENTE GRECO FILHO, Interceptação Telefônica, Ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 10/19.
Essas divergências persistiram até que o Legislador infraconstitucional enfrentou a
problemática e, sanou a lacuna existente no ordenamento, através da edição da Lei nº
9.296/96, a qual admitiu a interceptação de comunicações dessa natureza, mediante o
cumprimento de condições específicas, previstas no mesmo expediente normativo.
Ressalta-se que essa lei não foi declarada inconstitucional, encontrando-se em plena
vigência.
Contudo, diferentemente das interceptações de comunicações em sistema de
informática ou telemática, as notícias-crime anônimas não foram regulamentadas,
através de leis, pelo legislador infraconstitucional144.
Apesar das leis ordinárias tratarem do tema de forma vaga, na medida em que não
admitem expressamente o uso das delações criminais anônimas, mas também não a
proíbem145, não se pode deixar de mencionar expedientes normativos, os quais, ainda
que não provenientes do Poder Legislativo, disciplinam a questão de forma mais
pormenorizada. É através do cotejamento dos seus conteúdos, aliás, que se conclui que a
utilização das representações anônimas constitui um mecanismo idôneo para a
comunicação de crimes perante as autoridades.
A recepção das delações anônimas foi introduzida no ordenamento através dos
diversos “disque-denúncias146” instalados no país, os quais foram criados pelo Governo,
144
O Decreto-Lei nº 3.689/1941 que instituiu o Código de Processo Penal, embora tenha previsto a
possibilidade de qualquer pessoa comunicar fatos criminosos às autoridades públicas, não disciplinou se
essas notícias poderiam ou não ser concretizadas anonimamente. O seu artigo 5º, § 3º, estabelece, apenas,
que: “Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação
pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunica-la à autoridade policial e, esta, verificada a
procedência das informações, mandará instaurar inquérito”. De igual forma, a Lei nº 9.051/95 que
regulamentou o direito de petição, no País, não faz qualquer menção em relação ao anonimato.
145
Na Constituição da Itália, não se observa qualquer menção ao anonimato. Contudo, diversamente do
Brasil, o Código de Processo Penal italiano contém dispositivos expressos tratando da matéria,
prescrevendo que as denúncias criminais anônimas somente serão admitidas no ordenamento quando
contiverem informações que constituam o próprio corpo de delito ou quando provierem do próprio
investigado. O seu artigo 240, giza que: “Documenti anonimi – 1. I documenti che contengono
dichiarazioni anonime non possono essere acquisiti né in alcun modo utilizzati salvo che constituiscano
corpo del reato o provengano comunque dall´imputado”. A doutrina italiana, de outro lado, tem
considerado possível, apesar do dispositivo legal referido, o uso da denúncia anônima ainda que não para
as finalidades especificadas no dispositivo legal, desde que utilizada como um norte capaz de direcionar
as autoridades públicas de combate ao crime. Somente após a confirmação da plausibilidade do seu
conteúdo é que os agentes poderiam instaurar os procedimentos investigatórios pertinentes, contanto que
as provas relacionadas ao ilícito possam ser obtidas por outros meios que não a denúncia anônima. Nesse
sentido, PAOLO TONINI, A prova no processo penal italiano, Trad. Daniela Mróz e Alexandra Martins,
Ed. RT, São Paulo, 2002, p. 70/85.
146
O primeiro disque-denúncia, no Brasil, foi criado em 1995, no Rio de Janeiro, inspirado no sistema
americano denominado Crime Stoppers. Trata-se de um serviço de atendimento telefônico
disponibilizado ao cidadão, para que esse ajude no combate ao crime, denunciando a prática de delitos de
através de expedientes normativos administrativos. Por meio desse mecanismo de
denúncia, qualquer pessoa, sem precisar se identificar, contata com os órgãos públicos,
a fim de relatar o cometimento de delitos. Por sua vez, ao tomarem conhecimento da
prática de delitos, as autoridades competentes adotam as providências necessárias para
investigá-los147.
Ressalta-se que desde as suas criações, a constitucionalidade desses mecanismos
não foi questionada nos Tribunais Superiores148 e têm se proliferado por todos os entes
da federação. E isto porque os resultados obtidos com as suas implantações têm se
mostrado exitosos. Como modelo, destaca-se o “disque-denúncia” implantado pela
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, instituído para auxiliar no combate aos
crimes de abuso e exploração sexual praticados contra crianças e adolescentes. De 2003,
ano de sua criação, até 2011, o número de municípios contemplados pelo sistema
passou de 892 para 4.994. Os atendimentos também cresceram, vertiginosamente. Em
2003, foram constatados 4.499 atendimentos. Em 2011, o número saltou para 380.619.
Durante os oito anos em que o serviço foi disponibilizado à população foram
registrados, formalmente, 195.932 denúncias149.
que tem conhecimento, sem que precise se identificar. Atualmente, existem inúmeros disques-denúncias
implantados no país, com o objetivo de facilitar o combate aos crimes de abuso e exploração sexual
contra crianças e adolescentes, à violência contra a mulher, ao tráfico de pessoas e ao tráfico de drogas,
dentre outros. Disponível em http://www.pt.wikipedia.org/wiki/disque_denuncia. Acesso em 02.03.2012.
147
Nos Estados Unidos, não há previsão constitucional ou infraconstitucional expressa sobre as delações
criminais anônimas. Contudo, a comunicação de crimes sem subscrição constitui uma prática bastante
comum e plenamente difundida no ordenamento jurídico americano. Como exemplo, cite-se o site do
Departamento de Polícia do Estado de Nova York. No formulário específico para o recebimento de
denúncias de crimes, existe advertência explícita para que o representante não apresente a sua
identificação, bem como não salve o formulário no seu computador ou o imprima, por razões de
segurança. Caso o delator pretenda se identificar, deve se dirigir para outro ícone do site, local em que
poderá, apenas, indicar um email para ser contatado, posteriormente, pelas autoridades, mas ainda assim,
sem que haja a descrição dos seus dados pessoais. Disponível em http://www.nyc.gov/nypd. Acesso em
20.06.2012.
148
Ao se efetuar uma pesquisa de jurisprudência nos Tribunais Superiores, não se encontrou ações que
questionassem a constitucionalidade dos “disque-denúncias” existentes em todo o país. É válido
mencionar que, embora não se tratasse do mérito da ação, o emprego desses mecanismos de combate ao
crime foi abordado, no bojo do HC/MC/RO 100.042, julgado em 08/10/2009, tendo o Ministro Celso de
Mello afirmado que o artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal tem que ser interpretado de forma a
possibilitar a apuração de crimes e a observância do princípio constitucional da publicidade. Segundo o
Ministro, ao ser provocado anonimamente, através, por exemplo, de disque-denúncias, o Poder Público
deve adotar as medidas informais necessárias para investigar, “com prudência e discrição”, a prática de
eventual crime. E, em sendo confirmada a sua ocorrência, deve a autoridade instaurar o pertinente
controle de legalidade, baseado em provas desvinculadas das peças apócrifas.
149
Os dados disponíveis no sistema, relativo ao ano de 2011, referem-se ao período de janeiro a agosto
desse ano. É válido destacar, ainda que, dos 100% das denúncias formuladas, 35% delas referem-se à
violência física e psicológica, 37% às negligências em geral e 28% dizem respeito à violência sexual
cometidos contra crianças e adolescentes, demonstrando a importância da implantação do programa para
Outro expediente que recepciona a delação anônima como forma de comunicação de
atos ilícitos é a Resoluções nº 13/2006150, editada pelo Conselho Nacional do Ministério
Público, a qual possui força normativa no ordenamento pátrio e disciplina a instauração
e a tramitação das investigações criminais.
Nesse regulamento, há possibilidade de que as investigações sejam iniciadas pelo
Ministério Público a partir de denúncias anônimas, desde que as delações contenham
informações mínimas sobre os fatos a serem apurados, ou seja, desde que possuam
elementos suficientes que permitam aos membros do Parquet aferir as suas
plausibilidades, antes da adoção de qualquer providência mais invasiva na esfera
privada de terceiros.
É digno de nota que tais expedientes normativos também não foram objeto de
impugnações acerca de suas constitucionalidades, encontrando-se em plena vigência.
Assim, pode-se concluir que as representações anônimas com o objetivo de
denunciar a prática de crimes têm sido admitidas, paulatinamente, no sistema jurídico
brasileiro151.
A seguir, passamos a investigar os posicionamentos adotados pelos Tribunais
Superiores em relação ao problema, objeto dessa investigação.
a
defesa
de
interesses
de
relevância
social.
Disponível
em
http://www1.
direitoshumanos.gov.br/spdca/exploracao_sexual/Acoes_PPCAM/disque_denuncia.Acesso 20.06.2012.
150
O seu artigo 4º, caput, dispõe que: “O procedimento investigatório criminal será instaurado por
portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada, com a indicação dos fatos a serem investigados
e deverá conter, sempre que possível, o nome e a qualificação do autor da representação e a determinação
das diligências iniciais”. O Conselho Nacional do Ministério Público editou, também, a Resolução nº
23/2007, a qual disciplina as investigações ministeriais acerca dos ilícitos de natureza civil, como atos de
improbidade administrativa. Nesse expediente, o tema também é regulamentado. Em seu artigo 2º, §3º, o
Conselho Nacional do Ministério Público estabelece que os inquéritos civis serão instaurados mediante
portaria, de ofício, por designação do Procurador Geral de Justiça ou por meio de representação e que o
conhecimento dos fatos por manifestação anônima, devidamente justificada, não implicará ausência de
providências por parte dos membros do Parquet, desde que obedecidos os mesmos requisitos para as
representações em geral, constantes no artigo 2º, II, desta Resolução. Os requisitos referidos
correspondem às informações sobre os fatos, bem como a qualificação mínima do suposto infrator, a fim
de que seja possível a sua identificação.
151
A doutrina tem se posicionado em relação ao problema. O entendimento majoritário é favorável à
admissibilidade da noticia-crime inqualificada, desde que a autoridade, destinatária dessa denúncia
anônima, atue, com prudência e discrição, na apuração preliminar das informações nela contidas.
Seguindo esse posicionamento, destacam-se ROGÉRIO LAURIA TUCCI, Persecução penal, prisão e
liberdade, cit., p. 34/36; FERNANDO CAPEZ, Curso de Processo Penal, cit., p. 77; JULIO FABBRINI
MIRABETE, Código de Processo Penal Interpretado, p. 95/96 e GUILHERME DE SOUZA NUCCI,
Código de Processo Penal Comentado, Ed. RT, São Paulo, 2002, p. 68.
4. As notitia criminis e a jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios
No que pertine à jurisprudência dos Tribunais Superiores, os posicionamentos são
bastante dissonantes, como se verá a seguir.
Sem abordar expressamente o tema em torno da concorrência de direitos, a posição
jurisprudencial majoritária entende que a representação criminal compõe o âmbito de
proteção do direito à livre manifestação do pensamento, uma vez que o dispositivo
previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, corresponde ao direito à
liberdade de expressão em sentido lato.
Ocorre que mesmo para aqueles que adotam essa concepção dogmática, a
admissibilidade da denúncia criminal anônima no ordenamento jurídico não é pacífica,
identificando-se na jurisprudência dois posicionamentos, antagônicos entre si.
O primeiro, de natureza absoluta, considera a restrição constitucional que veda o
anonimato uma regra, a qual deve ser aplicada de forma subsuntiva, nos moldes do
“tudo ou nada”, em relação a todas as hipóteses afetas à manifestação do pensamento.
Para essa corrente jurisprudencial, a representação de natureza criminal encontra-se
inserida no conteúdo do artigo 5º, inciso IV e, por essa razão, a previsão que proíbe o
anonimato deve incidir também em seu desfavor. Nessa conformidade, a delação sem
subscrição deve ser sumariamente considerada inconstitucional, em todo e qualquer
caso, provocando a nulidade dos atos dela decorrentes, independentemente da situação
concreta que a tenha gerado152.
152
Nesse sentido, destacam-se os seguintes acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça:
AgrReg Inq 355/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, publicado DJe 17.05.2004; HC 95.838, Rel. Min. Nilson
Naves, publicado DJe 17.03.2008; AgReg na Sd 100/TO, Rel. Min. Nilson Naves, publicado na DJe
30.04.2009 e QO NC 280/TO, Rel. Min. Nilson Naves, publicado DJe 05.04.2005, cuja ementa resume o
posicionamento adotado nos demais acórdãos referidos, nos seguintes termos: “Competência do Superior
Tribunal (originária). Notícia-Crime (delação anônima). Anonimato (vedação). Relator (competência). 1.
Compete ao Superior Tribunal processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, entre outras
pessoas, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados. 2. O ordenamento jurídico brasileiro,
inquestionavelmente, requer – e é bom que assim requeira – que também o processo preliminar –
preparatório da ação penal – inicie-se sem mácula. 3. Se as investigações preliminares foram iniciadas a
partir de correspondência anônima, as aqui feitas tiveram início, então, repletas de nódoas, melhor
dizendo, nasceram mortas ou, tendo vindo à luz com sinais de vida, logo morreram. 4. Cabe ao Ministério
Público, entre outras funções, a defesa da ordem jurídica, ordem que, entre nós, repele o anonimato
(Constituição, art. 5º, IV). 5. Questão de ordem que, submetida pelo Relator à Corte Especial (Regimento,
art. 34, IV), foi pela Corte acolhida a fim de se determinar o arquivamento dos autos. Votos vencidos”.
O segundo entendimento, por sua vez, é mais flexível, na medida em que entende
que a restrição que veta o anonimato nem sempre deve ser aplicada incondicionalmente
a toda e qualquer manifestação do pensamento, uma vez que a sua incidência pode ser
excepcionada pelo intérprete, a depender das especificidades do caso analisado153. O
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou nesse sentido, através dos acórdãos como MS 24.405, Rel.
Min. Carlos Veloso, DJE 23.04.2004 e o HC 84.827/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 23.11.2007.
Nesse precedente, o Relator entendeu que a manifestação do pensamento, embora protegida no texto
constitucional, restou restringida pelo próprio Legislador Cosntituinte Originário, que determinou a
vedação ao anonimato. Por essa razão, a notícia da prática criminosa sem identificação da autoria não
serve à persecução criminal. Para o Ministro Marco Aurélio o objetivo é “evitar o denuncismo
irresponsável, inescrupuloso” e permitir a responsabilidade daquele que abusou do seu direito. Trata-se de
uma regra, cuja única exceção diz respeito ao exercício profissional do jornalista. A ementa do acórdão
resume a corrente de pensamento por ele defendida: “Anonimato – Notícia de prática criminosa –
persecução criminal – impropriedade. Não serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem
identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver
parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente”.
153
Nessa linha de entendimento, destacam-se os seguintes acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de
Justiça: HC 97.212/PE, Relª. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), DJe 30.06.2008;
HC 38.093, Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 17.12.2004; HC 64.096/PR, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima,
DJe 04.08.2008; HC 114.846/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 02.08.2010; HC 44.649/SP,
Relª. Min. Laurita Vaz, DJe 08.10.2007; HC 7.329/GO, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe 04.05.1998;
HC 76.749/SP, Relª. Min. Laurita Vaz, DJe 11.05.2009; HC 83.830/PR, Relª. Min. Laurita Vaz, DJe
09.03.2009 e HC 93.421/RO, Rel. Min. Felix Fisher, DJe 09.03.2009, cuja ementa resume o
posicionamento adotado nos acórdãos mencionados, nos seguintes termos: “Penal e processual penal.
Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário. Arts. 342, 343 e 344 do Código Penal. Instauração de
inquérito policial a partir de denúncia anônima. Admissibilidade. De acordo com a jurisprudência da
Quinta Turma desta Corte, não há ilegalidade na instauração de inquérito policial com base em
investigações deflagradas por denúncia anônima, eis que a autoridade policial tem o dever de apurar a
veracidade dos fatos alegados, desde que se proceda com a devida cautela (HC 38.093/AM, 5ª Turma,
Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 17/12/2004). Além disso, as notícias-crime levadas ao conhecimento do
Estado sob o manto do anonimato têm auxiliado de forma significativa na repressão ao crime (HC
64.096/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 04/08/2008). À propósito, na mesma linha,
recentemente decidiu a Sexta Turma desta Corte no HC 97.212/PE, Relª. Minª. Jane Silva Desembargadora Convocada do TJ/MG -, DJ de 30/06/2008: “(...) Enfim, a denúncia anônima é admitida
em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a determinar a instauração de inquérito policial,
desde que contenham elementos informativos idôneos suficientes para tal medida, e desde que observadas
as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado (HC 44.649/SP, 5ª Turma, Relª.Minª.
Laurita Vaz, DJ de 08/10/2007). Habeas corpus denegado”.
Nesse mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou nos seguintes acórdãos: HC
95.244/2010, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 30.04.2010; HC 99.490/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe
01.02.2011; HC 86.082, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, DJe 22.08.2008; HC 90.178, Rel. Min. Cezar Peluso,
DJe 26.03.2010; Inq. 1.957-7/PR, Rel. Min. Carlos Veloso, DJe 11.05.2005; MS 27.339/DF, Rel. Min.
Menezes Direito, DJe 06.03.2009; HC 74.195, Rel. Min. Sidney Sanches, DJe 13.09.1996 e MS
24.369/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Inf./STF 286/2002, cuja ementa encontra-se descrita a seguir:
“Delação Anônima. Comunicação de fatos graves que teriam sido praticados no âmbito da Administração
Pública. Situações que se revestem, em tese, de ilicitude (procedimentos licitatórios supostamente
direcionados e alegado pagamento de diárias exorbitantes). A questão da vedação constitucional do
anonimato (art. 5º, IV, in fine), em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas
funcionais desviantes. Obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da
legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna inderrogável o
encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público. Razões de interesse social
em possível conflito com a exigência de proteção à incolumidade moral das pessoas (CF, art. 5º, X). O
direito público subjetivo do cidadão ao fiel desempenho, pelos agentes estatais, do dever de probidade
constituiria uma limitação externa aos direitos da personalidade? Liberdades em antagonismo. Situação
de tensão dialética entre princípios estruturantes da ordem constitucional. Colisão de direitos que se
raciocínio dogmático construído pelos adeptos desse posicionamento parte da ideia que
a vedação ao anonimato surgiu com o propósito de inibir excessos cometidos no
exercício concreto do direito à liberdade de expressão do pensamento, viabilizando a
adoção de medidas de responsabilização contra aqueles que ofendam o patrimônio
moral de terceiras pessoas, vítimas dos abusos cometidos. Entretanto, embora a sua
criação busque preservar os princípios fundamentais relacionados à incolumidade dos
direitos da personalidade, como a honra, a intimidade e a imagem154, tais direitos não
podem ser apreciados isoladamente, tampouco de forma absoluta. Ao lado desses
princípios, existem outros, de idêntica estatura constitucional, que buscam resguardar a
ordem e a segurança pública, amoldando à lei condutas individuais graves, merecedoras
de reprovação social, tanto que foram consideradas como infrações sujeitas a sanções
penais pelo legislador.
Logo, essa linha de entendimento sustenta que proibir, de plano, a utilização de
delações anônimas prejudica a manutenção desses bens de interesse coletivo, ao mesmo
tempo em que admitir os empregos das representações apócrifas, de forma automática,
pode ensejar violações, na esfera pessoal, dos denunciados, caracterizando um nítido
conflito entre direitos fundamentais, o qual deve ser decidido pelo intérprete
constitucional, através do método ponderativo, levando em consideração o contexto em
que se apresentam.
Tais posicionamentos não estão isentos de críticas.
A inclusão das representações criminais no âmbito de proteção do dispositivo
previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, desconsidera, ao nosso ver, as
construções dogmáticas em torno dos direitos à livre manifestação do pensamento, de
informação e de petição, conferindo tratamento igualitário a situações que são
evidentemente díspares.
resolve, em cada caso, ocorrente mediante ponderação dos valores e interesses em conflito.
Considerações doutrinárias. Liminar indeferida”.
154
Ao proferir o seu voto no bojo do Inq. 1.957-7/PR, o Ministro Celso de Mello manifestou-se sobre o
veto constitucional ao anonimato, afirmando que: “Essa cláusula de vedação - que jamais deverá ser
interpretada como forma de nulificação das liberdades de pensamento – surgiu, no sistema de direito
constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72,
§12). Com tal proibição, o legislador constituinte, ao não permitir o anonimato, objetivava inibir os
abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, para, desse modo,
viabilizar a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros,
jornais, panfletos ou denúncias apócrifas, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas
pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele estatuto Fundamental”.
A concepção dogmática defendida pela corrente absoluta produz graves
consequências práticas, na medida em que as restrições específicas às opiniões e aos
pensamentos passam também a ser aplicadas às informações de fatos criminosos, cujo
conhecimento é de inquestionável relevância para a sociedade e que, por essa razão, não
poderiam ser restringidas, de plano e abstratamente, pela vedação ao anonimato. Tal
interpretação, portanto, revela-se desconexa à realidade e incoerente do ponto de vista
sistêmico constitucional.
Por sua vez, a concepção relativa, embora defenda o posicionamento de que não se
pode vetar, de imediato, as delações anônimas no ordenamento jurídico, o faz, segundo
o nosso entender, a partir de premissas equivocadas, pois inclui as notícias criminais no
âmbito de proteção do direito livre expressão do pensamento sem efetuar qualquer
menção à concorrência de direitos fundamentais com limites divergentes, o que dificulta
a sustentação do método ponderativo empregado por essa linha jurisprudencial na
solução dos conflitos de interesses concretos.
Afinal, ao advogarem que as delações criminais possuem amparo constitucional
apenas e tão somente no dispositivo disposto no artigo 5º, inciso IV e ao excepcionarem
a restrição constitucional expressa que o acompanha, os Tribunais Superiores usurpam
faculdades que já foram exercidas em relação a esse enunciado específico, de forma
peremptória, pelo Poder Originário. Em assim procedendo, comprometem a força
normativa do texto constitucional uma vez que, nessa seara, o legislador constituinte
avaliou os possíveis conflitos provenientes do exercício desse direito e, após ponderar
todos os potenciais interesses em jogo, optou por resguardar à incolumidade dos direitos
da personalidade, vetando o anonimato nas manifestações de opiniões e de
pensamentos. Apenas a título comparativo, pensemos no artigo 5º, inciso XLVII, “a”,
da Carta Magna, que veda a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Uma vez
definidas as hipóteses de guerra declarada, compete ao intérprete cumprir o quanto
descrito no dispositivo, sendo-lhe defeso admitir a pena de morte, segundo uma análise
subjetiva e circunstancial. Entendimento contrário concederia ao operador jurídico a
faculdade de excepcionar a regra constitucional, de acordo com o caso concreto,
admitindo, por exemplo, essa espécie punitiva em desfavor de um criminoso, somente
porque o mesmo praticou, de forma contumaz, infrações penais ou em decorrência da
gravidade dos atos por ele perpetrados.
Por fim, não se pode deixar de destacar um terceiro entendimento encontrado na
jurisprudência, o qual, apesar de minoritário, amolda-se, em grande parte, ao
posicionamento aqui defendido. Segundo essa linha de entendimento, o apuramento dos
contornos jurídicos das representações criminais faz com que tais institutos não sejam
inseridos no âmbito normativo do direito à livre manifestação do pensamento, previsto
no artigo 5º, inciso IV155. As eventuais colisões entre os princípios relacionados à
incolumidade dos direitos da personalidade e a ordem pública poderão ser ponderados,
posteriormente, pelo intérprete, uma vez que a Constituição somente vetou o anonimato
em relação às opiniões e às exposições de ideias e não no que concerne à divulgação de
informações de natureza criminal. Nesse campo, não há restrição expressa a ser extraída
do texto constitucional, tendo o legislador constituinte conferido uma margem
discricionária aos poderes constituídos para que, nos casos concretos, compatibilizem os
bens e os interesses contrapostos.
Assim, para evitar as incongruências diagnosticadas nas decisões produzidas de
acordo com a corrente majoritária dos Tribunais Superiores é que sustentamos que o
problema precisa ser enfrentado de acordo com as diferenças dogmáticas existentes
entre os direitos à liberdade de expressão lato sensu, à livre manifestação do
pensamento e de petição, observando-se o chamado domínio da concorrência de direitos
fundamentais. Sendo certo que somente por essa via o texto constitucional receberá uma
interpretação capaz de respeitar a sua unidade sistêmica e de atender, de forma efetiva,
aos anseios sociais.
155
O Ministro Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal, sustentou, em diversas oportunidades, a
diferença existente entre manifestações do pensamento e delações criminais anônimas. No bojo do HC
95.244, explicitou que a Constituição, quando fala da proibição do anonimato, o faz em outro contexto,
restringindo-se a situações relacionadas à manifestação do pensamento, mas não referente à matéria
criminal. Para ele “a Constituição nunca proibiu a denúncia anônima”. De igual forma, no HC 84.827/TO,
defendeu que o anonimato foi tratado no texto constitucional em uma única passagem, no âmbito do
artigo 5º, inciso IV, quando tratou da manifestação do pensamento. Contudo, de forma expressa, afirmou
que delações anônimas para fins penais não podem ser consideradas manifestações do pensamento.
Segundo o seu entendimento, enquanto as manifestações do pensamento correspondem a pontos de vista,
opiniões e ideias de ordem subjetiva, as denúncias criminais são “noticias de fatos empíricos, legalmente
descritos como infrações penais. Logo, não são mais que meros repasses de informações obtidas ora por
ciência própria, ora ´por ouvir dizer´”. Para o Ministro, essas distinções foram levadas em consideração
pelo Legislador Constituinte tanto que esse posicionou o direito à liberdade de manifestação do
pensamento e a vedação ao anonimato no campo civil das liberdades públicas diferentemente das
garantias penais e processuais penais, disciplinadas em espaços topologicamente separados. Por fim,
posicionou-se favoravelmente à utilização desse instituto, aduzindo “que admitir as delações anônimas é
assegurar o direito de participar criticamente da vida pública. É permitir o exercício da cidadania, que é
um dos fundamentos da República”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo o que foi exposto até o momento é possível tecermos algumas conclusões
derradeiras. Em resumo:
1. A extração do sentido normativo dos enunciados constitucionais pelo intérprete
depende, essencialmente, do grau de liberdade de conformação conferido pelo
legislador constituinte. Nessa conformidade, a avaliação da densidade semântica do
texto é crucial para delimitar a sua atuação.
2. Com a previsão do artigo 5º, inciso IV, o legislador constituinte determinou que
“é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Em assim
procedendo, criou um dispositivo de natureza dúplice, pois ao mesmo tempo em que
protegeu a liberdade de manifestação do pensamento, estabeleceu uma limitação ao seu
exercício.
3. O Poder Originário Constituinte, ao assegurar a livre de manifestação do
pensamento, utilizou-se de uma expressão polissêmica que dá ensejo a vários sentidos,
sendo, por esse motivo, de complexa aplicação. Da análise literal do artigo 5º, inciso IV,
não é possível identificar o seu conteúdo. As condutas protegidas por esse direito
fundamental somente serão delimitadas a partir de um processo de interpretação
constitucional que envolve, inevitavelmente, considerações dogmáticas em torno do
direito à liberdade de expressão e das liberdades comunicativas que o cerca.
4. Ao adentrarmos nesse campo de investigação, concordamos com a corrente
doutrinária que considera a liberdade de expressão em sentido amplo como um direito
geral de comunicação, que engloba inúmeras liberdades, tais como a livre manifestação
do pensamento, também chamado de liberdade de expressão em sentido estrito, a livre
manifestação artística, intelectual e científica, os direitos de imprensa, do jornalista, de
informação, de petição e de aprender e de ensinar. Assim, o direito de informar e o
direito de manifestar suas próprias opiniões, dentre outras liberdades comunicativas,
correspondem aos “braços” de uma estrutura maior, porém única, representada pelo
direito do indivíduo à liberdade de expressão lato sensu.
5. Porém, embora façam parte da liberdade de expressão em sentido amplo, o
direito de informar e o direito à livre manifestação do pensamento não são institutos
idênticos, uma vez que são formados por elementos essenciais distintos. Enquanto os
pensamentos são exposições de ideias e de opiniões que se relacionam com a
interioridade humana, sendo, portanto, de ordem subjetiva, as informações buscam a
comunicação de fatos, de acontecimentos concretos, logo, de natureza objetiva.
6. Os elementos essenciais que compõem as representações criminais são,
primordialmente, de ordem informativa, uma vez que buscam participar as autoridades
públicas acerca da prática de fatos ilícitos, de interesse geral, tanto que são tipificados
como delitos no ordenamento, a fim de que providências sejam adotadas a fim de coibilos. Significa dizer que as notícias criminais são instrumentos de comunicação de
acontecimentos concretos, de ordem objetiva e de controle de legalidade. E é justamente
por essas razões que apresentam uma relação mais estreita com o direito de informar,
não podendo ser confundidos como corolários das manifestações do pensamento.
7. Interpretando-se os dispositivos constitucionais que tratam da liberdade de
expressão na Carta Magna de 1988, chegamos à conclusão de que o legislador
constituinte levou em consideração as construções dogmáticas em torno do tema, tanto
que procurou preservar amplamente o direito à liberdade de expressão através de
dispositivos que contemplam as mais diversas liberdades comunicativas. Em seu bojo,
encontram-se enunciados que visam proteger os direitos relacionados ao pensamento, às
manifestações artísticas, científicas e de comunicação, à informação, à imprensa e de
petição.
8. Mais precisamente, o direito de informar o cometimento de crimes encontra
amparo no texto constitucional vigente através da norma que trata do direito de petição,
descrita no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição. Em seu bojo, o legislador
constituinte garantiu a todos o direito de peticionar aos poderes públicos para, dentre
outras finalidades, noticiar a prática de ilegalidades. Mas, ao fazê-lo, teve o cuidado de
disciplinar esse direito fundamental em posição topologicamente diversa ao direito à
livre manifestação do pensamento, no intuito de destacar as suas especificidades,
conferindo tratamentos diferentes a institutos que são, de fato, distintos.
9. A vedação ao anonimato, por sua vez, foi prevista como um limite ao direito à
livre manifestação do pensamento e não ao direito de petição. O propósito de sua
criação foi o de facilitar a responsabilização daquele que, no exercício desse direito
fundamental, o faz de forma abusiva, violando interesses de terceiros. Não é à toa que se
encontra redigido ao lado dos dispositivos que tratam dessa responsabilização.
10. Tal distinção dogmática mostrou-se ainda mais evidente na medida em que o
Poder Originário Constituinte previu, explicitamente, o respeito ao sigilo de fonte
jornalística. Incluir a comunicação de fatos criminosos no âmbito normativo do direito à
livre manifestação do pensamento, sujeitando-os, por conseguinte, à restrição ligada ao
anonimato, ao tempo que a identidade do informante em relação a esses mesmos fatos
pode ser mantida em segredo, desde que noticiados a um jornalista, gera uma
disparidade desrazoável de tratamento e, mais, consequências graves práticas que não
podem ser desconsideradas pelo intérprete que busca conferir uma interpretação unitária
e sistêmica da Constituição, equilibrando o texto constitucional às vicissitudes sociais.
11. Assim, em nosso entender, o Poder Originário Constituinte disciplinou os
subsistemas de comunicação através de dispositivos constitucionais diferentes,
referindo-se o artigo 5º, inciso IV, da Carta Magna apenas e tão somente ao direito à
livre manifestação do pensamento, o qual não se confunde com a liberdade de expressão
lato sensu, prevista, implicitamente, no artigo 5º, caput, não havendo o que se falar em
concorrência entre direitos fundamentais com limites divergentes. E isto porque as
representações criminais encontram respaldo constitucional em direitos que apresentam
consequências jurídicas idênticas. Tanto o direito de petição, considerado um direito
mais específico, quanto o direito à liberdade de expressão, com previsão normativa mais
vasta, não possuem reservas expressas, de modo que as notícias-crime não podem ser
restringidas, de plano, com a vedação ao anonimato.
12. Com isso não se está afirmando que toda e qualquer delação anônima deve,
sempre, ser recebida pelas autoridades públicas, uma vez que a sua admissibilidade
dependerá das circunstâncias concretas do caso em exame.
13. Afinal, o emprego de representações apócrifas, não raras vezes, gera tensões
entre interesses antagônicos, de igual fundamentalidade, os quais não são absolutos. De
um lado, têm-se os direitos fundamentais à honra, à imagem e à intimidade dos
representados e, do outro, a ordem e a segurança pública, ou seja, a necessidade da
coletividade de ter conhecimento dos crimes praticados na sociedade e de puni-los
exemplarmente, a fim de que não haja a repetição de comportamentos violadores dos
direitos dos seus outros integrantes.
14. A escolha do interesse prevalecente será o resultado do sopesamento
desenvolvido entre os interesses contrapostos, mediante o emprego de critérios
objetivos
e
racionais.
Nesse
sentido,
princípios
estruturantes
como
o
da
proporcionalidade e o da dignidade da pessoa humana constituem uma ferramenta
primordial.
15. Ao avaliar se os benefícios concretos obtidos com a utilização da delação
anônima justificam os sacrifícios reais impostos ao particular, parâmetros como a
verossimilhança do seu conteúdo e a imprescindibilidade do seu emprego devem ser
observados pelo intérprete.
16. Para a aferição da intensidade do dano provocado na esfera privada do
representado deve-se respeitar, ainda, a seguinte máxima: quanto maior for a restrição a
ser feita nos direitos fundamentais do particular, maior deve ser a certeza do agente
público quanto à veracidade das informações contidas na representação.
17. É válido reconhecer que, com cada vez com mais frequência, o ordenamento
infraconstitucional e a jurisprudência dos Tribunais Superiores têm voltado as suas
atenções para a regulamentação do tema. E isso porque a utilização dessas
representações pela população tem aumentado, principalmente em decorrência do
agravamento da criminalidade organizada. Reflexo de que os cidadãos querem, mas não
se sentem seguros, suficientemente, para contribuírem com o sistema de persecução
penal pátrio.
18. Não se pode admitir, contudo, que, em nome da ordem pública, o combate a
essa criminalidade crescente seja realizada pelos poderes constituídos de forma
incontrolada e desmedida. Ao contrário. A segurança da comunidade pode e deve ser
promovida, mas em conformidade aos princípios estruturantes de um Estado
Democrático de Direito. E mais. É necessário assegurar ao cidadão mecanismos efetivos
de controle de constitucionalidade que lhe permita contrapor-se, quando necessário, aos
arbítrios praticados pelos órgãos oficiais, sob pena de regresso aos tempos de repressão
e de intolerância vivenciados nos estados totalitários da primeira metade do século XX.
A abordagem constitucional conferida ao problema, no desenvolvimento do presente
trabalho, teve justamente o propósito de tratar do tema sob essa perspectiva,
apresentando soluções que compatibilizem o texto constitucional à realidade, mas
sempre de acordo com os valores fundamentais que norteiam o Estado Democrático de
Direito Brasileiro.
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