O PENSAMENTO SISTÊMICO DE NIKLAS LUHMANN E O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL: UMA ALIANÇA POSSÍVEL? EL PENSAMIENTO SISTÉMICO DE NIKLAS LUHMANN Y EL DERECHO CIVIL CONSTITUCIONAL : ÉS POSSIBLE UNA ALIANZA? thaita campos trevizan RESUMO O artigo então desenvolvido busca sob uma análise funcional e não meramente estrutural, identificar as aproximações e as diferenças entre a teoria sistêmica desenvolvida pelo sociólogo Niklas Luhmann e a teoria hermenêutica de interpretação do direito civil a luz da constituição federal, mais conhecida como direito civil constitucional. Nesse sentido, ambas as teorias serão expostas separadamente de maneira sucinta, para que depois possamos partir para uma análise comparativa. No desenvolvimento deste trabalho, analisamos duas vertentes de vanguarda das referidas matérias. Em relação ao direito civil, partimos da perspectiva desenvolvida pela escola do direito civil constitucional, sempre preocupada com o caráter unitário e coeso do ordenamento jurídico, sob a égide dos princípios constitucionais. De outra parte, o olhar sociológico teve como norte a teoria sistêmica desenvolvida por Luhmann, já sob o paradigma da autopoiese. Nesse sentido, identificamos como ponto convergente entre as duas temáticas, a perspectiva da análise funcional, já preconizada por Bobbio, e a preocupação de desenvolvimento de um estudo sistemático e não setorial, a partir das relações dos sub-sistemas. PALAVRAS-CHAVES: TEORIA SISTÊMICA – DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL – ESTRUTURA – FUNÇÃO RESUMEN El artículo a continuación, desarrolló una búsqueda en el análisis funcional y no meramente estructurales, identificar las similitudes y diferencias entre la teoría de los sistemas desarrollados por el sociólogo Niklas Luhmann y la teoría de la interpretación hermenéutica del derecho civil a la luz de la constitución federal, conocida como derecho civil constitucional . En este sentido, ambas teorías se mostrarán por separado en forma sucinta, de modo que podemos dejar para despues un análisis comparativo. En este trabajo se analizan dos aspectos a la vanguardia de dichos materiales. En relación con el derecho civil, partimos de la perspectiva desarrollada por la escuela de derecho civil constitucional, siempre que se trate con el carácter de un sistema jurídico unitario y coherente, bajo la égida de los principios constitucionales. Por otra parte, el norte tenía la teoría de los sistemas sociológicos desarrollados por Luhmann, ya bajo el paradigma de la autopoiesis. Por lo tanto, que identificamos como punto de convergencia entre los dos temas, la perspectiva del análisis funcional, según lo recomendado por Bobbio, y la preocupación de desarrollar un estudio sistemático y estrecho, no de las relaciones de los subsistemas. PALAVRAS-CLAVE: TEORÍA SISTÉMICA- DERECHO CIVIL CONSTITUCIONAL - ESTRUCTURA - FUNCIÓN 1. INTRODUÇÃO * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8548 Longe da pretensão de esgotar temas tão complexos que circunscrevem o título da pesquisa, o trabalho que ora se apresenta tem como escopo a promoção de uma análise crítica das duas problemáticas e suas possíveis relações. Ou seja, pretende-se desenvolver um estudo do pensamento sistêmico de Luhmann e do direito civil constitucional não sob uma perspectiva analítica, mas sob um enfoque funcional buscar-se-á desvendar as aproximações e os distanciamentos entre duas searas tão afetas ao estudo científico das ciências sociais. Para tanto, dividiremos a pesquisa em cinco partes. De início, a pesquisa elucidará um pouco sobre a vida de Niklas Luhmann e a importância que a sua teoria tem para o direito. Isso porque, o enquadramento de uma teoria no contexto social de seu surgimento mostra-se indispensável em uma pesquisa de cunho acadêmico. Posteriormente e até por questões didáticas, daremos preferência ao esclarecimento de conceitos primordiais ao entendimento da complexa teoria sistêmica, tais como: sistema, dupla contingência, autopoiese e comunicação significativa. Em um momento seguinte, pretende-se desenvolver a importância do direito na teoria luhmanniana. Neste ínterim, buscar-se-á distinguir o direito dos demais subsistemas sociais a partir da identificação de sua função. Por derradeiro, nos imiscuiremos na tarefa de proceder a uma análise paralela da teoria sistêmica luhmanniana e do direito civil constitucional, não nos furtando, nesse sentido, do dever de delinear os principais contornos desta última escola acadêmica. Desta feita, tentar-se-á demarcar os principais pontos convergentes e divergentes entre as duas temáticas. Senão vejamos. 2 UM POUCO DE NIKLAS LUHMANN Luhmann nasceu na Alemanha em uma cidade chamada Lünenburg. Formou-se em direito, mas trabalhou na administração governamental boa parte do início de sua carreira. Cerca de três décadas depois começou a se dedicar com mais intensidade à pesquisa, tendo finalizado seu doutorado em 1966, quando também passou a exercer a função de professor em Münster, sob orientação de Helmut Schelsky. Sua atividade docente perdurou até 1993, data de sua aposentadoria. Vale lembrar, outrossim, que na década de 1960 realizou um estágio de pesquisa em Harvard, época a que atribuímos a influência que recebera de Talcott Parsons[1]. Os primeiros trabalhos de sua carreira obtiveram reconhecimento pela ciência da administração. Data desta época a publicação de “Os direitos fundamentais como instituição”, obra na qual o autor faz uma ilustre interpretação da lei fundamental alemã. Depois disso, o autor trabalhou com a idéia de funcionalismo sociológico, tendo desenvolvido, por fim, a perspectiva autopoiética do direito. Apesar de ter sido um emérito professor de sociologia, é considerado um dos grandes juristas do século XX, cuja obra é comparada, inclusive, com a de Hans Kelsen. Alcançou, ao longo de sua carreira, invejável produção científica, tendo escrito 48 livros e 417 artigos. A imensa produção acadêmica já nos fornece indícios da genialidade do autor, a qual pode ser comprovada a partir de outro traço característico de sua obra: a interdisciplinariedade. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8549 Em seus trabalhos Luhmann tratou de temáticas diversas, escrevendo artigos que faziam referência à religião, ao direito, à economia, à pedagogia, etc. Não que ele tivesse a intenção de dominar todas essas esferas do conhecimento, mas o fato é que Luhmann era tomado por um objetivo muito maior que o incumbia de perpassar por todos esses assuntos. Ele pretendia construir uma teoria geral da sociedade e é por isso, talvez, que tenha construído uma teoria tão complexa e abstrata, tendo trabalhado em seu aperfeiçoamento por toda a vida[2]. Fugindo das concepções cientificas tradicionais e afetas ao que Luhmann designou de “o velho pensamento europeu”, o autor construiu sua obra partindo de conceitos trazidos de outras ciências que não a sociologia, tais como a biologia, a cibernética e a neurofisiologia. Nesse sentido, trabalhou com a necessidade de reconstrução do arcabouço teórico-científico diante dos novos caracteres da sociedade contemporânea (complexidade[3], fluidez). Vale acrescentar que a obra luhmanniana pode ser dividida em dois momentos paradigmáticos, o que não implica em descompassos de sua obra, mas sim no aperfeiçoamento da mesma, conforme mencionamos alguns parágrafos acima. Primeiramente, sob influência de Parsons, o autor trabalha o funcionalestruturalismo, fundamentando a teoria dos sistemas na diferenciação entre sistema e ambiente. Em um segundo momento, a obra é marcada pela superação da dicotomia sistemas abertos e fechados, uma vez que o autor vai fundamentá-la no paradigma da autopoiese[4]. A mudança paradigmática na teoria luhmanianna é fruto de uma série de novas preocupações que surgiram no seio social no desenrolar do século XX, oportunidade histórica em que entra em declínio a racionalidade ordenada nascida nos albores do Iluminismo. Ou seja, o homem se depara com os limites da razão, uma vez que a sociedade moderna, fractal e multifacetada não mais pode ser explicada segundo os ícones da ordem, da simetria e da regularidade. Nesse sentido, bem ponderam Clarissa E. Baeta Neves e Fabrício Monteiro Neves[5]: Boaventura de Souza Santos refere-se a essa crise como originária nas primeiras formulações da Física do início do século XX, em especial ressaltada na Teoria Geral da Relatividade de Einstein – “não havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço absoluto de Newton deixam de existir”–; na Teoria da Incerteza de Heisenberg – “A idéia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos (...)” - e na Teoria das Estruturas Dissipativas de Prigogine, “sistemas dinâmicos, longe do equilíbrio, que trocam energia com o meio (Output) seguindo um caminho de imprevisibilidade em direção ao caos entrópico, a menos que esta tendência seja compensada por uma fonte de energia externa (Input)”. A ciência se deparou com a complexidade e Luhmann transportou essa realidade para sua teoria. Tentaremos, pois, no trabalho que ora se apresenta, desvendar os principais mistérios dessa construção que é, ao mesmo tempo, tão densa e realista. Para tanto, precisamos analisar seus principais conceitos. 3 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO PENSAMENTO SISTÊMICO Conforme supracitado, a teoria sistêmica busca explicar a sociedade como um sistema social. Essa concepção mostra-se bastante complexa na medida em que, além de pressupor o conhecimento de algumas idéias básicas – as quais veremos a seguir – exige a atuação de diferentes subsistemas, como a religião, a * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8550 economia, o direito. Estes, por sua vez, se subdividem em outros subsistemas, ensejando dois problemas que foram muito bem salientados por Luhmann: a complexidade[6] e a dupla contingência[7]. Em outras palavras: ao se deparar com a complexidade do mundo, Luhmann apresenta a teoria sistêmica como método capaz de reduzi-la, explicando a partir dela como a ordem pode nascer do caos. Cabe a nós, estudiosos do direito, tentar entender essa densa teoria e absorver o que de melhor ela tem a nos oferecer, seja em termos de percepção crítica ou de uma simples observação. 3.1) A relação entre os sistemas e o ambiente Para formular a teoria sistêmica, o autor parte de algumas premissas metodológicas básicas, as quais devemos entender para conseguirmos acompanhar seu raciocínio. É neste ínterim que reside a principal dificuldade dos estudiosos da teoria sistêmica, e nossa tarefa no presente trabalho consiste em tentar reduzir tal dificuldade, tal como Luhmann em relação à complexidade. A primeira premissa que merece cotejo é o fato de que para Luhmann o sistema somente se constitui a partir de sua diferenciação perante o seu entorno, isto é, seu ambiente. De acordo com essa linha de raciocínio o autor identifica, de uma maneira geral, a existência de quatro tipos de sistema no mundo: os não-vivos, os vivos, os psíquicos e os sociais. Destes quatro, somente os três últimos merecem destaque na teoria sistêmica finalmente aduzida pelo autor, uma vez que são sistemas autopoiéticos, ou seja, capazes de se auto-produzir[8]. Os sistemas não vivos são incapazes de se auto-produzir e estão sempre precisando do ambiente para tanto. Exemplo: um computador quando quebra não consegue consertar-se sozinho a partir de elementos internos. Os sistemas vivos referem-se às operações vitais. São as células, o corpo, os animais. Tais sistemas não dependem de uma disposição do ambiente para se manterem, tal como os sistemas não-vivos. Eles tão somente selecionam os elementos que consideram importante no entorno e através da autopoiese os incorporam a sua estrutura. Os sistemas psíquicos são constituídos pelos indivíduos, ou melhor, pela consciência desses indivíduos. Também são autopoiéticos na medida em que os pensamentos geram os pensamentos a partir da observação do que acontece no ambiente. Os sistemas sociais, por fim, são formados somente por comunicações. A comunicação produz a comunicação e tudo o que não for a ela incorporado será tão somente um elemento do entorno. Retoma-se, então, a idéia inicial de diferenciação básica entre sistema e ambiente, bem explicada por Caroline Kunzler: Tudo que não pertence ao sistema encontra-se na condição de seu ambiente. Assim, os sistemas psíquicos e físicos são ambiente de um sistema social qualquer, bem como todos os outros sistemas sociais, e vice-versa. Por exemplo: a consciência de um médico e um coração são ambiente do sistema medicina. Também o direito, a teologia e a psicologia são seu entorno. O sistema medicina é um sistema social e como tal é composto somente por comunicação. Todos os sistemas sociais formam a sociedade ou o sistema social global[9]. Nesta toada, merece análise o processo de formação do sistema social a partir da interação entre os sistemas psíquicos e para isso precisamos entender o processo de dupla contingência, bem como a * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8551 complexidade na visão luhmanniana. No entanto, antes disso, faz-se mister um entendimento prévio acerca do funcionamento do processo de autopoiese dos sistemas no qual Luhmann fundamenta toda a teoria sistêmica. 3.2) Autopoiese Os sistemas estudados pela teoria sistêmica (os sistemas vivos, psíquicos e sociais) são caracterizados por Luhmann como autopoiéticos, auto-referentes e operacionalmente fechados. Para Luhmann um sistema é autopoiético quando é capaz de produzir sua própria estrutura, bem como todos os elementos que o compõem, incluindo o elemento não passível de decomposição que, no caso dos sistemas sociais, é a comunicação e dos sistemas psíquicos é o pensamento[10]. Vale demarcar que originariamente o conceito de autpoiese foi desenvolvido pelos biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, que buscaram através desta idéia superar o entendimento de acordo com o qual a conservação e a evolução da espécie teriam como pressuposto tão somente os fatores ambientais. Assim, lançaram a idéia de que o próprio indivíduo a partir de sua capacidade de reprodução autpoiética é que se torna responsável por sua conservação e diferenciação diante de um determinado ambiente. Nas ciências sociais esta linha de pensar produziu eco na teoria desenvolvida por Niklas Luhmann. Contudo, a concepção luhmanniana de autopoiese afasta-se do modelo biológico de Maturana, na medida em que nela se destinguem os sistemas constituintes de sentido (psíquicos e sociais) dos sistemas orgânicos e neurofisiológicos[11]. Assim, podemos vislumbrar a diferença entre as duas concepções na medida em que a idéia dos biólogos enseja uma concepção mais dura de sistema fechado, já que para a produção das relações entre sistema e ambiente exige-se a figura de um observador externo, ou seja, exige-se um outro sistema. Para Luhmann, no entanto, a auto-observação se torna um elemento necessário à reprodução autopoiética dos sistemas de sentido. Eles mantêm o seu caráter autopoiético enquanto se referem simultaneamente a si mesmos (para dentro) e ao seu ambiente (para fora), operando internamente com a diferença fundamental entre sistema e ambiente [12]. Neste ínterim, esclarecedores são os ensinamentos de Armin Mathis[13]: Enquanto Maturana Varela restringem o conceito da autopoiesis a sistemas vivos, Luhmann o amplia para todos os sistemas em que se pode observar um modo de operação específico e exclusivo, que são,na sua opinião, os sistemas sociais e os sistemas psíquicos. As operações básicas dos sistemas sociais são comunicações e as operações básicas dos sistemas psíquicos são pensamentos. As comunicações dos sistemas sociais se reproduzem através de comunicações, e pensamentos se reproduzem através de pensamentos. Fora dos sistemas sociais, não há comunicação e fora dos sistemas psíquicos não há pensamento. Ambos os sistemas operam fechados, no sentido que as operações que produzem os novos elementos do sistema dependem das operações anteriores do mesmo sistema e são, ao mesmo tempo, as condições para futuras operações. Esse fechamento é a base da autonomia do sistema. Ou, em outras palavras, nenhum sistema pode atuar fora das suas fronteiras. É válido ressaltar que o conceito da autopoiesis em nenhum momento vem negar a importância do meio para o sistema, pois, lembrando, sem meio não há sistema. Autopoiesis refere-se à autonomia, o que não significa autarquia. (grifo nosso) Essa construção permite uma aliança entre o fechamento operacional e a abertura para com o * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8552 ambiente de modo que a autopoiese pode ser influenciada pelo entorno, ou seja, pelos ruídos produzidos pelo ambiente. Em relação ao sistema atuam as mais diversas determinações do ambiente, mas elas só são inseridas no sistema quando esse, de acordo com seus próprios critérios e código-diferença, atribui-lhe sua forma[14]. Para Luhmann, o fechamento operacional não resvala na ausência de ambiente, tal como preconizado pela antiga teoria dos sistemas. Enfim, não enseja a oposição clássica entre sistemas abertos e fechados. Trata-se de autonomia e não autarquia dos sistemas. Na verdade, esse fechamento tem como resultado direto a possibilidade de abertura do sistema. A influência de Maturana e Varela no pensamento de Luhmann pode ser notada na medida em que este último confere uma importância vital ao processo de auto-referência a partir do qual o sistema produz seus próprios elementos. Contudo, certo é que a concepção luhmanniana de autopoiese não se limita a esta etapa de auto-referência elementar, que se assenta na diferença entre elemento e relação. Outros dois momentos são importantes para entendermos a concepção de autopoiese em Luhmann: a reflexividade e a reflexão. A primeira diz respeito a processos sistêmicos da mesma espécie, ou seja, ao que determinado processo tem a dizer sobre si mesmo. Ex.: a decisão sobre a tomada de decisão, a normatização da normatização, o ensino do ensino. Isso implica na utilização do mesmo código binário [15], nos mesmos critérios e programas. Já a reflexão pressupõe as duas primeiras etapas, ou seja, a auto-referência elementar e a reflexividade. Nesse sentido, é o próprio sistema de maneira geral que faz uma auto-referência a si mesmo e não apenas aos seus elementos ou processos sistêmicos. Enquanto Luhmann dispõe as três referidas etapas, Teubner vai propor um conceito mais abrangente, definindo-a como enlace hipercíclico de elemento, processo, estrutura e identidade[16]. Passemos, agora, ao estudo de outros conceitos luhmannianos, dentre os quais destacaremos a complexidade, a dupla contingência e a comunicação. 3.3) Complexidade , dupla contingência e comunicação Diante do exposto, pode-se depreender que enquanto os pensamentos de cada indivíduo restam encerrados em seu respectivo psiquismo, é certo que são desconhecidos pelos demais indivíduos. Portanto, a dupla contingência consiste no processo de formação de um sistema social a partir da interação entre indivíduos, o que não é simples de se entender. Por outro lado, sabemos que as possibilidades de comportamentos que são oferecidas pelo ambiente são variadas e muito maiores do que aqueles comportamentos que de fato são vivenciados. Esta situação é exatamente o que Luhmann denomina de complexidade, uma vez que designa o pressuposto da incerteza de todo tipo de ação[17]. Na verdade, o sistema deve se adaptar a uma dupla complexidade: a do ambiente e a dele mesmo. Se o sistema não se preocupasse em diminuir a complexidade do ambiente, selecionando elementos, e a sua própria, autodiferenciando-se, seria diluído pelo caos, por não conseguir lidar com o excesso de possibilidades. Se selecionasse tudo, não seria diferente do ambiente[18]. Nesse diapasão, para Luhmann, em uma sociedade complexa e contingente, as possibilidades de * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8553 comportamento social exigem reduções que tendem a possibilitar a manutenção de expectativas comportamentais recíprocas, as quais são orientadas a partir das expectativas sobre expectativas. Assim, através deste controle, seriam reduzidos os riscos de frustrações de expectativas. É nesse sentido que a idéia de sociedade como sistema social só se torna possível se tivermos em mente a comunicação como idéia central. De acordo com a máxima luhmanniana enquanto os sistemas psíquicos percebem e agem os sistemas sociais se comunicam[19]. Os sistemas sociais estão baseados em uma incerteza relacional, fruto da complexidade, conforme afirmamos anteriormente. Em virtude disso, suas ações não são pré-determinadas, mas tão somente podem ser estabilizadas com o advento da pressão oriunda da dupla contingência. Em outras palavras: somente se permite um controle de expectativas na medida em que as interações entre indivíduos passam a fazer parte do sistema social através da comunicação, transcendendo a esfera subjetiva do psiquismo. Ou seja, é através da comunicação que se permite transcender a esfera da psique individual[20]. A comunicação consiste, pois, no processo básico de operação dos sistemas sociais, que são sistemas autopoiéticos, tais como a sociedade, as organizações e as interações. Esse processo básico de operação, a seu turno, faz supor a linguagem, as funções, a diferenciação e as estruturas. A diferenciação provoca a evolução na medida em que é peça chave para a distinção entre os sistemas e o entorno, ou seja, o ambiente. Nesta esteira de raciocínio, somente o sistema é dotado de sentido, sendo o ambiente apenas uma complexidade bruta. Portanto, a noção comum de sentido é o critério que define os limites do sistema. Um entendimento comum sobre um sentido divide o mundo em algo com sentido e algo sem sentido [21]. Assim sendo, a sociedade produz e ao mesmo tempo controla as indeterminações, fato precursor de um paradoxo na comunicação. Daí outra máxima luhmaniana: “Um sistema diferenciado dever ser, simultaneamente, operativamente fechado para manter a sua unidade e cognitivamente aberto para poder observar a sua diferença constitutiva[22]” Insta registrar, outrossim, que para Luhmann o processo de comunicação pode ser dividido em três etapas, quais sejam: informação, mensagem (ato de comunicação) e compreensão. Comunicação é, pois, o fato que Ego compreende que Alter transmitiu uma informação, e que essa informação pode ser atribuída ao Alter. A comunicação não dependeria das pretensões de racionalidade consensual. Esta transcende o aspecto subjetivo, pois os atos comunicativos dão origem a outros atos comunicativos, sempre a partir dos elementos sistêmicos. Dalmir Lopes Júnior assevera, nesta toada, que por último, mas não menos importante, é a necessidade de o receptor distinguir entre informação e mensagem. Ou seja, a comunicação vai emergir sempre que esta diferença for observada, esperada, compreendida, e usada como base para conectar futuros comportamentos. Sempre que uma ação comunicativa seguir a outra, prova que a comunicação ulterior foi compreendida[23]. Quando os participes do processo comunicativo sabem o que podem esperar dos demais participes, tem-se o cumprimento do papel do sistema social, qual seja, a redução da complexidade. A reflexividade (uma das etapas da autopoiese, referida anteriormente) demarca isso, pois reflete a relação em que alter * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8554 saber que ego determina seu comportamento em função dele. Em suma: o comportamento em uma sociedade complexa não pode ser previsto, mas aquele que atua numa interação cria expectativa sobre o que é esperado, ou melhor, cria expectativas sobre expectativas. É a formação desses laços de confiança que torna possível o surgimento dos sistemas sociais como orientadores de ação[24]. Cumpre demarcar, todavia, existem certas expectativas que admitem o aprendizado – expectativas cognitivas – e outras que não admitem as defraudações - expectativas normativas. Nesse sentido, precisa é a avaliação feita por Dalmir Lopes Junior[25]: Uma sociedade cujas expectativas fossem todas sujeitas ao aprendizado, seria uma sociedade que não possuiria qualquer orientação para o proceder humano, e onde tudo seria válido, embora decepcionante. Para que alguma ordem possa ser estabelecida, é preciso que exista confiança. Confiança é outro fator que está circunscrito na problemática da dupla contingência. A linha de raciocínio é a seguinte: toda escolha é uma contingência do possível e por isso representa um risco. Os sistemas sociais precisam de estratégias que contornem a ansiedade do risco proveniente das possíveis decepções. É este o papel assumido pelas normas jurídicas, já que representam a garantia mais eficaz da confiança. Elas são a representação das expectativas normativas, isto é, aquelas que não são passiveis de defraudações. Nesse passo, através da sanção/ameaça de sanção o direito recuperaria as expectativas frustradas e exerceria sua função sistêmica tão bem designada por Luhmann: a manutenção das expectativas normativas. É através da diferenciação entre o normativo e o cognitivo que o sistema jurídico poderia se diferenciar de seu entorno. Entretanto, como o sistema jurídico, sendo um sistema social autopoiético e via de conseqüência, auto-referencial, estabelece esta confiança nas situações de dupla contingência? É o que veremos no tópico seguinte. 4 O DIREITO COMO UM SUBSISTEMA SOCIAL De acordo com a teoria luhmanniana o direito não evita os conflitos, mas tão somente pugna pela estabilização das expectativas, prevendo-as. Para tanto, ele não considera o caso concreto, material, mas utiliza um mecanismo abstrato que diferencia o que pode ser aturado como desvio e o que não pode. Esse processo é realizado através de um código binário que dispõe o que é direito e o que não é. Desta feita, o direito define seu campo de atuação através de um código que dispõe o que faz e o que não faz parte de sua comunicação. Os atos jurídicos são comunicações especializadas que conferem unidade ao sistema jurídico, permitindo que este sistema social se auto-organize. É desta maneira que o direito não se torna uma réplica da realidade, mas tão somente uma realidade própria nascida a partir de suas operações. Insta registrar, outrossim, que o direito não pode ficar adstrito ao seu código binário, pois precisa de referências externas para dar resposta a certos problemas que a referida estrutura não se mostra apta a solucionar. Este paradoxo é representado por Luhmann através da alegoria do décimo segundo camelo, texto em que o autor trata do caráter do direito, do papel das decisões judiciais e da relação do sistema jurídico com * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8555 os demais subsistemas sociais e com o sistema psíquico. Vejamos o que diz a referida alegoria. Um beduíno muito rico deixa em testamento a proporção que cada um de seus três filhos deveria receber de sua herança, constituída em camelos. A proporção era a seguinte: metade dos camelos para o filho mais velho, a quarta parte para o filho do meio e a sexta parte para o filho mais novo. Contudo, quando o beduíno morreu, seus negócios não iam tão bem, tendo ele deixado somente 11 camelos. O impasse era claro, uma vez que a divisão do número de camelos pelas proporções mencionadas no testamento não implicavam em um valor exato. Assim, qualquer que fosse a conta matemática um dos irmãos sairia lesado. O problema teria sido resolvido pelo juiz local, que se ofereceu para emprestar o décimo segundo camelo, o qual solucionaria o impasse matemático. Com doze camelos a divisão proporcional se torna possível, porém, no final das contas, um camelo continua sobrando. Na verdade, o décimo segundo camelo mostra-se necessário somente para a solução matemática, sendo na prática passível de devolução[26]. Segundo o autor, o referido camelo mostra-se, simultaneamente, necessário e desnecessário, representando o paradoxo de um sistema jurídico que opera em clausura operativa mas que ainda assim necessita estar aberto para seu ambiente. Em relação ao ordenamento jurídico o próprio Luhmann[27] assevera: A positividade do direito é representada pelo décimo segundo camelo; mas, naturalmente, apenas quando ele não é restituído. Restituição ou não restituição – aqui se localiza, em outras palavras, a diferença entre o direito natural e o direito positivo. Tal idéia nos ajuda a perceber a necessidade de desenvolvermos a fundamentação das decisões jurídicas a partir de elementos do próprio sistema do direito. As decisões assumem, neste ínterim, um importante papel social, pois são responsáveis pela produção de sentido através da diferenciação e não do consenso, como se poderia pensar. Isso porque, os sistemas são legitimados a partir de suas respectivas diferenciações perante o ambiente. Esse processo de diferenciação em cada tomada de decisão gera o tempo e quando produzido mediante uma metaobservação do sistema, dá origem aos paradoxos, verdadeiras matrizes históricas. “As organizações são estruturas burocráticas encarregadas de tomar decisões coletivas a partir da programação e código de sistemas. (...) O Poder Judiciário pode ser visto como uma organização voltada à consecução das decisões do sistema do Direito[28].” Segundo o autor, o direito está calcado em valores como o seu funcionamento sem atritos e a sua responsabilidade social. Para ele, a norma fundamental do Estado de Direito é vista como um valor, como uma aquisição civilizacional. Sendo assim, o direito pode ser mudado apenas dentro de seus próprios limites. O sistema jurídico apresenta-se digno de regras de procedimento cuja relação com a hierarquia material deve continuar obscurecida[29]. De acordo com Luhmann, a diferenciação não pode significar um isolamento relativo, mas sim um crescimento de independências e dependências. Assim, o sistema jurídico seria autônomo apesar de todas as suas dependências causais relativas ao seu ambiente social, enquanto nele, e só nele, é decidido sobre o direito e o não-direito. Cabe mencionar ainda que para Luhmann, o direito, a despeito de ser apresentado como uma estrutura, mostra-se dinâmico em razão da sua permanente necessidade de atualização, vez que, de acordo * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8556 com a sua função, deve agir constantemente no sentido de reduzir a complexidade das possibilidades de ser no mundo. A teoria sistêmica do direito, ao comunicar a norma jurídica com o sistema social e a práxis significativa, fornece um importante passo para a construção de uma nova teoria do Direito. Esta, por sua vez, aborda simultaneamente os seus aspectos analíticos, hermenêuticos e pragmáticos, em relação ao sistema social [30]. A capacidade de auto-observação, ao lado da diferenciação permanente junto ao meio que o envolve, é um dos requisitos para a autopoiese sistêmica. Para Dalmir Lopes Junior a hetero-observação é aquela feita pela sociologia e somente através dela é possível enxergamos as estruturas latentes de auto-observação e os paradoxos do sistema jurídico[31]. Em suma: de acordo com a obra de Luhmann a natureza especifica do direito é buscada mediante a determinação de sua função social, qual seja, a manutenção das expectativas normativas, tal como explicitado acima. Mas isso somente é passível de ser depreendido mediante a análise sociológica, que possibilitará a avaliação da sociedade como um sistema geral e o direito como um de seus subsistemas. Nesse sentido, de acordo com os ensinamentos de Norberto Bobbio[32], resta clara a influência da sociologia do que concerne a importância conferida à função social do direito: “Quando, em 1971, escrevi o artigo intitulado Verso uma teoria funzionalística Del diritto para demonstrar o quanto prevalecera, até então, na teoria geral do direito, o ponto de vista estrutural em relação ao ponto de vista funcional, e para indicar uma tendência contraria, à época já evidente, do estruturalismo ao funcionalismo, não imaginava a rapidez e a intensidade com que essa tendência se desenvolveria (...) Parece fora de dúvida que o interesse pelo problema da função do direito seja relacionado à expansão da sociologia do direito (...) Não acredito que seja necessário insistir na estreitíssima ligação entre teoria estrutural do direito e ponto de vista jurídico, de um lado, e teoria funcional do direito e ponto de vista sociológico, de outro”. (grifo nosso) Nesta esteira de raciocínio, Bobbio atribui o escasso interesse pelo problema da função social na teoria geral do direito ao papel de destaque desenvolvido pelos grandes teóricos do direito, desde Jhering até Hans Kelsen. Segundo tais estudiosos, a especificidade do direito não deriva de sua função mas sim do modo pelos quais os fins são perseguidos e alcançados. É consenso, outrossim, que Kelsen, em sua teoria pura do direito, considerava tão somente a estrutura do ordenamento jurídico e não seus objetivos. Do mesmo modo pensava Jhering, que concentrava toda sua atenção não no fim, mas no instrumento, isto é, na coação e na organização do direito. Neste aspecto também reside a divergência entre Luhmann e Parsons, na medida em que o primeiro dava mais importância ao funcionalismo do que ao estruturalismo. A análise funcional foi se concentrando, sobretudo, em torno de duas ordens de questão: se o direito tem uma função somente repressiva, ou se também distributiva, promocional, etc., se o direito tem uma função de conservação ou também de inovação. Luhmann superou tais questões a partir do pensamento sistêmico, ao atribuir uma função especifica ao direito e ao considerar que os sistemas são autopoiéticos e auto-referenciais, incorporando o paradoxo do sistema operacionalmente fechado, mas cognitivamente aberto. O direito civil constitucional, por sua vez, é uma nova linha hermenêutica que busca analisar os institutos de direito civil não a partir de sua estrutura, mas a partir de sua função, tendo em conta os * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8557 princípios que formam a nossa ordem constitucional. Promove assim, da mesma maneira, uma análise funcional do direito. No tópico seguinte, o trabalho se propõe a identificar se essa aparente convergência entre o pensamento sistêmico e o direito civil constitucional procede. É claro que não se tem a pretensão de esgotar todas as nuances e cotejos que o tema requer, mas sim identificar aspectos colidentes e divergentes entre dois tipos de teorias que são, reconhecidamente, de vanguarda. 5 O PENSAMENTO SISTÊMICO E O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL O direito civil constitucional além de pugnar por uma análise funcional[33], dos institutos do direito civil defende uma aplicação sistemática do ordenamento jurídico, tendo em vista sua unidade e sua coerência. Os princípios e as normas constitucionais assumem o papel de destaque nesta encenação, na medida em que congregam os valores e os pilares do ordenamento. As normas constitucionais merecem respeito e aplicação direta, não podendo ser contrariadas por quaisquer outras normas jurídicas em razão do caráter primordial que assumem. Com a superação da summa diviso e da dicotomia público-privado, as normas do texto magno deixaram de representar tão somente os limites que o Estado deveria respeitar em suas relações com os indivíduos. Passam a representar, outrossim, parâmetros de aferição de regularidade de agir também nas relações interprivadas. A transformação não é de pequena monta. Ao invés da lógica proprietária, produtivista, empresarial (em uma palavra, patrimonial), são os valores existenciais que, porque privilegiados pela Constituição, se tornam prioritários no âmbito do direito civil. Tais são os fundamentos daquilo que se começa a delinear como a fundação de um "direito civil constitucionalizado", um direito civil efetivamente transformado pela normativa constitucional[34]. De acordo com tais perspectivas é que podemos destacar como pontos convergentes entre o direito civil constitucional e o pensamento sistêmico de Luhmann não só a perspectiva funcional, como também o viés sistemático da análise teórica. Mas não encontramos somente perspectivas convergentes entre as referidas teorias. A necessidade de fundamentação das decisões é um aspecto que pode assumir vestes diferentes tendo em vista estas linhas de pensamento. De acordo com o pensamento sistêmico não seria exigível uma teoria da justiça como critério superior do ordenamento jurídico uma vez que, para alcançarmos a positividade, devemos suprimir o direito que seja o resultado imediato de interesses, vontades e critérios políticos. Nas palavras de Niklas Luhmann[35]: “Todos os valores que circulam no discurso geral da sociedade são, após a diferenciação de um sistema jurídico, ou juridicamente relevantes, ou valor próprio do direito. Portanto, a justiça só pode ser considerada consequentemente a partir do interior do sistema jurídico, seja como adequada complexidade (justiça externa) ou como consistência das decisões (justiça interna)” É neste diapasão que podemos vislumbrar as diferenças entre a teoria luhmanniana da positividade e * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8558 as novas concepções axiológicas do direito. As diferenças se tornam mais agudas no tocante à importância que cada uma confere ao discurso de fundamentação das decisões. Luhmann tende a dispensar a necessidade tão radical de fundamentar, ao passo que as modernas teorias, sob o paradigma da teoria do discurso de Habermas[36], asseveram praticamente o oposto. Um parêntesis agora se faz necessário para explicarmos um pouco da metodologia civil constitucional e o porquê de sua aproximação com as teorias axiológicas que pugnam pela consistência discursiva e dialógica. O direito civil constitucional propõe, nesta toada, uma nova técnica de interpretação do direito civil, informada pelos princípios constitucionais. Nesse sentido, destaca a insuficiência hermenêutica do método da subsunção, pelo qual o intérprete primeiro qualifica para depois enquadrar o suporte fático da norma. É a opinião de Gustavo Tepedino[37]: A norma jurídica é um posterius e não um prius, de tal modo que, do processo interpretativo, produz-se, a um só tempo, a norma interpretada e o fato qualificado. O sistema jurídico assim concebido faz convergir a atividade legislativa e interpretativa na aplicação do direito, que permanece aberto a todos os matizes norteadores da vida em sociedade. Daí a imprescindibilidade da fundamentação das decisões e da argumentação que as legitimam. Nesse sentido, é imperioso reforçar a teoria da argumentação, bem como a interpretação sistemática e unitária do ordenamento, como meios de evitar o decisionismo e o ativismo judicial, a fim de consubstanciar e tornar legitima a decisão judicial. O componente ideológico do nosso modelo estatal, segundo Habermas, se baseia no fato de que as normas e as instituições não são discutidas, posto que apresentadas como legítimas em razão da apatia e da assepcia política e cultural que a tecnologia nos impõe. O referido autor propõe, então, não uma transferência de poder político ao cidadão, como membro de representação em instâncias representativas oficiais, mas a assunção desse poder político pela própria cidadania. Nesse sentido expõe[38]: Para tanto, mister é que se compreenda que toda e qualquer relação social se afigura como um fenômeno político de natureza comunicacional, simbólica e real, cuja estrutura gramatical constitutiva precisa ser apreendida e operada pelos sujeitos falantes, não se olvidando que, por representar uma dimensão argumentativa da realidade, tal estrutura tem em foco determinados objetivos e fundamentos... Considerando a teoria de habermasiana, o que torna possível a ação social coordenada é a capacidade dos seres humanos de chegarem a um conhecimento mútuo sobre alguma coisa. A verdade, para ele, não tem a ver com o conteúdo, mas com o procedimento: aqueles que permitem estabelecer um consenso, a partir de argumentos problematizáveis e entendimento entre interlocutores. Tendo em vista o fechamento normativo e a abertura cognitiva do direito, a teoria sistêmica luhmanniana assevera que o problema da justiça passa a ser reorientado para a questão da complexidade adequada do sistema jurídico e da consistência de suas decisões. Mas como isso é possível se a mesma teoria não pugna pela necessidade de fundamentação das decisões? É neste ínterim que vislumbramos um aspecto divergente entre o pensamento sistêmico e o direito civil constitucional, conforme supracitado. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8559 6 CONCLUSÃO A pesquisa ora desenvolvida foi efetiva no desiderato de despertar maior interesse no estudo de uma obra tão intrigante como a de Niklas Luhmann. Conforme afirmado no início do trabalho, não tínhamos como meta esgotar todos os debates que o tema sugere, mas sim, propor sugestões de possíveis relações entre teorias que sob a perspectiva funcional buscam desvendar alguns mistérios das relações humanas, tendo como limite o alcance racional. Enquanto o direito civil é o campo jurídico que cuida das relações humanas privadas, a sociologia é a seara do conhecimento que busca analisar o conjunto destas relações sob uma perspectiva mais abrangente, isto é, social, sistêmica, real. Contudo, no desenvolvimento deste trabalho, analisamos duas vertentes de vanguarda das referidas matérias. Em relação ao direito civil, partimos da perspectiva desenvolvida pela escola do direito civil constitucional, sempre preocupada com o caráter unitário e coeso do ordenamento jurídico, sob a égide dos princípios constitucionais. De outra parte, o olhar sociológico teve como norte a teoria sistêmica desenvolvida por Luhmann, já sob o paradigma da autopoiese. Nesse sentido, identificamos como ponto convergente entre as duas temáticas, a perspectiva da análise funcional, já preconizada por Bobbio, e a preocupação de desenvolvimento de um estudo sistemático e não setorial, a partir das relações dos sub-sistemas. Em uma analogia singela, pode-se afirmar que para a escola do direito civil constitucional o direito civil está para a o ordenamento jurídico, assim como o direito está para a sociedade de acordo com Luhmann. Podemos completar a alegoria, dizendo que enquanto a coesão no pensamento luhmanniano se dá através dos atos comunicativos, no ordenamento jurídico se daria através dos princípios constitucionais. Contudo, também vislumbramos aspectos divergentes entre os referidos marcos teóricos, principalmente no que concerne à necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Entre aproximações e distanciamentos, o fato é que o aprofundamento de tais questões é palco de futuros debates científicos. REFERÊNCIAS: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. AMADO, Juan Antonio Garcia (Org). El derecho em la Teoria Social : diálogo com catorce propuestas actuales. Dykinson, 2001, pp.325-355. BOBBIO, Norberto. A análise funcional do direito: tendências e problemas. Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007. BARALDI, C. Médios de comnicacion simbolicamente generalizados. In/; CORSI, G, ET. AL. Glossário sobre la teoria social de Niklas Luhmann. México, DF: Antropos, 1996. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8560 BECHMANN, Gottard; STEHR, Nico. Niklas Luhmann. Tempo Social, Revista de Sociologia. USP, São Paulo, 13(2): 185-200, novembro de 2001. KUNZLER, Caroline de Morais. A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia, Araraquara, 16, 123-126, 2004. MADEIRA, Lígia Mori. O Direito nas Teorias Sociológicas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, pp. 19-39, junho 2007. MATHIS, Armin. O conceito de sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Texto extraído do site www.infoamerica.org.br MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista Estado, Direito e Sociedade, vol, I, 1991, publicação do Departamento de Ciência Jurídicas da Puc-Rio. NASCIMENTO, Valeria Ribas do. A Teoria dos Sistemas e a Hermêutica: ponderações introdutórias a respeito do papel do Direito enquanto práxias social efetiva. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, julho de 2006 – Vol. 1, n. 2, pp. 51-64. NEVES, Clarissa E. Baeta; SAMIOS, Eva B. Niklas Luhmann. A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: UFRGS/Goethe, 1997. NEVES, Clarissa E.; NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 15, jan/jun 2006, pp. 182207. NEVES, Marcelo. Verbete “ Autopoiese”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.80. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para uma teoria general; 2 ed., Barcelona: Anthropos, 1988. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ROCHA, Leonel Severo. Verbete “Niklas Luhmann”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 250-253 SEVERINO, A.J. Metodologia do Trabalho científico, 21 ed., São Paulo: Cortez, 2000. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8561 TEPEDINO, Gustavo. Revista Trimestral de Direito Civil, Editorial, vol. 35. Rio de Janeiro: Padma, 2008. [1] Sabe-se que sob a perspectiva moderna, foi Parsons quem delineou a teoria do sistema, tendo em vista o aspecto estrutural de sua observação. Luhmann funcionalizou tal concepção. Essa transformação recebeu influência epistemológica do construtivismo e das novas ciências cognitivas. “O construtivismo entende que o conhecimento não se baseia na correspondência com a realidade externa, mas somente sobre as construções de um observador”. ROCHA, Leonel Severo. Verbete “Niklas Luhmann”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p251. [2]Nesse sentido, bem pondera Carolina Morais Kunzler: “Existe um encadeamento de idéias que constróem uma estrutura aplicável à sociedade inteira. Os textos de Luhmann sobre direito e religião, por exemplo, são ramificações que provêm da base comum de sua teoria. Essa generalidade de contraria o tradicional pensamento acadêmico, que não acredita que uma única teoria possa, de modo eficaz, analisar diferentes esferas sociais”. In KUNZLER, Caroline de Morais. A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia, Araraquara, 16, 123-124, 2004. [3] “A sociedade complexa tem como características o indeterminismo, a entropia, a imprevisibilidade, a incerteza e as possibilidades, tendo como resultado o caos”. Idem, p. 124 [4] Cf. em MADEIRA, Lígia Mori. O Direito nas Teorias Sociológicas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, pp. 19-39, junho 2007. [5] NEVES, Clarissa E.B e NEVES,Fabrício M.“O que há de complexo no mundo complexo? Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais”, in Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 182-207. 6 Complexidade, segundo o autor é sinônimo de modernidade, ou seja, de totalidade de possibilidades no mundo, também relacionada ao conceito de contingência. Cf.,MADEIRA, Lígia Mori. O Direito nas Teorias Sociológicas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 28, junho 2007. [7] Sobre a dupla contingência bem assevera Dalmir Lopes Junior: “Caso consigamos compreender como a interação entre os indivíduos gera um sistema, poderemos então tentar compreender se e como esse sistema formado apresenta-se como paradoxal, segundo sugere Luhmann. O caminho elucidativo para construir essa ponte teórica reside no entendimento do que Luhmann chama de teorema da dupla contingência”. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.9. [8] Para saber mais sobre o assunto, verificar em KUNZLER, Caroline de Morais. A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia, Araraquara, 16, p.127, 2004. [9] KUNZLER, Caroline de Morais. A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia, Araraquara, 16, p.127, 2004. [10] Idem, p.128. [11] NEVES, Marcelo. Verbete “ Autopoiese”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.80. [12] Idem, p.80. [13] MATHIS, Armin. O conceito de sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Texto extraído do site www.infoamerica.org.br, p. 4. (Acesso em 07/07/2009). [14] NEVES, Marcelo. Verbete “ Autopoiese”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.80. [15] Mais uma vez nos utilizamos da ponderação de Marcelo Neves: “Por meio de um código sistêmico próprio, estruturado binariamente entre um valor negativo e um valor positivo específico, as unidades elementares do sistema são reproduzidas internamente e distinguidas claramente das comunicações exteriores”. Idem, p. 82. [16] “O que vai caracterizar exatamente a concepção dos sistemas autopoiéticos é que ela parte dos aspectos operacionais, não se referindo primariamente à dimensão estrutural (autonomia)”. Idem, p.81. [17] Dalmir Lopes Junior coloca muito bem a questão no trecho que se segue: “Desde o inicio da interação, o pressuposto único que está presente na ordem social é o da incerteza. Disso decorre que os sistemas sociais, ao estabilizarem as expectativas através da seleção da complexidade do possível, estão construídos sobre sua instabilidade”. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.12. [18] KUNZLER, Caroline de Morais. A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia, Araraquara, 16, p.129, 2004. [19] ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.13. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8562 [20] “Ego, ao expressar algo, o faz selecionando a informação, (se) esta informação é entendida por alter através de uma correlação com sua própria recursividade perceptiva, irá gerar um novo procedimento. A comunicação, assim apresentada, deve ser compreendida com uma junção e três momentos: informação, mensagem e compreensão”. Idem, 14. [21] MATHIS, Armin. O conceito de sociedade na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Texto extraído do site www.infoamerica.org.br, p. 7. (Acesso em 07/07/2009) [22] ROCHA, Leonel Severo. Verbete “Niklas Luhmann”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 252. [23]ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.15. [24] Idem p.17. [25] Idem, p.18. [26] ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.21-22. [27] Idem, p.38. [28] ROCHA, Leonel Severo. Verbete “Niklas Luhmann”, in Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 252. [29] MADEIRA, Lígia Mori. O Direito nas Teorias Sociológicas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, pp. 19-39, junho 2007, p.33. [30] ROCHA, Leonel Severo. Op. Cit. p.252. [31] ARNAUD, André-Jean; LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004p.24. [32] BOBBIO, Norberto. A análise funcional do direito: tendências e problemas. Da estrutura à função: novos estudos da teoria do direito. São Paulo: Manole, 2007. [33] Na identificação da função dever-se-á considerar os princípios e valores do ordenamento que a cada vez permitem proceder à valoração do fato. Ao valorar o fato, o jurista identifica a função, isto é, constrói a síntese global dos interesses sobre os quais o fato incide. A função do fato determina a estrutura, a qual segue – não precede – a função. Identificar a função significa considerar seja a composição inicial dos interesses, seja a composição final. A função do fato se realiza de modo diverso conforme a situação preexistente. Ver mais em PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp.642-643. [34] MORAES, Maria Celina Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista Estado, Direito e Sociedade, vol, I, 1991, publicação do Departamento de Ciência Jurídicas da Puc-Rio. [35] LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para uma teoria general; 2 ed., Barcelona: Anthropos, 1988, p.27. [36] Habermas abre caminho para um novo tipo de análise das ciências humanas, mostrando como as insuficiências do empirismo puro vão dando lugar a outros tipos de reflexão, como a hermenêutica de Gadamer, processo de defende a não objetivação do processo a partir de um cientista social que não seja estritamente neutro. [37] TEPEDINO, Gustavo. Revista Trimestral de Direito Civil, Editorial, vol. 35. Rio de janeiro: Padma, 2008. [38] LEAL, Rogério Gesta. Verbete “Jüngen Habermas in Dicionário de Filosofia do Direito. Organizador: Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro : Renovar, 2006, p.405. * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8563