A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS*

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A FASE PREPARATÓRIA DO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS*
José Luís Lopes da Mota
Procurador-Geral Adjunto
SUMÁRIO:1. Inserção histórica e
sistemática da reforma de 1987. O
Código de Processo Penal de 1929 e
sua evolução. As fases preliminares no
regime anterior. 2 . As incidências da
reforma nas fases preliminares do
processo. O inquérito. 3. A estrutura
acusatória do processo. Simplificação
do processo e reforço da protecção dos
direitos fundamentais. 4.O estatuto do
Ministério Público. O modelo
português. A autonomia do Ministério
Público. 5. Posição e estatuto do
Ministério Público e das polícias no
inquérito. A abertura do inquérito e sua
obrigatoriedade. As funções dos órgãos
de polícia criminal no inquérito. 6. As
medidas cautelares e de polícia. Actos
de iniciativa própria. Actividade
delegada.7. O juiz de instrução. Posição
e funções do juiz de instrução no
inquérito. 8. O arguido. O estatuto de
arguido. Direitos e deveres processuais.
O defensor. 9. A prova no inquérito.
Meios de prova e meios de obtenção de
prova. Liberdade de prova e proibições
de prova. 10. O encerramento do
*
O presente trabalho tem por base o texto de uma comunicação apresentada pelo signatário, na
qualidade de docente do Centro de Estudos Judiciários (Lisboa), na École Nationale de la Magistrature,
em 15 de março de 1994, no âmbito da acção de formação contínua de magistrados subordinada ao
tema “A fase preparatória do processo penal - visão de direito comparado” (Paris, 14 a 18 de Março
de 1994), ampliado, revisto e actualizado, tendo em conta, nomeadamente, as alterações decorrentes
da revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.° 59/98, de 25 de agosto.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
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inquérito. Prazos do inquérito. Decisões
de arquivamento e de acusação.11. O
encerramento do inquérito (cont.). As
inovações do Código de Processo Penal
de 1987. Soluções informais et de
consenso. Arquivamento em caso de
dispensa de pena. Suspensão provisória
do processo. Processo sumaríssimo.
Fixação do limite da pena em cinco anos
em casos abstractamente puníveis com
pena superior. 12. O processo abreviado
e a aceleração das fases preliminares
do processo. 13. A instrução. O
contraditório nas fases preliminares. O
debate instrutório Encerramento da
instrução. Despacho de pronúncia.
Despacho de não-pronúncia. 14. A
experiência de aplicação do Código de
Processo Penal de 1987. Alguns dados.
1. O novo Código de Processo Penal português, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, no uso de autorização legislativa
concedida pela Lei n.º 43/86, de 26 de setembro, em vigor desde 1° de janeiro
de 1988, introduziu profundas alterações estruturais no processo penal português
e consagrou um modelo reconhecidamente situado na vanguarda do movimento
de reforma do processo penal na Europa. 1
1
220
Como se pode verificar, o Código de Processo Penal consagrou soluções que têm vindo a inspirar o
movimento de reforma dos processos penais na Europa, de acordo com as tendências e as orientações
expressas em diversos fora e organismos internacionais (cfr., nomeadamente, as recomendações do
Conselho da Europa nesta matéria). Idênticas soluções estão presentes no embrião da proposta do
processo penal europeu (incluído no denominado Corpus Juris), elaborado por um grupo de peritos
sob a direcção de M. DELMAS-MARTY. Sobre o assunto cfr., nomeadamente, M. DELMAS-MARTY
e J.A.E. VERVAELE, The Implementation of the Corpus Juris in the Member States, Intersentia,
Antwerpen-Groningen-Oxford, 2000. Cfr. ainda CUNHA RODRIGUES, Direito Processual Penal
– Tendências de reforma na Europa continental – o caso português, Separata do vol. LXIV (1988)
do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990, e ALMEIDA
COSTA, Alguns princípios para um direito e processo penais europeus, Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, Ano 4, n.º 2 (1994), p. 199.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
Os resultados da sua aplicação, não obstante as dificuldades evidenciadas,
que a revisão de 1998 visou, entretanto, a superar em nível normativo2, vieram
confirmar os prognósticos e as expectativas da reforma, nitidamente detectáveis
nas fases preliminares, em que sobressai um claro reforço da celeridade, da
eficiência e do estatuto do arguido. A leitura desses resultados não pode, todavia,
deixar de levar em conta o contexto da sua aplicação, caracterizado, por um
lado, pela alteração das características da criminalidade, de que relevam,
nomeadamente, novas formas de criminalidade económica e financeira, com
elevados níveis de organização e de sofisticação, e a subida dos índices de
criminalidade registada pelas polícias e pelo Ministério Público (cerca de 100%,
nos últimos 12 anos)3, e, por outro, por conhecidas insuficiências de estrutura,
de organização e de métodos de intervenção determinados pelas novas regras
processuais e pela nova realidade criminológica.4
2
3
4
Sobre a revisão de 1998 cfr. a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (altera o Código
de Processo Penal), Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 27, de 29 de janeiro de 1988,
p. 481-517. Ver ainda a Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8, n.º 2, abril-junho de 1998
(número temático sobre a revisão do Código de Processo Penal) e O Código de Processo Penal (4
vols.), edição da Assembleia da República, 1998, contendo os trabalhos preparatórios da revisão e
textos de um colóquio parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, que teve lugar em
maio de 1998.
Cfr., nomeadamente, os relatórios anuais dos serviços do Ministério Público publicados pela
Procuradoria-Geral da República, contendo dados de muito interesse para se caracterizar a situação,
bem como as estatísticas da Justiça publicadas pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério
da Justiça, como órgão delegado do Instituto Nacional de Estatística, que, nos últimos anos, passaram
a incluir dados integrados sobre a criminalidade registada pelas polícias, de fundamental importância
para se compreender a estrutura e a evolução da criminalidade em Portugal. Sobre conteúdo, estrutura
e caracterização das estatísticas da criminalidade e do processo cfr. Relatório dos Serviços do Ministério
Público do ano de 1992 dados relativos ao sistema de justiça penal, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Ano 3, n.° 2-4, (abril-dezembro de 1993), p. 585.
O reforço da eficácia da investigação da criminalidade econômica e financeira determinou a publicação
do Decreto-Lei n.° 299/94, de 13 de dezembro, que estabeleceu a estrutura orgânica da Direcção
Central para o Combate à Corrupção, Fraudes e Infracções Económico-Financeiras, da Polícia Judiciária,
cuja lei orgânica foi aprovada pelo Decreto-Lei n.° 295-A/90, de 21 de setembro. No que se refere ao
Ministério Público, só em 1998 se procedeu à revisão da respectiva Lei Orgânica, por meio da Lei
n.º 60/98, de 20 de agosto (aprova o Estatuto do Ministério Público), para responder às necessidades
e às exigências de organização e de funcionamento decorrentes do novo Código de Processo Penal.
De notar que o art.° 6º da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro, impunha ao Governo a adopção das
providências necessárias e adequadas para que a entrada em vigor do Código de Processo Penal fosse
precedida da publicação da respectiva legislação complementar, mediante lei da Assembleia da República
ou decreto-lei do Governo, conforme o caso, nomeadamente da legislação sobre o quadro próprio de
funcionários do Ministério Público e “demais meios necessários à efectivação das respectivas
competências” (n.º 1, alínea a). Os DIAP (Departamentos de Investigação e Acção Penal), que
tiveram de ser constituídos como estruturas informais em 1988, no âmbito das possibilidades de
auto-organização interna, só vieram a ser “legalizados” com a publicação do Estatuto de 1998.
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Substituindo o Código de Processo Penal de 1929 (CPP29) e a legislação
que o complementou e alterou a partir de 1945, influenciado pela lição do direito
comparado europeu (nomeadamente de Espanha, França, Itália e Alemanha),
pelas aquisições da moderna criminologia, pela elaboração da ciência jurídica
processual penal identificada com os princípios do Estado de Direito democrático,
pela acção do Conselho da Europa e pela tradição e praxis processuais
anteriores, o novo Código introduziu profundas mudanças na fase preparatória
do processo.5
O CPP29, que assumia o propósito de acentuação da verdade material
como fim do processo, havia optado, no modelo inicial, por um tipo de processo
de estrutura inquisitória, atribuindo ao juiz a direcção quer do chamado “corpo
de delito” (instrução preparatória) quer da instrução contraditória, mas reservara
para o Ministério Público um papel passivo, de mero acusatório formal,
subordinado ao juiz, que podia, inclusive, dar-lhe ordens de acusação.6
Em 1945, por meio do Decreto-Lei n.º 35007, de 15 de outubro, em
pleno contexto de consolidação da autoridade do “Estado Novo”, o CPP29
sofreu a sua primeira grande alteração ao nível das fases preliminares do processo.
Essa alteração, por um lado, reforçou o papel do Ministério Público, que
então se organizava na dependência hierárquica do Ministro da Justiça,
atribuindo-lhe a direcção da instrução preparatória e a titularidade da acção
penal. Por outro lado, consagrou legalmente a estrutura acusatória do processo,
associada ao princípio de investigação, como dever do tribunal, e reorganizou a
instrução contraditória sob a direcção do juiz, obrigatória nos crimes mais graves,
5
6
222
Sobre a reforma do processo penal de 1987, seu sentido, profundidade e alcance, podem consultar-se
os trabalhos publicados em O Novo Código de Processo Penal - Jornadas de Direito Processual
Penal, Centro de Estudos judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1991; e ainda FIGUEIREDO
DIAS, O Novo Código de Processo Penal, Separata do Boletim do Ministério da Justiça n.º 369, e
Código de Processo Penal e outra Legislação Processual Penal, Aequitas-Editorial Notícias, 1992.
Cfr. ainda o Preâmbulo do Código de Processo Penal e a Lei n.º 43/86, de 26 de setembro (lei de
autorização legislativa).
Cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora,
1984; CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra, 1968; e
CAVALEIRO DE FERREIRA - Curso de Processo Penal (2 vols.), Editora Danúbio, Lisboa, 1986.
Cfr. artigo 346.º do Código de Processo Penal de 1929.
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da competência do tribunal colectivo, a que correspondia processo de querela
(crimes puníveis com pena de prisão superior a dois anos).
O sistema veio a merecer fortes críticas pelas limitações decorrentes da
falta de autonomia do Ministério Público, pela sua subordinação funcional ao
poder político, que dispunha da faculdade de intervir no exercício da acção
penal, e pela protecção que concedia aos agentes do Estado, por meio das
restrições ao exercício da acção penal contra estes, dependente de autorização
do Governo (sistema de garantia administrativa).7
Após o de 25 de abril de 1974, com a estruturação do Estado
democrático, conaturais alterações de fundo foram introduzidas no processo
penal, no sentido da sua democratização, por sucessivos diplomas avulsos, que,
no entanto, fragmentaram o processo, quebraram a sua anterior lógica interna e
criaram inevitáveis desarmonias, produto de concepções políticas genéticas
diversas e dificilmente conciliáveis.
O Decreto-Lei n.° 605/75, de 3 de novembro, constituiu, então, a primeira
alteração normativa de vulto, em realização do Programa do MFA e do Plano
de Acção do Governo Provisório.
Para além das alterações na fase de julgamento, esse diploma introduziu
modificações profundas nas fases preparatórias do processo. Protagonizando
anunciadas intenções de simplificação e celeridade processual, dispensou a
realização de instrução preparatória nos crimes menos graves – puníveis com
prisão até ao limite de dois anos, mais tarde (1982) elevado para três anos – e
criou uma nova figura processual – o inquérito policial, que, a partir de 1977, se
passou a denominar inquérito preliminar (Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de
setembro) –, da competência das polícias, para investigação célere e simplificada
destes tipos de crime.
7
Cfr., nomeadamente, o artigo 3.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de outubro de 1945, que
dispunha: “O exercício da acção penal depende: (...) 3.º - De autorização do Ministro do Interior,
quando sejam arguidas autoridades ou agentes da autoridade que gozem de garantia administrativa, nos
termos da lei.”
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O sistema veio a sofrer ajustamentos após a aprovação da Constituição
de 1976 e da revisão constitucional de 1982 (Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de
setembro, e Decreto-Lei n.º 402/82, de 23 de setembro), essencialmente com o
intuito de reforço da protecção dos direitos fundamentais, em conformidade
com o novo quadro axiológico e normativo a que o Estado passou a estar
vinculado.
De acordo com o regime em vigor à data de edição do Código de Processo
Penal de 1987, as fases do processo anteriores ao julgamento estruturavam-se
esquematicamente pela seguinte forma:
a) Os crimes puníveis com pena de prisão até três anos eram investigados
em inquérito preliminar, pelos diversos órgãos de polícia, agindo, em regra, de
forma autônoma, sem regras de vinculação judiciária e, nalguns casos, dispensadas
de comunicar ao Ministério Público a própria abertura do inquérito;
b) O inquérito preliminar deveria estar concluído no prazo de trinta dias
(muito difícil e raramente cumprido), findos os quais deveria ser remetido ao
Ministério Público para decisão final de acusação ou não-acusação;
c) O Ministério Público podia avocar o inquérito, concluí-lo sob a sua
direcção ou devolvê-lo às polícias para realização de actos em falta;
d) No caso de ao crime corresponder pena de prisão superior a três
anos, o Ministério Público deveria requerer a abertura de instrução preparatória,
que passava a decorrer sob a presidência do juiz de instrução que, em grande
parte dos casos, para além de interrogar o arguido (acto obrigatório de instrução),
limitava a sua intervenção à ratificação dos actos de inquérito, encerrava a instrução
e remetia o processo ao Ministério Público para dedução ou não de acusação;
e) Os crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos eram
investigados em instrução preparatória, sob a direcção do juiz de instrução que,
assumindo, em regra, uma atitude passiva, tendia a reduzir a sua intervenção a
uma acção de mediação entre o impulso do Ministério Público (que promovia as
diligências convenientes à instrução) e a execução dos actos pelas polícias e à
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verificação do cumprimento dos actos que lhes haviam sido ordenados, com
consideráveis perdas de racionalidade e de eficácia;
f) Concluída a instrução, o processo era apresentado ao Ministério Público
para acusação (inexistindo fundamento para acusação, entendia a jurisprudência
dominante que não cabia ao Ministério Público decidir do destino do processo
– decisão de arquivamento ou no sentido de ficar a aguardar a produção de
melhor prova –, por ser acto considerado da competência do juiz, negando-se,
assim, à intervenção do Ministério Público a natureza de acto decisório da
instrução, ou seja, relativo ao exercício da acção penal);
g) À instrução preparatória podia seguir-se uma fase de instrução
contraditória, destinada a completar a prova recolhida na instrução preparatória
e a possibilitar o exercício do contraditório, a requerimento do Ministério Público,
do assistente ou do arguido, obrigatória, no entanto, relativamente a processos
por crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos;
h) Havendo indícios suficientes da prática do crime e sendo admissível o
procedimento, as fases preliminares do processo encerravam-se por despacho
do juiz do julgamento, que, apreciando os indícios resultantes do processo,
recebia ou rejeitava o requerimento para julgamento no termo do inquérito ou
proferia despacho de pronúncia ou de não-pronúncia no termo da instrução;8
i) Do despacho de abstenção do Ministério Público era admissível
reclamação para o imediato superior hierárquico, no prazo de trinta dias, o qual
podia confirmar a decisão, ordenar novas diligências ou ordenar a dedução de
acusação.
8
O sistema gerou forte controvérsia a propósito da questão da sua conformidade com a Constituição
e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Cfr., nomeadamente, o acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 219/89, proferido no Proc.° n.º 14/1993/409/488 (pedido n.º 15651/89 - caso Saraiva
de Carvalho c. Portugal), de 22.4.94, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, bem como a
anotação, a esta decisão, de HENRIQUES GASPAR, In Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
Ano 4.º, n.º 3 (julho-setembro de 1994), p.405-417.
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2. O Código de Processo Penal de 1987 veio a eliminar essa diversidade
de procedimentos e transformou o inquérito, sob a titularidade do Ministério
Público – agora com estatuto e poderes de verdadeira magistratura, pressuposto
essencial em que se assenta a formulação do novo modelo processual 9–, na
fase normal de investigação e de preparação da decisão de acusação,
independentemente do tipo de crime e da moldura da pena correspondente.
Conferiu-se, desta forma, unidade e racionalidade ao processo,
clarificaram-se os estatutos e os papéis das autoridades judiciárias – Ministério
Público e juiz de instrução – e dos órgãos de polícia criminal e reforçou-se a
eficácia do sistema e a tutela dos direitos fundamentais ao nível das fases
preliminares.
Para uma exacta compreensão do sentido e da dimensão das mudanças,
justifica-se uma breve abordagem dos vectores fundamentais da reforma de
1987.
Sinteticamente podem identificar-se os seguintes vectores, com expressão
nas fases preliminares:
a) Construção do modelo no respeito e em desenvolvimento do quadro
axiológico consagrado na Constituição e em convenções internacionais com
relevância na matéria, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(Conselho da Europa)10 e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(ONU)11, visando à conciliação, de forma eficiente, das finalidades do processo
(a segurança, a liberdade e a protecção dos direitos fundamentais);
b) Estruturação em conformidade com um sistema essencial de
coordenadas de distinção entre pequena criminalidade e criminalidade grave,
entre soluções de consenso e de conflito, com a correspondente diversidade de
tratamento processual;
9
10
11
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Sobre a posição e o estatuto do Ministério Público no processo penal podem ver-se FIGUEIREDO
DIAS, Sobre os sujeitos processuais; e LABORINHO LÚCIO, Sujeitos do processo penal, Jornadas
de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, cit.. Cfr. ainda CUNHA RODRIGUES, Ministério
Público, Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. V, 1993, p. 502 e segs..
Aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro.
Aprovado, para ratificação, pela Lei n.° 29/78, de 12 de junho.
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c) Participação de um programa político-criminal recolhendo soluções de
diversão (desjudiciarização, informalidade da reacção), participação,
oportunidade e consenso, relativamente a crimes de pequena gravidade, casos
da suspensão provisória do processo (art.º 281.º), do arquivamento do processo
em casos de verificação dos pressupostos para a dispensa de pena (art.° 280.º),
do processo sumaríssimo (art.º 392.º) e da homologação pelo Ministério Público
da desistência de queixa aceite pelo arguido com o consequente arquivamento
do processo (art.º 5.°);
d) Reforço das ideias de simplificação e aceleração processual (com
criação de um incidente próprio para aceleração de processo atrasado, a decidir
pelo Procurador-Geral da República ou pelo Conselho Superior de Magistratura,
conforme os casos).
3. A aproximação da análise a aspectos particulares do novo modelo
permite detectar, ao nível das fases preparatórias, alguns aspectos a merecer
evidência. 12
No que respeita aos sujeitos processuais, identifica-se uma clara estrutura
acusatória, integrada por um princípio de investigação13, com delimitação nítida
de funções entre o Ministério Público, o juiz de instrução e o juiz de julgamento,
e assiste-se a uma nítida melhoria da posição processual do arguido, agora dotado
de estatuto próprio com clara enunciação dos seus direitos e deveres processuais,
a uma definição expressa do estatuto e das atribuições processuais das polícias
criminais e à redefinição do estatuto processual do lesado (parte civil).
Na regulamentação dos actos processuais, o Código distancia-se da
regulamentação excessivamente detalhada, criando um quadro de
desburocratização, simplificação e desformalização da aplicação da justiça penal.
12
13
Sobre a fase preliminar do processo, em geral, cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Do Processo
Penal Preliminar, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1990. Ver ainda TERESA BELEZA, Apontamentos de
Direito Processual Penal (aulas teóricas dadas ao 5.º ano, 1991/92), Associação Académica da
Faculdade de Direito de Lisboa.
Sobre os princípios fundamentais do processo cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal,
primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, p. 115-229.
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Em matéria de prova, reforça-se o princípio da legalidade, regulamentam-se
as consequências da sua violação (por via das proibições de prova),
consagra-se o princípio da livre apreciação, regulam-se expressamente as
competências do juiz de instrução, do Ministério Público e das polícias e
confere-se relevo processual às medidas cautelares e de polícia.
No âmbito das medidas de coacção e de garantia patrimonial extraem-se
as necessárias consequências da relevância da presunção de inocência do arguido,
pela clarificação e reforço de princípios da legalidade, tipicidade, adequação,
proporcionalidade, subsidariedade e precariedade, e extingue-se o regime de
incaucionabilidade que, no anterior regime, impedia, em regra, a substituição da
prisão preventiva por medida de liberdade provisória relativamente a um elenco
de crimes graves tipicamente previstos.14
A opção por uma estrutura de processo tipicamente acusatória
associa-se, de forma intrínseca, ao estatuto do Ministério Público, definitivamente
erigido em magistratura autónoma.
A natureza essencial dessa questão justifica uma aproximação mais
detalhada ao modelo português de Ministério Público que, no contexto dos países
de referências sistémicas e culturais próximas, apresenta traços de
especificidade.15
4. Integrado na lógica de separação e de interdependência de poderes
que a Constituição de 1976 adopta, o Ministério Público constitui um órgão do
Estado com consagração constitucional, encarregado de representar o Estado,
exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses postos
por lei a seu cargo.16
14
15
16
228
Cfr. Decreto-Lei n.º 477/82, de 22 de dezembro.
Cfr. supra, nota 8.
Nomeadamente, e no essencial, a representação judiciária do Estado em processo civil, a defesa dos
interesses dos menores, dos trabalhadores, do ambiente, dos consumidores e do património cultural
(cfr. art.º 3.º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 60/98, de 20 de agosto).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
Órgão integrado nos tribunais, com atribuições não materialmente
jurisdicionais – no sentido de definição do direito aplicável ao caso concreto
com força de caso julgado –, nem limitadas aos tribunais – dadas as atribuições
de órgão de consulta do Govemo17 – e dotado de autonomia e estatuto próprio,
constitucionalmente reconhecidos18, o Ministério Público assume a natureza de
órgão do poder judicial ou de órgão de justiça. Esta concepção reflecte-se,
nomeadamente, nas normas de organização, estatuto e funcionamento, sujeitos
a princípios típicos da magistratura, na prossecução de fins e atribuições de
iniciativa processual condicionadores da intervenção judicial e na função de
auto-limitação do poder judicial.19
A autonomia do Ministério Público representa a característica mais
relevante do seu estatuto.
Referida legalmente com relação aos demais órgãos do poder central,
regional e local, a autonomia caracteriza-se pela vinculação a critérios de
legalidade, objectividade e isenção e exclusiva sujeição dos magistrados e agentes
do Ministério Público às directivas, às ordens e às instruções emitidas pelos
órgãos e magistrados de nível hierárquico superior, de acordo com a lei.20
Na sua definição legal, a autonomia do Ministério Público assume sentidos
bem definidos:21
17
18
19
20
21
Por meio do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (cfr. art.º 36.º e segs. do
Estatuto do Ministério Público).
Cfr. art.º 219.º da Constituição.
Cfr. CUNHA RODRIGUES, Ministério Público, loc. cit.
A projecção desses critérios na concepção hierárquica do Ministério Público e a conciliação dos
princípios e regras próprias da hierarquia com a natureza do Ministério Público como magistratura
permitem identificar uma hierarquia sui generis, que se distingue claramente da hierarquia
administrativa. Enquanto as regras da hierarquia administrativa só legitimam a não obediência a
ordens ilegais nas situações em que estas conduzem à prática de crime, no caso do Ministério Público
existe, desde logo, o dever de não cumprimento de ordens ilegais (cfr. art.º 76.º e 79.º do Estatuto do
Ministério Público). Para além disso, o funcionamento da hierarquia, em processo penal, deve
harmonizar-se com as regras de competência previstas no Código (art.º 264.º a 266.º) e de representação
do Ministério Público nos tribunais (art.º 4.º do Estatuto do Ministério Público). Cfr. JOSÉ MANUEL
MEIRIM, Recusa de cumprimento de directivas, ordens e instruções com fundamento em grave
violação da consciência jurídica, Revista do Ministério Público, Ano 13, n.º 51 (julho-setembro de
1992), p. 51-61.
Cfr. art.º 2.º, 15.º, 27.º, 75.º e 80.º do Estatuto do Ministério Público.
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a) De não ingerência do poder político, maxime do Ministro da Justiça,
no exercício das suas atribuições, designadamente no exercício da acção penal;
b) De concepção e estruturação como magistratura própria, orientada
por um princípio de separação e de paralelismo em relação à magistratura judicial,
com estatuto idêntico;
c) De adopção de um órgão de governo próprio, o Conselho Superior do
Ministério Público, presidido pelo Procurador-Geral da República, composto
por membros eleitos pelos magistrados e membros designados pela Assembleia
da República e pelo Governo, e com competências de gestão, disciplina e
apreciação do mérito dos magistrados.
Esse estatuto projecta-se, de forma estruturante, no Código, pela definição
de regras precisas na caracterização da posição do Ministério Público no âmbito
do processo penal, ao reafirmar o princípio da objectividade da intervenção
(art.º 53.º), ao determinar a aplicação aos magistrados do Ministério Público
das disposições relativas a impedimentos, recusas e escusas do juiz (art.º 54.º),
ao estabelecer a obrigação do Ministério Público de investigar “à charge” e “à
décharge” (art.º 262.º) e ao atribuir legitimidade ao Ministério Público para
recorrer no exclusivo interesse da defesa (art.º 401.º).
Constituindo uma magistratura independente da magistratura judicial e
diferente desta, hierarquicamente organizada e tendo por órgão superior a
Procuradoria-Geral da República, presidida pelo Procurador-Geral da
República, o Ministério Público tem como agentes:22
a) O Procurador-Geral da República, que preside ao Ministério Público,
ao Conselho Superior do Ministério Público e ao Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República e representa o Ministério Público no Supremo
Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo
no Tribunal de Contas;
22
230
Cfr. art.º 8.º do Estatuto do Ministério Público.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
b) O Vice-Procurador-Geral da República, que coadjuva e substitui o
Procurador-Geral da República;
c) Os procuradores-gerais-adjuntos, que representam o Procurador-Geral
da República nos Tribunais Supremos, exercem funções de consulta jurídica no
Governo (auditores jurídicos), integram o Conselho Consultivo da ProcuradoriaGeral da República (órgão de consulta do Governo e do Procurador-Geral da
República) e representam o Ministério Público nos tribunais de 2ª instância;
d) Os procuradores da República, que coordenam os magistrados do
Ministério Público na 1ª instância e, em regra, representam o Ministério Público
nos tribunais colectivos e nos tribunais administrativos e fiscais de 1ª instância; e
e) Os procuradores-adjuntos23 que representam o Ministério Público na
generalidade dos tribunais de 1ª instância.
Os princípios da oficialidade e do acusatório conferem ao Ministério
Público atribuições de quase monopólio da acção penal, apenas dependentes
da intervenção do ofendido na qualidade de assistente relativamente a crimes
em que é necessária acusação particular, embora numa posição de subordinação
processual. 24
A posição do Ministério Público no processo penal insere-se num contexto,
mais global, de necessidade de reforço da acção do Estado na repressão da
criminalidade, dadas as suas novas formas de organização, e de enfraquecimento
do controlo informal – controlo social, pela família, pelos grupos e instituições –,
que têm conduzido à crise os modelos do juiz de instrução (casos de Itália e
Alemanha), e decorre das cada vez mais sentidas exigências de coordenação do
combate à criminalidade por meio do sistema de justiça e do reforço do estatuto
23
24
Até à aprovação do Estatuto de 1998, os procuradores-adjuntos tinham a designação de delegados do
procurador da República (cfr. art.º 44.º da Lei Orgânica do Ministério Público Lei n.º 47/86, de 15 de
outubro).
Sobre o assistente, que constitui uma figura típica do sistema processual penal português, cfr. art.º 68.º
e segs. do Código de Processo Penal.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
231
de imparcialidade do juiz, no quadro dos valores e princípios do Estado de
direito democráticos.25
5 . Essa concepção motiva uma dupla consequência estruturante de todo
o processo na fase de inquérito: a atribuição da direcção do inquérito ao Ministério
Público, com natureza e poderes de autoridade judiciária, e atribuição de funções
de polícia criminal às polícias em geral, com o estatuto processual de auxiliares
do Ministério Público, sob a sua orientação e na sua dependência funcional
(art.º 56.ºe 263.º CPP).26
Reforça-se, por esta via, a importância das polícias no controlo da
criminalidade (na dupla vertente de prevenção e repressão) e na tutela dos direitos
e garantias fundamentais. A realização da investigação sob controlo de autoridade
judiciária emerge como corolário da necessidade de reforço da isenção e
objectividade das polícias (atributos tradicionalmente associados, de forma mais
expressiva, ao estatuto das magistraturas), em conformidade com as orientações
das instâncias internacionais (da ONU e do Conselho da Europa).
A atribuição dos poderes de direcção do inquérito ao Ministério Público
não significa que deva ser o Ministério Público a realizar a investigação, o que
constitui tarefa própria das polícias.
25
26
232
A este propósito pode ver-se o recente debate travado em França, pátria do juiz de instrução, acerca
do projecto de lei relativo à acção pública em matéria penal e modificando o Código de Processo
Penal (Projecto de lei n.º 350, adoptado pela Assembleia Nacional em 29.06.1999, nomeadamente
o respectivo Capítulo III relativo ao reforço do controlo da autoridade judicial sobre a polícia
judiciária). Pode ler-se na respectiva exposição de motivos: “A cette fin, le présent projet de loi se
propose tout d’abord de modifier l’article 14 du code de procédure pénale afin qu’il précise désormais
que la police judiciaire s’exerce dans le cadre des orientations données par le procureur de la République.
I1 est ainsi clairement exprimé que l’activité de police judiciaire a vocation à s’exercer dans le cadre
défini par les autorités judiciaires. Un certain nombre de dispositions, introduites à l’article 41 et
à l’article 152-1 du code de procédure pénale, ont ensuite pour but de foumir au procureur de la
République et au juge d’instruction des outils nouveaux leur permettant de contrôler réellement les
activités des services de police judiciaire afin d’améliorer 1’efficacité de la lutte contre la délinquance.
Il sera ainsi dorénavant précisé que le procureur de la République contrôle non seulement les mesures
de garde à vue mais également le déroulement: des enquêtes”.
Sobre o conceito, o estatuto e as funções dos órgãos de polícia criminal no processo cfr. FIGUEIREDO
DIAS, Polícia no processo criminal, Revista de Investigação Criminal, n.º 21, 1986, p. 23; e CUNHA
RODRIGUES, A posição institucional e as atribuições do Ministério Público e das polícias na
investigação criminal, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 337, p. 15. Ver ainda DAMIÃO DA
CUNHA, O Ministério e os órgãos de polícia criminal, Universitas Catholica Lusitana, Porto, 1993.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
Como se salienta no despacho27 do Procurador-Geral da República de
21 de dezembro de 1987, os poderes jurídicos do Ministério Público
caracterizam-se como poderes de emitir directivas, ordens e instruções sobre
actos e diligências de inquérito, de delegar ou solicitar a realização de diligências,
de presidir ou assistir a actos ou autorizar a sua realização, de acompanhar e
fiscalizar a realização de actos, de avocação e devolução do inquérito. Porém,
sem prejuízo desses poderes, há que, em cuidadosa articulação de papéis e
ponderação do caso concreto, considerar o respeito pelas leges artis da
criminalística e das polícias, devendo ser realizadas por estas as tarefas de
investigação que exigem técnicas, estratégias e meios logísticos e operacionais
próprios das polícias.
Representando uma vertente particularmente sensível do sistema, em face
da ausência de tradição de vinculação judiciária da actividade das polícias, e
que apela, com particular ênfase, a regras e práticas de colaboração e confiança
recíprocas, a dependência funcional das polícias no inquérito – correspondendo
a uma posição intermédia entre a total autonomia e a total dependência, funcional
e hierárquica – exige a distinção de dois planos: o organizacional e o processual.
No plano organizacional há de levar em conta o disposto nas leis orgânicas
das várias polícias28, definidoras de organização, competência e regras de
funcionamento interno. Estão envolvidos, nesse plano, aspectos técnicos,
estratégicos, operacionais e logísticos, em que deve ser preservado o conteúdo
essencial da autonomia das polícias. Levando em conta esses aspectos, a
dependência funcional deverá desenvolver-se num quadro de coordenação,
confiança, desburocratização, simplificação e cooperação, essenciais ao
funcionamento do sistema.
27
28
Transmitido pela Circular n.º 8/87 da Procuradoria-Geral da República, relativa à aplicação do novo
Código de Processo Penal.
Cfr., nomeadamente, as leis orgânicas da Polícia Judiciária (Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de
setembro), Polícia de Segurança Pública (Lei n.º 5/99, de 27 de janeiro), Guarda Nacional Republicana
(e suas Brigada Fiscal e Brigada de Trânsito – Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de junho), Inspecção
Geral das Actividades Econômicas (Decreto-Lei n.º 14/93, de 18 de janeiro). Serviço de Estrangeiros
e Fronteiras (Decreto-Lei n.º 440/86, de 31 de dezembro) e de outros organismos da Administração
com competências em matérias criminais específicas (como, por exemplo, a Inspecção-Geral do
Ambiente, com competência para a investigação de crimes contra o ambiente – crf. Decreto-Lei
n.º 549,/99, de 14 de dezembro).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
233
No plano processual, importa ter presentes as regras impostas pelo direito
geral de polícia29 e, acima de tudo, pelo Código de Processo Penal.
O estatuto e a competência das polícias no inquérito e a sua articulação
com o Ministério Público definem um modelo articulado e coerente, que se pode
caracterizar pela enunciação sintética de algumas regras essenciais.
Obtida a notícia de um crime, por conhecimento próprio ou denúncia, as
polícias adquirem o estatuto processual de órgão de polícia criminal. O momento
da aquisição da notícia tem efeito processual de especial relevo na medida em
que assinala a passagem da actividade (preventiva) de polícia administrativa à
actividade (repressiva) de “polícia judiciária”, auxiliar do Ministério Público, a
partir de então vinculada a idênticas regras de procedimento processual penal
(art.º 247.º e 262.º, n.º 2).
Reunidos os pressupostos processuais de legitimidade do Ministério
Público quanto a crimes dependentes de queixa do ofendido, e não sendo caso
de detenção em flagrante delito que conduza a procedimento acelerado, com
julgamento imediato ou no prazo máximo de 48 horas (processo sumário), a
notícia de um crime dá sempre lugar a inquérito, a realizar-se sob a direcção do
Ministério Público.
O inquérito compreende o conjunto das diligências necessárias à
descoberta do crime, dos seus autores e da sua responsabilidade e à descoberta
e conservação de provas, constituam elas tarefas materiais de investigação stricto
sensu ou de documentação e registo da prova, o que significa a inadmissibilidade
de desenvolvimento de actividades de investigação criminal fora do âmbito do
processo (art.º 262.°).
No inquérito, as polícias actuam na dependência funcional do Ministério
Público, praticando actos por delegação, que pode ser expressa, tácita ou
presumida (como sucede com a Polícia Judiciária, relativamente a crimes de
29
234
Moldado pelos princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade e tipicidade das
medidas de polícia (cfr. art.º 266.º e 272.º da Constituição).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
especial gravidade ou exigindo meios mais sofisticados de investigação
científica)30, em concreto ou por acto genérico31, ou assistindo ao Ministério
Público na realização de actos não-delegados.
O Código de Processo Penal adopta um conceito amplo de órgão de
polícia criminal (art.º 1.º, n.º 1, alínea c), que abrange todo e qualquer corpo
dotado de autoridade policial, chamado à prática de qualquer acto com reflexo
na lei penal, bastando, como se referiu, a aquisição da notícia do crime para
obtenção daquela qualidade.
Em regra, as polícias podem realizar, por delegação, todos e quaisquer
actos de inquérito, salvo os reservados estritamente para as autoridades
judiciárias.
Por iniciativa própria, as polícias devem:
a) Adquirir a notícia do crime e transmiti-la ao Ministério Público no mais
curto prazo (actividade de informação);
b) Impedir as suas consequências (actividade preventiva, como recuperar
objectos furtados ou libertar uma pessoa sequestrada);
c) Levar a efeito as medidas cautelares e urgentes relativas a meios de
prova, com poderes mais alargados tratando-se de terrorismo, criminalidade
violenta ou altamente organizada, para evitar perigo na demora;
d) Proceder a detenções em flagrante delito por qualquer crime a que
corresponda pena de prisão e fora de flagrante delito, mediante mandado, por
crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos;
e) Levar a efeito as diligências materiais de investigação necessárias à
descoberta do crime e dos seus agentes e a assegurar os meios de prova.
30
31
Cfr. art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90 cit.
Cfr. o art.º 270.º, n.º 4, que, com a revisão do Código de Processo Penal de 1998, veio a esclarecer
expressamente a possibilidade de delegação por acto genérico.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
235
A actividade de iniciativa da polícia tem natureza e características
processuais claras.
É obrigatória, pois representa um dever para as polícias (art.º 55.º CPP)
praticar todos os actos que, se omitidos, determinariam a perda ou o perigo de
dispersão de elementos de prova ou vestígios do crime. O que significa que as
polícias não devem aguardar instruções para agir.
É preliminar (art.º 241.º a 245.º, 248.º a 253.º e 254.º a 261.º CPP), na
medida em que é preordenada a fornecer ao Ministério Público o input da
investigação, porém, a partir do momento em que o Ministério Público assume a
direcção do inquérito, a polícia deve mover-se no âmbito das directivas, ordens
e instruções traçadas, salvo no que se refere à actividade destinada a assegurar
novos elementos obtidos após aquela intervenção (art.° 249, n.º 3) por razões
de urgência.
É temporária (art.º 249.º), pois deve ser imediatamente ou no mais curto
prazo comunicada ao Ministério Público e está condicionada pela efectiva
intervenção do Ministério Público.
É auxiliar (art.° 56.º e 263.º), porque realizada na dependência e sob
directa orientação e direcção do Ministério Público que assiste e coadjuva.
6. Visando à definição de um quadro de eficiência e dando relevo
processual à actividade de polícia, o Código estabelece, de forma inovadora,
regulamentação própria das medidas cautelares e de polícia, da iniciativa dos
órgãos de polícia criminal, nomeadamente em contexto de urgência e de perigo
na demora da intervenção da autoridade judiciária.
Assim, para assegurar os meios de prova, o Código reconhece
expressamente aos órgãos de polícia criminal competência para (art.º 249.º a
252.º):
a) Proceder a exames dos vestígios do crime, providenciando por evitar,
tanto quanto possível, que os seus vestígios se apaguem ou alterem (conservação
do estado dos lugares e das coisas);
236
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
b) Colher informações das pessoas (potenciais testemunhas) que facilitem
a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;
c) Colher informações dos suspeitos e de outras pessoas sobre factos
relativos a um crime e à descoberta de meios de prova susceptíveis de se
perderem antes da intervenção da autoridade judiciária;
d) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso
de urgência ou de perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares
necessárias à conservação ou à manutenção dos objectos apreendidos32;
e) Proceder à identificação de pessoas encontradas em lugares públicos,
abertos ao público ou sujeitos à vigilância policial, sempre que sobre elas recaiam
fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição
ou de expulsão, de que tenham penetrado ou permaneçam irregularmente em
território nacional ou de haver contra si mandado de detenção, nos termos
referidos nos nºs de 2 a 5 e 9 do art.º 250.º 33;
f) Conduzir suspeitos incapazes de se identificar ou que se recusem a
fazê-lo ao posto policial mais próximo e compeli-los a permanecer ali pelo tempo
necessário à identificação, não superior a 6 horas, realizando, em caso de
necessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e
convidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado e
receber comunicações;
g) Proceder a revistas de suspeitos em caso de fuga iminente ou de
detenção e a buscas no lugar em que se encontrem (salvo tratando-se de busca
domiciliária, dependente de autorização da autoridade judiciária), em casos de
terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, no caso de a pessoa
visada dar o seu consentimento e em situações de detenção em flagrante delito;
32
33
O regime legal das apreensões sofreu alterações significativas com a revisão de 1998 do Código de
Processo Penal (cfr. igualmente o art.º 178.º).
A nova redacção do artigo 250.º levou em conta o disposto na Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro, e visou
a resolver os problemas de harmonização de procedimentos que a entrada em vigor deste diploma
tinha suscitado em face da anterior redacção daquele preceito.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
237
h) Ordenar a suspensão, por tempo não superior a 48 horas, da remessa
de qualquer correspondência nas estações dos correios e telecomunicações,
com vistas na sua apreensão.
Num plano diverso incluem-se os actos praticados pelas polícias por
delegação do Ministério Público, de acordo com a regra de que este pode conferir
a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e
investigações relativas ao inquérito, com excepção dos actos da competência
exclusiva do juiz de instrução e dos actos da competência exclusiva do Ministério
Público.
A actividade delegada consiste, como a denominação indica, na prática,
pela polícia, de actos originariamente da competência do Ministério Público.
Não fixando a lei regras rígidas relativas à forma de delegação, esta
dependerá das circunstâncias concretas: por escrito ou oralmente, em caso de
urgência, com posterior redução a escrito, de conteúdo mais ou menos amplo,
mas sempre com respeito pelas regras processuais dos actos que vinculam o
Ministério Público, nomeadamente quanto a garantias de defesa e a documentação
dos actos.
A Lei Orgânica da Polícia Judiciária34, a polícia de investigação por
excelência, estabelece, em relação a um conjunto de crimes, de maior gravidade
ou investigação complexa, uma presunção legal de delegação exclusiva de
competência para investigação.
Assim, presume-se deferida na Polícia Judiciária, sem prejuízo da
dependência funcional do Ministério Público, a competência para a averiguação
de crimes:
a) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos,
valores equiparados e respectiva passagem;
34
238
Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro. Este diploma foi, entretanto, revogado pelo
Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, que aprovou a nova lei orgânica da Polícia Judiciária,
a qual manteve, no essencial, as competências definidas anteriormente.
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b) De fraude e desvio na obtenção de subsídio, subvenção ou crédito, de
corrupção;
c) Contra a segurança do Estado;
d) De perturbação de serviços de transporte por ar, água e caminho de
ferro;
e) Contra a paz e a humanidade;
f) De sequestro, escravidão e rapto;
g) De roubos em instituições de crédito ou repartições de fazenda pública;
h) Executados com bombas, granadas, matérias ou engenhos explosivos,
armas de fogo proibidas e objectos armadilhados;
i) De homicídio voluntário desde que o agente não seja conhecido;
j) De furto de coisa móvel que tenha valor científico, artístico ou histórico
e que se encontre em colecções públicas ou acessíveis ao público;
l) De furto de coisa que possua elevada significação no desenvolvimento
tecnológico ou econômico ou que, pela sua natureza, seja substância altamente
perigosa;
m) De associações criminosas;
n) De incêndio, explosão, exposição de pessoas a substâncias radioactivas
e libertação de gases tóxicos ou asfixiantes;
o) De tráfico de veículos furtados e viciação dos respectivos elementos
identificadores;
p) De falsificação de cartas de condução, livretes e títulos de propriedade
de veículos automóveis, de certificados de habilitações literárias, de passaportes
e de bilhetes de identidade; e
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
239
q) De tráfico de estupefacientes.
A lei prevê ainda que o Procurador-Geral da República possa delegar,
genericamente ou caso a caso, competência à Polícia Judiciária para o inquérito
relativamente a crimes concretos ou a determinadas categorias de crimes, puníveis
com pena de prisão superior a 3 anos, por razões de complexidade ou tecnicidade
da investigação.
O despacho de Procurador-Geral da República de 21 de dezembro de
1987, relativo à aplicação do Código de Processo Penal35, estabeleceu um
conjunto de normas de articulação de competências entre o Ministério Público,
a Polícia Judiciária e outros órgãos de polícia relativas a actos de inquérito,
delegando genericamente às polícias competência para o inquérito e fixando o
quadro geral a que devem obedecer os actos de delegação dos magistrados do
Ministério Público.
Assim, foram delegadas competências à Polícia Judiciária nas comarcas
de Lisboa, Porto e Coimbra, em que têm sede os seus departamentos de maior
dimensão, para proceder a inquérito relativamente:
a) Aos crimes denunciados directamente à Polícia Judiciária ou de que
esta tenha conhecimento;
b) Aos crimes denunciados a outros órgãos de polícia criminal, a que seja
aplicável pena de prisão de máximo superior a 3 anos ou em que deva aplicarse medida de coacção; e
c) Aos crimes denunciados directamente ao Ministério Público cuja
investigação seja delegada na Polícia Judiciária, excepto os resultantes de
acidente de viação cuja investigação deverá, consoante os casos, ser delegada à
PSP ou à GNR.
Fora das comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra, onde funcionam serviços
da Polícia Judiciária, o Ministério Público pode ainda delegar na Polícia Judiciária
competência para investigar crimes a que corresponda pena de prisão de máximo
superior a 3 anos.
35
240
Transmitido pela Circular n.º 8/87 da PGR, citada supra.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
Quanto a outros tipos de crime, nas restantes comarcas, o Ministério
Público pode delegar específica ou genericamente a competência para a
investigação nos órgãos de polícia criminal quando os funcionários privativos do
Ministério Público a não possam realizar directamente, salvo tratando-se de
crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos ou houver
lugar a aplicação de medidas de coacção.
Sem prejuízo da competência da Polícia Judiciária – por delegação
presumida ou por acto do Procurador-Geral da República – o Ministério Público
deve realizar o inquérito com a assistência de funcionários privativos quando o
crime for punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos ou houver
lugar a aplicação de medida de coacção (excluído o termo de identidade e
residência). Neste caso pode ser delegada ou solicitada a qualquer órgão de
polícia criminal, de acordo com as suas atribuições, a realização de certos actos
ou diligências36.
Outras polícias têm competência delegada para proceder a inquérito
relativamente a categorias de crimes específicas. É o caso da Brigada Fiscal da
Guarda Nacional Republicana quanto a crimes fiscais e a crimes fiscais aduaneiros
e da Inspecção-Geral das Actividades Económicas quanto a infracções
antieconómicas e contra a saúde pública ou da Inspecção-Geral do Ambiente
relativamente a crimes ambientais37.
7. Consagrando uma alteração de relevo relativamente ao regime anterior,
o Código atribui ao juiz de instrução, na fase de inquérito, uma função passiva,
de garantia de direitos fundamentais. Não lhe cabe a iniciativa de actos
processuais visando à realização das finalidades do inquérito, ou seja, investigar
a existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e
descobrir e recolher provas (art.º 262.º).
36
37
A Lei atribui aos funcionários de justiça da carreira dos serviços do Ministério Público competências
para desempenhar, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal
– cfr. Mapa anexo ao Decreto-lei n.º 343/99, de 26 de agosto, que aprova o Estatuto dos Funcionários
de Justiça.
Este sistema irá sofrer ajustamentos em resultado da já anunciada lei da organização da investigação
criminal constante de proposta de lei apresentada pelo Governo à Assembleia da República.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
241
A lei reserva, porém, ao juiz de instrução determinados actos, quando
estejam em causa direitos fundamentais que possam ser restringidos ou
comprimidos, distinguindo entre actos que devem ser praticados pelo juiz e actos
que o juiz deve ordenar ou autorizar.
Assim, durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução,
a requerimento do Ministério Público, de autoridade de polícia criminal38 em
caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente, praticar
os seguintes actos (art.º 268.º):
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido (no prazo
máximo de 48 horas após a detenção, em regra por iniciativa do Ministério
Público, a quem o arguido deve ser apresentado pela polícia, após a detenção
– art.º 141.º e 143.º);
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia
patrimonial (caução, obrigação de apresentação periódica à autoridade judiciária
ou ao órgão de polícia criminal, suspensão do exercício de funções, de profissão
ou de direitos, proibição de permanência, de ausência e de contactos, obrigação
de permanência na habitação e prisão preventiva – art.º 196.º a 202.º), à
excepção do termo de identidade e residência, que pode ser aplicada pelo
Ministério Público ou pelos órgãos de polícia criminal;39
c) Proceder a buscas e a apreensões em escritório de advogado,
consultório médico ou estabelecimento bancário;
38
39
242
Sobre o conceito de autoridade de polícia criminal (cfr. art.º 1.º, nº 1, al. d), do Código de Processo
Penal.
O alargamento da competência aos órgãos de polícia criminal resultou da revisão de 1998. O regime
do TIR (Termo de Identidade e Residência) sofreu alterações significativas em 1998, passando a
assumir importância decisiva relativamente às modificações do regime da contumácia (cfr. art.º 335º,
n.º 1– a contumácia ficou reduzida aos casos em que não foi prestado TIR) e do regime de julgamento
na ausência do arguido (cfr. art.º 334º, n.º 3 – de notar que a prestação do TIR e a violação dos deveres
inerentes pode, agora, legitimar o julgamento na ausência do arguido). Essas alterações, cuidadosamente
ponderadas em função dos direitos da defesa, assumiram importância fulcral na revisão do Código de
Processo Penal de 1998 e visaram a atacar a possibilidade de sucessivos adiamentos da audiência de
julgamento, que só muito excepcionalmente podia realizar-se na ausência do arguido, geralmente
considerada como a principal causa de desprestígio da justiça penal.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da
correspondência apreendida;
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o
Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito.40
Também durante o inquérito, compete ao juiz de instrução ordenar ou
autorizar buscas domiciliárias, apreensões de correspondência e intercepções
ou gravações de conversações ou comunicações telefônicas (art.º 269.º).
Ao Ministério Público está reservada a prática de actos de inquérito que
não podem ser delegados nos órgãos de polícia criminal (art.º 270.º, n.º 2):
a) Receber depoimentos ajuramentados;
b) Ordenar a efectivação das perícias;
c) Assistir a exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas;
d) Ordenar ou autorizar revistas e buscas, salvo as domiciliárias.
8. O arguido adquire, no actual regime, o estatuto de verdadeiro sujeito
processual, inspirado no respeito da sua dignidade pessoal e no princípio de
igualdade de armas41 que, estruturando o processo, opera a conciliação da
natureza inquisitória da fase preparatória com as exigências decorrentes deste
princípio, em conformidade com o sentido da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem.42
40
41
42
Inovação da revisão de 1998.
Sobre o sentido e alcance deste princípio, cfr. CUNHA RODRIGUES, Sobre o princípio de igualdade
de armas, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, n.º 1, p.83.
Cfr. CABRAL BARRETO, Notas para um processo equitativo – análise do artigo 6.º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, Documentação e Direito Comparado, n.º 49/50, p. 69-133; e
SOUTO DE MOURA, Direito e processo penal actuais e consagração dos direitos do homem,
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, n.º 4, p. 567.
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Na definição do estatuto do arguido sobressai o cuidado com que se
rodeia a sua constituição formal, definindo-se com rigor o momento e o modo
de obtenção do estatuto, com carácter irreversível e concomitante estatuição da
obrigatoriedade para as autoridades judiciárias e para as polícias de explicitarem
os direitos e os deveres inerentes a essa qualidade.43
O Código consagra a regra geral de que assume a qualidade de arguido
toda a pessoa contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num
processo penal, conservando-se tal qualidade durante todo o processo
(art.º 57.º).
Sem prejuízo dessa regra geral, é obrigatória a constituição de arguido44
logo que, correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações
perante autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal; logo que tenha de ser
aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial;
logo que um suspeito for detido; ou logo que for levantado auto de notícia que
dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado
(art.º 58.º).
É igualmente obrigatória a constituição de arguido sempre que, durante a
inquirição de uma pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de ela ter
cometido um crime (o que determina a suspensão do acto e a formalização do
estatuto de arguido) e no caso de se efectuarem diligências destinadas a
comprovar a suspeita de um crime que pessoalmente afectem uma pessoa sobre
quem recaírem as suspeitas de o ter cometido (neste caso, a lei reconhece
expressamente a essa pessoa o direito de pedir a sua constituição como arguido).
A constituição de arguido opera-se por meio da comunicação, oral ou
por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou por um órgão de
polícia criminal, que, a partir desse momento, deve considerar-se arguido num
43
44
244
A constituição de arguido, que implica a prestação de termo de identidade e residência, com todas as
consequências daí decorrentes (supra n.º 39), implica a entrega, sempre que possível, no próprio acto,
de documento do qual constem a identidade do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e
os direitos e os deveres processuais referidos no art.º 61.º, nomeadamente a possibilidade e as condições
de julgamento na ausência.
Com a revisão de 1998, o interrogatório do arguido passou igualmente a ser obrigatório (cfr. art.º
272.º).
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processo penal e da indicação e, se necessário, explicitação dos direitos e dos
deveres que essa qualidade lhe atribui.
A omissão ou a violação dessas formalidades implica que as declarações
prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela
(art.º 58.º).
A aquisição da qualidade de arguido determina a atribuição de um conjunto
complexo de direitos e de deveres expressamente reconhecidos e enumerados
na lei (art.º 61.º), sem prejuízo da aplicação das medidas de coacção e garantia
patrimonial consideradas necessárias e adequadas e da efectivação das diligências
de prova que pessoalmente o possam afectar.
Consagram-se os direitos de presença em actos processuais, de ser ouvido
pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que deva ser tomada decisão que
o afecte, de silêncio sobre imputação de factos, de escolher ou de solicitar a
nomeação de defensor, de assistência de defensor, de intervenção no inquérito e
na instrução oferecendo provas e requerendo diligências, de informação e de
recurso.
Estabelecem-se deveres de comparência perante autoridades judiciárias
e órgãos de polícia criminal, de responder com verdade sobre a identidade e
antecedentes criminais e de sujeição a diligências de prova e medidas de coacção
e garantia patrimonial.
O direito a defensor, essencial à integração de um dos componentes do
binómio acusação-defesa em que se analisa o sistema processual, de estrutura
acusatória, é objecto de particular atenção.
O arguido tem direito a constituir advogado em qualquer altura de processo,
que prevalece sempre sobre a nomeação de defensor, de preferência advogado,
efectuada pelo tribunal nos casos em que é obrigatório.45
45
A revisão do Código de 1998 veio reforçar a defesa técnica, por advogado (cfr. art.º 62.º).
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245
O defensor exerce legalmente os direitos que a lei reconhece ao arguido,
salvo os que pessoalmente lhe forem reservados, podendo o arguido retirar
eficácia ao acto realizado em seu nome mediante declaração expressa anterior à
decisão sobre o acto.
O estatuto processual da defesa determina a obrigatoriedade de assistência
do defensor (art.º 61.º) nas fases preliminares do processo, no primeiro
interrogatório judicial de arguido detido, no debate instrutório, em qualquer acto
processual sempre que o arguido for surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor
da língua portuguesa, menor de 21 anos ou sempre que se suscitarem questões
sobre a sua imputabilidade e ainda quando se proceder à produção antecipada
de prova (declarações de testemunha para memória futura em caso de previsível
impedimento por doença grave ou ausência no estrangeiro), podendo o tribunal,
fora destes casos, nomear defensor em caso de necessidade ou de conveniência
de o arguido ser assistido.
9. Em matéria de provas, o Código estabelece um regime de conciliação
particularmente exigente das finalidades do processo (e do inquérito em particular).
Se, por um lado, se visa à máxima eficiência da investigação, por outro define-se
um regime rigoroso de protecção de direitos fundamentais.46
O princípio da liberdade de prova sofre restrições típicas relativas aos
métodos de prova que se concretizam na definição dos regimes processuais dos
meios de prova e dos meios de obtenção de prova.
A lei processual estabelece uma regra geral de nulidade relativamente a
provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade
física (art.º 126.º).
Consagrando um núcleo essencial relativamente ao qual não se admite a
possibilidade de auto-restrição de direitos fundamentais, considera ofensivas da
integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o
46
246
Sobre o tema, cfr. COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra
Editora, 1992; e Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas, Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, Ano 1, n.º 3, p.369.
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consentimento destas, mediante: perturbação da liberdade de vontade ou de
decisão por meio de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios de
qualquer natureza, hipnose, ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
perturbação da capacidade de memória ou de avaliação; ameaça com medida
legalmente inadmissível ou com denegação ou consentimento da obtenção de
benefício legalmente previsto; ou promessa de vantagem legalmente inadmissível.
São igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida
privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, sem o
consentimento do respectivo titular.
Em conformidade com esses princípios, o Código estabelece regras e
limites claros quanto a meios de obtenção de prova, tipificando procedimentos a
observar pelas polícias e pelas autoridades judiciárias sempre que a actividade
de investigação revela possibilidade de restringir ou comprimir direitos
fundamentais.
Esta preocupação é patente no que se refere a exames susceptíveis de
ofender o pudor das pessoas (art.º 172.º), que devem respeitar a dignidade e o
pudor e ser presididos pelo Ministério Público (art.º 172.º); a revistas e buscas,
nomeadamente buscas em habitação, em escritório de advogado, em consultório
médico ou em estabelecimento de saúde, dependentes, em regra, de autorização,
ordem ou presença das autoridades judiciárias (art.º 174.º a 177.º); a apreensões
de objectos, de correspondência, em escritório de advogado, em consultório
médico ou em estabelecimento bancário, dependentes de idênticos procedimento
(art.º 178.º a 186.º); e a escutas telefônicas e intercepção das comunicações,
sujeitas ao princípio da tipicidade – crimes puníveis com pena de prisão superior
a 3 anos, relativos a tráfico de estupefacientes, a armas, a engenhos e matérias
explosivas e contrabando e a crimes de injúrias, ameaças, coacção ou intromissão
da vida privada, cometidos por meio de telefone –, e dependentes de ordem ou
autorização do juiz de instrução (art.º 187.º).
10. Feita a abordagem sintética da estrutura do inquérito, do estatuto dos
sujeitos processuais, do conteúdo do inquérito e do regime relativo à produção
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de prova, é tempo de centrar alguma atenção na fase de encerramento do
inquérito, em que se evidenciam soluções de concepção inovatória que respeita
ao tratamento processual da pequena criminalidade.
A ideia de celeridade processual47, erigida constitucionalmente em direito
fundamental48, determinou a fixação de prazos para conclusão do inquérito que
se pretendem realistas e que, portanto, devem ser cumpridos, em conciliação
eficaz das necessidades de exaustão de investigação e dos direitos da pessoa
arguida, comprimidos pelo seu estatuto.49
Estabelece-se, assim, um regime de prazos máximos, em regra de 6 ou 8
meses, conforme haja ou não arguidos presos ou sob obrigação de permanência
na habitação, a contar desde o momento em que o inquérito começa a correr
contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido,
cujo excesso motiva um incidente de aceleração processual a decidir pelo
Procurador-Geral da República, com adopção das medidas necessárias à
conclusão urgente do inquérito e, eventualmente, das medidas correctivas de
gestão, de organização e de procedimentos que o caso impuser e, se for caso
disso, de natureza disciplinar (art.º 109.º e 276.º).
Concluído o inquérito, compete ao Ministério Público, no exercício de
poderes decisórios sobre a acção penal, vinculado a critérios estritos de legalidade
e objectividade, proferir despacho de encerramento, arquivando o processo ou
deduzindo acusação, ou, então, optando por soluções de tratamento informal,
se reunidos os respectivos pressupostos legais.
O arquivamento do inquérito (art.º 277.º) e a formulação de acusação
(art.º 283.°) correspondem às soluções formais tradicionais do sistema processual.
47
48
49
248
Cfr. ANABELA NIMANDA RODRIGUES, La célérité de Ia Procédure Pénale au Portugal e son
expénence, Revue Intemationale de Droit Penal - La Célérité de Ia Procédure Pénale, Syracuse
(Italie), 11-14 septembre 1995 -, 66.e année, 3.e et 4.e trimestres 1995, Editions Érès, Toulouse,
1996 - editada pela Associação Internacional de Direito Penal, p. 623-640.
Cfr. art.º 32.º, n.º 2, da Constituição.
Sobre a natureza ordenadora e disciplinar dos prazos de inquérito e consequências da sua nãoobservância, cfr. J. L. LOPES DA MOTA, Natureza e excesso dos prazos de inquérito, Revista do
Ministério Público, Ano 120, n.º 48, outubro-dezembro de 1991, p. 169.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
O processo é arquivado se tiver sido recolhida prova de inexistência de
crime, de o arguido o não ter praticado ou de não ser legalmente inadmissível o
procedimento (ilegitimidade do Ministério Público quanto a crimes cujo
procedimento depende de queixa ou de acusação particular, amnistia, morte do
arguido ou prescrição).
O processo é igualmente arquivado se não tiver sido possível recolher
indícios suficientes da verificação do crime e da identidade dos seus agentes.
O processo arquivado pode ser reaberto se surgirem novos elementos de
prova que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento do Ministério
Público.
Se, porém, resultarem do inquérito indícios suficientes da prática do crime
e dos seus agentes, ou seja, se da prova recolhida em inquérito resultar uma
maior probabilidade de condenação que de absolvição (art.º 283.º, n.° 2), o
Ministério Público deve deduzir acusação contra o arguido, fixando, deste modo,
o objecto do processo50, isto é, os factos que o tribunal é chamado a decidir e
que, salva a excepcional possibilidade de alteração em termos muito rigorosos e
limitados51, definem os limites dos poderes de cognição do tribunal.
11.Como já se adiantou, o Código introduziu soluções inovadoras que
permitem decisões diversas, maximizando a conformação do processo ao espírito
de reintegração que inspira o tratamento da pequena criminalidade. São elas:
a) A possibilidade de arquivamento do processo em caso de dispensa de
pena(art.º 280.º);
b) A suspensão provisória do processo (ou suspensão mediante injunções
e regras de conduta - art.º 281.º);
c) O processo sumaríssimo (art.ºs 392.º e segs.); e
50
51
Sem prejuízo de, havendo lugar a instrução, os factos consignados no respectivo requerimento
passarem a integrar o objecto do processo.
Cfr. o regime de alteração substancial dos factos (art.º 1.º, n.º 1, al. f, 358.º e 359.º).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
249
d) A faculdade de fixação, na acusação, do limite da pena em 5 anos, nos
casos a que corresponde pena abstracta de limite superior (art.º 16.º, n.º 3).52
O Ministério Público pode ordenar o arquivamento do processo, com a
concordância do juiz de instrução, se estiverem presentes os pressupostos de
dispensa de pena (art.º 280.º), ou seja, quando ao crime corresponder pena de
prisão não superior a 6 meses e se a culpa do agente for diminuta, o dano tiver
sido reparado e à aplicação da medida não se opuserem exigências da
recuperação do delinquente e de prevenção geral (art.º 74.º do Código Penal).
Essa faculdade é conferida igualmente ao juiz de instrução, com a
concordância do Ministério Público e do arguido, se já tiver sido deduzida
acusação.
Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos53 ou com
sanção diferente da prisão, o Ministério Público, com a concordância do juiz de
instrução, pode decidir suspender o processo (art.º 281.º), pelo prazo máximo
de 2 anos, mediante a imposição de injunções e regras de conduta se houver
concordância do arguido e do assistente, se o arguido não tiver antecedentes
criminais, se não houver lugar a medida de segurança de internamento, se a
culpa for de carácter diminuto e se for de prever que o cumprimento das injunções
e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que
no caso se façam sentir.
A lei prevê que possam ser oponíveis ao arguido as seguintes injunções e
regras de conduta: indemnizar o lesado; dar ao lesado satisfação moral adequada;
entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia
em dinheiro; não exercer determinadas profissões; não frequentar certos meios
e lugares, não residir em certos lugares ou regiões; não acompanhar, alojar ou
receber certas pessoas; não ter em seu poder determinados objectos capazes
de facilitar a prática do crime; qualquer outro comportamento exigido para o
caso, que não ofenda a dignidade do arguido.
52
53
250
Este limite era de 3 anos, na versão originária do Código, tendo sido elevado para 5 anos com a
revisão de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de agosto). Essa possibilidade foi alargada ao processo sumário,
em 1998 (cfr. Art. 381.º, n.º 2).
Antes da revisão de 1998 este limite era também de 3 anos.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
Para fiscalização e acompanhamento do cumprimento das injunções e
regras de conduta, o juiz de instrução e o Ministério Público podem recorrer aos
serviços de reinserção social, aos órgãos de polícia criminal e às autoridades
administrativas.54
Se o arguido cumprir as injunções e as regras de conduta, o Ministério
Público arquiva o processo, no termo do prazo de suspensão, não podendo ser
reaberto; se as não cumprir, o processo prossegue, não podendo ser repetidas
as prestações feitas.
Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 3 anos ou só
com pena de multa, o Ministério Público pode requerer a aplicação da pena por
acordo com o arguido, em processo sumaríssimo (art.º 392.º)55, quando entender
que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança
não-privativas da liberdade.
Para conclusão do tema do encerramento do inquérito, resta uma referência
aos casos em que, decidindo pela acusação, o Ministério Público tem a faculdade
de intervir na fixação do limite máximo da pena aplicável ao caso concreto (art.º
16.º, n.º 3).
54
55
Até a revisão operada pela Lei n.º 59/98 previa-se apenas o recurso a serviços de reinserção social.
O processo sumaríssimo foi objecto de profundas alterações por meio da Lei n.º 50/98, de 25 de
agosto, que visaram a maximizar o consenso, de modo a poder criarem-se condições para dar expressão
a uma forma de processo que praticamente não vinha a ter aplicação e que poderá desempenhar um
papel muito importante no controlo das chamadas bagatelas penais. Alargou-se de 6 meses para 3
anos a moldura abstracta da pena de prisão correspondente ao crime objecto do processo e alterou-se
profundamente o regime processual. Eliminou-se a audiência e criou-se um procedimento de notificação
do requerimento do Ministério Público ao arguido, sujeito à exigente regulamentação para efectiva
garantia do direito de defesa, de modo a possibilitar um esclarecido exercício do direito de oposição à
sanção proposta. Salvaguardou-se a jurisdicionalização da aplicação da sanção e maximizou-se o
consenso entre os sujeitos processuais, permitindo-se que, mesmo nos casos de consenso entre o
Ministério Público e o arguido, o juiz, se discordar da sanção proposta, nomeadamente por a considerar
injusta ou desproporcionada, possa fixar sanção diversa da proposta pelo Ministério Público, com a
concordância deste. Devidamente salvaguardado está também o direito que o arguido tem de lhe não
ser “roubado o conflito”, já que, se este se opuser, o processo segue a forma comum. Neste caso, por
razões de racionalidade e aproveitamento dos actos, revertendo a favor da celeridade, o requerimento
do Ministério Público funciona como acusação (artigo 398.º).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
251
Trata-se de situações em que, em consideração às circunstâncias concretas
relativas ao facto e ao agente e por recurso aos critérios de direito substantivo
de determinação da pena, é possível fundadamente situar a pena em medida não
superior a 5 anos de prisão, embora a moldura penal, abstractamente
considerada, preveja um limite máximo superior.
Assim, a propósito da regulamentação da competência do tribunal singular,
limitada em regra ao julgamento dos crimes puníveis com pena de prisão igual ou
inferior a 5 anos, o Código prevê que o Ministério Público, uma vez verificado o
circunstancialismo descrito, possa fixar competência no tribunal singular para
julgamento de crimes que, tendo em atenção o limite abstracto máximo da pena,
se incluiriam na competência do tribunal colectivo.
12. Referência especial merece a criação, em 199856, de uma nova
forma de processo especial – o processo abreviado (artigo 391.º-A e segs.).
Limita-se a sua aplicação aos casos de crime punível com pena de prisão
não superior a 5 anos ou de crime punível com pena de multa, da competência
do tribunal singular, com o objectivo de uma rápida submissão do caso a
julgamento.
Trata-se de um procedimento caracterizado por uma substancial aceleração
nas fases preliminares, mas em que se garante o formalismo próprio do julgamento
em processo comum, com ligeiras alterações de natureza formal justificadas pela
pequena gravidade do crime e pelos pressupostos que o fundamentam.
O processo abreviado depende da verificação dos seguintes pressupostos:
a) Por um lado, da existência de provas simples e evidentes de que resultem
indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente
– como sucede, por exemplo, nos casos de flagrante delito não julgados em
processo sumário (crimes puníveis com pena superior a 3 anos de prisão e inferior
56
252
Pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto.
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a 5, que, em vez de darem lugar a inquérito, passarão, de imediato, à fase de
julgamento), de prova documental (v.g. crimes de emissão de cheque sem provisão
ou de abuso de liberdade de imprensa) ou de confissão relevante (confissão
associada a outros meios de prova); e
b) Por outro, da frescura da prova, traduzida na proximidade do facto
relativamente à decisão de acusação (90 dias).
Na sua essência, esses pressupostos estavam já presentes no processo
sumário, característico do nosso sistema, justificando a imediata submissão do
caso a julgamento, a partir da notícia do crime adquirida pela entidade policial
em flagrante delito.
Trata-se, em síntese, de casos que passam imediatamente para a esfera
de decisão do juiz, concentrando-se, desta forma, o essencial do processo na
sua fase crucial, que é o julgamento.
O procedimento é, porém, envolvido de particulares cautelas no que se
refere às formalidades preliminares, em homenagem ao direito de defesa e ao
princípio de igualdade de armas na fase preparatória.57
Ainda com o objectivo de simplificação, permite-se que o Ministério
Público formule a acusação com remissão parcial, em matéria de identificação
do arguido e de narração dos factos, para o auto de notícia ou para a denúncia,
sem, no entanto, estabelecer concessões no que se refere ao rigor da fixação do
objecto do processo.58
57
58
Estabelece-se, assim, a possibilidade de o arguido submeter o caso à comprovação judicial antes do
julgamento e de, em debate instrutório (com eventual realização de actos de instrução), contrariar
a decisão de acusação do Ministério Público. Neste caso, caberá ao juiz de instrução apreciar a
existência de indícios suficientes em ordem a submeter o caso a julgamento – o que está em causa
não é, nesta fase, a averiguação da “simplicidade” ou da “evidência” das provas, mas a suficiência
de indícios, ou seja, o fundamento da acusação –, num critério de exigência aferido em função da
probabilidade de ao arguido poder ser aplicada uma pena.
Sem tocar os direitos da defesa, esta forma de processo possui potencialidades para imprimir uma
considerável aceleração do processamento da criminalidade menos grave, que, de acordo com os
dados estatísticos disponíveis, representa cerca de 85% dos casos submetidos a julgamento.
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253
13. Sendo o inquérito inquisitório e secreto, resta abordar a questão de
saber por que forma pode ser exercido o contraditório nas fases preliminares59,
isto é, como controlar e discutir processualmente, nesta fase, os fundamentos da
decisão do Ministério Público de acusação ou de arquivamento.
O actual modelo processual resolve a questão introduzindo no processo
uma fase facultativa, entre a fase de inquérito e a fase de julgamento – a instrução –,
que visa à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar
o inquérito em ordem a submeter ou não o caso a julgamento (art.º 286.º CPP).
Não sendo requerida instrução, o Código prevê ainda o funcionamento
de procedimentos de controlo interno do Ministério Público, estabelecendo que
o imediato superior hierárquico do magistrado que proferiu a decisão,
reapreciando os fundamentos do arquivamento, pode determinar que seja
formulada acusação ou que as indicações prossigam, indicando, neste caso, as
diligências a efectuar e o prazo para a sua realização (art.º 278.º CPP).
Na estrutura do Código, a instrução constitui o momento processual
próprio para submeter a decisão final do Ministério Público a controlo judicial.
A instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos objecto
de acusação contra si deduzida, ou pelo assistente, quando o Ministério Público
não acuse.
É dirigida pelo juiz de instrução, assistido pelos órgãos de polícia criminal
agindo na sua dependência funcional, e constituída, obrigatoriamente, no mínimo,
por um debate instrutório, que visa a permitir uma discussão oral e contraditória
perante o juiz sobre se, no decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios
suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.
Vigorando, também aqui, o princípio da investigação, o juiz deve ordenar
a realização dos actos que entender por convenientes e levando em conta as
indicações dos actos que constem do requerimento para abertura da instrução.
59
254
De notar que apenas o debate instrutório tem natureza contraditória (cfr. art.º 289.º e 302.º do CPP).
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São admitidas todas as provas não proibidas por lei, não devendo, em
regra, serem repetidos os actos de inquérito, salvo se não tiverem sido observadas
as formalidades legais ou quando a repetição se revelar indispensável à realização
das finalidades da instrução.
A instrução deve ser encerrada, em regra, no prazo máximo de 2 meses,
se houver arguidos presos, ou de 4 meses, se os não houver. Tal como sucede
na fase de inquérito, o excesso do prazo é fundamento para dedução do incidente
de aceleração processual, a decidir pelo Conselho Superior de Magistratura,
que pode ordenar as medidas convenientes para a rápida conclusão da instrução.
Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou
de não-pronúncia, que deve ser lido imediatamente ou no prazo máximo de 5
dias, atenta à complexidade da causa.
Proferido despacho de pronúncia, o processo é remetido ao tribunal
competente para o julgamento.
Não tendo havido instrução, o processo com acusação do Ministério
Público é igualmente remetido ao tribunal competente para julgamento, mas,
neste caso, o juiz presidente do tribunal pode ainda rejeitar a acusação, se a
considerar manifestamente infundada.
E, com esses actos, se encerram as denominadas fases preliminares do
processo, para se passar à fase seguinte – a do julgamento.
De notar que, em obediência aos princípios da acusação e da
imparcialidade do juiz, não cabe ao juiz do julgamento, em caso algum, apreciar
dos indícios recolhidos nas fases preliminares, ou seja, dos fundamentos da
decisão de acusar.60
60
Este aspecto foi objecto de particular atenção na revisão operada pela Lei n.º 59/98, eliminando-se
as dúvidas que pudessem subsistir a este propósito (cfr., designadamente, a nova redacção do artigo
311.º). Essa alteração determinou, nomeadamente, a caducidade do acórdão do STJ de 17.02.93, para
fixação de jurisprudência, do seguinte teor: “A alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo
Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária” (Boletim do
Ministério da Justiça n.º 424, 1993, p. 73).
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
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14.Concluindo, é altura de apresentar alguns dados ilustrativos da aplicação
do novo Código de Processo Penal (CPP).
A entrada em vigor de um diploma com a extensão, a complexidade e
características de novidade do novo CPP gerou, inevitavelmente, naturais
dificuldades de assimilação, penetração e adaptação de estruturas, organização,
métodos e procedimentos das entidades encarregadas da sua aplicação.
Em geral, e exceptuados casos isolados de menor compreensão das novas
regras, pode dizer-se que não se revelaram dificuldades significativas de
articulação dos órgãos encarregados da investigação e, quando detectadas, foi
possível a sua superação em clima de cooperação, confiança e respeito pelos
diversos papéis processuais.
O acompanhamento da experiência de aplicação do Código permitiu
introduzir os afinamentos e alterações necessárias à realização das expectativas
e finalidades da reforma de 1987. Esse objectivo foi particularmente prosseguido
por meio da revisão de 1998, levada a efeito pela Lei n.º 59/98, de 25 de
agosto, sendo os resultados da sua aplicação, em pouco mais de 1 ano de vigência,
nitidamente favoráveis.61
Os dados estatísticos recolhidos evidenciam algumas realidades sugestivas.
Tomando por base os dados mais recentes62, surpreende-se um elevado
grau de conformação com os resultados do inquérito, sendo reduzidos os casos
de abertura de instrução (cerca de 4% do total dos inquéritos findos).
Ao requerimento do arguido, os valores relativos de frequência da instrução
correspondem a cerca de 17% dos casos em que o Ministério Público deduziu
acusação. Nestes casos, a decisão do Ministério Público foi judicialmente
confirmada na sua maioria (60%).
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Como se pode verificar, pela análise dos dados provisórios disponíveis relativos a 1999, a linha
ascendente e constante de pendências, que parecia irreversivelmente consolidada ao longo das últimas
duas décadas (o número de processos findos em cada ano era sempre inferior ao número de entrados),
sofreu uma quebra evidente, em 1999, confirmando-se a realidade registada em 1998 e invertendo-se
aquela tendência. Apesar de o número de entradas ter sido superior ao de 1998 (+7511 processos;
entradas em 1998: 402.667 processos) o número de pendências em 31 de dezembro de 1999 sofreu
uma diminuição significativa, de 11% (havia 228.875 processos pendentes em 31.12.98, número que
desceu para 204.834 em 31.12.99).
Cfr. Relatório Anual dos Serviços do Ministério Público, edição da Procuradoria-Geral da República,
maio de 2000.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 10, Volume 19, p. 219–257, jan./jun. 2002.
Os valores da instrução requerida pelo assistente representaram, por seu
lado, percentagens insignificantes do número dos processos em que o Ministério
Público proferiu despacho de arquivamento (aproximadamente 1,2%). Cerca
de 40% desses casos vieram a ser objecto de despacho de pronúncia, suprindo-se
a insuficiência da prova do inquérito para acusar.
O uso pelo Ministério Público da faculdade de requerer o julgamento por
tribunal singular de crimes abstractamente puníveis com pena superior a 5 anos,
originariamente da competência do tribunal colectivo, tem obtido alguma
expressão na administração do sistema. Representando cerca de 6% do número
de acusações, esta medida possibilitou uma redução de cerca de 20% dos casos
submetidos a julgamento pelo tribunal colectivo e um acréscimo de apenas 6%
dos processos do tribunal singular.
Os processos em que o Ministério Público usou desta faculdade
respeitaram, na sua maioria, a crimes de furto qualificado63 e levaram em conta
os pequenos valores do furto e as circunstâncias de relevo relativas ao agente.
A suspensão provisória do processo tem constituído autêntico laboratório
das soluções do novo Código relativas ao tratamento consensual da pequena
criminalidade.
A experiência demonstra tratar-se de uma solução em expansão, embora,
por enquanto, de reduzida expressão estatística (representando cerca de 1,5%
dos processos acusados pelo Ministério Público), mas com resultados concretos
de sucesso no controlo de fenômenos localizados de pequena criminalidade
associada sobretudo a furtos, ao consumo de estupefacientes e a crimes de
ofensas corporais voluntárias sem gravidade.
Entre as injunções e as regras de conduta impostas ao arguido, por prazos
que se têm, em média, situado em 6 meses, destacam-se a entrega de quantias
em dinheiro a instituições de solidariedade social e ao Estado e a indemnização
e a reparação moral da vítima, associadas à obrigação de se abster de
determinadas condutas.
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Punidos com penas de prisão de 2 a 8 anos, após a revisão do Código Penal de 1995 - cfr. art.º 204.º
deste diploma.
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