Senado Federal Secretaria de Gestão da Informação e Documentação Coordenação de Biblioteca Pesquisa realizada pela Biblioteca do Senado Federal Praça dos Três Poderes | Senado Federal Anexo II | Térreo | Biblioteca CEP: 70165-900 | Brasília - DF | Brasil Telefone: + 55 (61) 3303-1268 | (61) 3303-1267 E-mail: [email protected] LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília. Analista Legislativo na Câmara dos Deputados. Professor de cursos de pós-graduação na Câmara dos Deputados e na Universidade de Brasília. Pesquisador do grupo Sociedade, Tempo e Direito (UnB). Advogado. PROCESSO LEGISLATIV DEMOCRACIA: E PARLAMENTO, ESFERA PÚBLICA E JURISDiÇÃO CONSTITUCIONAL Belo Horizonte 2010 DEMOCRACIA E CONTROLE JUDICIAL DO PROCESSO LEGISLATIVO sUMÁRIO: 1. Questões políticas, processo legislativo e doutrina interna corporis; 2. Excurso: Controle judicial do processo legislativo no marco da teoria discursiva do direito e da democracia; 3. Direito ao devido processo legislativo e controle jurisdicional da regularidade do processo de formação das leis; 3.1. Sobre a natureza jurídica das normas regimentais; 3.2. Conseqüências jurídicas da violação das normas regimentais; 3.3. Titularidade e funções do direito ao devido processo legislativo; 4. Perspectivas do controle judicial do processo legislativo no modelo de jurisdição constitucional brasileiro. Somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do direito. Jürgen Habermas I. QUESTÕES POLíTICAS, PROCESSO LEGISLATIVO E DOUTRINA INTERNA CORPORIS o princípio da separação dos poderes é um dos marcos do constitucionalismo moderno (HENI<JN, 1994, p. 39-53). As divergências entre as primeiras formulações teóricas da idéia, na segunda metade do século XVIII, entretanto, já antecipavam a impossibilidade de concretizá-la de forma unívoca1 • Os mais de dois séculos de experiência constitucional Maclison afirmava, por exemplo, que para manter a independência dos vários departamentos que formavam o governo, sua "estrutura interior deveria ser comparcimentada de forma tal que as várias partes constituintes, em razão de suas relações mútuas, se tornem os meios de manter cada uma em seus respectivos lugares" 156 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA subseqüente se encarregaram de confirmar essa hipótese, registrando não só importantes trânsitos de sentido do principio da separação de poderes como também refutações veementes do mesmo 2 • A questão sobre em que medida o Poder Judiciário pode (ou mesmo deve) fiscalizar atos do Poder Legislativo coloca-se de forma proeminente no debate sobre a separação de poderes. Um bom exemplo é a institucionalização da idéia de supremacia da constituição nos Estados Unidos do início do século XIX. Tocqueville, por exemplo, enxerga nos juízes americanos um "imenso poder politico", decorrente da prerrogativa de "fundar suas decisões na constituição, em vez de nas leis". O poder de recusar aplicação às leis inconstitucionais, entretanto, coaduna-se com o principio da separação de poderes na medida em que o juiz só pode criticar a lei "por meios judiciários (...). Se o juiz tivesse podido criticar as leis de maneira teórica e geral; se pudesse tomar a iniciativa e censurar o legislador, teria entrado rumorosamente na cena politica" (TOCQUEVILLE, 1998, p. 114-115). Tocqueville escrevia em meados da década de 30 do século XIX, ou seja, pouco mais de 30 anos depois de Marbury v. Madison, mas muito antes de o controle de constitucionalidade consolidar-se de forma ampla nos Estados Unidos como instrumento cotidiano da jurisdição 3 . Isso pode nos dar uma idéia de quanto os parâmetros da relação entre Judi- (MADISON, 2007). Aproximadamente um quarto de século antes, Montesquieu concebeu a separação de poderes a partir de uma análise da constituição inglesa e, por conseguinte, da idéia de governo misto, marcado pelo equilibrio entre os diversos poderes sociais (monarca, nobreza e plebe). Kant, por sua vez, irá formular o princípio a partir da afirmação de "dignidades políticas" específicas (as funções de legislar, administrar e julgar), autônomas e independentes em sua própria esfera (MATTEUCCI, 1995, p. 248-249). Materializadas, por exemplo, na organização política dos estados comunistas (ZIPPELIUS, 1997, p. 571-572). Devemos lembrar que o controle de constitucionalidade das leis ainda não estava consolidado em 1803, com Marbury v. Madison. Discutindo o alcance desse famoso precedente, John Garraty lembra: "Mesmo a enunciação do poder da Corte de cassar atos do Congresso não trouxe uma mudança imediata da vida na América. De fato, mais de meio século se passou antes que outra lei federal fosse julgada inconstitucional". (GARRATY, 1988, p. 19). Para uma abordagem crítica do significado de Marbury v. Madison no curso do século XIX, cf. Bruce Ackerman (2005) e Gordon Wood (1999). PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 157 ciário e Legislativo, antes organizada de acordo com os cânones liberais, foram alterados pela noção de supremacia constitucional, a grande inovação produzida pelo constitucionalismo americano (STOURZH, 1988, p. 47). O direito passa, paradoxalmente, a ser medido e avaliado à luz do próprio direito, como reconheceu Kelsen, na abertura de sua famosa conferência sobre as garantias da constituição, em 1928 (KELSEN, 2003, p. 124t Uma dinâmica intrincada irá se formar a partir daí. A afirmação de uma jurisdição constitucional como garante da supremacia da constituição não poderia significar uma ruptura com o principio da separação de poderes. Dessa forma, a interferência judicial em decisões do Poder Executivo ou Legislativo deveria ser justificada em termos "estritamente" jurídicos, como antevia Tocqueville. A idéia de uma jurisdição constitucional calcada na garantia dos direitos individuais constitucionalizados prestou-se, em grande medida, a este fim s. Entre nós, por exemplo, Rui Barbosa defendia que os direitos individuais seriam limites para a esfera das "questões politicas", excluídas da apreciação judicial6 . Nesse sentido, violações à constituição deveriam ser Essa perplexidade é melhor desenvolvida por Luhmann, na discussão sobre o processo de diferenciação entre direito e política e o significado da positividade do direito (LUHMANN, 1996). Cf. (TEIXEIRA, 2005, p. 25; p. 155-156). Ao comentar o MS 18.293-DF (RTJ 50:270), Teixeira reconstrói esse raciocínio com trechos do voto do Min. ThetuÍstocles Cavalcanti: "a questão deixa de ser política quando há um direito subjetivo a ser amparado", embora seja forçoso reconhecer que "a questão interna corporis pode ser tido como política, porque envolve o princípio da separação de poderes". É interessante registrar, em todo caso, a advertência de Donahue e Grossman: "A ironia dessa 'doutrina das questões políticas' (um nome equivocado, na medida em que sugere que a Corte nunca decide tais questões) é que sua própria existência demonstra, para além de qualquer dúvida razoável, a natureza inerentemente política do processo judicial. O fato de que os juízes devem considerar, implícita ou explicitamente, questões concernentes ao prestígio e influência da Corte, às relações do Judiciário com os outros ramos do governo e o problema pragmático da habilidade da Corte para decidir de forma efetiva casos particulares, contradiz qualquer conclusão no sentido de que eles decide apenas questões 'não-políticas'" (DONAHUE, T.J.; GROSSMAN,J. B., 2005, p. 755). A doutrina das "questões políticas" (ou "political questions") foi desenvolvida pela jurisprudência americana, em especial a partir do precedente Luther v. Borden, 48 U.S. 1 (1849). As questões políticas são controvérsias historicamente consideradas inSll- 158 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA tratadas como problemas jurídicos, não políticos. Em outras palavras, sempre que a competência do Poder Executivo ou Legislativo entrasse em confronto com um direito individual constitucional, o Judiciário estaria autorizado a intervir. A intervenção judicial respaldada em tais fundamentos, portanto, não significaria ofensa à divisão de poderes ou ao âmbito de discricionariedade política reservado ao legislador e ao governante. O STF consagrou o entendimento defendido por Rui na apreciação de casos ligados à decretação de estado de sítio, ainda sob a vigência da Constituição de 1891. A despeito de nunca ter admitido argüição sobre "os motivos ou razões pelos quais o estado de sítio era decretado", o Tribunal julgou-se competente para "apreciar as medidas de exceção, quando violadoras de direitos individuais" (TEIXEIRA, 2005, p. 158Y A afirmação histórica da idéia de supremacia constitucional envolve a consolidação da autoridade normativa da constituição em face de rigorosamente todas as funções estatais. Governantes, juízes, administradores e legisladores foram progressivamente submetidos aos mandamentos constitucionais na medida em que a própria constituição foi se cercando de diversas garantias jurídico-processuais. A jurisdição constitucional ganhou relevo e, nas últimas décadas, ampliou de forma significativa seu escopo por meio do trato com a inconstitucionalidade por omissão, dicáveis pelo Judiciário, que, a despeito de possuir competência para julgar os casos em que elas se apresentam, considera mais adequado permitir sua solução no âmbito do Legislativo ou Executivo (DONAHUE, T. J.; GROSSMAN, J. B., 2005, p. 754). Outros precedentes anteriores, entretanto, prenunciaram essa doutrina, como Ware v. Hylton, no qual a Corte se recusou a analisar se um tratado internacional havia ou não sido violado ou Martin v. Mott, quando a Corte sustentou que o Presidente, agindo sob autorização do Congresso, possuía poder exclusivo e insuscetível de revisão para determinar quando deveria convocar a milícia. Cf., para maiores detalhes, a Constituição Americana Anotada virtual mantida pelo Legal Information Institute, da Faculdade de Comell. Disponível em: <http://www.law.comell.edu/ constitution/index.html>. Último acesso: 17.jun.2006. Outros precedentes posteriores são importantes para compreender o desenvolvimento da doutrina, em especial a progressiva limitação das questões infensas ao controle judicial. Em 1962, a Corte reviu a posição firmada em Colegrove v. Grenn (de 1946), durante o julgamento de Baker v. Carro Nessa oportunidade, o juiz Breenan definíu critérios mais objetivos para a delimitação das questões políticas. Em Powell V. McComarck, de 1969, essa orientação se confirmou (DONAHUE, T. J.; GROSSMAN, J. B., 2005, p. 755). A este respeito, as duas decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal são os habeas corpus n° 1.063 e n° 1073, ambos de 1898. PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 159 da modulação dos efeitos temporais das decisões e da legitimação de novos parâmetros para o controle de constitucionalidade (LEAL, 2006, 73-99). A despeito deste quadro de progressiva concentração de poder nos órgãos responsáveis pela jurisdição constitucional (ou, quem sabe, até mesmo em razão dele), no Brasil, o Supremo Tribunal Federal ainda adota a chamada "auto contenção" ao enfrentar determinadas "questões políticas", tais como a expulsão de estrangeiros, a anistia, os pressupostos de relevância e urgência das medidas provisórias (com freqüência) e, por fim, aquilo que nos interessa mais de perto, as matérias consideradas interna corporis das Casas Legislativas (TEIXEIRA, 2005, p. 233). O propósito deste capítulo é esclarecer em que sentido podemos falar de um direito ao devido processo legislativo sob as premissas teóricas anteriormente apresentadas. O Supremo Tribunal Federal compreende a regularidade procedimental da atividade legislativa como matéria interna corporis e, nesse sentido, como modalidade específica da doutrina das "questões políticas". Esse entendimento consiste, em última análise, na negação ou, na melhor das hipóteses, no indevido cerceamento do direito ao devido processo legislativo que, quando invocado, é reconhecido apenas aos titulares de mandato eletivo. É questionável se o confinamento desse debate ao âmbito institucional se coaduna com as premissas normativas do Estado democrático de direito. O alcance e mesmo a relevância dessa hipótese, entretanto, carece de melhor desenvolvimento. Para isso, devemos, preliminarmente, verificar quais matérias pertinentes ao processo legislativo o Tribunal exclui do rol de atos interna corporis e, por conseguinte, reconhece como passíveis de controle judicial: a) o processo legislativo constitucional, ou seja, o conjunto de normas constitucionais que regulam a produção das leis em sentido material, não é questão interna das Casas Legislativas. Uma norma produzida sem observância das regras constitucionais de processo legislativo, após promulgada, pode ser declarada inconstitucional sob o ponto de vista formal s; b) excepcionalmente o controle judicial pode incidir sobre o próprio processo de feitura da norma, como nos casos de tramitação de proposCf., por exemplo, a ADI 2.585-SC, ReI. Min. Ellen Gracie (Diário da Justiça, 6.6.2003, p. 30). 160 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA ta de emenda constitucional tendente a abolir cláusulas pétreas 9 , quando a Constituição proíbe a deliberação sobre a matéria; c) a violação de normas dos regimentos internos das Casas Legislativas que reproduzam ou possam ser diretamente reconduzidas à Constituição, equivale à violação da própria Constituição 10; d) procedimentos legislativos que se mostrem atentatórios a direitos individuais, como freqüentemente ocorre no âmbito das Comissões Parlamentares de Inquérito, também podem ser submetidos a controle judiciaP \ e, por fim, e) os próprios regimentos das Casas Legislativas são dotados de estatura normativa e devem guardar compatibilidade com a Constituição. São, eles próprios, sujeitos ao controle de constitucionalidade12 . Esse quadro preliminar é bastante amplo e pode sugerir que as controvérsias envolvendo matérias interna corporis são. pouco numerosas e restringem-se a violações autônomas do Regimento Interno, isto é, violações que não podem ser de alguma forma reconduzidas à Constituição. Do ponto de vista da garantia jurídica da Constituição, isso indicaria que o debate sobre os fundamentos da insindicabilidade dos atos interna corporis é pouco produtivo, pois violar uma norma regimental não significa, por si só, violar a Constituição. Canotilho, por exemplo, afirma que "a violação autônoma do regimento pode conduzir apenas a uma questão de ilegalidade de contornos muito inseguros" (CANOTILHO, 2003, p. 10 11 12 Cf., a propósito desse debate, o MS 20.257-DF, ReI. Min. Décio Miranda (Diário da Justiça, 27.2.1981, p. 1304). Cf. Canotilho (2003, p. 857). "Esta a razão justificativa do facto de hoje se tender a admitir que, invocada a inconstitucionalidade de uma lei por violação do regimento, o órgão competente para o controlo possa verificar a regularidade do processo de formação de acordo com o regimento, a fim de, concomitantemente, poder certificar-se da violação ou não da própria Constituição". Cf. MS-MC 24.832-DF ReI. Min. Cezar Peluso (Diário da Justiça, 18.8.2006, p. 19). Cf. a decisão da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados na Consulta n° 11/2006. Na oportunidade discutia-se a constitucionalidade de dispositivo do Código de Ética e Decoro Parlamentar (art. 14, § 4°, V) que determinava, em afronta ao art. 47 da Constituição Federal, quorum de maioria absoluta para a aprovação do parecer no âmbito do Conselho de Ética. Cf., ainda, na jurisprudência portuguesa, o Acórdão 63, de 1991, do Tribunal Constitucional (ReI. Cons. Bravo Serra). Disponível em: http://www. tribunalconstitucional.pt. PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 161 857). Esta, entretanto, é uma intuição que não se confirma, como veremos adiante. A insindicabilidade dos atos interna corporis é uma "tradição que remonta ao direito parlamentar inglês", cujo Parlamento detém "competência exclusiva para conhecer de procedimentos internos", tal como já declarava o art. 9° do Bill of Righs em 1689: "a liberdade de palavra e os debates ou processos parlamentares não devem ser submetidos à acusação ou apreciação em nenhum tribunal ou em qualquer outro lugar que não seja o próprio Parlamento" (CANOTILHO, 2003, p. 857). Essa tradição surge, portanto, num contexto de afirmação da supremacia do Parlamento (pAIXÃO, 2004, p. 107) e sua função e sentido não podem ser pensados hoje à luz da realidade social e politica inglesa de fins do século XVII. A garantia de uma esfera jurídica privativa do parlamento não serve mais à afirmação da soberania do Poder Legislativo, cuja atividade encontra-se vinculada à Constituição. O espaço de discricionariedade que remanesce reservado às legislaturas atende não à hierarquização dos poderes estatais, mas ao equihôrio entre eles. A independência do espaço no qual se institucionaliza a formação da vontade politica, por sua vez, não é uma mera garantia institucional do Congresso, mas uma garantia do próprio regime democrático. Dessa forma, a crítica à doutrina dos atos interna corporis não se confunde com um tipo de questionamento da independência do Poder Legislativo ou, ainda, com a defesa de sua submissão ao Judiciário, que funcionaria como um suposto "poder neutro" ou "moderador". Pelo contrário, essa crítica procura identificar as condições nas quais se afirma a independência da legislatura, ou seja, seus limites constitucionais. Antes de avançar a este debate, entretanto, é necessário retomar rapidamente a caracterização dos atos interna corporis no direito brasileiro. Hely Lopes Meirelles ensina que tais atos estariam relacionados à economia interna da corporação legislativa e seus serviços auxiliares, à formação dos órgãos parlamentares (como a Mesa), à elaboração de seu regimento, à fiscalização das prerrogativas e incompatibilidades de seus membros e à formação ideológica da lei. Francisco Campos, por sua vez, dirá que os atos interna corporis são questões a respeito das quais o Legislativo é, a um só tempo, destinatário e juiz. O mesmo Francisco Campos 162 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA afirmará ser "evidente" violação do princípio da separação de poderes a atribuição ao Poder Judiciário de competência para rever o processo de elaboração legislativa (QUEIROZ FILHO, 2001, p. 50-51 e 72). Entretanto, tais critérios, recorrentes na em nossa doutrina constitucional, revelam-se ambíguos e insuficientes para a solução dos complexos casos submetidos ao exame do Judiciário 13. A premissa geral da doutrina dos atos interna corporis foi firmada pelo Tribunal a partir de um precedente de 1951 14: se os argumentos articulados para impugnar ato exarado no exercício de uma atribuição legítima do Legislativo dizem respeito apenas a "aspectos de conveniência, oportunidade ou acerto", não cabe ao Judiciário apreciar a questão. Por outro lado, "não se diz, nem se poderia dizer, que a discrição legislativa (...) pode exercitar-se fora dos limites constitucionais ou legais, ultrapassar as raias que condicionam o exercício legítimo do poder"is. A rigor, a referência aos "limites legais" impostos à legislatura, conduziria à possibilidade de controle judicial de atos fundados em normas regimentais (a "lei", ou seja, a norma infraconstitucional que regula o processo legislativo). Entretanto, como a controvérsia analisada pela Corte na oportunidade cingia-se a observância de normas constitucionais, as conseqüências jurídicas da violação de normas regimentais não foram explicitamente consideradas. 13 14 15 Como exemplifica de forma eloqüente o MS 22.503-DF, ReI. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 6.6.1997). MS 1.423-DF, ReI. Min. Luiz Gallotti (Diário daJustiça, 14.6.1951, p. 5287). Segundo o relator: "o que um Poder, Legislativo, Executivo ou Judiciário faz - dentro das suas atribuições - vale nos casos concretos. O que qualquer deles pratica fora das suas atribuições, ferindo direitos públicos ou privados, a que correspondem ações ou exceções, é suscetível de ser considerado inconstitucional". Parece, entretanto, incorreto afirmar que o Tribunal firmou desde logo precedente no sentido de que se a impugnação dirige-se a "questões constitucionais, a matéria é jurídica [e não meramente política], portanto, sujeita ao Judiciário" (destacamos), como afirmado por Teixeira. A rigor, a distinção entre violação de norma constitucional e regimental seqver foi tangenciada no julgamento (TEIXEIRA' 2005, p. 144). Registre-se, todavia, que a partir da década de 1960 o enfrentamento de questões políticas sob a rubrica de matéria interna corporis se tornará mais freqüente. Dois precedentes são de especial interesse: o RE 60.422SP e o MS 18.293-DF, ambos relatados pelo Ministro Themístocles Cavalcanti. (TEIXEIRA, 2005, p. 154-156). PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 163 De fato, posteriormente prevaleceu o entendimento de que a interpretação de normas regimentais é atividade interna corp01ú, conforme assentado nos MS 20.247-DP6, MS 20.464-DF 17, MS 20.471-Dp8 e MS 21.754-Rr9, entre outros mais recentes. Entretanto, uma ambigüidade persiste: a doutrina das questões políticas se firmou na suposição de que, diante da violação a direitos subjetivos, cessa qualquer domínio de discricionariedade. Na maioria, senão em todos os precedentes citados, é difícil verificar a existência do "direito subjetivo" líquido e certo argüido. Por outro lado, não é difícil imaginar exemplos de violação autônoma a normas regimentais que implicariam em prejuízo a prerrogativas legais ou regimentais de parlamentares. Suponhamos que a Mesa da Câmara dos Deputados, ao organizar a composição das Comissões Permanentes, abstenha-se de indicar um determinado deputado para qualquer uma delas, contrariando o art. 26, § 3° do Regimento Interno 2o • Ou, ainda, que o Presidente da Câmara dos Deputados se recuse a receber uma emenda de Plenário a projeto de lei, devidamente formalizada e apresentada por um ou mais parlamentares no prazo regimental. Uma série de prerrogativas, tal qual nos exemplos citados, possui sede exclusivamente regimental. Várias delas consagram faculdades elementares e indispensáveis para o exercício do mandato. Como sustentar, nos termos da própria jurisprudência do STF, que em caso de vício procedimental decorrente da violação de uma dessas normas, encontramo-nos diante de "questão política" ou de matéria interna corporis? Essa perplexidade está presente no trecho transcrito abaixo, retirado do voto do Ministro Sepúlveda Pertence no MS 21.754 e reafirmado no já mencionado MS 22.503-DF: 16 17 18 19 20 MS 20.247-5-DF, Relator Min. Moreira Alves (Diário da Justiça, 21.11.1980). MS 20.464-8-DF, Relator Min. Soares Munoz (Diário da Justiça, 7.12.1984). MS 20.471-1-DF, Relator Min. Francisco Rezek (Diário da Justiça, 22.2.1985). MS-Ag 21.754-5-RJ, Relator para acórdão Min. Francisco Rezek (Diário da Justiça, 21.2.1997). Diz o art. 26, § 3° do Regimento Interno da Câmara dos Deputados: "Ao Deputado, salvo se membro da Mesa, será sempre assegurado o direito de integrar, como titular, pelo menos uma Comissão, ainda que sem legenda partidária ou quando esta não possa concorrer às vagas existentes pelo cálculo da proporcionalidade". 164 Como critério pragmático, prático, empírico, se repete muito, no tema, é que, no processo legislativo ou em qualquer deliberação da Câmara, o que o Judiciário pode apurar são as violações de norma constitucional, não de norma regimental. Não me sinto, neste momento, autorizado à afirmação apodítica de que da violação da norma regimental não possa surgirjamais uma questão susceptível de solução jurisdicional. O que me parece essencial é saber, srja qualfor a norma juridica invocada, se há, em tese, direito subjetivo a proteger. Se existe, pode a norma de referência ser regimental. Assim como pode a violação de norma constitucional não trazer viabilidade ao mandado de segurança, se não há direito subjetivo em jogo: aí, a ofensa à Constituição poderá gerar, sim, a inconstitucionalidade formal da norma dela decorrente a ser declarada, porém, em outras vias. (destacamos) Da mesma forma, Hely Lopes Meirelles distinguia as questões interna corporis daquelas pertinentes à aplicação das normas do Regimento Interno das Casas Legislativas, em observações extensamente citadas nos precedentes mencionados acima: ''As Câmaras Legislativas não estão dispensadas da observância da Constituição, da lei em geral e do Regimento Interno em especial". Meirelles entendia, por essa razão, que a infringência do processo legislativo permitia a impetração de mandado de segurança por parte do parlamentar, "prejudicado no seu direito público subjetivo de votá-lo regularmente"21. O dogma segundo o qual a interpretação das normas regimentais é matéria alheia ao controle judicial é, portanto, bem menos monolítico - inclusive em relação à própria jurisprudência firmada pelo STp22 - do que sugerem as suas reiteradas citações. Há, entretanto, outra premissa construída pela jurisprudência e que merece consideração. Trata-se da afirmação de que a regularidade do processo legislativo cinge-se a um "direito público subjetivo do parla- 21 22 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA MElRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança: ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, 'habeas data', ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito fundamental. 24a ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 40. Veja-se, a este respeito, o MS-1.959-DF, de 1953, ReI. Min. Gallotti: "Desde que se recorre ao judiciário alegando que um direito individual foi lesado por ato de outro Poder, cabe-lhe examinar se este direito existe e se foi lesado. Eximir-se com a excusa de tratar-se de ato político seria fugir ao dever que a Constituição lhe impõe". 165 mentar". O MS 24.642-Dp23 é um bom exemplo da posição prevalente na Corte. Nessa oportunidade, o Tribunal reafirmou sua jurisprudência e reconheceu a legitimidade ativa do parlamentar para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo constitucional. O acórdão frisa, ainda: "legitimidade ativa do parlamentar, apenas". Essa jurisprudência se firmou sob a vigência da Constituição anterior e é claramente informada pela concepção paradigmática do Estado social, marcada pela assimilação da categoria do público ao estatal. As conquistas até agora acumuladas no processo de superação dessa concepção e afirmação de um Estado democrático de direito - no qual a cidadania ativa funciona como pressuposto de legitimação das normas jurídicas - requerem, entretanto, uma postura diferente. O surgimento dos conselhos de políticas públicas, a constitucionalização dos instrumentos de democracia direta e o fortalecimento dos mecanismos constitucionais de controle do estado revelam que a identidade entre público e estatal foi subvertida. A produção do direito não pode ser encarada como um mero processo institucional (estatal), restrito aos órgãos de cúpula da República. Hoje, o processo legislativo só faz sentido se é capaz de amplificar problemas e debates construídos no seio da esfera pública, traduzindo em normas jurídicas compromissos formados por meio da conjugação deliberativa de argumentos morais, pragmáticos e axiológicos. N esse sentido, Marcelo Cattoni afirma que os regimentos legislativos representam, de uma perspectiva normativa, condições processuais que devem garantir o processo legislativo democrático, ou seja, a institucionalização jurídica de formas discursivas e negociais que, sob as condições de complexidade da sociedade atual, devem garantir o exercício da autonomia jurídica - pública e privada - dos cidadãos (CATTONI, 2000, p. 25). Os agentes estatais, incluídos aí os parlamentares, não são portadores exclusivos do interesse público, não detêm sobre ele qualquer tipo de mo- 23 MS 24.642-1-DF, ReI. Min. Carlos Vel1oso (Diário da Justiça, 18.6.2004, p. 45). Afirmava o Relator, nessa decisão de 1993: "Tenho como extreme de dúvidas (... ) a legitimidade, para impetrá-lo [o mandado de segurança], de qualquer participante do processo legislativo (deputado ou senador)". 166 nopólio. Um interesse só pode se dizer "público" se afirmado por meio de procedimentos que permitam uma crítica ampla por parte de todos os afetados pela decisão. As normas regimentais, além de definir direitos e prerrogativas de deputados e senadores, organizam o funcionamento do legislativo e, por conseguinte, esclarecem para a esfera pública politicamente atuante as condições nas quais é dado a ela interferir e criticar a formação institucional das leis. Sem essa abertura, o processo legislativo é privatizado pelos agentes estatais e pelos lobbies cristalizados nos partidos políticos, já familiarizados com as peculiaridades do jogo parlamentar. Se a interpretação das normas regimentais é matéria interna corporis, seria de se esperar que ao menos as normas constitucionais que regem o processo legislativo tivessem seu caráter cogente amplamente garantido pela atuação do Judiciário. Dieter Grimm, lembrando a teorização kelseniana acerca do controle de constitucionalidade das leis, afirma que "uma constituição que tratasse do processo legislativo sem se preocupar do seu efetivo cumprimento por parte do Legislador careceria, no seu ponto de vista, de validade. Não seria nada mais que um 'desejo não vinculante'" (GRIMM, 2006). Não é o que ocorre, entretanto. Recentemente, ao analisar violações flagrantes a dispositivos constitucionais, o STF se esquivou de interferir no processo legislativo baseado em argumentos no mínimo questionáveis. Um caso exemplar diz respeito ao regime constitucional de apreciação dos vetos presidenciais a projetos de lei. Segundo os §§ 4° e 6° do artigo 66 da Constituição, uma vez recebido o veto, o Congresso deve deliberar sobre ele no prazo de 30 dias. Esgotado esse prazo sem deliberação, o veto figuraria necessariamente na ordem do dia da próxima sessão, "sobrestadas as demais proposições, até sua votação final". O Congresso havia sido convocado para reunião em 11 de abril de 2006, cuja ordem do dia previa a votação do orçamento anual de 2006. Não obstante, havia um número considerável de vetos pendentes de deliberação por mais de 30 dias, os quais, conforme os dispositivos constitucionais mencionados, teriam precedência sobre a lei orçamentária. Um mandado de segurança foi impetrado contra o ato do Presidente do Congresso que fixou a pauta da sessão desconsiderando os vetos pendentes de apreciaçã0 24 . Em decisão monocrática, indeferindo a li24 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA. .. LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Cf. MS 25.939-DF, Relator Min. Sepúlveda Pertence. Íntegra da decisão monocrática disponível em: http://stf.gov.br/imprensa/pdf/ ms25939.pdf. 167 minar no MS 25.939-DF, o Ministro Sepúlveda Pertence afirmou que o sobrestamento da pauta previsto na Constituição "pressupõe a inclusão na ordem do dia das mensagens presidenciais de veto não apreciadas no prazo". Os vetos não teriam sido incluídos na ordem do dia em razão de obstáculos regimentais antepostos à sua tramitação (alguns estavam pendentes de parecer da Comissão Mista, outros haviam simplesmente sido retirados de pauta). Ocorre que a inclusão dos vetos na ordem do dia não pode ser considerada pressuposto do sobrestamento da pauta, pois o § 6° do artigo 66 da Constituição obriga o Presidente do Congresso exatamente a incluir em pauta os vetos pendentes de deliberação por mais de 30 dias ("Esgotado sem deliberação o prazo previsto no § 4° [trinta dias], o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições"). O relator, ao indeferir a liminar, esclareceu: Afigura-se-me certo, porém, que não havendo vetos aparelhados para a imediata deliberação do Congresso Nacional- porque pendentes, devida ou indevidamente, de obstáculos antepostos à sua tramitação, sem impugnação adequada -, não cabe impor a paralisia de todos os processos legislativos já prontos para a deliberação. Do ponto de vista do direito constitucional comparado, o tratamento dispensado pela nossa Constituição ao Poder Executivo em matéria de veto é extremamente generoso (ALEMÁN; TSEBELIS, 2005). O Brasil é um dos poucos países que, admitindo o veto parcial a projeto de lei, determina a imediata promulgação da parte sancionada (promulgação parcial). Apenas a parte vetada retorna ao Congresso para apreciação. Neste contexto normativo, a decisão do STF confere mais peso à vontade do Presidente do Congresso do que à própria Constituição, em afronta aberta à organização do processo legislativo. Na prática, a medida retarda indefinidamente a conclusão da tramitação dos projetos de lei e chancela uma prática institucional equivocada do Poder Legislativo, que vem mantendo por vários anos vetos pendentes de apreciaçã0 25 • 25 A este respeito, tramita no STF a ADI 3.719-DF, de autoria do PSOL, questionando dispositivo do Regimento Comum do Congresso que determina que o prazo de 30 dias para apreciação do veto seja contado a partir da sessão convocada pelo Presidente do Congresso para conhecimento da matéria, e não da data de seu recebimento pelo Congresso, conforme determina a Constituição (cf. art. 66, §§ 4° PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA 168 Pelo que já foi visto até aqui, podemos afirmar que o processo legislativo regrado pelos regimentos internos das Casas Legislativas é percebido pela jurisprudência do STP como "mero procedimento" dotado de pouca ou nenhuma relevância jurídica - é, portanto, um problema político, não jurídico. Isso é especialmente perturbador se atentarmos para as recentes decisões da Corte a respeito da necessária proteção aos direitos fundamentais ameaçados por abusos praticados no âmbito de CPI's ou de investigações disciplinares responsáveis pela apuração de quebra de decoro parlamentar. Quando se trata de resguardar a regularidade da produção das leis, o Tribunal se exime de analisar a interpretação das normas regimentais sob o argumento de que estaria a praticar uma ingerência em atos interna corporis. Não obstante, em sede de procedimento de sindicância preparatório de processo disciplinar, chegou a cassar uma decisão da Mesa da Câmara fundamentada não no Regimento, mas em Ato da própria Mesa, isto é, em norma de caráter infralegal, de competência exclusiva da própria autoridade coatora. A decisão (acertada, é bom que se diga) argumentava que o direito dos parlamentares investigados por quebra de decoro ao devido processo havia sido afrontado pela não-observância do procedimento de sindicância previsto no Ato2G • Que lição tirar desse tratamento dispare? Por que, afinal, o Tribunal é capaz de censurar o abuso de normas regulamentares num caso e julgarse impedido de garantir o mesmo princípio constitucional do devido processo em outro? A legitimidade da lei, sob a perspectiva da doutrina dos atos interna corporis, satisfaz-se plenamente com o respeito às premissas constitucionais da produção de normas primárias do ordenamento. Desta forma, a regularidade dos trâmites legislativos reduz-se a uma questiúncula institucionaF7. Essa leitura do princípio da separação dos poderes legitima e 6 da Constituição Federal e art. 104, § IOdo Regimento Comum do Congresso Nacional). Cf. a decisão em liminar proferida pelo então Presidente do STF, Min. Jobim, no MS 25.539-DF. Disponível em: http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/LiminarMSdeputados.pdf. Registre-se, porém, que vozes importantes do direito constitucional já se manifestaram nesse sentido. Carré de Malberg, por exemplo, afirma: "as prescrições ditadas por esses regulamentos [parlamentares], concernentes ao procedimento legislativo, não formam, propriamente, regras constitucionais, elementos ou condições da for- um "abandono" do processo legislativo à discrição dos órgãos diretores do Congresso (geralmente controlados pela maioria parlamentar) e limita a regularidade dos procedimentos de formação da lei, quando muito, a um direito público subjetivo dos parlamentares, o que parece contraditório com a própria idéia de mandato. Em pleno Estado democrático de direito, é nesses termos que podemos falar em um direito fundamental ao devido processo legislativo? 2. 27 EXCURSO: CONTROLE JUDICIAL DO PROCESSO LEGISLATIVO NO MARCO DA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO E DA DEMOCRACIA Sintetizando bastante as conclusões obtidas no primeiro capítulo desta investigação, temos que o processo legislativo encaixa-se em um modelo de circulação social do poder político. Os direitos fundamentais garantem as condições necessárias para que os cidadãos possam regular sua convivência pelos meios do direito positivo, conectando autonomia privada e pública28 • A esfera pública, garantida por esses direitos fundamentais, encarrega-se de tematizar problemas e circulá-los socialmente, problemas que muitas vezes só se apresentam como tais sob óticas particulares e que, não raro, colocam em xeque nossa compreensão a respeito do significado de um ou vários direitos fundamentais em casos concretos. O parlamento, por sua vez, recebe e institucionaliza influxos 0 26 169 28 mação constitucional das leis. Com efeito, o regimento das Câmaras nem sequer tem o alcance de uma lei; como obra de cada uma das assembléias, que são sempre e respectivamente titulares do direito de modificá-lo, constitui para elas apenas um estatuto interno, que não pode obrigar externamente e nem ser imposto por outra autoridade que não elas mesmas". (CARRÉ DE MALBERG, 2001, p. 419). Carl Schruitt, em "A crise da democracia parlamentar", afirma que "algumas normas do direito parlamentar atual, sobretudo as deterruinações quanto à autonoruia dos deputados e à abertura das sessões, surgem ( ... ) como uma ornamentação inútil, supérflua e até patética, como se alguém pintasse chamas vermelhas nos aquecedores de um moderno sistema de aquecimento central para transruitir a ilusão de um fogo ardente (SCHMITT, 1996, p. 8). Para uma análise das diversas correntes doutrinárias a respeito da natureza jurídica das normas regimentais, cf. a dissertação de Cristiane Branco Macedo (2007, p. 82 e ss.). A este respeito, cf., ainda, as observações de Vidal Marli (2005) e Serio Galeotti (1981). A este respeito, cf. o conceito de sistema de direitos utilizado pela teoria discursiva (HABERMAS, 1997a, p. 158 e ss). 170 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA da esfera pública, buscando traduzir "poder comunicativo" em capacidade regulatória por meio da produção de leis. Avançando, seguiríamos para a aplicação judicial e administrativa das leis e sua necessária abertura à crítica, seja por mecanismos institucionais, seja pela própria esfera pública. Poderíamos falar, também, sobre como os movimentos sociais desenvolvem, a partir de uma apropriação da Constituição, novas práticas jurídicas, não raro à margem do (ou mesmo contra o) direito afirmado pelo Estado, e assim por diante. Nesse contexto, como entender o controle judicial do processo legislativo? Em princípio, devemos ter presente a tarefa mais ampla de possibilitar a gênese democrática da lei, o que não pode ser garantido simplesmente pela imposição das regras do processo legislativo, tenham elas status constitucional ou regimental. Uma constituição que configura e interpreta o sistema dos direitos, segundo sugere Habermas, não contém nada mais que "os princípios e condições do processo legislativo que não pode ser interrompido". Nesse sentido amplo, a função da jurisdição constitucional é garantir o processo comunicativo por meio do qual se forma a opinião pública, isto é, assegurar a observância dos direitos fundamentais sem os quais não é possível qualquer democracia. Em um sentido mais restrito, o controle judicial do processo legislativo representa a possibilidade de impor à atividade institucional do Poder Legislativo as regras que ele próprio consagrou para seu funcionamento. A imposição de tais regras, mais que uma garantia dos deputados e senadores ou das minorias parlamentares, é condição indispensável para a conexão entre o debate público e a discussão parlamentar. Essa perspectiva de política deliberativa intersubjetivista irá certamente recusar a idéia schmittiana da identidade entre governante e governado. O povo só se apresenta no plural. Não é um sujeito dotado de vontade ou consciência cognoscível. Não podemos recorrer a uma espécie de vontade popular abstrata como referência ou critério de legitimidade para a política e o direito. A soberania popular, que o processo legislativo pretende representar, deve ser reinterpretada em termos procedimentais. Como alerta Menelick de Carvalho Netto: "o povo não é um dado histórico naturalizado e ontologizado, é um problema, não uma solução" (CARVALHO NETTO, 2003, p. 152). Nesse sentido, como afirmado ao final do capítulo 1, o lugar simbólico da soberania deve permanecer "vazio". Isso, não significa, entretanto, 171 desmentir a radical intuição contida na idéia de soberania popular: Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anônima, só se abriga no processo democrático e na implementação jurídica de seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por sinal, caso tenha por finalidade conferir validação a si mesma enquanto poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exato, essa validação provém das interações entre a formação da vontade institucionalizada de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente mobilizadas, que de sua parte encontram uma base nas associações de uma sociedade civil igualmente distinta do Estado e da economia. O controle judicial do processo legislativo é uma peça fundamental desse arranjo. Compreender a constituição a partir do paradigma procedimental é apostar "no caráter intrinsecamente racional das condições procedimentais que apóiam a suposição de que o processo democrático, em sua totalidade, propicia resultados racionais" (HABERMAS, 1997a, p. 354). Em outras palavras, a legitimidade do direito depende da proteção que se pode oferecer aos direitos fundamentais enquanto condições possibilitadoras da formação e operação da esfera pública e, ainda, da garantia que se possa dar à institucionalização desse debate no processo legislativo democrático. Aí se situa o papel da jurisdição constitucional. 3. DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO E CONTROLE JURISDICIONAL DA REGULARIDADE DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS LEIS A regularidade regimental do processo legislativo não pode ser relegada a um problema interno das corporações parlamentares. Mais acima afirmamos que o entendimento jurisprudencial prevalecente ainda resvala para essa postura, principalmente quando as normas violadas não podem ser "diretamente" remetidas ao texto constitucional. Nesse último tópico, procuramos evidenciar as razões pelas quais o controle judicial do processo legislativo ganha relevância em nosso modelo político-constitucional. Os riscos originados a partir da jurisprudência hoje dominante envolvem a autonomização do parlamento em relação à esfera pública e a conseqüente privatização do processo legislativo pelas corporações parlamentares ou por interesses de grupos políticos e/ou econômicos incrustados em partidos políticos. 172 Essa crítica, entretanto, não estará completa sem a reconstrução de pressupostos que nos permitam compreender o significado do direito ao devido processo legislativo em nossa experiência constitucional. Hans Linde, em meados da década de 70 do século passado, dedicou-se a formular uma teoria do "due process of lawmaking" (LINDE, 1976, p. 179) para o constitucionalismo americano. Seu objetivo era reunir condições para a crítica de uma jurisdição constitucional que, sob a falsa premissa de avaliar a racionalidade da legislação, confundia juizos de legitimidade com juízos de constitucionalidade. Antecipando a resistência daqueles que defendiam a já popular doutrina do "devido processo material" [substantive due process] em suas diferentes versões, Linde inicia seu texto com uma citação de Oliver Wendell Holmes: "a teoria é a parte mais importante do dogma do direito". Alguém familiarizado com o pensamento de Holmes (como Linde) saberia, entretanto, que ele se tornou famoso por outra citação, na qual afirma que a vida do direito não tem sido lógica, mas experiência. Essa famosa passagem de Holmes encontra-se na abertura de seu livro sobre common lauJ9. Linde insistirá, entretanto, que o direito constitucional, por mais que se relacione com precedentes judiciais, não é e nunca será common law. Brincando com a aparente contradição entre o papel de teoria e prática no pensamento de Holmes, Linde quer sugerir que a tarefa de interpretar a constituição requer um equiHbrio entre as demandas da "lógica" e da "experiência" diferente daquele que encontramos nos ramos do direito regulados pelo direito costumeiro. Para ele, a interpretação constitucional está menos comprometida com soluções passadas produzidas pelos órgãos aplicadores do direito e pela doutrina. O surgimento das constituições formais dotadas de supremacia inaugura, de fato, um direito voltado para o futuro. Recuperar mesmo que brevemente esse debate não é propor uma aproximação entre a experiência americana durante a década de 70 e o atual momento constitucional brasileiro, mesmo que alguns paralelos possam ser traçados. A advertência válida e atual do raciocinio de Linde se dirige à teoria da constituição e s.eu papel especifico, que é constituir uma instância crítica da prática de interpretação e aplicação da constitui29 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Há uma versão virtual de "The Common Law", de Oliver Wendell Holmes, disponível em: http://biotech.law.lsu.edu/Books/Holmes/ claw03.htm. 173 ção. Sabemos, hoje, que esse não é um ponto de observação privilegiado, mas apenas mais um ponto de observação possível. A perspectiva da teoria da constituição não se reduz à reprodução e sistematização de decisões institucionais passadas. Sua função é problematizar essas decisões e sua adequação a novas circunstâncias, denunciando, por meio de seu próprio afazer, a permanente abertura de sentido de um direito que rompeu com a idéia de fundamento e que exclui "não somente a correspondência entre direito e verdade, mas também toda causalidade" (DE GIORGI, 2006, p. 178). Uma teoria da constituição que opera reconstrutivamente deve ser capaz de divisar sentidos escondidos em práticas hegemônicas e articular possibilidades latentes, ainda não estruturadas pelos saberes institucionalizados. Deve ser capaz de compreender nossa experiência constitucional no contexto do constitucionalismo e dialogar com os sucessos e dificuldades de outras experiências. Aqui não se trata, portanto, de revelar uma teoria pronta e acabada, oculta nas práticas e exemplos que serão analisados adiante, mas de recolher "fragmentos de racionalidade" que permitam reconstruir o significado do processo legislativo e a vocação emancipatória da idéia de autolegislação. Iremos proceder em três etapas: a primeira delas problematiza a natureza jurídica das normas que regulam o processo legislativo e seu significado em nosso ordenamento. Em seguida, as conseqüências da violação de normas regimentais são investigadas à luz de algumas construções doutrinárias e jurisprudenciais. Por fim, num terceiro momento, o direito ao devido processo legislativo será analisado do ponto de vista de sua titularidade e funcionalidade. 3.1. Sobre a natureza jurídica das normas regimentais A natureza das normas regimentais é objeto de larga controvérsia doutrinária entre constitucionalistas de diferentes tradições jurídicas30 • Em nossa jurisprudência constitucional, entretanto, a questão tem se resolvido em favor do reconhecimento de uma reserva normativa constitucionalmente garantida aos regimentos legislativos, os quais integrariam, portanto, o sistema de fontes de direito. 30 Cf. nota de rodapé 151. A este respeito, cf. também Ângela Burrieza (2003). 174 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA As normas regimentais guardam, em princípio, a mesma hierarquia das leis: o que difere uma espécie normativa da outra são seus "âmbitos materiais próprios", delimitados pela Constituição. Nesse sentido, Serio Galeotti asseverava, ainda na década de 1950: "Os regulamentos das Casas Legislativas se colocam hoje, com toda segurança, como atos normativos estruturalmente distintos e separados da lei" (GALEOTTI, 1985, p. 155?1. Por tal razão, a revogação de lei em sentido formal por norma regimental ou vice-versa não é possível. A doutrina costuma reconhecer, assim, as normas dos regimentos internos como parte integrante do ordenamento jurídico (SILVA, 2006, p. 343). Enquanto regras de direito positivo dotadas de previsão constitucional, são normas cogentes, de observação obrigatória por todos seus destinatários. Nesse sentido, destaca Jorge Miranda: A natureza dos regimentos das assembleias politicas está longe de ser pacifica. Seja ela qual for, se as próprias assembleias podem modificar as normas regimentais quando lhes aprouver, não poderão dispensar-se de as cumprir enquanto estiverem em vigor. Quando o Parlamento vota uma lei, ou uma resolução, o objecto da deliberação é o projecto ou a proposta e não o regimento; essa deliberação tem de se fazer nos termos que este prescreve e não pode revestir o sentido de modificação tácita ou implicita das suas regras. O principio que aqui se projecta para além do princípio hierárquico é sempre o de que o órgão que pode modificar a lei sob que vive deve, pelo menos, fazê-lo especifica e directamente. Doutro modo, frustrar-se-ia a missão ordenadora do Direito e comprometer-se-ia a própria idéia de institucionalização jurídica do poder (MIRANDA, 2003, p. 486)32. 31 32 Cf., ainda, o BC 71.193-6-SP, ReI. Min. Sepúlveda Pertence (Diário da Justiça, 23.3.2001). A este respeito, cf. também o trabalho de Cristiano V Carvalho (2002). É com o intuito de afastar argumentos que afirmam a possibilidade de uma "modificação tácita do regimento" que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, por exemplo, adota para a modificação ou reforma do seu texto procedimentos mais complexos do que aqueles previstos para a alteração da legislação infraconstitucional. Cf. em especial o § 5° do art. 216 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. O Regimento Comum do Congresso Nacional, por outro lado, prevê restrições quanto à iniciativa de proposições destinadas a reformá-lo: apenas as Mesas da Câmara, do Senado ou do Congresso ou, ainda, 100 subscritores - no mínimo 80 deputados e 20 senadores - possuem legitimidade para tanto (cf. art. 128). O Regimento Interno do Senado, por sua vez, apesar de não adotar qualquer obstáculo técnico à sua reforma (prevendo expressamente - art. 401, § 4° - a aplicabi- PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA. .. 175 Entretanto, o reconhecimento da juridicidade das normas regimentais, com todas as suas conseqüências, ainda encontra resistência em práticas e concepções que as reputam como um "ordenamento interno" das Casas Legislativas (GALEOTTI, 1998, p. 248). O caráter corporativo das normas regimentais é uma recalcitrância no discurso judicial e no imaginário parlamentar, acostumado a ver resguardadas de qualquer censura externa as decisões adotadas com base nos regimentos legislativos. Por ora, interessa perceber como essa idéia se faz presente na apreciação jurisdicional de atos do Congresso. Um bom exemplo é o julgamento do HC 71.1936-SP (ReI. Min. Sepúlveda Pertence) pelo Supremo Tribunal Federal. O paciente desse habeas corpus alegava, em síntese, que estava sendo constrangido a depor perante uma Comissão Parlamentar de Inquérito cujo prazo encontrava-se vencido nos termos do próprio Regimento da Câmara, que prevê, em seu art. 35, § 30: "A Comissão, que poderá atuar também durante o recesso parlamentar, terá o prazo de cento e vinte dias, prorrogável por até metade, mediante deliberação do Plenário, para conclusão de seus trabalhos". A Lei 1.579/52, por sua vez, em seu art. lidade das normas que regem a tramitação dos demais projetos de resolução a esse procedimento) também proibiu a "modificação tácita das normas regimentais", em seu art. 412, II, no qual está firmado como princípio básico do devido processo legislativo que a "modificação da norma regimental [se dará] apenas por norma legislativa competente, cumpridos rigorosamente os procedimentos regimentais". O mesmo dispositivo, no inciso IV, sanciona com nulidade os atos contrários ao Regimento. É importante ressaltar, entretanto, que no final de 2006 o Senado aprovou a Resolução n° 35/2006, que alterou o inciso III do art. 412, para estabelecer a possibilidade de que acordo de liderança valha contra norma regimental, desde que apoiado pela unanimidade dos senadores presentes, em votação nominal, observado quorum mínimo de 3/5 da composição da Casa. A modificação esdrúxula revoga, na prática, o inciso II citado, pois cria um procedimento ad hoc de alteração do Regimento. A idéia de um acordo que vale contra a norma regimental representa a privatização do processo legislativo, pois trata os regimentos como ordenamentos jurídicos parciais e corporativos. Nesse contexto, também é interessante lembrar o direito italiano, no qual a própria Constituição dispõe que a adoção ou modificação dos regimentos legislativos pressupõe a aprovação por maioria absoluta dos membros das respectivas Casas Legislativas. Neste sentido, cf. (GALEOTTI, 1985, p. 155). Em nossa tradição constitucional, vale mencionar, ainda, o parágrafo único do art. 27 da Constituição de 1934, segundo o qual "nenhuma alteração regimental será aprovada sem proposta escrita, impressa, distribuída em avulsos e discutida pelo menos em dois dias de sessão". 176 5°, § 2°, autorizava a prorrogação do prazo de funcionamento da CPI até o final da Legislatura que a houvesse instituido. Uma apertada maioria de 6 a 5 indeferiu o habeas corpus, firmando o entendimento de que o limite fatal para o funcionamento de uma CPI era o final da legislatura, conforme preceito legal. A premissa que permeia o voto vencedor no referido acórdão é a seguinte: o princípio da legalidade requer que limitações a direitos ou obrigações perante terceiros (que não os membros do Congresso e o seu corpo de apoio) sejam impostas apenas por lei em sentido formal, não por normas regimentais. Entretanto, ainda que tal premissa se mostre acertada, a conclusão dela extraída é, sem dúvida, um equívoco: Ditada no interesse exclusivo da Câmara, e respeitado o termo legal, a disposição regimental atinente às prorrogações dos trabalhos da CPI esgota sua eficácia na esfera interna dos.protagonistas do jogo parlamentar e só para eles cria direitos e deveres. O que torna irrelevante para o caso concreto indagar se as controvérsias a respeito de sua inteligência ou se sua aplicação constituem, ou não, matéria interna corporis, subtraída da jurisdição dos Tribunais. Daí resulta que, no ponto, aos particulares só é dado invocar a eventual superação pelos trabalhos da CPL que os pretenda constranger de algum modo) do termo final de legislatura) imposto por lei à sua duração. Esse, porém, não é o caso33 • (destacamos) Como se vê, o voto vencedor vai muito além da premissa que supostamente lhe ampara. Não é que as normas regimentais sejam instrumentos inadequados para limitar direitos ou impor obrigações a terceiros 33 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA No mesmo sentido, e ainda mais eloqüente, o BC 71.261-RJ, relator Min. Sepúlveda Pertence: ''A disciplina da mesma matéria pelo regimento interno diz apenas com as conveniências de administração parlamentar, das quais cada câmara é o juiz exclusivo, e da qual, por isso - desde que "respeitado o limite máximo fixado em lei, o fim da legislatura em curso -, não decorrem direitos para terceiros) nem a legitimação para questionar em juízo sobre a interpretação que lhe dê a Casa do Congresso Nacional'. (Diário da Justiça, 24.6.1994, p. 16.651). Ressalte-se, ainda sobre a inadequação de tais decisões, que a Constituição de 1946, vigente à época da edição da Lei 1.579/52, não previa, em seu art. 53, a necessidade de prazo certo para o desenvolvimento dos trabalhos das comissões parlamentares de inquérito. A lei veio a fixá-lo diante da inexistência de previsão de que as Casas Legislativas o fizessem, o que não ocorre na Constituição de 1988 (cf., a este respeito, o voto do Min. Moreira Alves no já citado BC 71.193-RJ). 117 em razão do princípio da legalidade: as normas regimentais também não geram direitos para sujeitos externos às Casas Legislativas. Essa conclusão não é nem imediata e muito menos óbvia. Tal inferência, aliás, só pode repousar naquilo que Galeotti chamou de concepção das normas regimentais como "ordenamento interno" das corporações legislativas, normas que não possuem caráter cogente. Em outras palavras, mesmo que a prorrogação dos prazos da CPI violasse abertamente uma norma do Regimento Interno da Câmara, o paciente do habeas corpus nada poderia fazer contra a arbitrariedade, pois para ele não nasce qualquer direito a partir tal previsão legal. A despeito dos avanços recentemente verificados na jurisprudência do STP sobre CPls, o BC 71.193-RJ ainda representa a posição consolidada no Tribunal a respeito da questão. O Congresso, evidentemente, permanece satisfeito com a solução, que lhe confere ampla liberdade quanto à prorrogação dos prazos de funcionamento das CPls. A recusa do Poder Judiciário em interferir nos procedimentos parlamentares sob o argumento de que são regulados por um direito parcial, como não poderia deixar de ser, fomenta abusos. No caso da prorrogação dos prazos de funcionamento de CPI, veja-se a Questão de Ordem n° 284, de 26/10/1999, da Câmara dos Deputados 34 . Conforme mencionado anteriormente, o art. 35, § 3° do Regimento Interno da Câmara dispõe que o prazo de funcionamento das CPls é de 120 dias, prorrogável pela metade por deliberação do Plenário. Na referida questão de ordem, fixou-se o entendimento de que a prorrogação de prazo poderia ser deferida pelo Presidente da Câmara, ad riferendum do Plenário. Naquela oportunidade, alegou-se que o acúmulo de matérias e, em especial, de urgências constitucionais sobrestando a pauta, tornaria impossível submeter o requerimento de prorrogação ao Plenário antes de transcorrido o prazo de funcionamento da Comissão. Em conseqüência, esta encerraria seus trabalhos sem que o órgão competente (o Plenário) sequer tives::;e tido a oportunidade de apreciar o requerimento de prorrogação. A Comissão de Constituição e Justiça entendeu que era facultado ao Presidente decidir em caráter precário, mas o Plenário, entretanto, deveria convalidar tal decisão "na primeira sessão subseqüente à desobstrução constitucional da pauta". 34 Disponivel em: http://www2.camara.gov.br/plenario/qordem. LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA 178 Esse expediente já era questionável. Mais recentemente, entretanto, verificamos que não apenas a primeira, mas até mesmo a segunda ou terceira prorrogação do prazo de funcionamento de algumas CPIs, têm sido deferidas pelo Presidente ad riferendum do Plenário da Câmara35 . Alguns requerimentos, em franco desacordo com as disposições do Regimento, solicitam a prorrogação do prazo por 90 dias, quando o § 30 do art. 35 prevê a prorrogação por apenas 60 dias. No final de março de 2006, o relatório final da CPI da Biopirataria foi aprovado após várias prorrogações nesses moldes. Os requerimentos de prorrogação jamais foram submetidos ao Plenário da Câmara. Atentese para o fato de que, a despeito disso, o relatório final resolveu, entre outras providências, representar junto ao Ministério Público visando à propositura de ação penal pela prática do crime de desobediência em face de testemunhas que não compareceram às audiências da CPI. Esses são os riscos que se abrem a partir da interpretação das normas regimentais como garantias corporativas. Tal entendimento, entretanto, não é uma convicção monolítica do Tribunal. Em primeiro lugar, a decisão do HC 71.193-RJ foi tomada por uma maioria apertada e por uma composição quase integralmente diferente da atual. A tendência do STF, desde então, tem sido garantir que as investigações parlamentares transcorram com rigorosa observância dos direitos constitucionais dos investigados. Além disso, mesmo em se tratando de processo legislativo em sentido estrito, quando o Tribunal adota uma postura bem mais contida, há votos vencidos que, reconhecendo o caráter especificamente jurídico das normas regimentais, apontam para a necessidade de sua garantia judicial. Nesse sentido, a enfática defesa da natureza cogente das normas regimentais pelo Ministro Celso de Mello, em voto vencido proferido no julgamento do MS 22.503-DF: o respeito ao modelo constitucional e à disciplina regimental, no ponto em que esta impõe atuação vinculada aos órgãos parlamentares, trate-se do processo de formação das leis ou cuide-se do procedimento de modificação da própria Constituição da República, qualifica-se como pressuposto 4e existência e de validade dos atos normativos editados pelo Congresso Nacional (...) Interpretações arbitrárias de 35 Cf. a Questão de Ordem n° 625, de 20.10.2005, de autoria do deputado Dr. Rosinha. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/plenario/qordem. PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 179 cláusulas regimentais mandatórias ou de prescrições constitucionais subordinantes, que possam afetar a válida elaboração das leis ou das emendas à Constituição, representam cifronta inquestionável à própria supremacia da Carta Política que rege a organização institucional do Estado. (destacamos) Essa passagem faz mais que reforçar a idéia de um processo legislativo regulado por normas de direito público e, portanto, cogentes. Os trechos destacados sugerem que violações regimentais podem resultar em afronta à própria supremacia constitucional, suscitando uma tese pouco debatida no direito constitucional brasileiro: pela sua estreita conexão com a função da constituição de norma primária sobre a produção jurídica, os regimentos gozariam de uma posição diferenciada no ordenamento jurídico. Sua violação, em determinadas circunstâncias, poderia significar a violação da própria constituição. 3.2. Conseqüências jurídicas da violação das normas regimentais Essa idéia não é, em si, nenhuma novidade. O direito constitucional há muito já percebeu e elaborou teoricamente esse tipo de situação. Canotilho, por exemplo, nos fala da parametricidade das normas interpostas, "normas que, carecendo de forma constitucional são reclamadas ou pressupostas pela constituição como específicas condições de validade de outros actos normativos, inclusive de actos normativos com valor legislativo". E, como um dos exemplos correntes de norma interposta, temos, precisamente, "as normas regimentais (regimentos), reclamadas como parâmetro material de validade do procedimento de formação das leis" (CANOTILHO, 2003, 922-923)36. 36 No mesmo sentido ensina Humberto Quiroga Lavié (1993, p. 13 e ss). "Entre ambos os níveis - o constitucional e o regulamentar - se configura aquilo que a doutrina denomina de 'bloco de constitucionalidade'. Este bloco termina por integrar o nível do 'constitucional', ainda que a norma interposta não tenha sido ditada pelo poder constituinte, em razão de seu conteúdo material ser, em si, 'constituinte' da lei diretamente operativa". Vale registrar que o STF não tem reconhecido a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade, seja na via concentrada, seja na via difusa, com base em ofensa a norma interposta. Cf., por exemplo, ADI 3.132-SE, ADI 2.535-MT, RE 226.462-SC e RE 147.684-DF, entre outros. Ressalte-se, entretanto, que os precedentes indicados não versam sobre controle judicial do processo legislativo. 180 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA A Lei de Jurisdição Constitucional da Costa Rica 37 dispõe, em seu artigo 73, c, que o Regimento Interno da Assembléia Legislativa integra o parâmetro de legitimidade constitucional. De acordo com o dispositivo, cabe ação de inconstitucionalidade "quando, na formação das leis, se viole algum requisito ou trâmite substancial previsto na Constituição ou, se for o caso, estabelecido no Regulamento de Ordem, Direção e Disciplina da Assembléia Legislativa" (VALLE, 1997, p. 511). Na Colômbia temos uma situação semelhante. Conforme apontado por Munoz, o desrespeito a normas regimentais pode resultar, ainda que indiretamente, em transgressão da própria Constituição (MUNOZ, 1997, p. 476). A Corte Constitucional colombiana já reconheceu sua competência para declarar a inconstitucionalidade de leis produzidas com violações ao processo legislativo. Para estabelecer se uma determinada lei cumpre as exigências formais estabelecidas no art. lS7 da Constituição, tais como a exigência de publicidade, o alcance da norma constitucional deve ser determinado por meio da compreensão das normas da Lei sa de 1992 (regimento do Congresso). Dessa forma, a violação dos trâmites próprios do procedimento legislativo que configurem vicios de envergadura suficiente para declarar a inconstitucionalidade de uma lei podem ser materializados por meio de infrações a disposições contidas na Lei sa de 199238 . Ainda que o art. 28.1 LOTC não mencione os Regimentos parlamentares entre aquelas normas cuja infração pode acarretar a inconstitucionalidade da lei, não há dúvida de que, tanto pela intangibilidade de tais regras de procedimento frente à ação do legislador como, sobretudo, pelo caráter instrumental que essas regras têm em face de um dos valores superiores de nosso ordenamento, o pluralismo político (art. 1.1 CE), a inobservância dos preceitos que regulam o procedimento legislativo poderia viciar de inconstitucionalidade a lei quando tal inobservância altere de modo substancial o processo de formação da vontade no seio das Câmaras 4o . Ainda na jurisprudência constitucional espanhola, a Sentença 227, de 2004, reforça a atualidade desse precedente, reconhecendo que os Regulamentos parlamentares têm, em geral, força de lei, mas, em alguns casos, são "normas interpostas entre a Constituição e as leis e, por isso, (...) são condição de validade constitucional dessas últimas"41. 40 No que se refere ao reconhecimento das normas regimentais como parâmetros para aferição da legitimidade constitucional das leis, o caso da Espanha é especialmente importante39 . Desde a década de 80, o Tribunal Constitucional reconhece a regularidade regimental do processo legislativo como requisito essencial à formação democrática da vontade política. A atribuição do caráter de norma interposta aos regimentos parlamentares pela Corte se dá, inclusive, na ausência de qualquer disposição expressa a este respeito, seja na Constituição, seja na Lei Orgânica que trata da organização e Competência do Tribunal. A Sentença 99, de 1987 é paradigmática: 37 38 39 Lei 7.135, de 1989. Disponível em: http://www:cesdepu.com/nbdp/ljc.htm. Sentencia C-577 /2006, disponível: http://www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/index.jsp Para uma análise mais detalhada a respeito das contribuições que a doutrina e a jurisprudência espanhola oferecem sobre a questão, cf. o trabalho de Cristiane B. Macedo (2007). 181 41 Sentencia 99/1987, prolatada em 11.6.1987 e publicada no BOE n° 152. Nesta mesma decisão, firmou-se entendimento no sentido de que uma violação somente resultaria inconstitucional se alterasse "de forma substancial o processo de formação da vontade no seio das Câmaras". Quanto à questão, conferir também a Sentencia 66/1985, em que o Tribunal debateu a possibilidade de apreciar a constitucionalidade de projeto destinado a alterar seu regimento interno: "Seja qual for o lugar que a Lei Orgânica deste Tribunal ocupa no chamado bloco de constitucionalidade, seu conteúdo é disponível ao legislador que, em conseqüência, observadas as normas constitucionais e a independência e função do Tribunal, pode introduzir nela as modificações que entender oportunas, sem que tenha de limitar-se àquelas indispensáveis para evitar a inconstitucionalidade ou assegurar o cumprimento dos objetivos constitucionais". Neste julgamento, a Corte Constitucional procura afastar a possibilidade de controle prévio quando pautado por valorações teleológicas, afirmação de "exigências implícitas" ou eventuais "fraudes constitucionais". A este respeito, cf. Queiroz filho (2001, p. 58). Atente-se, ainda, para o fato de que nem todas as normas regimentais integram o bloco de constitucionalidade a que se refere o artigo 23 da Constituição Espanhola. Para tanto, é necessário, conforme dito acima, uma violação que "altere de modo substancial o processo de formação da vontade no seio das Câmaras": "Nem toda infração aos Regimentos das Câmaras, 'per se', constitui uma violação a direitos fundamentais suscetíveis de tutela mediante o recurso de amparo, por não redundar em uma lesão constitucional; por conseguinte, não é correto incluir a generalidade das normas dos Regimentos Parlamentares no bloco de constitucionalidade relativo ao art. 23 da Constituição". Cf. Sentencia 36/1990, prolatada em 1°.3.1990 e publicada no BOE n° 70, de 22.3.1990. Cf. Sentencia 227/2004, prolatada em 29.11.2004 e publicada no BOE n° 3, suplemento, de 4 de janeiro de 2005: "Os Regulamentos parlamentares, que têm.força de 182 ?utro exemplo interessante é o da África do Sul. A Constituição Sulaft1~ana estabe~ece, em seus artigos 59, 'a' e 72, 'a' que os órgãos da Leg1sl~tur~ naclOnal devem facilitar o envolvimento público no processo leg1slativo e em outros processos por eles conduzidos. O Tribunal Co~s~tucional entendeu, recentemente,42 que lhe é dado "não apenas o dire~to, mas também o dever de assegurar que o processo legislativo presct1to pela Constituição seja observado". E, ainda, que se as condições nas quais transcorre o processo legislativo não se conformarem às exigências constitucionais, o Tribunal "tem o dever de dizê-lo e de declarar inválida a lei resultante". O voto vencedor, do J·uiz Ngcob o, reconhece expressamente que, para determinar se o Parlamento cumpri~ o~ nã~ seu dever de facilitar o envolvimento público no processo leg1slativo, 1sto é, se adotou medidas razoáveis para atingir tal finalidade a Corte deve analisar uma série de fatores, entre os quais o respeito à~ ~ormas. regimentais sobre a matéria, quando existentes. O que de fato 1illp~e.sslO~a na d~cisão é que a existência de um dever de promover a p~rtiClpaçao pública de determinada forma (como, por exemplo, a realização de audiências públicas) não é previsto expressamente no regimento do Conselho Nacional de Províncias ou da Assembléia Nacional. E~treta~:o, ~o caso em questão, o Conselho havia decidido por realizar taiS aud1enClas, tendo informado essa intenção ao público interessado. Posteriormente, a idéia foi abandonada, sem uma justificativa plausível, entretanto, aos olhos do Tribunal. 42 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA lei e que, em al~~as situações podem ser considerados como normas interpostas entre a C.onstitu1çao e as leis e, por isso, em tais casos, são condição de validade constituclOnal dessas últimas, cumprem uma função ordenadora da vida interna das Assembléias parlamentares, intimamente vinculada a sua natureza representativa e ao pluralis~o politico de que são expressão e reflexo (arts. 1.1 e 66.1 CE)". Doctorsfor lift znternatzonal v. The Speaker oi NationalAssemb/y and others, julgado em 17 de agosto de 2006 (CaseCcr 12/05). A íntegra da decisão encontra-se disponível em: http://www.constitutionalcourt.org.za/Arcrumages/7605.PDF. No caso a associação Doctors.tr:,r lift interna~onal argumentou que o Parlamento havia falhado ~m cumprir sua obngaçao cOnStituclOnal d: facilitar o envolvimento público no processo legislativo que resultou em quatro leiS, todas relacionadas a questões de saúde. As leis são: a e~enda sobre esterilização [5terilisation Amendment Bil~; a lei dos praticantes de medicilla tradiclOnal [Traditional Health Practitioners Bil~; a emenda sobre o aborto [Choice on Termznatzo~ oi Pregnancy Amendment Btl~; e a emenda dos técnicos em odontologia [Dental Technzczans Amendment Bzl~. 183 De toda forma, mesmo o voto vencido do juiz Van der Westhuizen (para quem o "envolvimento público" não poderia ser tido como condição de validade da lei), advoga que o dispositivo constitucional referente à facilitação do envolvimento público requer que os órgãos legislativos o observem na elaboração de seus regimentos sob pena de inconstitucionalidade. Mais: "se um indivíduo busca ser ouvido ou admitido de outra forma no processo legislativo com base nessas normas e não o é, ela ou ele poderão certamente buscar a corte para o devido (e mesmo urgente, quando necessário) remédio". A favor da posição do juiz Van der Westhuizen, o reconhecimento de que normas regimentais geram direitos para sujeitos externos ao parlamento, isto é, não se trata de um conjunto de garantais corporativas. Contra, entretanto, pesa o fato de que não apenas as normas regimentais que prescrevem formas de participação direta no processo legislativo garantem a influência da esfera pública sob o parlamento. Entre nós, há um curioso precedente do início da década de 70. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no julgamento do Mandado de Segurança n° 37/71, consignou entendimento semelhante a respeito das normas que regulam o processo legislativo. A ação versava sobre a tramitação de uma emenda à Constituição Estadual, supostamente viciada pela inobservância de dispositivos constitucionais e regimentais. Logo na abertura de seu voto, o relator afirmava: "É absolutamente impossível pretender-se que se respeite a lei quando se negue o direito às minorias de contribuírem para a sua elaboração". Os regimentos internos, de acordo com a decisão, seriam "complementos necessários das leis constitucionais", cuja violação é sancionada com a inconstitucionalidade43 . Este acórdão explicita a intuição contida na idéia de normas interpostas: a redução da Constituição a texto pode levar ao esvaziamento da própria 43 Na ementa, lemos: "Um ato legislativo é inconstitucional quando se formou em desacordo com as normas regimentais que deveriam lhe dar forma e essência". TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. Elaboração legislativa - regimento interno das assembléias legislativas - inobservância de prazos - mandado de segurança. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 111, I-XII, p. 313. Cf., ainda, o Agravo de Instrumento 167.188-7, julgado em fevereiro de 2005. Nele, acolhendo a lição de Hely Lopes Meirelles, o Tribunal asseverou: ''A tramitação e a forma dos atos do Legislativo são sempre vinculadas às normas legais que os regem; a discricionariedade ou soberania dos corpos legislativos só se apresenta na escolha do conteúdo da lei, nas opções da votação e nas questões interna corporis de sua organização representativa". Disponível em: www.tj.pr.gov.br. 184 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA normatividade constitucional. Tratar a violação de normas regimentais que complementam o sentido de disposições constitucionais mandatórias como uma mera "ofensa reflexa" à Constituição é, na realidade, negar qualquer garantia eficaz ao processo de formação das leis. Há, não obstante, uma série de precedentes mais recentes que merecem atenção. Eles não chegam a afirmar que a violação das normas constantes de regimentos internos das Casas Legislativas equivale a uma inconstitucionalidade. Entretanto, em todas essas decisões os regimentos são tratados como normas cogentes e o processo legislativo é analisado à luz dos princípios que devem regulam qualquer procedimento jurídico. O mandado de segurança n° 7.199-9744, julgado pelo Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, oferece um primeiro exemplo. A Câmara Legislativa, na oportunidade, havia derrubado veto aposto pelo Governador do Distrito Federal a um dispositivo do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF. Concluída a apreciação da matéria, a Presidência acolheu questão de ordem para anular a votação sob o fundamento de que um dos deputados votantes estaria "impedido". Em sessão ordinária realizada dois dias depois, o veto foi novamente submetido a votos e, desta vez, mantido. O órgão especial do Tribunal conheceu da segurança por unanimidade, afastando expressamente a incidência da doutrina dos atos interna corporis. No mérito, afirmou que o processo legislativo, "como todo processo, está sujeito a preclusões" e que a submissão de matéria vencida a nova votação não era produto de exegese do regimento, mas de "deliberada violação de normas regimentais". A segurança foi concedida por maioria. A decisão do Tribunal de Justiça foi objeto de um recurso especial recentemente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça45 . Por unanimidade, a Segunda Turma do STJ manteve a decisão recorrida. Outra decisão do TJ-DF destaca a dificuldade de estabelecer critérios para distinguir violações à Constituição de violações às normas regimentais. No caso, o Tribunal reconheceu que o princípio da proporcionalida- de partidária, inscrito no art. 58, § 1° da Constituição Federal, legitimava sua intervenção no processo eleitoral para a Mesa Diretora da Câmara Legislativa. Segundo o acórdão: (...) em que pese seja matéria sujeita à regulamentação interna de cada Casa, faz-se imperioso, a toda evidência, não se perder de vista que esse poder regulamentar encontra balizas nos ditames magnos da Constituição Federal, que dispõe, no já multicitado art. 58, verbis: ''Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. § 10 _ Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa"46. Essa decisão é especialmente interessante na medida em que contraria precedente do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria, firmado 47 no julgamento do mandado de segurança 22.183-DF • Naquela oportunidade, o STP foi confrontado com o indeferimento de uma candidatura do Partido dos Trabalhadores ao cargo de Terceiro-Secretário da Mesa da Câmara, sob o argumento de que o partido já possuía candidato inscrito à Presidência da Casa48 . O Tribunal entendeu que a decisão fundava-se "exclusivamente, em norma regimental referente à composição da Mesa e indicação de candidaturas para seus cargos (art. 8° do Regimento Interno da Câmara dos Deputados)". E, ainda: "o fundamento regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário". Da mesma forma que ocorreu com a questão dos prazos de funcionamento das CPIs, a recusa do STP em salvaguardar o princípio da proporcionalidade partidária alimentou práticas abusivas e arriscadas, con46 Mandado de segurança autuado sob o número 2003 00 2 000038-7, ReI. designado Des. Vaz de Mello (Diário da justiça de 14.11.2006, Seção lII, p. 87). 47 MS 22.183-DF, ReI. Min. Marco Aurélio (Dián'o da justiça, 12.12.1997, p. 65569). 48 44 45 MS 7.199-97, ReI. Des. Lécio Resende, Diário da justiça de 1.1.1994, Seção IlI, p. 27.435. REsp n° 251.340-DF, ReI. Min. João Otávio de Noronha. Diário da justiça, 20.3.2006. 185 Para uma análise detalhada dos diversos problemas relacionados à aplicação do princípio da proporcionalidade partidária às eleições da Mesa da Câmara dos Deputados, Cf. MARIANI, Onivaldo Moisés. Aplicação do principio da proporcionalidade partidária na Câmara dos Deputados. Monografia (especialização em análise da constitucionalidade). Universidade do Legislativo. Brasília: UNILEGIS, 2006. 186 forme pudemos ver no início da 53 a Legislatura, em fevereiro de 2007. No final de 2005, a Câmara dos Deputados aprovou a Resolução n° 3449 , que fixava os lugares a que teriam direito os partidos e os blocos parlamentares com base no número de representantes eleitos por cada agremiação no último pleito. Dessa forma, o coeficiente de cada partido ou bloco parlamentar no cálculo da proporcionalidade partidária manter-se-ia inalterado no curso de toda a legislatura, preservando o resultado das urnas. A medida visava eliminar dúvidas sobre o momento que deveria ser tomado como referência para o cálculo da proporcionalidade e, ainda, desestimular o chamado "troca-troca" entre partidos. O que ocorreu, entretanto, foi a formação de três grandes blocos partidários, dois deles total ou parcialmente desfeitos poucas semanas após a eleição da Mesa Diretora. A artificialidade que transparece na formação de blocos às vésperas da eleição é, sem dúvida, um risco à preservação da proporcionalidade partidária vinculada ao resultado das urnas. Esse risco poderia até ser considerado como "parte do jogo" politico parlamentar, não fosse um importante detalhe: os blocos foram constituídos no dia 31 de janeiro, último dia da 52a Legislatura, com fins de participação na reunião do Colégio de Líderes que resolveria acerca da distribuiria de vagas na Mesa. A nova legislatura, entretanto, começava apenas no dia da eleição, dia 1° de fevereiro. O Regimento da Câmara, a este respeito, dispõe, em seu art. 12, § 5°: "o Bloco Parlamentar tem existência circunscrita à legislatura, devendo o ato de sua criação e as alterações posteriores ser apresentados à Mesa para registro e publicação". Como compreender, então, que, no último dia da 52a Legislatura, em pleno recesso, deputados resolvam constituir blocos e, ainda, que esses blocos sejam efetivamente reconhecidos na 53 a Legislatura, inclusive para fins de eleição da Mesa e distribuição das vagas nas Comissões permanentes? Para perceber quão arriscada é tal solução do ponto de vista institucional, basta imaginar a situação de deputados eleitos, mas ainda não empossados, por uma sigla partidária que tenha sofrido maciça renovação. Tais deputados teriam que contar com a boa-fé dos colegas que irão suceder para não encontrar a legenda, já no momento de sua pos49 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Resolução n° 34, de 23.11.2005, Diário da Câmara dos Deputados, 24.11.2005, Suplemento A, p. 3. 187 se, alinhada a um bloco partidário em contrariedade às suas eventuais preferências. E mais: se tal situação de fato ocorresse e a nova bancada decidisse se desvincular do bloco formado pela representação da legislatura anterior, ainda se veria impedida de, nos termos do art. 12, § 8° do Regimento Interno, constituir ou integrar outro bloco na mesma sessão legislativa. Em 2003 o STF acenou com uma possibilidade de revisão da tese segunda a qual questões ligadas à composição das Mesas das Casas Legislativas seriam matéria interna corporis. No julgamento do mandado de segurança n° 24.041-Dp5°, por ocasião de um debate acerca de qual autoridade deveria substituir o Presidente da Mesa do Congresso Nacional durante uma licença (se o 1° Vice-Presidente da Mesa do Congresso ou o 1° Vice-Presidente do Senado Federal), o Tribunal entendeu que a questão era "estritamente constitucional" e poderia ser conhecida. A posição anteriormente firmada sobre a eleição para as Mesas, entretanto, há muito não é testada concretamente. Esse dado sugere que os partidos têm sido bem sucedidos na acomodação recíproca de seus interesses, mas não significa que o princípio da proporcionalidade tem sido observado de maneira criteriosa. Os exemplos trabalhados acima sugerem que é preciso repensar o difícil problema das conseqüências jurídicas atribuídas à violação de normas regimentais 51. A distinção entre "violação direta" e "violação indireta" ou 50 51 MS 24.041-DF, ReL Min. Nelson Jobim (Diário da Justiça, 11.4.2003, p. 28). Há numerosos outros casos de controle judicial do processo legislativo em razão de violação de normas regimentais espalhados pelos Tribunais estaduais. A 4" Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no reexame necessário de um mandado de segurança (proc. n° 70013304456), sustentou que a ausência de convocação de vereador para sessão extraordinária nos termos do Regimento Interno da Câmara de Vereadores havia viciado as deliberações adotadas naquela oportunidade. Segundo o Tribunal, "o art. 96, § 1.0, do Regimento Interno da Câmara de Vereadores de Mata exige que o edil, para sessão extraordinária, seja convocado por escrito. Disto não há prova. Por sinal, alegou-se que não se localizou o impetrante - via telefone. Confirma-se, indiretamente, o vício". O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por sua vez, e também em mandado de segurança, afirmou que o exame de ato do Legislativo fundado em norma regimental é "da essência do Estado Democrático de Direito" e não ofende o princípio da separação de poderes. De acordo com o Tribunal, "a votação conduzida pelo Poder Legislativo Distrital na etapa final do processo legislativo concernente ao Projeto de Lei PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA. .. 188 189 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA "reflexa" à Constituição (baseada na análise literal dos dispositivos constitucionais e regimentais) é, ao mesmo tempo, anacrônica e inadequada. Anacrônica porque em franca contradição com os desenvolvimentos mais recentes da jurisprudência do STF, verificados na seara do controle das investigações parlamentares e dos processos disciplinares em face de membros do Poder Legislativo. Inadequada porque não é possível imaginar uma hipótese de violação direta ao principio do devido processo, que exige tão-somente observância das normas procedimentais públicas e pré-estabelecidas, em geral infraconstitucionais, para a produção de um determinado provimento que crie, extinga ou modifique direitos. A distinção entre violação direta e indireta opera, hoje, como um expediente destinado à manutenção de espaços de discricionariedade do Tribunal. Como observam Donahue e Grossman: A doutrina das questões politicas [e aqui podemos incluir a doutrina dos atos interna corporis] não é uma linha divisória constitucionalmente traçada entre questões apropriadas e inapropriadas, mas um mecanismo discricionário que permite às cortes federais se esqui- n. 120/95 e do Requerimento n. 409/95, não constitui procedimento circunscrito ao âmbito dos assuntos internos da Corporação porquanto interessa aos cidadãos e aos demais Poderes, devendo submeter-se ao crivo do Judiciário" (ReI. Des. Jeronymo de Souza, Conselho Especial. Diário daJustiça de 11/11/1997, Seção IIl, p. 27.434). O Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu sua competência para examinar a alteração irregular do Regimento Interno da Câmara Municipal de Dom Cavati. "Segundo o art. 160 do Regimento Interno da Câmara Municipal, somente pelo voto da maioria absoluta dos membros do Poder Legislativo do Município (5 Vereadores) aprova-se, validamente, proposição sobre a modificação ou reforma do Regimento Interno. Entretanto, para se atingir o quorum da maioria absoluta necessário à aprovação da Resolução Legislativa 13/2003, que pretendia modificar o art. 164 do Regimento Interno, foi necessário o voto do Presidente da Câmara Municipal, além das hipóteses que lhe era permitido votar, previstas, justamente, no artigo que se pretendia alterar. O processo legislativo previsto no Regimento Interno da Câmara de Vereadores para a aprovação de Projetos de Resolução Legislativa deve ser seguido à risca quando da elaboração da norma. Se o Presidente da Câmara, impedido de votar, exerce tal prerrogativa e a matéria é aprovada, nulo é o ato legislativo, por afronta direta aos preceitos do Regimento Interno e, conseqüentemente, ao Princípio da Legalidade." (Reexame Necessário nO 1.0309.04.0033263/001, em sede de Mandado de Segurança, publicado no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, de 8.3.2006). var da decisão sobre certas questões 'inconvenientes' (DONAHUE; GROSSMAN, 2005, p. 755). Por outro lado, a dinâmica complexa do processo legislativo tem que ser levada em consideração. Nenhuma construção teórica ou solução legislativa resolverá de antemão o problema sobre os limites e os fundamentos do poder de controlar a regularidade do processo legislativo. A autoridade judicial chamada a essa tarefa deve ser capaz de reconstruir as premissas que justificam sua interferência a partir do ca~o .concr~to. Nesse ponto, falham as fórmulas popularizadas pela nossa )urisprudencia. A doutrina das "ofensas reflexas", por exemplo, se tornou popular por apresentar uma solução teórica "fácil", aplicável i~distintan:ente a qualquer caso. Em última análise, entretanto, essa doutrma per~~t~ exatamente o oposto daquilo a que se propõe. Ao nomear um cnteno supostamente objetivo para legitimar a interferência judicial, cria. a ~usão de decisões previsíveis, quando, na realidade, a indisfarçável ambigü1dade que marca a distinção "violação direta - violação indireta" permite que o fundamento justificador da decisão de interferir ou não no processo legislativo permaneça oculto. A tarefa de aplicação do direito não pode ser controlada a priori, nem pela teoria da constituição, nem pela norma geral e abstrata (sempre carente de interpretação). A interpretação das normas que regulam o processo legislativo, da mesma forma, não pode ser equacionada de uma vez por todas. A impossibilidade de uma "solução prévia" para a aplicação do direito remete à distinção, já tratada no capítulo 3, entre discursos de justificação e discursos de aplicação. Há, entretanto, balizas que devem ser consideradas quando da interpretação dos princípios que regem a atividade legislativa. Tais balizas nã? são "fórmulas prontas", mas considerações um tanto abertas a respe1to do papel que o regramento jurídico do processo legislativo desempenha no ordenamento como um todo. Na feliz síntese de Cristiane Macedo, "as regras de direito referentes ao processo legislativo constitucion~l são obrigatórias, assim como as normas do direito parlamentar ed1tadas com fundamento no poder autonormativo do Parlamento" (MACEDO, 2007, p. 213). Tais normas vinculam as Casas Legislativas, i~t~­ gram "a conformação jurídica das prerrogativas inere~tes ao exe~c1clO do mandato político" e, principalmente, "consubstanc1am garant1as da cidadania frente ao Parlamento". Dessa forma, 190 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA o juizo acerca das conseqüências decorrentes da inobservância das regras de direito parlamentar referentes ao processo legislativo deve aquilatar a gravidade da desconformidade em função da sua vinculação e essencialidade, sopesando o impacto da irregularidade no processo decisório e de formação da vontade politica livre, democrática e pluralista da Assembléia, e, por essa avaliação, permitir-se reconhecer, quando for caso, validade às hipóteses de aquiescência, de saneamento e mesmo de convalidação dos vicios ocorrentes no processo legiferante (MACEDO, 2007, p. 213). Procuraremos, mais adiante, sistematizar possibilidades de desenvolvimento dessa proposta no contexto da jurisdição constitucional brasileira. Por ora, podemos nos limitar a algumas conclusões genéricas. A violação de normas regimentais constitui descumprimento de regras de direito público vinculantes e indisponíveis e, por essa razão, possui sempre relevância jurídica. Entretanto, o tratamento dos vicios no processo legislativo por meio de interferência judicial carece de uma teorização particular. O processo legislativo deve ser considerado "processo" em sentido técnico e isso significa uma série preordenada de atos vinculados à produção de um provimento, organizada por meio do principio do contraditóri0 52 . Entretanto, o principio do contraditório é densificado no processo legislativo e no processo judicial de formas bastante diversas. Além do mais, as exigências de motivação que pesam sobre a decisão da autoridade judicial possuem outra dimensão no processo legislativo, no qual, observadas as regras procedimentais pertinentes, o provimento final encontra limites apenas no texto constitucional, estando aberto a argumentos pragmáticos e axiológicos. Lembrando ainda a importante distinção de Klaus Günther, o processo legislativo estrutura um discurso de fundamentação de normas jurídicas, interessado na produção de normas válidas, ao passo que o processo judicial constitui um discurso de aplicação e seu parâmetro é a adequabilidade de uma norma válida a um caso concreto (GÜNTHER, 1993). 52 Como ensina Aroldo Plínio Gonçalves, ~ nota distintiva do conceito de processo é o contraditório: "O processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses em relação ao ato final são opostos". (GONÇALVES, 1992, p. 68). PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 191 Por todas essas razões, é improvável que a investigação sobre as nulidades e anulabilidades no âmbito do processo judicial ofereça um referencial teórico apropriado para os fins deste trabalho. Esse é um debate ue enfrentará dificuldades substantivas, em especial pela carência d~ ~flexão acadêmica sobre o processo legislativo no âmbito do direito. E possível, entretanto, finalizar os dois primeiros passos da reconstrução proposta com uma conclusão ainda genérica. .., . As normas regimentais são princípios e regras jurídic~s d~ ~eit.o p~blic~, cuja observância por parte das Casas Legislativas é obngatona e ~dispo~­ vel. Tais normas não estão sujeitas a modificações tácitas. A despeito de Situarem-se no plano infraconstitucional, as normas regim:~tais referente~ :0 processo legislativo funcionam como p~~etr~s necessanos para a_ afe~~ao do cumprimento das disposições constituclOnalS acerca da ~r~duçao .váli.da de normas jurídicas. Por essa razão, sua violação pode levar a ~~OnStituci0nalidade do provimento legislativo resultante do process~ V1ciado. Nessa hipótese, as normas regimentais funcionam como normas mterpostas, ~a vez que consubstanciam, por meio do exercício do poder autonorma~vo das Casas Legislativas, a delegação constitucional para estabelec~r a medida necessária de deliberação capaz de justificar uma decisão nos discursos de . justificação de normas jurídicas. O exercício do poder político constitucionalmente cometido ao Co~­ gresso para expedição de normas está condicionado. a_um "~ínimo ~eli­ berativo" que deve, necessariamente, preceder a deClsao. E iSSO se da em prol não apenas dos parlamentares, cuja decisão não está, ao menos em um sentido forte, "vinculada" aos argumentos apresentados no curso do processo legislativo. Dá-se, em primeiro lugar, para gar.antir à e.s~e­ ra pública politicamente atuante oportunidades de influenClar a decisao institucional. Nesse sentido, afirma Haberle: A legislação, portanto, deve ser sempre pública. A lei como !aw in action começa por ser !aw in pub!ic artion. A democrada como forn:- a de racionalizar processos na ordem politica cria publicidade no selO de seus próprios procedimentos. O procedimento forma! se converte) portanto) em garante da justeza ejustiça material. Os interesses do bem comu~ devem poder mostrar-se válidos como tais, revalidando sua neceSSidade como necessidade pública (HABERLE, 2002, p. 144). (destacamos) Sem qualquer pretensão de exaustividade, é possível ~~car que os dispositivos que regulam o regime de tramitação de proposiçoes e o encadea- 192 mento das fases do processo legislativo, os turnos e interstícios, a aplicação do princípio da proporcionalidade partidária à composição de órgãos legislativos, a iniciativa, a discussão e a votação das matérias enquadram-se na categoria de normas regimentais dotadas de parametricidade. Assim, uma jurisdição constitucional que se pretende democrática está preocupada, em primeira linha, com a proteção das condições procedimentais da formação livre da opinião pública e da vontade política. Numa das afirmações mais polêmicas de Direito e democracia, Habermas recorre a Ingeborg Maus para sustentar que: o que garante a justiça da lei é a gênese democrática e não os princípios jurídicos a pnon, aos quais o direito deveria corresponder. [E, citandoMaus] "A justiça da lei é garantida através do processo especial de seu surgimento". Com isso não se ameaça a primazia da constituição perante a legislação; pois uma constituição que configura e interpreta o sistema dos direitos não contém "nada mais que os principios e condições do processo legislativo que não pode ser interrompido" (HABERMAS, 1997a, p. 236). Essa conclusão soa perturbadora na medida em que assume radicalmente os riscos do processo democrático e reconhece a "segurança jurídica" como um principio que se realiza apenas por meio da justeza dos procedimentos, e não da repetibilidade, previsibilidade e controlabilidade dos eventos jurídicos. 3.3. Titularidade e funções do direito ao devido processo legislativo o último passo da reconstrução proposta nos leva a refletir sobre a problemática afirmação de que a regularidade do processo legislativo é uma questão de direito público subjetivo dos parlamentares. Essa restrição da titularidade do direito ao devido processo legislativo equivale à ultrapassada concepção do direito parlamentar como direito corporativo. É o mesmo, portanto, que reduzir o processo legislativo a "um interesse particular e exclusivo dos deputados e senadores, enquanto 'condições para o exercicio de sua [siCj atividade parlamentar', e jamais referida à produção da lei como afeta à cidadania em geral" (CATTONI, 2000, p. 24)53. 53 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Atente-se, ainda, para o seguinte: mesmo se assumíssemos a posição adotada pelo STF, que reconhece o direito público subjetivo do parlamentar ao regular processo 193 o descompasso na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entre o controle judicial de atos do Poder Legislativo relacionados, por um lado, a investigações parlamentares e processos disciplinares e, por outro, ao controle de questões ligadas à higidez procedimental da feitura das leis e emendas constitucionais é evidente. No primeiro caso, adota-se como fundamento para um controle mais amplo e incisivo a violação a direitos fundamentais de indivíduos investigados pelas CPls ou de parlamentares ameaçados de alguma sanção disciplinar. É surpreendente que, quando se trata da regularidade do processo legislativo, a dou~rina dos atos interna corporis se sobreponha à garantia de que a esfera de liberdade dos cidadãos em geral só sofra restrições por meio de normas aprovadas idoneamente. Refutar essa exigência é, em grande medida, negar curso ao próprio principio da legalidade. É desnecessário, portanto,. dizer que também nessa hipótese estão em jogo direitos fundamentaIs, mesmo que os afetados pela norma irregularmente aprovada não possam ser desde logo individualizados. É verdade que, em razão do mesmo principio da legalidade, as normas regimentais não podem criar obrigações para sujeitos es:ra~hos ao Poder Legislativo. Entretanto, disso não decorre que a observanCla dessas normas não crie direitos para os cidadãos direta ou indiretamente afetados pela decisão legislativa. Os dispositivos regimentais são, como sugerido acima, uma garantia geral da cidadania, na medida em que esclarecem as condições em que a esfera pública pode exercer legitimamente sua influência sobre a legislatura. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que exatamente em propostas de emenda constitucional destinadas à prorrogação ou instituição de tributos (CPMF e a Taxa de Iluminação Pública), encontremos alguns bons exemplos da uma interpretação das normas regimentais como ga5 rantias corporativas. Vejamos a Questão de Ordem 790 \ levantada no 54 legislativo constitucional, a solução adotada mostra-se incoerente, como salientado por Cristiano Viveiros de Carvalho: "uma vez que se admita tal mstltuto [mandado de segurança] para questionar ofensa à Constituição, não há como. negá-lo no que respeita à norma meramente regimental. Trata-se de questão que diz respeIto antes à competência para julgar, e a determinação do órgão competente nada tem que ver com a existência ou não de direito subjetivo". (CARVALHO, 2002, p. 114). Questão de Ordem n° 790/2002, de 18.12.2002. Disponível em: http://www2. camara.gov. br/ plenario / qordem. 194 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Plenário da Câmara dos Deputados por ocasião da votação em segundo turno da PEC que instituiu a Taxa de Iluminação Pública (TIP). O Regimento Interno da Câmara estabelece, em seu art. 202, § 6°, que "a proposta [de emenda à Constituição] será submetida a dois turnos de discussão e votação, com interstício de cinco sessões". Mais adiante, no § 8° do mesmo dispositivo, lemos: "Aplicam-se à proposta de emenda à Constituição, no que não colidir com o estatuído neste artigo, as disposições regimentais relativas ao trâmite e apreciação dos projetos de lei". Esse último dispositivo veda a votação de um requerimento de dispensa de interstício entre os turnos da proposta de emenda constitucional, pois afasta a incidência do parágrafo único do art. 150 do Regimento, que regula o interstício de forma diversa (permitindo a dispensa, observadas alguns requisitos formais, no procedimento legislativo ordinário). Entretanto, na votação da referida PEC, o interstício foi dispensado sob o seguinte argumento, expendido pelo deputado José Genoíno, contraditando questão de ordem: o interstício de cinco sessões é previsto para os casos em que as propostas de emenda à Constituição votadas sofram modificações entre o primeiro e o segundo turno. Assim, tal instrumento serve para que as alterações sejam apreciadas na Comissão Especial e recebam o relatório a ser votado no plenário da Casa. Portanto, o sentido do interstício de cinco sessões é exatamente o de proporcionar tempo para analisar a mudança processada na diferença. A Comissão Especial pode, então, examinar a diferença. Somente após tal apreciação é que se votará a matéria em segundo turno. Digo isso porque durante a votação de muitas PEC nesta Casa eliminamos o interstício. Cito como exemplo a imunidade Parlamentar e as medidas provisórias, entre outros casos em que, de comum acordo, suprimimos o interstício. Mesmo no caso de emendas a que nós da bancada do PT fizemos oposição, na medida em que a modificação não se tinha processado no conteúdo, nem na redação, eliminamos o interstício por comum acordo, compreendendo que ele tem um objetivo. O Regimento estabelece prazo porque há uma finalidade, não se trata de uma norma meramente formal. (destacamos) A proposta em questão, ao constitucionalizar a taxa de iluminação pública, vinha pacificar a cobrança desse tributo, o qual foi objeto de vasto debate judicial. As prefeituras municipais beneficiavam-se dire- 195 tamente da medida, razão pela qual a PEC contava com simpatia da ampla maioria dos deputados. No apagar das luzes da legislatura, com as eleições gerais resolvidas e a transição de governo em curso, a taxa finalmente ia a voto. E, convenientemente, o interstício foi suprimido, mesmo com a oposição de alguns poucos parlamentares. O deputado José Genoíno certamente tinha razão ao afirmar que ,~ regra ~ue impõe o interstício não é "uma norma meramente formal . O motivo que autoriza essa conclusão, entretanto, é outro. Sua solução, mesmo que sofisticada, interpretava a dilação entre os turnos de votação da emenda constitucional como uma regra de mera organização do procedimento legislativo, à disposição dos parlamentares (basta lembrar o trec~o citado acima: "eliminamos o interstício por comum acordo"). As prenussas que recolhemos até este ponto, entretanto, apontam para outro caminho. O interstício entre os turnos de uma emenda constitucional assegura que, antes de qualquer alteração formal da Constituição, a socieda~e com~ um todo terá garantida a possibilidade de analisar, criticar e lllterfenr pelos meios cabíveis no processo de reforma constitucional. No caso, os contribuintes, que pagaram e têm pagado a TIP. O direito ao devido. proces~o legis~ativo é ~m. exemp.lo. de direito •fundamental de titulandade difusa, nao um direito subjetivo de um · ou outro parlamentar, ao menos no que se refere à regularidade do . processo de produção das leis 55 . Esse direito funciona simu~tan~amen­ \ te como um direito de defesa e como um direito à orgail1zaçao e ao f: i 56 ·\ proce dimento . . . ' . . Enquanto direito de defesa, o dueHo ao deVido processo legislativo articula, em princípio, pretensões de abstenção e de anulação. As pretensões de abstenção dirigem-se aos órgãos legislativos e exigem que os mesmos se abstenham de exercer sua função em desconformidade com os parâmetros constitucionais e regimentais que a regulam. As preten- 55 56 Com isso pretende-se afirmar que é possível a violação a direitos subjetivos de p~r­ lamentares em diversos procedimentos no âmbito do Poder Legislativo, mas nao em se tratando da regularidade do procedimento de formação das leiS e emendas constitucionais, quando a descrição do direito violado como "direito do parlamentar" é absolutamente inadequada. A respeito da multifuncionalidade dos direitos fundamentais, cf. (MENDES, 2002, p. 200 e ss.). 196 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA sões de anulação, por sua vez, são comumente dirigidas ao Poder Judici57 ário , que delas conhece em sede de controle de constitucionalidade. Enquanto direito à organização e ao procedimento, o direito ao devido processo legislativo consagra uma pretensão de caráter positivo dirigida ao legislador: os procedimentos relacionados ao exercício d~ função legislativa devem ser normatizados de acordo com as prescrições constitucionais relevantes. Nenhum órgão colegiado pode funcionar de maneira adequada sem um regramento detalhado, o que é fornecido no caso brasileiro pelos regimentos internos 58 • Há quem defenda que o direito à organização e ao procedimento pode fundamentar pretensões positivas no sentido de manutenção as normas procedimentais em vigor59 • De fato, há precedentes na história 57 58 59 Com isso não está afastada a possibilidade do próprio Poder Legislativo anular atos processuais praticados em desconformidade com o parâmetro constitucional. Deve-se atentar, não obstante, para a possibilidade da abuso de tal prerrogativa como via oblíqua para a reconsideração de matéria preclusa, submetida ao trâmite constitucional e regimental adequado (tal como discutido pela 2a Turma do STJ no Recurso Especial 251. 340-DF, citado acima). Há uma série de questões envolvidas na utilização dessa terminologia, em especial a respeito da conveniência de se tratar do direito à organização e ao procedimento como um direito a uma prestação (status positivo), isto é, como direito à emissão de uma norma. Gilmar Mendes, por exemplo, afirma: "quando se impõe que deterfilnadas medidas estatais que afetem direitos fundamentais devam observar um determinado procedimento, sob pena de nulidade, não se está a fazer outra coisa senão proteger o direito mediante o estabelecimento de determinadas normas de procedimento" (MENDES, 2002, p. 207). Essa construção evidencia de que forma o direito à organização e ao procedimento postula pretensões de abstenção, localizadas no status negativo. Parece, entretanto, que tais pretensões poderiam se fundar exclusivamente no princípio do Estado de direito e do devido processo, sem recorrer a uma idéia de "direito à organização e ao procedimento". Alexy, por exemplo, sugere ~ue tais "direitos a posições procedimentais são direitos a que exista algo pa=a cUJa criação se necessitam ações positivas. Diante disso, é indiferente que as açoes que conduzem à existência do direito ordinário a posições procedimentais hajam se concretizado ou não. O fato de que os atos de sanção de normas necessários para a criação das posições de direito ordinário já tenham sido realizados não modifica em nada o fato de que, se não houvessem sido, haveria wn direito à sua realização. Esse direito hipotético tem primazia frente ao direito a não-eliminação" (ALEXY, 2002. p. 462-463). Alexy sugere que "parece não estar excluída a possibilidade de considerar como ações do legislador não apenas os atos de sanção de normas e derrogação de PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 197 parlamentar brasileira, como a aprovação da Emenda Constitucional n0 4, de 1961, em que se operou uma verdadeira suspensão do direito parlamentar e, por conseguinte, a aprovação de uma alteração constitucional com flagrante desrespeito ao direito ao devido processo legislativo. Esse tipo de desafio, entretanto, não se resolve por meio de uma pretensão de "manter em vigor" as normas, até porque elas podem ser substituídas ou reformadas a qualquer tempo pela legislatura. Estaríamos, na realidade, diante de uma pretensão à não-suspensão ou não-alteração das normas regimentais em desconformidade com o procedimento cabível. Vista por esta ótica, a questão resolve-se tranqüilamente no âmbito do devido processo legislativo como direito de defesa, pois equivale a uma pretensão de que o legislador se abstenha de violar os parâmetros constitucionais ou regimentais do processo legislativo. É importante, por fim, esclarecer que essa reconstrução não desconsidera ou subestima a relevância da atuação parlamentar e o contexto institucional em que se desenvolve o processo legislativo. O que se pretende é afastar o caráter corporativo que marca a leitura jurídica hegemônica das instituições parlamentares (em especial o mandato parlamentar) e __ , afirmar que, mais que organizar procedimentos deliberativos por meio . da distribuição equânime de prerrogativas jurídicas, as normas regimen- / tais funcionam como verdadeira condição de conexão entre a esfera pública e o Poder Legislativo. Sem que essa conexão seja garantida, uma progressiva autonomização do direito resultará em sérios riscos de déficits funcionais e democráticos para o processo de integração social. / 4. PERSPECTIVAS DO CONTROLE JUDICIAL DO PROCESSO LEGISLATIVO NO MODELO DE JURISDiÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Começamos este trabalho com uma citação de Jeremy Waldron, um autor que critica a escassa produção da teoria jurídica sobre as legislaturas dizendo que o silêncio dos filósofos do direito a respeito do tema é "ensurdecedor", principalmente se comparado à sua "loquacidade" no que se refere ao afazer das cortes (WALDRON, 1999, p. 1). Quan- normas, mas também os de manutenção de normas em vigor" (ALEXY, 2002, p.463). 198 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA do juristas se referem ao processo legislativo, geralmente o fazem num tom de advertência, como se estivessem prestes a remexer algo proibido ou perigoso. "Legislar é fazer experiências com o destino humano". "Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos" (MENDES, 2002, p. 293-294)60. Se essas conhecidas citações são procedentes para a tarefa de legislar, muito mais o serão para o exercício de algum tipo de controle judicial sobre o processo legislativo. Seria vão procurar antecipar todas as nuances e dificuldades que podem surgir num debate a respeito do tema. Preferimos, assim, apontar perplexidades e sugerir caminhos que, tudo faz crer, constituem alternativas viáveis dentro de nosso modelo de jurisdição constitucional. A rigor, o simples fato de falarmos em "jurisdição constitucional" ao tratar da regularidade do processo legislativo já exige alguma explicação. Como vimos acima, a jurisprudência brasileira, de uma forma geral, distingue a violação de normas constitucionais que regulam o processo legislativo do descumprimento de normas regimentais, cuja interpretação seria de exclusiva competência dos próprios órgãos legislativos. Essa construção que, por anos a fio, albergou uma grande quantidade de práticas antidemocráticas, agora ameaça ruir. Parece iminente que as premissas desenvolvidas pela jurisprudência do STP no controle das investigações parlamentares e dos processos político-disciplinares ganhem o terreno da fiscalização do processo legislativo em sentido estrito. Por outro lado, um número significativo de decisões proferidas no âmbito dos Tribunais Estaduais já reconhece a sindicabilidade das normas regimentais e afasta a aplicação da doutrina dos atos interna corporis. As premissas que autorizam uma interpretação das normas regimentais reguladoras do processo legislativo como normas interpostas, dotadas de parametricidade, cuja violação enseja inconstitucionalidade, foram apresentadas acima, bem como as razões pelas quais, sob a perspectiva teórica adotada neste trabalho, a defesa da regularidade do processo legislativo, seja sob seus fundamentos constitucionais, seja sob seus fundamentos regimentais é a atividade por excelência da jurisdição constitucional. Devemos alertar, entretanto, que hoje essa sugestão repousa muito mais na "lógica" que na "experiência", para utilizar novamente a díade de Oliver Wendell Holmes. Nada garante que deixará de ser assim. 60 As frases são, respectivamente, de Jahrreiss e Victor Nunes Leal. PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... 199 Entretanto, há problemas e perplexidades reveladas pela nossa experiência que podem ser melhor explicados (e quem sabe até resolvidos) por meio da "lógica" aqui discutida. Que problemas e perplexidades são esses? Para responder essa questão é importante traçar, ainda de forma esquemática, o modelo de controle do processo legislativo delineado pela compreensão hegemônica na jurisprudência brasileira. Temos, em primeiro lugar, o controle no curso do processo. Essa alternativa 6~x..c~pciQ.naL~_§~_ªApela via do mandado de segurança. Apenas o parlamentar possui legitimidade ativa para deflagrá-I?: _O di~eÚ·opúblico subjetivo reivindicado deve ser líquido.e certo e d-;;ve ter sede c()nstitucional. Para legitimar uma interferência judicial na atividade legislativa antes mesmo da promulgação da norma, é necessário, ainda, que o direito invocado estabeleça uma restrição ao próprio tramite da matéria. O exemplo clássico é o § 4° do art. 60, que, ao elencar as cláusulas pétreas, afirma que as propostas tendentes à abolição de qualquer uma delas "não serão objeto de deliberação". De uma forma geral, entretanto, o controle dos vícios ocorridos no processo legislativo é realizado após a promulgação da norma, em sede de controle de constitucionalidade. Nesse ponto, a violação de normas regimentais, não importa o quão centrais para a garantia de um debate público e transparente, mostra-se irrelevante. A violação a regras constitucionais do processo legislativo (que enseja inconstitucionalidade formal) não se confunde, segundo esse entendimento, com a violação de normas regimentais, salvo se essas últimas reproduzirem o próprio texto constitucional. O resultado dessa combinação é no mínimo contra-intuitivo. O mandado de segurança não parece bem adaptado à finalidade ad hoc de controle do processo legislativo antes da promulgação da norma. Há, de início, os vários riscos de relegar a garantia do devido processo legislativo a um instrumento processual de feições marcadamente subjetivas. Até o momento, nem a jurisprudência nem a doutrina desenvolveram um trato consistente das questões relacionadas ao litisconsórcio nos mandados de segurança que versam sobre o controle do processo legislativo. Esse problema pode se somar à possibilidade de manipulações do direito de ação em razão de acordos e barganhas políticas. Dificilmente uma autoridade judicial que concebe as normas regimentais como conjunto de regras de procedimento destinadas a viabilizar o funcionamento de uma corporação irá vislumbrar na impetração um direito indisponível, de sor- 200 LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA te a evitar, por exemplo, uma desistência abusiva da ação. Não há, até onde foi possível pesquisar, jurisprudência firmada sobre a questã0 61 . Entretanto, o principal defeito da utilização do mandado de segurança para o controle do processo legislativo é a freqüente extinção do processo sem julgamento de mérito em razão do entendimento firmado em torno do enunciado n. 266 da Súmula do STF, segundo a qual "não cabe mandado de segurança contra lei em tese". De acordo com posição consolidada na jurisprudência nacional, associa-se a esse enunciado a idéia de que a promulgação da norma impugnada prejudicaria o mandado de segurança, uma vez que este não se presta a sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade 62 . É que, se admitida a segurança após a promulgação da norma, teríamos ou a usurpação de competência constitucionalmente cometida ao STF (em se tratando de mandado de segurança apreciado por outro juízo) ou (se a segurança estivesse sob análise do próprio Supremo) possível ilegitimidade ativa para a ação direta, uma vez que os mandados de segurança são propostos, de uma forma geral, por um ou mais parlamentares. O vício procedimental impugnável via mandado de segurança no curso do processo legislativo se converteria em uma inconstitucionalidade formal após a promulgação da norma, objeto inadequado àquela ação. Este entendimento, entretanto, não é compartilhado por todos os Tribunais. Vejamos o que ocorre, por exemplo, no Recurso Especial 251.340-DF, já citado anteriormente. Nesse caso, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que anulava a apreciação de um veto no âmbito da 61 62 Vale a pena frisar que as ações vinculadas à jurisdição constitucional não admitem, em geral, desistência. A Lei 9.868/99 traz dispositivos expressos a respeito (arts. 5° e 16), o que já não ocorre com a Lei 9.882/99, que regulamentou a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. De acordo com Gilmar F Mendes "tendo em vista, porém, o caráter igualmente objetivo desse processo e s~u manej~ na defesa de interesse público geral, é provável que o STF venha a adotar entendimento semelhante em relação a essa ação especial" (MENDES, 2002b, p. 438). Há, não obstante, uma desistência homologada em sede de ADPF. Trata-se da ADPF n. 108, Rel. Min. Carmem Lúcia. Ressalte-se, porém, que a desistência foi deferida em razão de flagrante erro material e que o PSOL, partido autor da ação, acusou o erro material em petição datada de 12.4.2007 e ajuizou nova ação em 13.4.2007. Para um exemplo recente, conferir o já citado MS 25.939-DF. PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA. .. 201 Câmara Legislativa do DF por violação a normas regimentais. A Segunda Turma afirmou: na hlpótese de mandado de segurança impetrado contra ato de Mesa de Câmara Legislativa, a posterior promulgação da lei não determina a extinção do processo sem julgamento do mérito (Súmula n. 266/ STF), uma vez que o exame da ocorrência de vícios no procedimento legislativo não se confunde com o exame da lei em si. Até onde leva, entretanto, o argumento do STJ e do TJ-DF? Por um lado, está claro que a ocorrência de vícios no procedimento não se confunde com o exame de lei em tese. Entretanto, o efeito da concessão da segurança após a promulgação da norma impugnada é, sem dúvida, equivalente ao atribuído à declaração de inconstitucionalidade formal qual seja, a nulidade da norma e sua supressão do ordenamento jurídico: Em tal hipótese, estamos admitindo implicitamente que a regularidade regimental é condição necessária para a formação válida da lei. E é justamente nesse ponto que surge a questão importante: a lei é um provimento vinculado diretamente à Constituição e, ao menos em princípio, só se subordina a ela. A violação autônoma das normas regimentais, também em princípio, não equivaleria à violação à Constituição. Entretanto, se reconhecermos as normas regimentais como normas jurídicas não há como lhes negar o caráter vinculante. O descumprimento de uma norma jurídica deve corresponder a uma sanção. Qual sanção caberia, entretanto, diante do descumprimento de normas regimentais pertinentes ao processo legislativo? Nos dizeres de Canotilho, tal situação poderia "conduzir apenas a uma questão de ilegalidade, de contornos muito inseguros" (CANOTILHO, 2003, p. 857). É difícil, porém, imaginar o que tal ilegalidade significa concretamente. O próprio Canotilho reconhece, em seguida, o impasse: Resta saber se a violação de normas regimentais directamente executoras da Constituição 63 não configurará um caso de ilegalidade sujeito a controlo jurisdicional e se para este efeito não será de atribuir ao regimento o estatuto de "lei reforçada" (CANOTILHO, 2003, p. 857). 63 Supomos que seja este o caso das normas regimentais que regulam o processo legislativo. 202 o reconhecimento do caráter de normas interpostas às normas regimentais que regulam o processo legislativo resolve essa "ilegalidade" em uma violação à Constituição. Essa parece ser a única solução coerente se pretendemos atribuir alguma conseqüência jurídica ao descumprimento de tais dispositivos. De fato, alguém poderia ler as decisões do TJ-DF e do STJ mencionadas acima como enclaves, recalcitrâncias pontuais. Essa leitura conformista, entretanto, não faz jus ao teor das decisões. O que levou os tribunais a se posicionarem pela concessão e posterior manutenção da segurança é precisamente a percepção de que uma manobra arbitrária no processo de formação da lei estava a permitir que dispositivos aprovados com evidente violação ao devido processo legislativo adquirissem eficácia para regular relações jurídicas, criando, modificando ou extinguindo direitos e obrigações. Se a posição do TJDF e do STJ pode ser criticada por alguma razão, esta parece ser única e exclusivamente a inadequação do instrumento processual por meio do qual a questão foi resolvida. De fato, se formos tratar a violação ao devido processo legislativo como violação à Constituição, a substituição do mandado de segurança por um instrumento processual mais adequado parece se impor64 . Qual seria, entretanto, esse instrumento? A menção ao devido processo legislativo como direito de titularidade difusa poderia sugerir a via da ação civil pública. Essa não é uma alternativa plausível, entretanto. Como visto, o reconhecimento de violação às normas constitucionais ou regimentais que regulam o processo legislativo transporta a questão para o campo da declaração de inconstitucionalidade. Nesse particular, entendem a jurisprudência e a doutrina que "como a decisão da ação civil pública tem efeitos erga omnes, não pode ensejar o controle da constitucionalidade da lei por via disfarçada, com usurpação da competência do STF" (MElRELLES, 2002, p. 224). Aqui, uma alternativa parece sobressair no âmbito do controle objetivo. Trata-se da argüição de descumprimento de preceito fundamental. De acordo com o art. 10 da Lei 9.882/99, a ADPF tem por objeto "evi- 64 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA. .. LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA Isso para fins de controle da regularidade do processo legislativo em sentido estrito. O mandado de segurança têm se mostrado útil e adequado no controle do abuso de poder por parte das CPIs ou nos processos disciplinares em face de parlamentares, por exemplo. 203 tar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público". No caso, evitar ou reparar lesão a um direito fundamental, o direito ao devido processo legislativo. A ADPF, por ser um instrumento de controle concentrado, vazado em termos objetivos, apresenta vantagens importantes sobre o mandado de segurança. Em primeiro lugar, as dificuldades referentes à extinção do processo sem julgamento de mérito em razão da promulgação superveniente da norma estariam afastadas. Observe-se, de início, que a possibilidade de manejo da ação para evitar lesões a preceitos fundamentais indica que a ADPF pode ser utilizada no controle do próprio processo de produção da norma e não apenas apó.s a .sua pr?m~gação. D~ssa forma um controle direto do processo leg1slativo seria v1avel sob a JUstificati~a de evitar que a norma formada em desacordo com o devido processo legislativo seja promulgada e, eventualmente, entre em vigor. No caso da ADPF, entretanto, diferente do mandado de segurança, a promulgação da norma não ensejaria a prejudicialidade. da .ação,. mas, quanto muito, sua conversão em ação direta de incons~tuclOnalid~de. Nos casos em que não couber ADI contra o ato normativo produz1do, como, por exemplo, contra uma norma de efeitos concretos, como as medidas provisórias que abrem crédito extraordinário, a ADPF permanecerá como meio processual idôneo para o prosseguimento da demanda. Em princípio, as duas vias processuais são fungíveis: o mesmo ~r~ão judicial é competente para julgamento de ambas e os mesmos sUJe1tos são legitimados para a propositura. Há que se atentar, entretanto, para um detalhe importante: a pr~posi­ tura da ADPF requer a demonstração de inexistência de outro me10 eficaz para sanar a lesividade6s . Do ponto de vista de um controle exercido 65 Conforme ficou assentado na ADPF n° 33, o princípio da subsidiariedade requer um cotejo entre as alternativas disponíveis no modelo objetivo, ou seja, capaze~ de sanar a lesão de forma ampla geral e imediata: "Uma leitura maiS cwdadosa ha de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito !undamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteçao da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subSidiarledade - ineXiStência de outro meio eficaz de sanar a lesão -, contido no § lOdo art. 4° da Lei no 9.882 de 1999 há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, se se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser 204 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA no curso do processo, essa exigência sinaliza para uma atuação contida por parte do STF. Em outras palavras, apenas quando as possibilidades de sanar ou evitar a lesão por meio da atuação do próprio órgão legislativo estiverem esgotadas, caberá a medida judicial. Uma aplicação parcimoniosa do princípio da subsidiariedade nesse contexto não só preserva a autoridade do Congresso como afasta a possibilidade de paralisação e engessamento do processo legislativo por meio de uma excessiva interferência judicial. 205 Ainda no debate sobre a adequação do uso da ADPF, é forçoso mencionar que o projeto de lei que veio a resultar na Lei 9.882/99, de autoria da então deputada Sandra Starling, tinha por exclusivo objetivo permitir que essa ação (denominada "reclamação" no projeto) se prestasse à aferição dos atos praticados no curso do processo legislativo. Com efeito, sendo o Supremo Tribunal Federal o guardião-mor da constituição - art. 102, caput, CF - e dispondo o § 1 do referido art. 102 que "a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal na forma da lei" a proposta deve ser acatada, pois o respeito ao devido processo de elaboração das normas legislativas (arts. 59 e 60, c/ c arts. 51, inciso III e 52, inciso XII, CF), pressuposto formal da própria garantia basilar do devido processo legal é, com certeza, princípio erigido em preceito fundamental e, enquanto tal, passível do controle judicial a que se refere o art. 102, 0 Já do ponto de vista do controle da regularidade procedimental exercido posteriormente à promulgação da norma, o princípio da subsidiariedade resta integralmente atendido, na medida em que nenhum outro meio objetivo disponível no ordenamento presta-se a impugnar um vício de inconstitucionalidade resultante da violação de norma interposta. Aqui nos valemos da sugestão de Gilmar F. Mendes, para quem § 1 da Constituição 67 . 0 a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio (M.ENDES, 2002b, p. 433). É precisamente o caso das normas regimentais, que conferem densidade normativa aos princípios e regras constitucionais que estruturam o processo legislativo. Por fim, cabe lembrar que o caráter objetivo da ADPF dificultaria a manipulação e o abuso do direito de ação. Em princípio, a desistência da ação após sua propositura não é possível e a organização da participação dos afetados pelo provimento não precisa se dar de maneira tão artificial quanto no mandado de segurança. É possível, inclusive, que a participação e a interferência dos interessados no provimento objeto da ADPF se dê de forma mais ampla e transparente do • que ocorre hoje 66 • O projeto foi relatado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados pelo baiano Prisco Viana, que ofereceu um substitutivo bastante semelhante ao anteprojeto formulado pela Comissão Celso Bastos. A proposta manteve a possibilidade da propositura da ADPF em face de interpretação ou aplicação dos regimentos internos das Casas Legislativas, ou regimento comum do Congresso Nacional, no processo legislativo de elaboração das normas previstas no 68 art. 59 da Constituição Federal 67 68 66 aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata". (ADFP n° 33, ReI. Min. Gilmar Mendes. Diário da Justiça, 27.10.2006). Segundo Gilmar Mendes (2002b), "em face do caráter objetivo do processo, é fundamental que possam exercer direito de manifestação não só os representantes de potenciais interessados nos processos que deram origem à ação de descumprimento de preceito fundamental, mas também os legitimados para propor a ação. Independentemente das cautelas que hão de ser tomadas para não inviabilizar o • processo, deve-se anotar que tudo recomenda que, tal como na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental assuma, igualmente, uma feição pluralista, com a participação de amicus curiae". Projeto de Lei n° 2.872, de 1997. Diário da Câmara dos Deputados, 20 de março de 1997, p. 7500. Afirmava o relator: "A sucessão de fatos que comprometeram o Legislativo Federal, quando o processo de elaboração das leis ou de alteração constitucional é subjugado por interesses e manobras de grupos dominantes, ou pela vontade despótica do presidencialismo autocrático e imperial que se pratica no país, deixam as vozes discordantes sem meios de resistir às formas engendradas para viciar o processo decisório congressual ou cameral e que contaminam, na essência, a vontade e o produto legislativo pela manipulação e deturpação das leis interna corporis". Diário da Câmara dos Deputados. 26 de janeiro de 1999, p. 3.685. 206 Porém, submetido à consideração do Presidente da República, o projeto foi parcialmente vetad0 69 . O veto excluiu expressamente a possibilidade de ADPF em face de interpretação ou aplicação dos regimentos parlamentares. Nas razões do veto presidencial, lemos os traços gerais da doutrina dos atos interna corpo ris: Não se faculta ao Egrégio Supremo Tribunal Federal a intervenção ilimitada e genérica em questões afetas à "interpretação ou aplicação dos regimentos internos das respectivas casas, ou regimento comum do Congresso Nacional" prevista no inciso II do parágrafo único do art. 1°. Tais questões constituem antes matéria interna corpons do Congresso Nacional. A intervenção autorizada ao Supremo Tribunal Federal no âmbito das normas constantes de regimentos internos do Poder Legislativo restringe-se àquelas em que se reproduzem normas constitucionais. A questão que se coloca é, então, a seguinte: considerando o veto presidencial mantido pelo Congresso à possibilidade de ajuizar a ADPF para fins de controle da regularidade do procedimento legislativo, seria lícito acolhê-la sem previsão legal expressa? Entendemos que esse não é um obstáculo. Em primeiro lugar, as raZões do veto não são, em nenhuma medida, vinculantes. Segundo, o posicionamento do STF a respeito da sindicabilidade de atos fundados exclusivamente em normas regimentais, invocado pelo Presidente como fundamento constitucional de sua decisão, sofreu significativas alterações nos últimos anos. Por fim, é perfeitamente possível inferir dos dispositivos que permanecem no texto vigente da lei a possibilidade de manejo da ADPF para os fins aqui discutidos, os quais são reputados, inclusive, como ínsitos à jurisdição constitucional democrática. A utilização da ADPF para o controle do processo legislativo é um campo promissor, mas ainda pouco explorad0 70 • Vale a pena considerar, mesmo que de forma breve, algumas das dificuldades que estariam 69 70 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA A Mensagem n° 1.807, de 3 de dezembro de 1999, contendo os vetos, está disponível no sítio do Planalto, no endereço: <http://www.presidencia.gov.br/cciviL03/ LEIS/Mensagem_Veto/1999/Mv1807-99.htm> Sobre a utilização da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental para impugnar atos praticados no curso do processo legislativo, cf. a ADPF-QO l-R]. Sobre os efeitos da medida provisória rejeitada ou que tenha perdido eficácia, cf. a ADPF 84-DF. 207 envolvidas no desenvolvimento do modelo de controle aqui sugerido. Um primeiro ponto se relaciona à delimitação do papel reservado ao mandado de segurança. Mesmo que a ADPF venha a. ser reconhecida como instrumento idôneo para a fiscalização da regulandade do processo legislativo, o mandado de segurança ainda terá sua utilidade no campo do direito parlamentar, em especial no controle de abusos no curso ~e procedimentos disciplinares e de inquéritos yarl~~entares. ~essas ctrcunstancias, o Poder Legislativo exerce funçao atipiCa, que nao se conA' funde com a produção de normas primárias. No curso da atividade legislativa, o universo de sujeitos de direito prejudicados por uma norma aprovada com violação. ao devido pr~cesso não é passível de delimitação. Em razão da generali~ade e abstraçao .das leis, qualquer um pode, eventualmente, suportar o onus de um.a obngação imposta de forma abusiva. Essa é uma razã~ p~la qual consideramo.s como "difuso" o interesse jurídico na observancia das regras pro~edi­ mentais aplicáveis aos provimentos legislativos. Nessas circunstâncias, a utilização do modelo concentrado parece adequada .. Já na aplic~ção d.e sanções disciplinares ou na determinação de procedime~to~ de mvestigação, os direitos afetados pelas decisões dos órgãos legis~a~vos. enc~n­ tram-se bem delimitados e restritos a um ou a alguns SUjeitos identificáveis. Essas circunstâncias tornam apropriado o recurso ao mandado de segurança. É possível, ainda, pensar o mandado de segurança para a defesa de certas prerrogativas parlamentares, como, por ex~mplo, o direito de integrar ao menos uma comissão permanente como titular e o . direito de perceber subsídios. Outra dificuldade diz respeito ao complexo modelo fede~ativo brasileiro. Hoje, o controle de regularidade do pr.ocesso le~~lativo te~ se desenvolvido, ainda que timidamente, por melO de decisoes ~os .tr1bunais estaduais. Uma centralização do controle do processo legislativo no STF por meio de um progressivo abandono d~ mandado de segurança pode ter efeitos indesejáveis. As decisões do Tribunal em sede de ADPF são dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante. A se manter o.atual teríamos o risco de um retrocesso, em especial no entendimento do STP, âmbito do controle do processo legislativo estadual. O controle judicial no curso do processo legis.la,ti:ro tende, ?or,s~a vez, a ser dificultado no âmbito dos estados e mUlliClplOS. Os diretorlOs es- 208 taduais e municipais de partidos políticos, como sabemos, não possuem legitimidade para ajuizar a ADPF. De toda forma, o reconhecimento pelo STF da parametricidade das normas regimentais que densificam o processo legislativo constitucional tenderia a mitigar esse problema. A violação das normas que regulam o processo legislativo seria equiparada à violação da própria constituição. A inconstitucionalidade aferida nesses termos é passível de fiscalização em sede de ações diretas de inconstitucionalidade estaduais, pelos próprios Tribunais de Justiça71. Por fim, convém lembrar que, contra as possibilidades delineadas neste capítulo, certamente irá se erguer a objeção dos que vêem a concentração de poder no Supremo Tribunal Federal como uma ameaça à democracia. Durante todo este texto, seguindo os passos da teoria discursiva do direito, insistimos na idéia de que a garantia da formação livre da opinião pública e de uma gênese democrática da lei são as principais tarefas da jurisdição constitucional. E, nesse particular, temos uma carência, não um excesso. A crítica pode e deve dirigir-se a uma excessiva materialização do controle de constitucionalidade, cujo risco mais conhecido é a quase imperceptível substituição de argumentos jurídicos por argumentos axiológicos. A aposta deste trabalho é na democracia e em suas qualidades epistemológicas. Por meio da garantia do devido processo legislativo e, conseqüentemente, por meio da afirmação de um 71 PROCESSO LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ... LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA O STF entende que é possível propor perante o Tribunal de Justiça do estado a ação direta de inconstitucionalidade em face da constituição estadual, quando esta reproduz norma da Constituição Federal de observância obrigatória. Nesse sentido a Reclamação 383, ReI. Min. Moreira Alves (Diál7'o daJustiça, 21.5.1993): ''Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-Membros. Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta". Nesse caso, a competência dos Tribunais estaduais atende também ao fato de que os regimentos legislativos variam de uma unidade da federação para outra. Cada Legislativo procura densificar os princípios constitucionais da maneira mais adequada. A interferência dos Tribunais estaduais reforça o princípio federativo ao mesmo tempo em que permite o amadurecimento de questões suscetíveis ao reexame do STF. 209 parlamento conectado com a crítica pública, a atuação do STF como um "censor de conteúdos normativos" tende a perder importância e legitimidade. *** A teoria tem seus limites. Como prenunciado, este último capítulo apenas aponta perspectivas e desafios, sem desenvolvê-los à exaustão. Tal tarefa depende menos da criatividade acadêmica que da recorrente operação do direito por meio do enfrentament~ de pro~l~mas e questões concretas não-antecipáveis. Aqui, talvez seja necessano um pouco de sociologia: Quanto mais os indivíduos sabem sobre o direit~, mais são constran~ gidos a perceber que somente o direito deterrruna se aquele sab~r e saber do direito. Quanto mais sabem, menos sabem. Um conce1to, um termo jurídico pode ser unívoco, claro e preciso quando se quer, mas somente o direito determina se aquela univocidade é unívoca ou não (DE GIORGI, 2006, p. 181).