Cristina Tereza Gaulia - Associação dos Magistrados Brasileiros

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“OS DIREITOS HUMANOS E O SISTEMA LEGAL NO BRASIL.
DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA O FUTURO.”1
Cristina Tereza Gaulia *
“Na porta da lei havia um guarda”
Orson Wells 2
Eu gostaria de agradecer à Universidade de Nottingham e aos organizadores por
me darem a oportunidade de estar aqui hoje e falar um pouco sobre o que os juízes
brasileiros estão fazendo para garantir os direitos humanos, em um país tão grande e de
tão intensas desigualdades como o Brasil.
Minha intenção não é esgotar a matéria, ou fazer uma apresentação sobre as
formalidades procedimentais do nosso Judiciário, mas mostrar, como os juízes podem
trabalhar a partir de uma nova perspectiva, e, assim, fazer uma enorme diferença quando
se trata de garantir direitos fundamentais às pessoas.
O Brasil, como dito, é um país de dimensões continentais, com 8.516.000m², e
uma população de 210.000.000 de pessoas, em que 50,8% são mulheres e 49, 2% homens.
É um país jovem: foi descoberto em 1500 (mil e quinhentos) pelo então Reino de
Portugal.
A nação brasileira foi construída a partir de uma população de brancos,
portugueses e outros europeus que vieram depois, um grande número de indígenas, que
constituíam a população local na época do descobrimento, e milhares de escravos
africanos que começaram a chegar, ainda na primeira metade do século XVI 3.
A escravidão durou no Brasil até 1888, quando foi abolida por lei, pela chamada
"Lei Áurea".
1
Palestra originalmente proferida em inglês, em 27 de maio de 2016, na University of Nottinggham, em Seminário
especialmente oferecido pelo II Congresso Internacional da AMB, aos Professores e alunos desta Universidade.
2 Orson Wells em fala no filme “O Processo” de Franz Kafka.
3 “No plano étnico cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que foi unificando na língua e
nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos da África, e os europeus aqui
querenciados. Era o brasileiro que surgia, construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo
desfeitas”. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p.27.
O Brasil tornou-se independente de Portugal em 1822, e em 1824, tivemos a nossa
primeira Constituição, que foi promulgada pelo imperador português Pedro I.
No artigo 179, XIII da Constituição de 1824, constava:
“A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade,
a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:
(...)
XIII. A Lei será igual para todos, quer proteja, quer
castigue, o recompensará em proporção dos
merecimentos de cada um. 4
Teoricamente, portanto, todos os privilégios entre classes sociais foram abolidos
a partir da Constituição do Império, e todos os brasileiros passaram a ser iguais, "por lei".
Em verdade tratou-se de uma igualdade retórica, em um país com mais de um
milhão de escravos.
O Brasil se transformou em república, um ano após a abolição da escravatura, em
15 de novembro de 1889.
Mas a realidade brasileira não estava preparada para receber os ex-escravos e
garantir-lhes um mínimo de dignidade, apesar da constituição e de sua intenção formal
de garantir que "todos os homens eram iguais aos olhos da lei".
A respeito refiro lição de Emília Viotti da Costa,
“A súbita equiparação legal entre negros e brancos,
em 1888, não destruiu de imediato o conjunto de
valores que se elabora durante todo o período
colonial. Econômica, social e psicologicamente, os
ajustamentos foram lentos. O negro permaneceu na
situação de dependência econômica e as atitudes e
representações sociais que regulavam as relações
4
BRASIL, Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo
Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao24.htm]. Acesso em: 18/07/2016.
entre as raças só muito vagarosamente foram
modificadas. (...) A consecução da meta inaugurada
em 13 de maio, transformação dos ex-escravos em
homens livres e cidadãos responsáveis, equiparados
de fato nos seus direitos a estes, exigiu tempo e
marcou, como ainda marca, o panorama social do
Brasil.” 5
A monarquia que se findava e a república que nascia, não programaram o "dia
seguinte" à abolição, não se preocupando como os ex-escravos iriam viver, nem
tampouco, como reagiriam os proprietários de terras e comerciantes ao perderem a mão
de obra escrava. Tampouco se preocupou o Brasil de então, com as consequências do
inconsciente nacional decorrentes da escravidão.
Nessa linha, resume bem Viotti, citando Max Leclerc:
“A escravidão, (...), não teve apenas uma influência
dissolvente sobre a sociedade inteira, mas corrompeu
a noção do dever e do respeito, desonrou o trabalho,
enobreceu o ócio, abalou a hierarquia e destruiu a
disciplina. Segundo a opinião corrente, trabalhar –
submeter-se a uma regra qualquer – é coisa de
escravos.
Nessa
sociedade,
governada
pelos
interesses
materiais de uma oligarquia de grandes proprietários
rurais exploradores de escravos (...) os interesses do
povo jamais foram defendidos. Daí a debilidade da
instrução primária, a ignorância e a preguiça, pois não
havia condições de sair dela.” 6
A maioria dos afrodescendentes libertos se estabeleceu nas áreas que circundam
as cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, na Bahia.
As favelas começaram a aparecer e crescer.
5
6
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia, 5ª ed., São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.13/14.
Idem.
A respeito, os cientistas sociais que estudam a realidade brasileira, salientam que,
apesar das transformações pelas quais o Brasil passou, em um período de quase 70 anos,
na verdade as estruturas sociais e econômicas da sociedade não se alteraram.
A sociedade brasileira continuou assim como continuava até hoje, dividida, e se
de um lado existem pessoas privilegiadas, no outro, encontram-se os brasileiros
excluídos.
Ressalte-se, que foram difíceis e intensas, várias outras lutas pelos direitos
fundamentais na história do Brasil.
1) O voto feminino, por exemplo, só foi possível a partir de 1932, e somente em
1962, as mulheres brasileiras passaram a poder trabalhar sem a permissão do pai ou do
marido, receber herança ou manter seus filhos sob sua guarda exclusiva após a separação.
A Lei do Divórcio só veio em 1977.
2) Nossa lei de proteção ao trabalho entrou em vigor somente em 1943.
3) Apenas em maio de 1985, uma emenda constitucional à Constituição de 1969,
deu aos analfabetos o direito de voto.
4) A primeira lei contra o preconceito racial, a "Lei Caó", somente entra em vigor
em 1989, isso em um País em que a população afrodescendente constitui expressiva
maioria.
5) Até hoje nós não temos nenhuma lei que proteja a população LGBT.
Por outro lado, após a Constituição de 1988 (a chamada "Constituição Cidadã"),
uma longa lista de direitos fundamentais e sociais foi apresentada ao povo brasileiro.
A Constituição Federal de 1988 é um símbolo da restauração da democracia no
Brasil e marca a consolidação, em texto constitucional, de uma grande luta para alcançar
a verdadeira proteção das liberdades fundamentais e dos direitos humanos no País, e se
por um lado a Constituição de 88 mantém os valores liberais tradicionais, necessários a
uma sociedade focada na economia, tais como a iniciativa privada livre (art. 1º, IV), a
propriedade privada (art. 5º, XXII e 170, II), e a livre concorrência (art. 170, IV), por
outro lado, apresenta valores emancipatórios, como o direito de buscar a redução das
desigualdades sociais (art. 170, VIII), a imposição de uma função social à propriedade
privada (art. 170, III), e um tratamento diferenciado a alguns grupos especiais de pessoas,
considerados vulneráveis.
Direitos fundamentais entretanto, não se concretizam do dia para a noite. A
realidade não se transforma magicamente ou por decreto.
Os brasileiros e brasileiras das classes sociais abandonadas começaram, a partir
da década de 90, a buscar seus direitos constitucionais através do sistema judiciário.
Os serviços de assistência pública legais (Defensorias) passaram a ajudar, a lei
dos Juizados Especiais tornou possível à muitas pessoas, ir ao Judiciário, em alguns casos,
sem um advogado, e organizações pro-bono de advogados e serviços universitários de
assistência jurídica foram formados para ajudar a realizar o desiderato dos novos direitos
constitucionalizados.
O Poder Judiciário no Brasil entretanto, como sói aconhecer não estava preparado
para enfrentar nem a enorme quantidade de demandas que chegaram (e continuam
chegando), nem o tipo de casos que foram apresentados por esta variedade de diferentes
brasileiros e brasileiras, que trouxeram suas questões às portas da Justiça.
Em 2004, a partir de uma emenda à Constituição (EC 45/2004), a chamada
Reforma do Judiciário, trouxe novos regulamentos para a administração dos tribunais,
criou um conselho de supervisão e controle externo, e estabeleceu o direito a uma duração
razoável dos processos, porque, como todos sabemos, "lei atrasada, é direito negado".
O Judiciário foi obrigado a rever seus conceitos, a modernizar-se, informatizarse, mudar o rumo dos controles internos, e passar a ouvir determinados clamores sociais
para os quais, até então, não voltara sua escuta.
A reforma de 2004 firmou o entendimento de quer três dimensões do sistema de
Justiça seriam essenciais:
I - decisões judiciais têm de ser eficazes;
II - o acesso à Justiça deve ser possibilitado a todas as pessoas, livre de custos para
aqueles que não podem pagar;
III – os juízes não podem mais limitar-se ao mero papel de “bouche de la loi”,
devendo tornar os novos direitos constitucionalizado uma realidade.
No Estado do Rio de Janeiro, os juízes começaram, em 2004, a trabalhar em um
projeto que uniu estas três dimensões: o projeto foi chamado de "Justiça Itinerante".
Este projeto nos fez perceber que a Justiça em nosso país, deve unir os juízes, em
torno de uma realidade: a de que existem dois “Brasis”, um que já vem sendo atendido
pelo Judiciário, desde sempre, e um outro que precisa de um olhar diferenciado, eis que
relegado pelo sistema judiciário desde os primórdios da colonização.
Cabe portanto aos magistrados, o dever de garantir os direitos às múltiplas
realidades sociais nacionais.
Acabou o tempo do juiz “conviva de pedra”, ele precisa estar integrado à
comunidade.
O primeiro filme que vocês assistirão, mostra uma nova forma de fazer o acesso
à justiça eficaz. A Justiça Itinerante protagoniza essa novel prestação jurisdicional na
forma preconizada pelo art. 125 § 7º da Constituição Federal. 7
O segundo filme, na verdade, uma seleção de imagens, vai mostrar como os juízes
no Rio de Janeiro trabalharam em conjunto com o Exército Nacional em uma das maiores
favelas do Rio de Janeiro, coadjuvando no processo de “pacificação” (sic: retorno do
Estado às comunidades em que se estabeleceram, durante séculos, os menos favorecidos
economicamente).
Finalizo voltando à frase de Wells, e ousando dizer que os Juízes brasileiros estão
tentando remover os guardas que barram o acesso do povo brasileiro à lei!
7
CF, art. 125, §7º: “§ 7º O Tribunal de Justiça instalará a justiça itinerante, com a realização de audiências
e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de
equipamentos públicos e comunitários. ”
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