Na oãmartnoC da Saudade Se você tem 30 anos ou mais, com certeza viveu alguma época em que um movimento musical surgiu e marcou a cultura brasileira. Como a bossa nova mudou a vida no final dos anos 50? Será que a jovem guarda te fez suspirar nos anos 60? Como a tropicália contribuiu para a revolução comportamental nos anos 70? E finalmente, como o rock marcou uma década considerada perdida, como foram os anos 80? A música popular brasileira (MPB) foi sempre muito produtiva. Mas, especialmente nos últimos cinqüenta anos, as gerações musicais foram surgindo e reinventando, deixando sempre alguma – ou muita – coisa para a seguinte. Assim, a nossa música se construiu sobre uma base rica e sólida, capaz de segurar muita coisa que ainda haveria por vir. Em 1958, João Gilberto revolucionou e veio trazendo uma batida nova de violão. No ano seguinte, quando Gilberto lançou o seu LP, com a imortal gravação de “Chega de Saudade” deu-se o início da bossa nova. O movimento modernizou a música brasileira e até quem menos se esperava, como Roberto Carlos, bebeu da fonte de João Gilberto para, depois, dar início à Jovem Guarda. A introdução do rock na música brasileira foi marcada por um estilo que tentava imitar os roqueiros norte-americanos e as versões de músicas estrangeiras, o que deixou os intelectuais da bossa nova e da classe musical politizada que se formava revoltados. Mas, no final da década de 60, a tropicália mostrou que o descompromisso político também tem o seu valor. A vontade de quebrar os padrões de comportamento fez com que os tropicalistas resgatassem o passado e o que era mal visto pela sociedade e pelo grupo de intelectuais da época. Como conseqüência da introdução do rock americano na MPB, apareceu, na década de 80, uma geração de bandas que já não tinham a preocupação de protestar através da arte, uma vez que o Brasil estava voltando à democracia. Esses grupos, em sua maioria, fazem sucesso até hoje, comprovando sua qualidade e a importância da reciclagem musical. Esse caderno especial de O Globo mostra tudo que mudou os rumos da música brasileira. Divirta-se e mate as saudades. Na Contramão da Saudade O Globo 2 Uma releitura da bossa nova Musicos como Bebeto Castilho e Roberto Menescal apresentam novas visões do ritmo que marcou o Brasil Mas, o maior show da história da bossa nova só foi acontecer em meados de 1962, na boate Au Bom Gourmet, em Copacabana. O espetáculo O Encontro reuniu os tradicionais nomes da bossa nova: João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e grupo Os Cariocas. As canções que até hoje são marcas da bossa nova estrearam no concerto que durou um mês e meio. Só Danço Samba, Samba da Bênção, Samba do Avião e Garota de Ipanema entraram para a história da música popular brasileira naquele agosto de 1962. O show foi gravado, mas nenhuma gravação oficial foi divulgada. Os fãs se contentam com áudios piratas. A cantora Elizete Cardoso poderia ter entrado para a história da música nacional com o disco “Canção do Amor Demais”, de maio de 1958. Foi nesse LP que a batida do violão de João Gilberto, que daria início a bossa nova, estreou. Mas não foi para valer. Só dois meses depois, em julho, que Gilberto lançaria um 78 rotações com essa mesma batida. No lado A do disco estava a canção-título “Chega de Saudade”, de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. O lado B tinha uma composição do próprio cantor: “Bim-Bom”. Pronto, a bossa nova começava a mostrar que o mundo não seria mais o mesmo. Divulgação A bossa nova conquista o mundo Capa do disco “Chega de Saudade” Nem todo mundo, porém, acha que a bossa foi lançada nesse ponto de 58. Em entrevista a um portal de notícias, Bebeto Castilho, integrante do lendário Tamba Trio, afirmou que a bossa nova foi uma progressão natural dos músicos. “A bossa nova não foi inventada por ninguém, todos trouxeram sua contribuição. Se é que ela tem um ponto de partida, ela não começou com o João Gilberto em 1958, ela começou no início da década de 50, nos bastidores das rádios, com os músicos conversando, tendo idéias e se encontrando para tocar”, declarou. Ainda de acordo com Castilho a importância de João Gilberto para o movimento da bossa nova foi como a de um guia. “Os músicos acompa- nhavam o que acontecia, estavam ligados ao João. Mas o público levou um susto, ninguém nunca tinha ouvido nada semelhante. Era uma musicalidade que vinha amadurecendo no piano do Tom Jobim, do João Donato, em vários músicos. Mas o João definiu o caminho dele Divulgação O músico Bebeto Castilho e acertou em cheio, a sensação para todos foi de ‘é esse o caminho’. Essa mudança estética foi dada pelo João e foi maravilhosa”. O primeiro show da bossa nova como um movimento foi no Grupo Universitário Hebraico, no bairro carioca do Flamengo. O nome surgiu das mãos de uma secretária anônima. Um cartaz pendurado na porta dizia: “Hoje, Sylvinha Telles e um grupo bossa nova”. A cantora mais famosa da noite carioca de então, Sylvia Telles, recebia no palco nomes como Roberto Menescal, Naral Leão, Carlos Lyra entre outros. Mas foi em 1959 que Tom Jobim, em Desafinado, oficializou o nome, dizendo que aquilo era bossa nova e muito natural. Foi também em 1962 que a bossa brasileira ganhou o mundo. Em abril, os jazzistas norte-americanos Stan Getz (sax) e Charlie Byrd (violão) lançaram “Jazz Samba”, disco que atraiu a atenção do mundo para o ritmo da bossa nova. Mas foi em novembro desse mesmo ano que a bossa nova se consagrou no exterior. Uma das casas de show mais famosas do mundo, a Carnegie Hall de Nova York, apresentou o Concerto de bossa nova. No palco os nomes já conhecidos no Brasil: Carlos Lyra, Roberto Menescal, Tom Jobim, João Gilberto etc. Na platéia três mil pessoas, algumas com nomes ilustres, como Miles Davis, Peggy Lee e Tony Bennett. Em 1964, enquanto os artistas brasileiros procuravam as artes como uma forma de expressão política, a gravadora americana Verve lançava o disco de maior impacto internacional da bossa nova. O álbum “Getz/ Gilberto”, de João Gilberto e o saxofonista americano Stan Getz, contou com as participações de Tom Jobim e Astrud Gilberto, então mulher de Na Contramão da Saudade O Globo João. Além de ser consagrado com 96 semanas na lista dos mais vendidos, cinco prêmios Grammy – inclusive o de melhor cantor para João Gilberto – e dois milhões de cópias vendidas do single de Girl From Ipanema, o LP definiu a bossa nova e criou todos os padrões de som para o estilo no exterior. A música Garota de Ipanema, de Tom Jobim, ganhou o título de segunda canção mais tocada do século 20, perdendo apenas para Yesterday, dos Beatles. Mas para Tom, a musa de Ipanema poderia ser considerada vencedora, porque “os Bea- Anos depois, nas décadas de 80 e 90, a bossa nova brasileira flertou com a música pop estrangeira, mas sem grande sucesso. Foi só em 2000 que o estilo voltou com força total, graças a Bebel Gilberto, filha de João Gilberto. Assim como o pai, Bebel inovou e modernizou o ritmo, misturando-o com sons acústicos e eletrônicos e regravações de João Donato, Chico Buarque e Vinícius de Moraes. Bebel fez sucesso tanto com o público quanto com a crítica e abriu Divulgação “É essa m. que o Rio de Janeiro manda para gente” – dono de uma loja de discos de São Paulo ao receber o 78 rotações de João Gilberto. “No ano de 1962 fui à Nova York e levei um susto quando vi um cara na rua assobiando ‘Desafinado’. Logo pensei que deveria ser um brasileiro, mas, engano meu, era um americano” – Roberto Menescal. Apesar dos principais cantores da bossa serem cariocas, o precursor do ritmo, João Gilberto, é baiano. Bebel Gilberto, filha de João Gilberto tles eram quatro e cantavam em inglês!” Por falar em Tom Jobim, foi ele quem corou definitivamente a bossa nova, em 1967. O maior cantor do mundo de então, Frank Sinitra, gravou o disco Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim com sete músicas do compositor brasileiro e sua participação em todo o LP. Com tanto sucesso no exterior, não seria difícil pensar que, talvez, a bossa nova não passasse de um ritmo que foi apenas feito por brasileiros. O próprio músico Roberto Menescal diz ter dúvidas se a bossa é brasileira. - Essa questão é muito interessante, porque a bossa tem um sabor internacional e, por isso, fez sucesso lá fora. O sucesso no exterior é uma devolução da mistura feita pela bossa. O ritmo chegou lá fora primeiro que nós cantores. Declarações e curiosidades da bossa Divulgação Folha Imagem Tom Jobim e Frank Sinatra 3 caminho para novos cantores e bandas que queriam seguir essa linha lounge da bossa nova. A banda BossaCucaNova é um exemplo dessa modernização. O integrante do grupo, Alexandre Moreira, fala que esse formato, de certa maneira, é um jeito de perpetuar o ritmo. “Eu diria que é uma forma da geração mais nova ser apresentada e se interessar por essa música que já é eterna”. A mistura de sons com a bossa nova é uma coisa que vem desde os anos 60, com o surgimento do ritmo. Moreira declara que essa combinação de compassos é essencial a MPB. - A bossa nova é fruto da fusão do samba com o jazz, atraindo os jazzistas, que logo incorporaram o balanço ao repertório deles. Essa mistura é essencial à música popular de uma maneira geral, e a mola mestra da música mundial, eu diria. Mas, viva a música brasileira!” Priscilla Caetano Divulgação “Hoje as fronteiras estão menores, o que facilita a entrada de músicas no exterior, mas a música não fica, porque não tem o sabor internacional que a bossa tinha” – Roberto Menescal. Os primeiros acordes da bossa nova foram compostos por João Gilberto em Minas Gerais, na casa da irmã. “Tudo precisa ser atualizado, se não vira passado total. E como nós fizemos uma mistura de samba e jazz, a moçada agora está misturando a bossa nova com os elementos da geração. Acho que essa é uma das saídas, não a saída. Essa procura é válida e alguns resultados são muito bons” – Roberto Menescal. A cantora Bebel Gilberto é fruto do casamento de João Gilberto com Miúcha, por isso, é sobrinha de Chico Buarque. “Chega de Saudade”, livro de Ruy Castro, conta como se formou o movimento. “Coisa mais linda - histórias e casos sobre a bossa nova” é um documentário de Paulo Thiago, que traz Roberto Menescal e Carlos Lyra como contadores da história. “Vinicius”, documentário de Miguel Faria Jr., é sobre o poeta e grande parceiro de Tom Jobim. O musico Roberto Menescal O legado da bossa nova O trio BossaCucaNova “Noites tropicais”, livro de Nelson Motta, conta os bastidores da música popular brasileira. Na Contramão da Saudade O Globo 4 Festa de arromba Botinhas coloridas, calças justas e guitarras: a moda que agradou o Brasil A jovem guarda é uma geração musical desmerecidamente rejeitada pelo público intelectual. O movimento nasceu depois de um passeio de Roberto Carlos pela música, sem fixar raízes em nenhum grupo. Mas em 1963, Roberto apareceu com o rock “Splish, Splash”, música que dava nome ao seu disco. No ano seguinte, lançou “Parei na Contramão”, que abriu as portas para o estouro que foi “O Calhambeque”. A partir daí, surgiu o programa “Jovem Guarda”, exibido pela TV Record. A atração foi catalizadora de um movimento que pôs a música brasileira em sintonia com o fenômeno internacional do rock e deu origem a toda uma nova linguagem musical e a novos padrões de comportamento. Entravam em cena as guitarras elétricas, a idéia de uma música exclusivamente jovem, com signos jovens e toda uma constelação de artistas: Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Eduardo Araújo, Martinha, Waldirene, Leno & Lílian, Deny e Dino e grupos como Golden Boys, Renato & Seus Blue Caps, Os Incríveis, Os Vips e outros. Em plena ditadura militar, esse pessoal chegou sem a menor pretensão de enfrentar o regime, de cantar a realidade do Divulgação Os Vips: Márcio e Rodolfo país e, muito menos, fazer músicas para serem lidas nas entrelinhas. - À princípio, as músicas da jovem guarda nunca tiveram um compromisso com a realidade brasileira ou qualquer questão mais profunda. E foi um “tratamento de choque” para a MPB e para a intelectualidade esquerdista brasileira da época. As guitarras eram símbolo de alienação e imperialismo .– comenta o pesquisador musical Rodolfo Vicentin. Além de Roberto e Erasmo, amigos que se consagraram como parceiros, e Wanderléa, que se uniu aos dois na apresentação do programa de TV, outros cantores da jovem guarda também fizeram sucesso. A maioria dos artistas, ao contrário do pessoal da bossa nova, era do subúrbio do Rio de Janeiro. Mas isso não impediu que o pessoal estivesse atento à música que estava sendo feita lá fora. Segundo Marcelo Fróes, autor do livro “Jovem Guarda em Ritmo de Aventura”, a consolidação musical dos “ Beatles” é o motor para a formação de grupos musicais, como “ Os Vips” e “ Golden Boys”: - Antes já tínhamos bandas, como “The Jordans”, “The Jet Blacks”, ‘The Divulgação Renato e seus Blue Caps Clevers” e “Renato e seus Blue Caps”, mas naturalmente a explosão da Beatlemania estimulou que jovens montassem bandas e sonhassem ser reis do iê iê iê – afirma, referindo-se ao modo como o quarteto inglês ficou conhecido no Brasil. Na verdade, a origem do movimento se dá na segunda metade dos anos 50, quando começaram a chegar no Brasil os discos de Elvis Presley e Bill Halley e de programas como “ Hoje é dia de rock”, da Rádio Mayrink Veiga, “Clube do Rock”, na TV Rio e “Crush em Hi-Fi”, na TV Record. No fim da década, surgiram os primeiros ídolos do rock brasileiro. A cantora paulista Celly Campello embalava hits como “Estúpido Cupido”, Sérgio Murilo cantava “Broto Legal”, além de outros hoje pouco conhecidos, como Tony Campello (irmão de Celly) e Meire Pavão. - A cena roqueira vinha rolando desde 1956 no Brasil, o rock já estava aqui desde que nomes como Nora Ney, Cauby Peixoto e Agostinho dos Santos fizeram as primeiras gravações de rock no Brasil – conta Fróes. Esse pessoal representava o rock mais voltado para baladas românticas. Enquanto isso, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Tim Maia e seus amigos ouviam o rock que era o contraponto disso. Os álbuns de Elvis Presley e Chucky Berry faziam a cabeça daqueles meninos, que até formaram um grupo: “Sputinks”. Essa formação, porém, acabou no mesmo ano. A Bossa Nova estava surgindo e ofuscou o brilho dos roqueiros, conquistando até Roberto Carlos, que chegou a gravar um disco “à la” João Gilberto. Depois um tempo amargando o esquecimento, Roberto encontrou seu caminho. O rock da Jovem Guarda foi marcado pelo preconceito da esquerda intelectual. Para Rodolfo Vicentin, esse preconceito existe até hoje: - O preconceito que existe hoje acontece devido ao caráter simplório das composições e devido ao rumo que a maioria desses artistas deram às suas carreiras. Mas acredito que a maioria das pessoas não tem noção do impacto da jovem guarda, pois ela influenciou decisivamente a música popular brasileira e está em todos os lugares. A principal herança Na Contramão da Saudade O Globo da jovem guarda pra gente é a singeleza das composições. Não é à toa que as composições dessa época foram e são regravadas por gente de muito prestígio- garante ele. Marcelo Fróes discorda. Segundo ele, o que ocorre é uma veiculação negativa do movimento nos jornais mais lidos do país: - Existe sim certo patrulhamento por parte de uma minoria de críticos musicais que escrevem para os jornais mais lidos, tão somente. O público sempre gostou, e as novas gerações conseguem escapar à esse boicote que a crítica sempre praticou e buscam informações na Internet, livros etc. O programa “Jovem Guarda” terminou em 1968, devido à falta de patrocinadores e a Roberto ter decido enveredar pela música romântica depois de ganhar o Festival de San Remo, na Itália. A partir daí, cada um seguiu o seu caminho. Alguns acompanharam o “Rei” no romantismo, outros continuaram no rock, outros ainda entraram para a música brega e para a sertaneja. Este ano, um show em comemoração aos 50 anos da Bossa Nova pretende unir três gerações musicais diferentes, mas que sempre estiveram ligadas.. Programado para o dia 5 de agosto, o encontro entre Caetano Veloso e Roberto Carlos, no Divulgação Curiosidades 5 A moda da jovem guarda Conheça as gírias que viraram moda entre os jovens O movimento dos anos 60 também ditou moda entre fãs da “jovem guarda”: os fãs. Conheça um pouco desse figurino descolado. Acender: Excitar Calças: Jeans (Lee), saint-tropez, boca-de-sino. PreferênBicho: o mesmo que cara, cia: em duas cores e colada. pessoa Camisas: de malha e mangas compridas, tudo muito Broto: garota, rapaz, na- colorido. morado, namorada. Saias: mini-saias, vestidos tubinhos, também muito colado. Carango: carro Coruja: pessoa convenci- Cintos: fivelas da, orgulhosa Sapatos: Botas estilo “beatles”, cano alto e botinhas coEmbalo: diversão, euforia loridas. Divulgação Papo-firme: bacana, moderno Pinta: aparência, jeito Pra frente: moderno, avançado Cuca: cabeça Morar: entender, morou? Divulgação Roberto Carlos canta no programa Jovem Guarda Teatro Municipal do Rio de Janeiro, para cantar músicas de Tom Jobim promete marcar época. - Faz sentido, afinal no começo de sua carreira, antes mesmo de gravar seu primeiro disco, Roberto dividia seu amor pela música com o rock’n’roll, com os boleros e com a bossa nova. O maior expoente da Jovem Guarda com o grande mentor intelectual da Tropicália – afirma Fróes. Elis Batonelli Wanderléia, Roberto e Erasmo mostram a moda da jovem guarda A turma da jovem guarda Na Contramão da Saudade O Globo 6 Tropicalismo: a mistura brasileira “Tropicália, a obra” O ano é 1967, no início uma palavra, Tropicália, e um encontro: Hélio Oiticica, um agente provocador das artes brasileira, e Caetano Veloso, um cantor jovem disposto a pôr suas idéias em circulação. Em abril, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebia a exposição Nova Objetividade Brasileira, e nela Oiticica apresentava a instalação Tropicália, um ambiente em forma de labirinto com plantas, areia, araras, um aparelho de TV e capas de Parangolé. Hélio Oiticica em 1964, ano do golpe militar no Brasil, se torna passista da Mangueira e passa a conviver intensamente com a comunidade do morro. Nos anos seguintes, reivindica uma arte que promova uma relação com aquele que a observa. Isto é, a grande arte é feita quando se constrói relações com quem a vê, e todas as diferenças, sobretudo de classe social, são abolidas. Divulgação Maria Bethânia disse isso ao irmão Caetano, em 1967, não sabia que estava influenciando um dos movimentos que transformariam o cenário cultural brasileiro. Em entrevista à revista Bravo, Caetano contou como teve o primeiro contato com o termo Tropicalismo: “Ouvi primeiro o nome Tropicália, sugerido como título para minha canção, do cineasta Luís Carlos Barreto, que me ouviu cantá-la em São Paulo e se lembrou do trabalho de um tal Hélio Oiticica. Resisti a pôr em minha música o nome da obra de um cara que eu nem conhecia”. Caetano Veloso e Gilberto Gil Divulgação Caetano vestindo “Parangolé” (capa) de Oiticica “Tropicália, a música” “Você está por fora, Caetano. Veja o programa do Roberto Carlos. Ele é que é bom. O resto está ficando um negócio chato, tão chato que prefiro músicas antigas. Largue esse violão e cante com uma guitarra. O violão é muito pouco para você! Escolha um instrumento que tenha o mesmo grito, que tenha o seu gosto.” Quando Caetano Veloso e Gilberto Gil causaram grande impacto em apresentações no III Festival de Música Popular da TV Record, no ano de 1967. Ali, foram lançadas as bases para o Tropicalismo. Em maio de 1968, começaram as gravações do álbum que seria o manifesto musical do movimento, do qual participaram artistas como Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé - além dos poetas Capinan e Torquato Neto e do maestro Rogério Duprat. A resistência de Caetano com o termo tropicalismo não durou muito tempo, depois da canção, um LP: “Tropicália ou Panis et Circensis”, foi lançado em 1968. Enquanto o grupo da “Canção de Protesto” negava a entrada de qualquer elemento da cultura pop e a “Jovem Guarda” de Wanderléia, Erasmo e Roberto fazia canções inspiradas no sucesso do rock inglês e norte americano, os tropicalistas se dedicavam a inovar radicalmente a estética da música brasileira. Eles chegaram para encaminhar a música popular para outra direção, derrubando tudo que estivesse pela frente. Assim como nos anos 60 a Bossa Nova se associou ao Jazz norte americano, Caetano propunha que o tropicalismo se adaptasse ao rock. No esforço de modernização, Caetano e Gil traziam as guitarras elétricas do iê-iê-iê importado e misturavam com ritmos mais tradicionais. Sincrético e inovador, aberto e incorporador, o Tropicalismo misturou rock, bossa nova, samba, rumba, bolero e baião. Sua atuação quebrou as rígidas barreiras que permaneciam no País: Pop x folclore, Alta cultura x cultura de massas e Tradição x vanguarda. Essa ruptura estratégica aprofundou o contato com formas populares ao mesmo tempo em que assumiu atitudes experimentais para a época. “A gente se opunha ao nacionalismo, porque a esquerda era nacionalista e a gente se opunha a essa atitude da esquerda que se opunha a nós. Eles achavam que nós devíamos procurar as raízes brasileira. Nós queríamos fazer o contrário do que a Bossa Nova fazia, virar ela pelo avesso e pegar tudo que ela tinha precisado botar de parte para poder se afirmar como estilo”, diz Caetano Veloso. O nacionalismo de esquerda vaiou os tropicalistas, Ao passo que eles responderam com retóricas e iradas frases de efeito. Segundo o ministro da Cultura Gilberto Gil, “O Tropicalismo surgiu mais de uma preocupação entusiasmada do que propriamente um movimento organizado.” Eles Aderiram ruidosamente a ruptura dos padrões comportamentais patriarcais e rejeitaram a esquerda brasileira, que colocava como prioridade a tomada do poder, e estabelecia como secundária a reflexão sobre a mudança de valores, a chamada “Revolução sexual”. Com o visual hippie e o desejo de se alinharem aos rebeldes de maio de 68 em uma avassaladora “Revolução Cultural”, os tropicalistas se indispuseram tanto com a ditadura quanto com a esquerda nacionalista. Moda nas palavras de Caetano Veloso, era o tom do momento. Criticado por levar guitarra elétrica para os festivais, por usar cabelos compridos e roupas de mulher e ligado à contracultura norte-americana, tornou-se referência para a própria cultura de Na Contramão da Saudade O Globo Divulgação protesto brasileira. Em 1968 os movimentos culturais fervilhavam no Brasil, até esta data, intelectuais e movimentos de esquerda podiam agir livremente, mesmo que com pequenos problemas com a censura. Para o jornalista Zuenir Ventura, 68 foi um ano “que não terminou”. Entre os inúmeros acontecimentos marcantes do ano estão a revolta dos estudantes em Paris, a passeata do 100 mil no Rio de Janeiro liderada por artistas e intelectuais, a decretação do AI5 e o lançamento do LP Tropicália ou Panis et Circenses, síntese de um movimento musical revolucionário que iria mexer com a cabeça de muita gente. Neste mesmo ano, com o crescimento da oposiçã, o general Costa e Silva, presionado pela extrema direita, respondeu com o ato institucional n° 5, que decretava o fim das liberdades civis e de expressão. Divulgação Contexto histórico brasileiro - Os militares tomam o poder em 31 de março de 1964. - Castello Branco assume a presidência do país, se tornado o primeiro de uma série de generais-presidentes ditatoriais. Gal Costa e Caetano Veloso dor recomendados pelo movimento fazem total sentido em um mundo cada vez mais multicultural e interativo regido pela globalização e pela internet. Quarenta anos depois, o tropicalismo continua cada vez mais atraente. Para Caetano, isso mostra que a questão foi e permanece a mesma, de 1967 a 2008. A busca e a necessidade de invenção: “’Uma criança sorridente, feia e morta estende a mão’, como diz a letra da canção Tropicália. Porque a América Latina não tem futuro, a língua portuguesa não tem futuro, a África não tem futuro: então temos de inventar tudo”. E o mundo parece agora ter o desejo de imaginar qual futuro poderá ser esse. Juliana Ceccon Capa do LP Tropicália Os tropicalistas foram expulsos pela ditadura que destruiu a hegemina cultural que a esquerda mantinha desde o governo Jango. Assim, artistas que não tinham colocado como prioridade a contestação política tornaram-se da noite para o dia mártires da brutalidade dos militares. 40 anos de tropicalismo Na área cultural o ambiente internacional já sabe que existe uma produção de qualidade e originalidade feita nos trópicos. Hoje, a Tropicália interessa ao mundo. A colagem de gêneros e a participação do especta- 7 - Até 1968, intelectuais e movimentos de esquerda podiam agir livremente, com pequenos problemas com a censura. - A produção cultural do país estava intensa: peças do Teatro Oficina, do Opinião e do Arena, canções de protesto, músicas da Jovem Guarda, passando pelos filmes do Cinema Novo e pelas artes plásticas. Em todas as áreas, a política fazia-se presente. - Em 1968, o governo decreta o AI-5, que proibia de vez a liberdade de expressão e os direitos civis. - A partir de 1967, houve confrontos entre artistas nacionais: os nacionalistas de esquerda e os vanguardistas do tropicalismo. - Em 1984 a democracia volta a ser o regime político brasileiro.’ Na Contramão da Saudade O Globo 8 “Esse tal de Rock’n’Roll” A inspiração veio do exterior, mas os artistas interpretavam de maneira própria O rock brasileiro da década de 80 ou, como muitos preferem dizer, o pop rock nacional foi batizado pelo cantor Nelson Motta de BRock. As letras das músicas falavam dos amores, perdidos ou bem sucedidos, e de temáticas sociais. Os artistas do rock nacional marcaram aqueles anos com suas roupas coloridas, cabelos armados, caras e bocas: os elementos que caracterizaram o tempo do brega. O sucesso do conjunto carioca Blitz abriu portas para os outros grupos que só ensaiavam nas garagens. Foi em 1982 que o trio de Evandro Mesquita, Fernanda Abreu e Lobão estourou com a música “Você não soube me amar”. E o Circo Voador, berço de várias bandas consagradas na época, revelou Paralamas do Sucesso, Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens e Barão Vermelho. O baterista da Bliz William Forghieri explica o que acredita ter sido a fórmula de sucesso da banda. - Acho que as músicas alegres, as vozes femininas e o jeito carioca do Evandro (Mesquita, vocalista da Blitz) de ver as coisas, com humor, nos ajudaram a tentar fazer o povo esquecer os problemas sociais daquela época, revelou. Divulgação A banda carioca Blitz Alguns cantores ficaram conhecidos pelo tom de brincadeira com que interpretavam as canções. O Brasil vivia a fase final da ditadura militar e o rock virou hino da juventude bem-humorada e cansada dos tempos difíceis. Um exemplo foi o Mas foi de Brasília que veio uma das bandas que perpetuou o pop rock brasileiro até os dias de hoje. Em 1980, Renato Russo, Fé Lemos e Flávio Lemos se juntaram para criar o Aborto Elétrico, mas a banda não foi adiante. No ano em que o conjunto se separou surgiu a grande e famosa Legião Urbana. Dapieve diz que o que perpetuou a Legião foram as letras escritas por Renato Russo. - O Renato fez letras que pudessem sobreviver ao tempo, sem se prender a fatos específicos. Em alguns momentos ele se relaciona com Brasília, mas se a pessoa não conhece a cidade, a canção vai continuar fazendo sentido. As músicas da Legião Urbana ainda são atuais, comentou. Ainda do Distrito Federal, nasceDivulgação grupo paulista Ultraje a Rigor, que tratava os problemas do país com ironia e deboche, como na letra de “Inútil”. Outras bandas, porém, como os Engenheiros do Hawaii, chamaram a atenção pela ácida crítica aos padrões da sociedade de então. O jornalista e crítico musical Arthur Dapieve explica porque o ritmo se transformou em forma de manifestação cultural. - O rock é a trilha sonora adequada para o processo de democratização. As letras vão tratar de liberdade civil, sexo, drogas e rock’n’roll, o que não combina com o que uma ditadura prega. Então ele dá a brecha para um Estado que está começando a rachar, diz. As influências musicais eram as mais diversas, desde o rock inglês e americano até a jovem guarda, passando pelo new age, punk e reggae. Os Paralamas do Sucesso, por exemplo, misturaram o rock inglês com o reggae e ritmos africanos no disco “Selvagem?”, de 1986. Músicas como “Alagados” e “A Novidade” mostraram um som considerado revolucionário por público e crítica daqueles anos. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Brasília foram os que deram o tom e revelaram as maiores bandas de pop rock. Foi de São Paulo que surgiu o maior fenômeno de vendas das bandas dos anos 80. O RPM, liderado pelo carismático Paulo Ricardo, quebrou recordes de vendagens de discos e de shows no país. O segundo disco da banda, “Revoluções Por Minuto” vendeu 2,2 milhões de cópias. O vocalista Renato Russo ram nomes como Plebe Rude e Capital Inicial. Algumas bandas, como o Capital Inicial, não chegaram a estourar nos anos 80, mas faria maior sucesso tempos depois. Outras, no entanto, morreriam junto com a década perdida. Priscilla Caetano Divulgação Divulgação A banda paulista RPM O sucesso do Capital Inicial viria mais tarde