Ingesta líquida e o Paciente Renal Crônico

Propaganda
Ingesta líquida e o Paciente Renal Crônico: A Restrição do Essencial e o Essencial da
Restrição, a clínica do excesso.
Bárbara Breder1
Este trabalho surge do diálogo estabelecido sobre a clínica com pacientes
internados em hospital geral, em virtude de algumas patologias que exigem a
participação do indivíduo no processo terapêutico, sob pena de fracasso. Ou ainda,
patologias que nos levam a reflexão da própria relação entre o sujeito e seu corpo.
Estamos nos referindo, por exemplo, a pacientes reanais crônicos e a dificuldade ou
recusa em observar a restrição hídrica, colocando em xeque o objetivo terapêutico, bem
como a própria vida do paciente. Observamos este traço presente também em outros
quadros, como o paciente diabético que se recusa a abrir mão do consumo de alimentos
proscritos em sua dieta. Situação bem semelhante na relação estabelecida com a comida,
nos casos de pacientes que se submetem a cirurgia bariátrica e mantém a compulsão
alimentar, chegando ao ponto de pôr a própria cirurgia e vida em risco. Estes quadros
nos mostram o empuxo à morte, ou ainda nos remete a relação freudiana da articulação
entre pulsão de vida e pulsão de morte, de forma que a última exerce nestes casos, uma
força centrípeta, a ponto de levar o sujeito a flertar com a morte.
1
Psicóloga – UFF
Mestre em Ciência Política, eixo Poder e Subjetividade. PPGCP-UFF
Doutoranda PPGP – UFF
Professora do curso de psicologia da Universidade Estácio de Sá
Professora do Curso de Especialização em clínica psicanalítica - UNESA
Tais ações do paciente são lidas pelo olhar médico como atitudes que resistem
ao tratamento, configurando-os, muitas vezes, como “paciente problema”. Como se de
alguma forma voluntaria, ou voluntariosa e irracional, tais indivíduos resistissem ao
plano terapêutico proposto. O que nosso olhar, subsidiado pela óptica psicanalista é um
equivoco. Pois compreendemos que a ética do bem-viver, não nos balisa – nós seres
falantes - em nossa relação com o mundo. Pelo contrário, sendo o aparelho psíquico
erigido em um terreno conflituoso, fruto de disputa entre duas lógicas distintas e
irreconciliáveis, não estamos orientados somente pela racionalidade, pela dimensão
consciente. Há, como formula Freud, outra instância que nos habita e nos retira do
regime puramente biológico com a natureza e o mundo, trata-se, como sabemos da
presença do inconsciente. O que nos leva a proposição lacaniana em ressaltar a
unicidade individual como precária, ao ponto de compreender a relação de formação da
identidade corporal como ficcional. Ou seja, o que a psicanálise nos ensina é que a
relação estabelecida com o corpo e propriamente sua formação, não responde a uma
lógica natural previamente dada. E estes casos rapidamente apresentados, nos fazem
recorrer à fantasia, como propõe Lacan, para compreender a relação ficcional de criação
da imagem corporal, bem como a relação com a dita realidade.
O que este matema [S barrado losango objeto a] nos indica (além de outras
formulações possíveis) é que a relação do sujeito com seu corpo está para além da
dimensão orgânica, a decantação precipitada da imagem corpórea, na identificação
especular, revela o caráter ficcional do corpo, que não está mais circunscrito somente na
lógica biológica como compreende o olhar médico. Pois, há um investimento libidinal e
subjetivo neste corpo que passa a habitar, também, outro campo, o simbólico; que, por
sua vez, serve de guia para as identificações no regime imaginário. Neste sentido, cada
corpo além de veias, artérias, órgãos e músculos, possui uma história, fruto de um
esforço de significação eterno.
Tal processo está vinculado à fantasia, que promove a abertura do mundo para o
sujeito, ao passo que estabelece um ponto de fixidez, uma moldura através da qual o
sujeito lança sua mirada. Ou seja, no mesmo momento em que a fantasia estrutura uma
espécie de ponte com a realidade, a forja. Assim, separação entre mundo interno e
mundo externo se esvai, na medida em que é a realidade psíquica opera: ideia
materializada na banda de Moebius, que leva a Lacan formalizar o conceito de êxtimo,
aquilo que aparentemente é externo, me forma internamente. A fantasia é então, a
matriz que nos articula com o mundo e a realidade, ao passo que os forma. Entretanto, é
preciso ressaltar, que esta construção não se estabelece de forma voluntária, pois
estamos vinculados de forma intrínseca a um ponto a partir do qual temos acesso
ficcional à realidade.
E é justamente a fantasia, enquanto núcleo estruturante que
modera ou regula a relação do sujeito com o gozo e o desejo.
Se o objeto a enquanto causa de desejo é um objeto que não circula, e que
ninguém pode se apropriar, é também uma parte do corpo, mais precisamente um ponto
do corpo que Lacan define como ponto de gozo. Este objeto está em relação direta com
a emergência do sujeito barrado, na medida em que a operação de ascensão deste
promove a caída de um resto real, propriamente o objeto a. Assim, se examinarmos a o
losango do matema, perceberemos a relação de junção e disjunção do sujeito e objeto a,
este que é, como adverte Lacan, dimensão do sujeito mesmo. Portanto, é o ponto onde a
fantasia fornece ao sujeito a continuidade ilusória de uma identidade.
Há a fragmentação do corpo em pedaços, que nunca poderão formar uma
unidade, a operação de torná-los totalizados não é possível. A produção do objeto a
implica que o sistema significante se aproprie do corpo e o fragmente de modo
particular, onde se articulam as zonas erógenas freudianas, abrindo lugar para a emersão
do desejo. Na medida em que o objeto a, real está vinculado com o desejo como sendo
sua causa, ou seja, aquele que está antes do desejo, e não depois, como sua meta.
Entretanto, como Rabinovich nos adverte, trata-se da causa de desejo não do sujeito, e
sim do Outro barrado. O objeto-causa é o sujeito mesmo, situado em certa relação com
o desejo do Outro. Daí a grande máxima que o desejo é o desejo do Outro. Entretanto, o
objeto a também está vinculado com outra função além desta, a saber, assume valor de
gozo.
Este valor de gozo está diretamente relacionado com a lógica da castração e a
perda da relação imediata com a natureza. Um dos grandes trunfos freudianos foi a
formulação da perda da naturalidade do instinto sexual, indicando que a relação do
homem com a natureza é perturbada pela imersão no campo da linguagem. O enfoque
lacaniano do objeto real como impossível lógico, está posto no sentido em que este
objeto faz o esforço de suprir o instinto, que não há, abrindo a dimensão da pulsão. Ou
seja, se o objeto a real possui valor de gozo, é na medida em que, o gozo todo do
complemento sexual não existe. Tendo em vista a instauração da castração e a
subsequente perda imposta. Lacan introduz uma importante diferença: o que se recupera
desta perda (operada pela castração) é recuperado como gozo, no nível do mais além do
princípio de prazer, e é justamente esta ganância de gozo que deixa o sujeito aderido,
fixado ao que Lacan chamará de mais gozar. Vale ressaltar que o inconsciente, em sua
dinâmica econômica, é inseparável a esse valor de gozo.
E é precisamente o objeto a a confluência entre desejo e gozo. E a fantasia,
ponto de articulação entre o simbólico e o real, ou ainda o inconsciente e a pulsão, que
nos permite fazer anteparo ao gozo. Marco Antônio Coutinho Jorge é preciso em nos
advertir que aquilo que Freud concebe como pulsão de morte, é o que Lacan chama de
gozo. Neste ponto paramos para tecer uma costura com os casos apresentados. Neles o
flerte com a morte pode agora ser compreendido como imperativo ao gozo, portanto, a
fantasia emerge como artifício no desafio de lidar com ele.
“Há um vetor que rege nosso psiquismo. Para Freud, esse vetor
único, fundamental, se chama pulsão de morte. Na leitura que faz
de Mais Além do Príncipio do Prazer (1920), Lacan afirma que
toda pulsão é pulsão de morte. Freud disse exatamente a mesma
coisa com outras palavras.
Felizmente, muitos de nós não vivemos submetidos a esse
vetor, que, por definição, é mortífero. Alguma coisa acontece que
nos permite lidar de uma forma diferente com esse alvo da pulsão
de morte: o gozo. Essa alguma coisa se chama fantasia”. (Marco
Antônio Coutinho Jorge, 2012).
Portanto, compreendemos que a fantasia é aquilo que faz proteção ao gozo
mortífero que nos habita. Porém, estes fragmentos de casos apresentados nos levam a
questionar a hipótese de que este vetor mortífero está se fazendo premente. A ponto
de nos questionarmos se tais atos não se aproximariam a de um suicídio velado, na
medida em que o limite do flerte com a morte se estende a tal ponto de colocá-los em
perigo. Portanto, a frase de Lacan “só o amor pode fazer o gozo ceder ao desejo” nos
convida a investir na relação transferencial e, no seu manejo, como via privilegiada
de trabalho, ao permitir ceder lugar, através da escuta clínica, à configuração
psíquica peculiar que opera. O desafio é permitir o movimento de báscula entre amor
e gozo, isto é entre os polos do matema da fantasia, em ultima instância, dar lugar ao
desejo.
Referências Bibliográficas
COUTINHO, Jorge: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. VOL.2 A clínica
da fantasia; ZAHAR, Rio de Janeiro 2010;
DERRIDA, Jacques: “Fazer justiça a Freud: A história da loucura na era da
psicanálise”. In: Derrida e Foucault 2001.
FOUCAULT, Michael: A Verdade e as Formas Jurídicas, NAU, Rio de Janeiro, 1996;
____________ Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 29° reimpressão, 2011;
____________ O Nascimento da Clínica, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2011;
FREUD, S. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Escritos sobre a Psicologia do
Inconsciente, Vol.1, Imago, Rio de Janeiro, 2004;
___________ Além do princípio do prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 1980;
___________ Reflexões sobre o tempo de guerra e morte (1915). Rio de Janeiro:
Imago, 1980;
Download