A escuta de orientação analítica na psicose, de que sujeito se trata

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A escuta de orientação analítica na psicose, de que sujeito se trata?
Nancy Greca Carneiro
Este encontro de Psicopatologia Fundamental toma o pathos da violência como tema. Eu
tomarei da loucura, objeto das mais persistentes, organizadas e duradouras formas de
violência institucional da história do homem, a promessa de felicidade que lhe acena este
século XXI. Objeto das utopias políticas, permeando a lógica da fantasia em sua dupla
dimensão imaginária e simbólica, a promessa de felicidade marca presença no espaço
público na proposta de fazer circular nas ruas, nas escolas e nos demais espaços sociais,
aqueles que sistematicamente foram dele excluídos. Viganó assim expressa o sonho de
Baságlia: construir uma cidade que torne possível a vida ao louco e ao diferente. Será este
o tempo, em que, sob o signo da tolerância, aqueles sujeitos na periferia da Curva de
Gauss poderão aceder ao status da invisibilidade exigida para a livre circulação? Aos
loucos se acena com a promessa da normalidade.
Este artigo é um dos efeitos de um projeto de pesquisa sistemática, situado no espaço
universitário, que busca acompanhar o processo de implantação da reforma psiquiátrica
no Estado do Paraná. O discurso psiquiátrico (CID - 10; DSM-IV) que reafirma cada vez
com maior convicção as perturbações mentais como transtornos de natureza biológica,
encontra-se hoje, esvaziado de seu sentido moral e estigmatizante e o diagnóstico não se
apresenta na função de imputação de culpa, significando antes, ao portador de transtorno
mental, que ele tem um transtorno que como outro qualquer necessita de tratamento. Seu
efeito mais direto tem sido, antes de uma suposta convivência, uma normopatização dos
sujeitos, projeto que se expressa em duas frentes: extender o nominalismo classificatório a
todos os modos de gozo e normalizar os modos de gozo singulares de cada sujeito.
Dentre aqueles que buscam os Serviços de Saúde Mental , os pacientes com graves
patologias psicóticas clássicas representam menos de 20%, e custam aos morosos
serviços de saúde mental quase 70% das verbas disponíveis. Os modelos de atendimento
inspirados no Projeto Psicossocial ainda sob o impacto das práticas manicomiais acabam
por oferecer a todos, num viés mais ainda puramente disciplinar, um tratamento sem fim,
dispendioso e cronificante. Ao considerar o modelo de atenção psicossocial que se instituí
nos vários dispositivos de atenção à saúde mental, a psicanálise se indaga qual a inserção
da clínica neste processo e em particular da clínica de orientação psicanalítica. Os
psicanalistas têm identificado nestes serviços dois graves entraves à felicidade prometida:
o projeto psicossocial ao se ater à promessa de resgate da cidadania do sujeito psicótico,
acaba por fracassar em identificar nas diferentes estruturas destes sujeitos, diferentes
direções de tratamento; a oferta de uma clínica que, assentada ora no tratamento
farmacológico ora no projeto terapêutico da inserção, acaba por, definitivamente, excluir
qualquer subjetividade. Fenômenos que apontam para a morte da clínica e à exclusão do
sujeito.
A intenção deste breve texto é a de formularmos algumas boas perguntas para que se
encaminhem respostas quanto às diferentes versões da felicidade, colocando-nos a
questão: de que sujeito se trata nas psicoses? Como sustentar uma clínica do sujeito,
constituída na prática privada do psicanalista junto a neuróticos, que seja passível de ter
efeitos numa clinica das psicoses?
Se as barreiras entre o normal e o patológico haviam sido suspensas pela psicanálise no
início do século XX a partir da conhecida referência de Freud “nada encontrei em meus
pacientes neuróticos que não haja encontrado também em mim” e as neuroses integradas
nos processos normais do psiquismo, o mesmo não aconteceu com as psicoses. Firmada
sua ação no campo das atividades liberais a psicanálise mantém-se bastante ativa no
sentido de produzir uma interlocução importante com a psicopatologia do século XX, seja
utilizando as nosografias clássicas (Kraepellin), seja oferecendo seus conceitos teóricos
fartamente utilizados por várias modalidades de psicopatologias (de Bleuer a Henry Ey).
Na prática, no entanto, o psicanalista em geral se manteve distante das incursões
realizadas no interior das instituições psiquiátricas e das políticas de Saúde Mental. Na
atualidade, em função da emergência de novas formações discursivas geradas pela
desinstitucionalização da loucura, pela produção de medicamentos cada vez mais
impactante sobre a atividade delirante e principalmente, apoiada pelas contribuições de J.
Lacan acerca das psicoses, a psicanálise é convidada a participar. A multiplicidade das
experiências de psicanalistas na área da Saúde Mental reflete-se em vários âmbitos deste
campo como: os efeitos terapêuticos breves, os efeitos terapêuticos da psicanálise em
relação às psicoses, a identificação de novas formas clínicas que desafiam as abordagens
tradicionais e finalmente, a produção de uma nova ética nas práticas em Saúde Mental.
Como poderão psicanalista operar com os efeitos dos deslocamentos causados pela
substituição do discurso do Mestre (figura unificante do amo) para o discurso da Ciência
(figuras do Outro em múltiplas insígnias), efeitos de um deslocamento do alienismo à
psiquiatria e desta ao projeto psicossocial? O desejo insiste e vamos logo suspendendo os
obstáculos iniciais impostos por um setting criado segundo coordenadas espaço –
temporais, que situam o psicanalista como suporte da transferência, sujeito de
interpretações e construções produzidas no interior de um modelo teórico centrado na
constituição do inconsciente recalcado.
Em sua topologia do inconsciente, Freud sustenta o tratamento primário dado às
representações de afetos (constituição pulsional) e às representações de coisas, objetos
e palavras (imagens, idéias, palavras e pensamentos) e as orienta a partir uma circulação
econômica de cargas quantitativas regidas pelo princípio do prazer cuja essência é
inscrever-se dentro de seqüências temporais (fases do desenvolvimento), encontrando os
seus destinos no processo de recalcamento, nas identificações e nas sublimações. Desta
forma as representações do inconsciente encontram, a um só tempo, a sua referência
tópica (Cs, Pcs e Ics) e temporal (psicogênese). Mas se o símbolo surge lá onde algo fora
recalcado e isto se demonstra nas neuroses sob a forma de retorno do recalcado, como
poderá surgir no nível da consciência, como no caso das psicoses?
Sabe-se que o sujeito em Psicanálise é o sujeito do inconsciente e se institui por efeito da
palavra e aquilo que se institui pela palavra pode ser por ela afetado. Lacan o define: o
sujeito é um significante para outro significante. Desta forma o sujeito não é nada antes de
ser captado pela alienação significante. É a articulação simbólica que, justamente, Freud
revelou como necessária na constituição do sujeito. Ora, introduzir a questão do sujeito a
partir da Metáfora Paterna e do Nome do Pai permitiu situar o campo estrutural da neurose
e da psicose. Em seu Seminário Livro 3 – As psicoses1 e em “De uma questão
preliminar.....”2 Lacan estabelece que: da ausência do pai como operador lógico e
estrutural decorre a foraclusão do nome do pai e a ausência de significação fálica. Assim o
expressa Lacan “aquilo que não foi simbolizado retorna no real”.
1
2
LACAN, J. O Seminário – Livro 3 As Psicoses (1955 – 1956). Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor Ltda, 1985.
LACAN, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” in Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor Ltda, 1998.
Como se fazer interlocutor de um sujeito em potencial mas foracluso no ato? Trata-se
pois de como pensar a “forma tipo” determinada por Lacan em “Uma questão preliminar....”
como o encontro com Um Pai, com as “formas clínicas” que abundam na literatura como mania,
melancolia, erotomania etc. E ainda, como pensar os novos sintomas (toxicomanias, passagens
ao ato, suicídio) a mercê das mudanças do Outro? Embora desde “De uma questão
Preliminar....”, Lacan apontasse para variações em relação à forma paradigmática de
desencadeamento, são cada vez mais freqüentes estas variações, em que uma série de formas
clínicas se apresenta de modos atípicos e nos quais estão ausentes os fenômenos de
linguagem. Na cura estes sujeitos tentam construir algo que funcione como fantasma porém de
um modo que não deixa de ser estritamente imaginário. Trata-se antes que do encontro com Um
Pai, do encontro com um gozo enigmático no Outro por falta de significação fálica.
Assim, pode-se reconhecer nos fenômenos que designamos como foraclusão do Nome
do Pai, as alucinações e os transtornos da linguagem (eco do pensamento, automatismo mental,
língua fundamental) e, nos delírios que envolvem a sexualidade e o corpo, as passagens ao ato
nas quais não media a palavra e em algumas formas do suicídio e mortificação do gozo, a
ausência da significação do falo.
Causado pelo imperativo lacaniano de “não recuar diante das psicoses” e sabendo não se
tratar aqui de fazer escutar o sujeito de direito ou o sujeito do suposto saber, cabe-nos
indagar: de que sujeito se trata quando nos situamos como analistas diante do psicótico
cujo discurso precisa primeiro ser situado? Se o delírio é um saber, não suposto, mas
realizado pelo próprio sujeito como sua referência ao gozo, não se trata apenas de
introduzir o sujeito da palavra mas de oferecer uma escuta que o acompanhe no encontro
de suas soluções posto que o seu caminho é autoconstruído e, impõe que possamos
segui-lo no seu trabalho subjetivo. Trata-se antes da questão do “produzir um sujeito” o
que implica a função da castração ou o “ponto de falta que está indicado no sujeito”3.
A possibilidade de extender a psicanálise a casos segregados pelo discurso do mestre,
seja este político ou assistencial, e tratados pelo discurso universitário, psiquiátrico exige
trabalho. O segundo ensino de Lacan aponta para outro tratamento do gozo, mais pela
letra (ciframento) que pela significação (deciframento). A clínica borromeana ao considerar
3
MULLER, J. A. “Produzir o sujeito?” in Matemas I. Campo Freudiano no Brasil. Tradução, Sérgio Laia; Revisão técnica, Angelina Harari. Rio de
Janeiro. Jorge Zahar Editor Ltda, 1998, p 157
a polaridade entre o “sujeito do gozo” e o “sujeito do significante”, no entanto, nos leva
com sua referência ao real, a considerar o Nome do Pai como apenas uma suplência entre
as maneiras particulares de “amarração” e nos permite considerar um sem número de
casos em que o desencadeamento psicótico é atípico.
Desta forma, quando Um pai falta e, conseqüentemente, não há significação fálica, poderá
haver restauração da realidade? Lacan nos apontou algumas destas possibilidades pela
via simbólica (metáfora delirante), que permite a localização do gozo no Outro; pela
produção de objetos, que permite a deposição / separação de um gozo; e pela via
imaginária (a sobreidentificação melancólica).
A boa pergunta será então se formular: como abordar a escolha impensável de um sujeito
que faz objeção à falta a ser que o constitui na linguagem?4 Haverá uma clínica
psicanalítica das psicoses?
REFERÊNCIAS:
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar para todo tratamento possível da psicose .
In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
NANCY GRECA DE OLIVEIRA CARNEIRO
Endereço: Rua André Petrelli, 165
Curitiba – PR
CEP- 81540-330
Nota Curricular:
4
Psicanalista
Ibid, 1998, p 157.
-
Coordenadora de Cartéis da Delegação Paraná
-
Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná
-
Especialista em Psicologia Clínica pela Universidade Tuiuti do Paraná
-
Especialista em Teoria Geral dos Signos pela Universidade Federal do Paraná
-
Professora e Supervisora de Graduação no Curso de Psicologia da PUCPR e dos
Cursos de Especialização Latu Sensu em Saúde Mental, Psicopatologia e
Psicanálise da PUCPR e em Psicologia Clínica – Abordagem Psicanalítica da
PUCPR
-
Coordenadora e Supervisora de Estágios Básicos e de Estágios Profissionalizantes
do Curso de Psicologia da PUCPR
-
Membro efetivo do grupo de pesquisa aspectos psíquicos e psicosociais do ser
humano em desenvolvimento
Nome da Mesa: Transmissão e Aplicação da Psicanálise na Universidade
Coordenador propositor da mesa: Nancy Greca de Oliveira Carneiro
Expositores: Nancy Greca de Oliveira Carneiro
Rosa Maria Mariotto
Célia Ferreira Carta Winter
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