Algumas considerações sobre o conceito de “novos feridos” de Zizek e Malabou Pedro Castilho Zizek analisa novas formas de patologia subjetiva, o sujeito pós-traumático que sobrevive à sua “morte” sem ser capaz de fantasiar e integrar o trauma. Suas características são conhecidas, com base em inúmeras descrições: ausência de envolvimento emocional, profunda indiferença e desapego; trata-se de um sujeito que não está mais “no mundo”, no sentido heideggeriano de existência encarnada. Esse sujeito vive a morte como uma forma de vida: sua vida é a pulsão de morte encarnada, uma vida privada de envolvimento erótico; e isso vale tanto para o agressor quanto para a vítima. Se o século XX foi o século freudiano, o século da libido, de modo que até os piores pesadelos foram interpretados como vicissitudes (sadomasoquiestas) do libido, o XXI não será o século do sujeito pós-traumático desengajado, cuja primeira imagem emblemática, a do Muselmann dos campos de concentração, multiplica-se na forma de refugiados, vítimas de terrorismo, sobreviventes de catástrofes naturais ou da violência familiar? A característica comum a todas essas figuras é que a causa da catástrofe permanece sem significado libidinal, resiste a qualquer interpretação: Hoje, as vítimas de traumas sociopolíticos apresentam o mesmo perfil das vítimas das catástrofes naturais (tsunamis, terremotos, inundações) ou acidentes graves (acidentes domésticos sérios, explosões, incêndios). Começamos uma nova época de violência politica, em que a politica tira recursos da renuncia do sentido politico da violência [...] Todos os eventos traumatizantes tendem a neutralizar sua intenção e assumir a falta de motivação propriamente dita dos incidentes do acaso, característica essa que não pode ser interpretada. Hoje, o inimigo é a hermenêutica. [...] Esse apagamento do sentido não só é perceptível nos países em guerra, como está presente em toda parte, como nova face do social que confirma uma patologia psíquica desconhecida, idêntica em todos os casos e em todos os contextos, globalizada. 1 Na medida em que a violência dos eventos traumatizantes consiste na maneira como eles isolam o sujeito de sua reserva de memória, “o discurso desses pacientes 1 Todas as citações são de Cartherine Malabou, Les nouveaux blessés. (Paris, Bayard, 2007) p.258-9. não tem nenhum significado revelador, sua doença é uma espécie de verdade com relação à história passado do sujeito”. Na medida em que os “novos feridos” se isolam radicalmente do passado, na medida em que a ferida suspende toda hermenêutica, na medida em que, em ultima analise, não há nada a interpretar aqui, essa psique “abandonada, emocionalmente desafeiçoada e indiferente também não é (mais) capaz de transferência. Vivemos na época do fim da transferência. O amor pelo psicanalista ou terapeuta não significa nada para uma psique que não consegue amar e odiar”. Em outras palavras esses pacientes não tentam saber nem não saber; enquanto estão em tratamento, não põem o psiquiatra no papel do sujeito suporto saber. O que o terapeuta deve fazer nessas condições? Malabou endossa a posição da Daniel Wildloecher: deve “tornar-se o sujeito do sofrimento do outro e de sua expressão, sobretudo quando esse outro é incapaz de sentir o que quer que seja” – ou, como explica a própria Malabou, o terapeuta deve “reunir (recueillir) pelo outro a dor dele”2. Essas frases são cheias de ambiguidades: se não há transferência, então a pergunta não é como essa reunião/coleta afeta o paciente (será que isso lhe faz algum Bem?), e sim, mais radicalmente, como podemos ter certeza de que é realmente o sofrimento do paciente que estamos reunindo? E se é o terapeuta que imagina como o paciente deve estar sofrendo, porque, por assim dizer, ele imagina automaticamente como as perdas do paciente devem afetar alguém que ainda tem, digamos, a memoria intacta e, portanto, imagina como seria ser privado dela? E se o terapeuta interpreta a ignorância abençoada como um sofrimento insuportável? Não admira que a formula de Malabou de “reunir a dor do outro” lembre o problema do testemunho do Holocausto: o problema que os sobreviventes enfrentam não é apenas a impossibilidade de testemunhar, de haver sempre um elemento de prosopopeia, de o outro ter de reunir/coletar sua dor, já que a verdadeira testemunha está sempre – já morta e ele só pode falar em seu nome, mas é também o problema simétrico na extremidade oposta: não há publico apropriado ou ouvinte para receber o testemunho de maneira adequada. O sonho mais traumático de Primo Levi em Auschwitz foi com sua sobrevivência: a guerra acabou, ele está com sua família e conta sua vida no campo, mas as pessoas entendiam-se, começam a bocejar e, uma atrás da outra, deixam a mesa, até que Levi fica sozinho. Um fato ocorrido na guerra da Bósnia, no inicio da década de 1990, mostra a mesma coisa: muitas moças que sobreviveram a estupros brutais suicidaram-se depois que voltaram para suas comunidades e descobriram que não havia ninguém 2 Idem realmente disposto a ouvi-las, a aceitar seu testemunho. Em termos lacanianos, o que falta aqui é não só outro ser humano, o ouvinte atento, mas o próprio “grande Outro”¸o espaço de registro ou inscrição simbólica das palavras. Levi afirmou a mesma coisa, com seu jeito simples e direto, quando disse que o que os nazistas fizeram com os judeus é tão irrepresentável em seu horror que, mesmo que alguém sobreviva aos campos, quem não esteve lá não acreditará nele – dirá simplesmente que ele é mentiroso ou doente mental. O trauma de que fala Malabou não é o trauma vivenciado como tal porque é – e na medida em que é – tão perturbador dentro do horizonte de significado (a ausência de um eu significativo sé é traumática se esperamos sua presença)? E se les nouveaux blessés forem literalmente nos novos abençoados? E se a lógica da piada sobre o mal de Alzheimer (“A má noticia é que descobrimos que o senhor tem um caso grave de mal de Alzheimer. A boa noticia é que descobrimos que o senhor tem um caso grave de mal de Alzheimer, portanto o senhor já terá esquecido a má noticia quando chegar em casa”) aplica-se aqui, de modo que, quando a antiga personalidade do paciente é destruída, a própria medida do sofrimento desaparece? Então Malabou não é culpada do mesmo erro pela qual censura a psicanálise: o de não ser capaz de pensar a ausência pura e simples do envolvimento significativo, de ler a indiferença desapagada de dentro do horizonte do engajamento significativo? Ou, em outras palavras, será que ela não se esquece incluir a si mesma, de incluir seu próprio desejo, no fenômeno observado (o de sujeitos autistas)? Numa inversão irônica da afirmação de que o sujeito autista é incapaz de realizar transferências, é sua própria transferência que ela não leva em conta ao retratar o imenso sofrimento do sujeito autista. Esse sujeito é fundamentalmente uma Coisa impenetrável e enigmática, totalmente ambígua, na qual só podemos oscilar entre atribuir-lhe um imenso sofrimento ou uma abençoada ignorância. O que caracteriza é a falta de reconhecimento, nos dois sentidos da palavra: não nos reconhecemos nela, não há empatia possível, e o sujeito autista, em razão de seu afastamento, não representa o reconhecimento (não reconhece a nós, seu parceiro na comunicação). Não admira que no confronte com Lacan – quando argumento que, ao contrário do que parece, nem Freud nem Lacan conseguem pensar de fato a dimensão “além do principio do prazer”, já que todo trauma destrutivo é reerotizado – Malabou ignore a distinção fundamental de Lacan entre prazer (Lust, plaisir) e gozo (Geniessen, jouissance): o que está “além do principio do prazer” é o próprio gozo, é a pulsão como tal. O paradoxo básico da jouissance é o fato de que ela é ao mesmo tempo impossível e inevitável: nunca é totalmente atingida, sempre falta, mas, ao mesmo tempo, nunca conseguimos nos livrar dela – cada renuncia ao gozo gera um gozo na renuncia, cada obstáculo ao desejo gera o desejo do obstáculo etc. Essa inversão constitui a definição mínima do mais-gozo: envolve o paradoxal “prazer na dor”. Ou seja, quando Lacan usa a expressão mais-gozo (pluis-de-jouir), devemos fazer uma pergunta ingênua, mas fundamental: em que consiste esse “mais”? É um mero aumento quantitativo do prazer ordinário? A ambiguidade da expressão francesa é decisiva: pode significar tanto “excesso de gozo” quanto “nenhum gozo”; o excesso de gozo, além do mero prazer, é gerado pela presença do próprio oposto do prazer, isto é, a dor. Portanto, o mais-gozo é precisamente aquela parte da jouissance que resiste a ser contida pela homeostase, pelo principio do prazer. (É já que Malabou se refere, entre outros, aos Muselmann dos campos nazistas como imagem pura da pulsão de morte, além do principio do prazer, ficamos quase tentados a afirmar que é exatamente o Muselmann que, por seu despego libidinal, age efetivamente sobre o principio do prazer: seus gestos mínimos são totalmente instrumentalizados, ele se esforça para comer quando tem fome etc.) Aqui, Malabou parece pagar o preço de sua leitura ingênua de Freud, entendendo-o de forma demasiado “hermenêutica”, sem distinguir o verdadeiro núcleo da descoberta de Freud das várias maneiras como ele mesmo compreendeu mal o alcance de sua descoberta. Malabou aceita o dualismo de pulsões de como Freud o formulou, ignorando aquelas leituras precisas (de Lacan a Laplanche) que demonstram que esse dualismo era uma solução falsa, uma regressão teórica. Ironicamente, quando Malabou opõe Freud e Jung, enfatizando o dualismo das pulsões de Freud contra o monismo da libido (dessexualizada) de Jung, ela deixa escapar o paradoxo fundamental: é nesse ponto, quando ocorre o dualismo das pulsões, que Freud é mais junguiano, regredindo ao agonismo mítico pré-moderno das forças cósmicas primordiais opostas. Então como entender o que iludiu Freud e obrigou-o a recorrer a esse dualismo? Quando varia o tema de que, para Freud, Eros sempre abrange e se relaciona como seu Outro oposto (a pulsão de morte destrutiva), Malabou segue as formulações enganosas de Freud e concebe essa oposição como o conflito de duas forças opostas e não, num sentido mais adequado, como autobloqueio inerente da pulsão: a “pulsão de morte” não é uma força de oposição à libido, mas uma lacuna constitutiva que distingue a pulsão do instinto (é significativo que Malabou prefira traduzir Trieb por “instinto”), sempre descarrilado, preso num circulo de repetição, marcado por um excesso impossível. Deleuze, a quem Malabou costuma recorrer com frequência, deixou essa questão clara em Diferença e repetição: Eros e Tânatos não são pulsões opostas que competem e combinam suas forças (como no masoquismo ereotizado); há apenas uma única pulsão, a libido, que luta pelo gozo, e a “pulsão de morte” é o espaço curvo de sua estrutura formal. [Ela] desempenha o papel de um principio transcendental, enquanto o principio do prazer é apenas psicológico. É por isso que ela é, acima de tudo, silenciosa (não dada em experiência), enquanto o principio do prazer floresce. A primeira pergunta, portanto, é: como o tema da morte, que parece reunir os aspectos mais negativos da vida psíquica, pode ser, em si, aquilo que é mais positivo, transcendentalmente positivo, a ponto de afirmar a repetição? [...] Eros e Tânatos diferem pelo fato de que Eros tem de ser repetido, só pode ser vivenciado na repetição, enquanto Tânato (como o principio transcendental) é o que dá repetição ao Eros, o que submete Eros à repetição. (GILLES DELEUZE)