Latusa digital – ano 2 – N° 13 – abril de 2005 A transferência e o gozo mudo do sintoma Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros* O ponto de partida de minha questão é a dimensão da transferência que não se apóia no sujeito suposto saber, ou seja, que se refere à parte do sintoma que não alimenta a busca de saber e que leva os analistas a se perguntarem sobre o que estão fazendo em suas práticas. J.-A. Miller fala do sintoma de Joyce em Finnegan’s Wake como um despertar. Joyce desperta a literatura, e é com a ajuda de Joyce que Lacan vai despertar a psicanálise. No entanto, mesmo em uma análise chamada “clássica”, algo aparece e rompe a direção voltada para o saber. É inevitável o aparecimento de situações que arriscam romper o laço da transferência, essa rotina da suposição de saber que às vezes adormece o analista e o paciente. O que se mantêm da transferência nesse momento de ruptura? São momentos preciosos nos quais algo do acaso irrompe. Isso obriga o analista a lidar com o gozo implícito no sintoma, que faz acordar. Portanto, não se trata apenas dos pacientes que são trazidos à análise como as crianças, os pacientes psiquiátricos ou aquele que traz de início a queixa de um excesso insuportável. No Seminário 20, Lacan nos diz: “Se enunciei que a transferência é o sujeito suposto saber que a motiva, isto não é senão uma aplicação particular, específica, do que está aí por experiência”.1 A suposição de saber não é algo * Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). 1 LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 197. 1 dado, mas algo que se produz a partir do amor. Não é a suposição de saber que produz o amor, mas o amor é que produz a transferência. Nesse caso, há um trabalho a ser feito com o amor para relançar o trabalho analítico? O matema da transferência é construído a partir de uma suposição prévia de saber no Outro, que é transformada através do encontro com o analista em saber inconsciente. Trata-se de uma transferência prévia com o saber do Outro que se deve à própria estrutura do recalque. É preciso furar o saber atribuído ao Outro para se produzir o sujeito suposto saber, a hipótese de um saber inconsciente, de um saber não-sabido, recalcado. É nessa dimensão de hipótese que aparece o sujeito que fura o saber. O sujeito suposto saber não coincide nem com analista, nem com o analisante, e é a partir desse furo no saber que ele funciona como mola do trabalho de análise – como mola da busca da causa, daquilo que escapa ao determinismo da lei. O saber atribuído ao Outro está submetido ao determinismo simbólico. Atribuir um saber ao Outro é uma decorrência da própria expansão da psicanálise no mundo, que fez com que se acreditasse no determinismo inconsciente: um saber articulado aos significantes que determinam minha vida sem que eu o saiba. É acreditar que o Outro, mestre do destino, sabe, porque há saber no real. Essa suposição se deposita no analista, mas isso não é equivalente ao sujeito suposto saber. O que quero enfatizar é o seguinte: o sujeito suposto saber requer um trabalho; é preciso furar o saber prévio atribuído ao Outro para que o sujeito possa surgir ligado a uma causa, que escapa ao determinismo simbólico. O encontro com o analista é o que permite que a busca da causa surja na ruptura do determinismo da lei. Jacques-Alain Miller, na última aula de seu curso Um esforço de poesia, fala do saber recalcado como sendo um saber no real. Qual é a questão que esse saber no real nos coloca? É preciso ir além desse saber no real quando se pensa que o real é sem lei. Pensar o real sem lei subverte a dimensão de que há um saber no real que está esperando para ser descoberto: um determinismo simbólico da lei, lei simbólica que marca que já está escrito em 2 algum lugar na constelação simbólica do sujeito, em sua constelação familiar. Para a psicanálise tem que haver uma ruptura em relação a esse saber prévio. As psicoterapias se servem de uma certa herança freudiana mas desconhecem a dimensão freudiana do real da causa, do gozo, do sintoma como incurável. Elas adotaram o determinismo sem a coordenada pulsional, real, de Freud. Algumas questões. Em determinados momentos da análise, em que um gozo autista rompe com a suposição de saber no Outro, com a busca da causa, podemos pensar que se mantêm algo da transferência? Nesse rompimento há uma exposição em que a fantasia aparece de modo exuberante. Podemos pensar que não há mais clinica clássica e dizer que ela seria o adormecimento do analista? Freud nomeou de transferência selvagem algo que irrompe, que exige do analista algo mais do que manter a suposição de saber em funcionamento. O que entendemos por gozo do sintoma? Seria o resultado da condensação entre significação e satisfação, na qual o sintoma equivale à fantasia? No grafo do desejo, o sintoma é uma significação dada à demanda do Outro e a fantasia é o gozo que dá suporte a essa significação a partir do ponto no qual aparece o não saber, uma falha nessa significação. A fantasia fornece a dimensão pulsional ao sintoma, pois a significação e o gozo são disjuntos nesse momento do ensino de Lacan. Ao dar suporte à significação, a fantasia sustenta também o desejo, evitando que ele sucumba frente ao impossível do objeto. Miller indica como o ensino de Lacan foi avançando para a construção da unidade entre significação e satisfação. Ele diz que o sintoma se escreve como a fantasia. Podemos pensar que já há aí a dimensão do sinthoma. Uma discussão atual se refere ao sinthoma como aquilo que aparece no final de análise, como o incurável que se deposita. Penso que, pelo contrário, que essa questão diz respeito também ao início de analise e não apenas ao seu final. Deve-se ampliar a dimensão do sintoma, a conjunção sintoma-fantasia e também verificar como isso opera na contemporaneidade. 3 Penso que hoje em dia há uma exacerbação da fantasia. Chega-se a dizer que há uma falha na constituição da fantasia, há os novos sintomas, a depressão, mas, também há uma exacerbação. Miller fala em O Osso de uma análise2 dessa exacerbação e penso que ela é concomitante à queda dos mitos, uma decorrência da falência do pai. Em análise, inclusive de crianças, a fantasia começa a se construir no momento em que o mito rompe, ela se faz na opacidade do mito. Quando essa opacidade está muito pregnante em um momento social, poderíamos entender que a fantasia sobe ao zênite? A subida ao zênite do objeto a, à qual Lacan se refere em seu Discurso de fechamento das Jornadas de psicose, e que é mencionada por Miller em sua conferência de Comandatuba, seria correspondente a subida ao zênite da fantasia? É isto que gostaria de pensar com vocês: há ao mesmo tempo uma insuficiência da construção fantasmática dos pacientes e uma exacerbação da fantasia. No momento em que se quebra a suposição de saber e a lógica do recalcado pela qual se busca saber no Outro, há uma exacerbação da cena fantasmática. A posição de objeto do sujeito, de aderência ao gozo, se escancara. A subida ao zênite da fantasia corresponde a uma impossibilidade de construir a fantasia. Esse é o paradoxo. Para Freud, a fantasia é: “Eu sou espancado pelo pai”, que se constrói em análise a partir do paradigma “Bate-se numa criança”. Hoje em dia há um “Bate-se numa criança” anônimo. Pensar a relação desse bate-se com a perda originária é o salto que o sujeito não dá sozinho, e que a análise muitas vezes não consegue fazer. “Eu sou espancado pelo pai” é considerado por Freud não como algo rememorado, mas como uma construção em análise. Quando nos orientamos pelo saber recalcado, pelo saber da lembrança, quando queremos associações à lembrança, ficamos inoperantes, pois o paciente não rememora, não trabalha nesse campo. Costuma-se então pensar em uma psicose ordinária. É um alerta para nós: ressituar nossa escuta para não considerarmos como psicose ordinária o que muitas vezes decorre de uma falha do analista em saber trabalhar com o que é mudo no sintoma, com o gozo mudo da fantasia. A fantasia é um gozo mudo, 2 MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Salvador: Biblioteca Agente (EBP-BA), 1998. 4 não eloqüente. “Bate-se numa criança” só se constitui como fantasia pela intervenção de Freud; ele não a deixa escapulir pelo ralo, ele a agarra. Há uma diferença entre psicose ordinária e foraclusão generalizada. Esta última foi o paradigma de Lacan: há algo que se perde para todos e cada um vai lidar com isso do seu jeito. Em seu curso O lugar e o laço, Miller diz que Lacan começou a promover o sinthoma, que é articulado a foraclusão generalizada, no momento em que começava na cultura uma exacerbação da depressão. A depressão vista como um sintoma que eliminaria a dimensão da angústia substituiu o que seria a angústia em uma época de decadência da clínica. Com o sinthoma, Lacan promove um renascimento da clínica. Não se trata mais do piloto automático neurose-psicose-perversão; ele embaralha essas cartas. O paradigma que sustenta a psicose ordinária é o sinthoma e a foraclusão generalizada. A psicose ordinária encontra-se nesse contexto e devemos ficar alerta para a psicose que se pensava ser neurose. Agora estamos num outro momento: o de ficarmos alerta também para a neurose que pensávamos ser psicose ordinária. Esse é um alerta para mim e para nossa comunidade: resgatar a dimensão da neurose. Prestar atenção no modo como a neurose está aparecendo hoje. O que há de novo, como acontecimento de corpo, em relação à conversão histérica? É uma questão que merece resposta. Lacan afirma que o tratamento da psicose ensina ao tratamento da neurose e convoca o analista a lidar com esse ponto de emergência do gozo mudo que fica fora da rotina do analista, da dialética já conhecida, da suposição de saber do recalcado, do saber do inconsciente no qual se localiza o sujeito. A parte muda do sintoma, aquela que não tem nada a dizer, se impõe como vontade de gozo que incomoda. Não se pode dizer que essa época da súbita ao zênite do objeto a permite um prazer generalizado; há mal-estar, desprazer. O gozo não é equivalente ao prazer. A vontade de gozo incomoda e por isso os pacientes nos procuram. Tanto na instituição como no consultório, devemos considerar o sintoma que não fala, que é mudo, e acreditar que ele pode ser interrogado. Interrogado não a partir de um sentido prévio, de um 5 determinismo qualquer, mas em sua relação com a busca de uma satisfação impossível. Ainda em O lugar e o laço, Miller nos mostra como é possível relacionar a dimensão muda do sintoma com certos imperativos sociais. Ele diz que o imperativo é uma demanda do Outro à qual se acrescenta que é proibido interpretar. É sob esse julgo que nos encontramos para fazer a nossa clínica e precisamos estar alertas. O desejo é reabsorvido na demanda, há uma exacerbação daquilo que Lacan acentuou, a fantasia do neurótico reduzida à pulsão. Hoje em dia, se diz que o desejo desapareceu, que a queixa é de não desejar; não de insatisfação do desejo, mas de não desejar, pois o que prevalece é o imperativo do gozo vindo do Outro anônimo. Trata-se da subida ao zênite do gozo, mas o analista não pode abrir mão da articulação entre desejo e gozo. A anulação do desejo equivale à reabsorção do desejo na demanda. Então, a fantasia sobe ao zênite como demanda do Outro, submissão à demanda do Outro como imperativo social. Lacan diz que o matema da pulsão é igual à fantasia do neurótico e que isso se vê melhor na neurose obsessiva. O objeto da fantasia é a demanda do Outro. Essa demanda elevada à dimensão de imperativo social escamoteia o objeto a, causa de desejo, encarna a voz do supereu. Há prevalência da fantasia com a elevação do objeto a ao zênite ali onde se perde de vista a relação com o vazio ao qual ele está logicamente atrelado. Subida ao zênite do objeto a e exacerbação da fantasia não são excludentes. Cabe pensar como se articulam nesse ponto onde há uma exacerbação da voz do supereu. Pensar a neurose hoje em dia é pensá-la no contexto do imperativo que exacerba seu próprio mecanismo de nada querer saber da castração, do irremediável da inexistência do objeto adequado. Isso nos conduz a não desistir da leitura do sintoma, de interrogá-lo levando em conta a dimensão de defesa do recalque e seu fracasso inevitável. Defesa contra o gozo que tem como mola não o pai e nem o eu, mas a inexistência do objeto adequado, ou 6 seja, a não relação sexual. É pensar o sintoma que está referido não ao pai que interdita, mas à inexistência da relação sexual. 7