175 O Discurso Científico em Bruno Latour Jaqueline de Mendonça Oliveira * RESUMO: Discorrer-se-á sobre reflexões feitas por Bruno Latour sobre o discurso científico em três perspectivas diferentes, com base em suas obras: Jamais fomos Modernos, Vida de Laboratório e Reensamblar lo social. O ponto de partida é analisar o discurso como uma dimensão de análise, na pesquisa das redes sócio-técnicas. A seguir, será tratada a importância do discurso nos informes como um meio para produção e defesa de fatos e verdades científicas. Por fim, será abordado o discurso dos cientistas sociais e dos atores nos informes como um laboratório e veículo de divulgação científica que deve privilegiar a fala dos atores para que seja um informe bem sucedido que reflita a capacidade do pesquisador de não calar os atores, bem como de “despregar” o social. Percebendo-se que o discurso é de suma importância para a construção e constituição das ciências do “social”. Palavras-chave: Discurso; Bruno Latour; Sociedade; Ciência e Técnica. Introdução Pretende-se por meio deste discorrer sobre reflexões a respeito do discurso científico visto a partir de diversas perspectivas que Bruno Latour propõe e que selecionei, são elas: o discurso como dimensão de análise da Sociologia da Ciência e da técnica, o discurso científico como dado de pesquisa da mesma e também como meio de produção e divulgação do conhecimento científico dos cientistas sociais. Essas discussões sobre o discurso científico compõem discussões mais amplas de Latour e outros autores sobre o estudo da Ciência e da Técnica. Dois dos livros aqui discutidos – Reensamblar lo social1 e A Vida de laboratório – foram temas de discussões da * Licenciada e Bacharel em Ciências Sociais (UFSC). _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 176 disciplina Sociologia da Ciência ministrada pela professora Julia S. Guivant no segundo semestre de 2009 no curso de Ciências Sociais UFSC. Agradeço, portanto sua contribuição para a compreensão e divulgação da obra de Latour, bem como a meus colegas que cursaram a disciplina e participaram comigo desse diálogo teórico. Teoria do ator-rede Latour - sociólogo, antropólogo, filósofo – híbrido - como ele mesmo se autodefine, faz parte de uma tendência do estudo da ciência e da técnica que se opondo às correntes macro-sociológicas, propõe estudos a respeito da ciência e da técnica que dêem conta do cotidiano que faz parte da produção científica. Apresenta uma proposta teóricometodológica a teoria que ficou conhecida como TAR – Teoria do ator-rede. Em primeiro lugar, dentro dessa perspectiva teórica, Latour defende que humanos e não-humanos são associados formando também um social. Faz críticas ácidas à sociologia clássica por começar suas pesquisas pela “sociedade” ou outros “agregados sociais”, quando na verdade deveria culminar neles ou não, ao fim da pesquisa (LATOUR, 2008, p.23). Latour argumenta que já não é suficiente limitar os “atores” (mais conhecidos como objeto/sujeito de pesquisa) ao rol de informantes, há que restituí-los de sua capacidade de criar suas próprias teorias sobre o que compõe o social. Citando-o: Para aprender de ellas em qué se há convertido la existencia colectiva en manos de sus actores, qué métodos han elaborado para hacer que todo encaje, qué descripciones podrían definir mejor las nuevas asociaciones que se han visto obligados a establecer (LATOUR, 2008, p. 28). Latour diz ainda na mesma obra que se a “sociologia do social” funciona bem com o que já foi encaixado, não funciona tão bem quando se trata de fazer uma nova compilação dos participantes naquilo que ainda não é uma espécie de domínio social. Propõe então o estudo através de “redes”. O termo rede não designa uma coisa que teria a forma aproximada de pontos interconectados – como logo somos levados a imaginar. A rede é o meio para descrever e não o que se descreve. Citando Latour: [...] rede é uma expressão que serve para verificar quanta energia, movimento e especificidade são capazes de capturar nossos próprios _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 177 informes. Rede é um conceito, não uma coisa que existe ali fora. É uma ferramenta para ajudar a descrever algo, não algo que se está descrevendo2 (LATOUR, 2008, p. 190). Ademais, Latour propõe uma mudança de velocidade na pesquisa, ou seja, que seja mais lento o processo de tirar conclusões. As conclusões devem ser a posteriori e não a priori. Acrescenta que as análises devem ser dos próprios atores. Deve-se dar vez e voz a eles (LATOUR, 2008, p. 42 e 45). Argumenta também que o pesquisador deve se alimentar de controvérsias acerca do que é constituído o social que aparecem durante a pesquisa. É deixar “Que los actores hagan esa tarea por nosostros. No definamos por ellos qué compone lo social” (LATOUR, 2008, p.59). Além disso, tem-se a tarefa de traçar as relações entre essas controvérsias, não tentando de forma alguma resolvê-las. Uma boa TAR deve deixar transparecer as dificuldades que implica “viajar”. O método ou “viajem” como ele prefere chamar consiste em duas opções: ou “seguir os teóricos sociais e começar nossa viajem definindo a princípio em que tipo de grupo e nível de análise nos concentraremos ou seguimos os caminhos próprios dos atores e iniciamos nossas viagens seguindo os rastros que deixa sua atividade de formar e desmantelar grupos”3 (LATOUR, 2008, p. 49), de forma que ele prefere a segunda. Para Latour a verificação da qualidade da pesquisa passa também pela pergunta se os atores são mais fortes que os analistas no texto final – os informes - e pela resposta de que sim. Pois é necessário que se permita aos atores manifestarem seus próprios e diversos cosmos, por mais contra-intuitivos que eles pareçam (LATOUR, 2008, p. 43). Mais uma recomendação que ele faz é que se deve adaptar a teoria e o método às singularidades do “objeto”. Para tanto, deve-se abandonar as categorias pré-estabelecidas seja pela Antropologia, Filosofia e outros campos de conhecimento. Diz que os sociólogos críticos, por exemplo, tem se ocupado muito em transformar o mundo, mas para ele se trata é de interpretá-lo, e para isso é necessário abandonar a idéia de que todas as linguagens são traduzíveis ao idioma estabelecido pelo social – a taquigrafia do social. Por fim, o cito: “... la TAR es el intento de permitir a los miembros de la sociedad contemporánea tanto margen para definirse a sí mismos como el que les ofrecen los etnografos” (LATOUR, 2008, p. 66). Ante o exposto, percebe-se que não há uma homogeneidade _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 178 entre as correntes sociológicas, e que há diferentes concepções de ciência. Latour vai argumentar em sua obra Vida em Laboratório que os critérios de verdade estão muitas vezes atrelados às relações de poder e/ou à retórica – que aqui nos referiremos como discurso. Pressuposto tal que permeia a proposição de Latour de como fazer Sociologia e Antropologia da Ciência e da técnica. Como prometido dar-se-á início à discussão sobre o discurso científico nas obras de Latour, que hora aparecem como dimensão da pesquisa, ora como dado da mesma, ora como resultado da pesquisa do cientista social. O discurso como uma dimensão analítica O discurso é para Latour como uma das possíveis dimensões de análise das redes sociotécnicas e também da Sociologia do Social, pois o discurso é uma das formas de suma importância para se conhecer essas realidades e atores. Latour em seu livro Jamais fomos modernos fala das limitações que os estudos da ciência e da técnica têm tido em função da delimitação das áreas do conhecimento – leia-se a Epistemologia, as Ciências Sociais ou a Ciências do texto. Ele crítica a Epistemologia por extrair de seus estudos apenas conceitos, retirando-lhes todas as ligações que esses têm com o social ou com a retórica. Na mesma lógica, as Ciências Sociais, por sua vez, conseguem apenas ver a dimensão política e social, excluindo todo e qualquer não-humano do cenário. Já, as Ciências do texto conservam apenas o discurso desconsiderando todos os outros aspectos contemplados pelas outras áreas, como as citadas nos parágrafos anteriores. Afirma ser esse, um problema para os estudos da Ciência e da técnica, já que essa não se resume e nem se reduz unicamente a nenhuma dessas dimensões, pois esse campo de pesquisa é composto de redesociotécnicas e povoado de humanos e não-humanos. Logo a omissão de algum dos aspectos levantados por cada área implica na incompletude da pesquisa. Citando-o: ou as redes que desdobramos realmente não existem, e os críticos fazem bem em marginalizar os estudos sobre as ciências ou separá-los em três conjuntos distintos – fatos, poder, discurso -, ou então as redes são tal como as descrevemos, e atravessam a fronteira entre grandes feudos de crítica – não são nem objetivas, nem sociais, nem efeitos do discurso, sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas (LATOUR, 1994, p. 12). _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 179 Acredita Latour que nesse caso se se tem uma lição a ser aprendida com os antropólogos, quando esses, ligam em uma mesma monografia mitos, genealogias, técnicas, e outros. Porém faz uma ressalva, aos antropólogos, porque ainda deixam seus estudos incompletos por ignorar a agência dos não-humanos em suas pesquisas. Acrescenta ele que os fatos científicos são construídos por meio do discurso – idéia que desenvolverei melhor no próximo tópico. E em se tratando de analisar discursos percebe-se que os cientistas fazem associações que não podem ser analisadas separadamente de outros âmbitos – como o social e político, como foi o caso das discussões entre Boyle e Hobbes a respeito da bomba de vácuo: Compreendemos que Boyle não criou simplesmente um discurso científico enquanto Hobbes fazia o mesmo para a política; Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, enquanto que Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída (LATOUR, 1994, p. 33). A partir desse evento Latour afirma que vão aparecer historiadores para estudar apenas a Inglaterra do século XVII, que só estarão interessados em fazer surgir a bomba de vácuo misteriosamente do mundo das idéias e, é claro, estabelecer sua cronologia. Ou então, aparecerão cientistas e epistemólogos que irão descrever todo o processo físico da bomba, sem mencionar a Inglaterra ou o próprio Boyle. Segundo ele um esquece os nãohumanos e os outros, os humanos. Afinal, ele propõe que os estudos das redes sociotécnicas devam contemplar em suas análises tanto os conceitos, como a dimensão social-política, como também, os discursos. Este último Latour discute-o também dado de pesquisa, em seu livro Vida de Laboratório. Ver-se-á a seguir. O Discurso científico como meio de produção e defesa de fatos e verdades... (...) então se vê que a vida tem necessidade de ilusões, isto é, de nãoverdades tidas como verdades. Tem necessidade da crença na verdade, mas então a ilusão é suficiente, as “verdades” se demonstram por meio de seus efeitos, não por meio de provas lógicas, pela prova da força. O _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 180 verdadeiro e o eficiente são identicamente válidos, aqui também a gente se inclina diante da violência. – Como é que então uma demonstração lógica pode, no final das contas, ter tido lugar? No combate da “verdade” contra “verdade” procuram a aliança da reflexão. Tudo o que representa um esforço real de verdade veio ao mundo por meio do combate por uma convicção sagrada: por meio do pathos do combater (...) NIETZSCHE, 2007, p.25. Em sua pesquisa - descrita em Vida de Laboratório – Latour trata de entender “a tribo” que passa dois terços de seu tempo trabalhando em o que ele chama de grandes “inscritos literários” exercendo a “arte da persuasão”. Segundo ele, essa arte “serve para que os pesquisadores convençam os outros da importância do que fazem, da verdade do que dizem” (LATOUR e WOLGAR, 1997, p.68), e conseguem, não porque estejam convencidos eles mesmos do que dizem, mas porque seguem uma orientação coerente de interpretação dos dados. Logo, há uma coerência entre um “fato” e o sucesso do inscrito literário. Latour fala que os artigos mais as substâncias purificadas e os anti-soros constituem o cacife que o pesquisador tem dentro do laboratório e que serve de barganha em casos de ameaça de sair do laboratório, levando consigo seus artefatos para dar prosseguimento à pesquisa em outro lugar. Ele fala da importância do pesquisador aprender as habilidades exigidas no laboratório, porém essas, segundo ele, são apenas um meio para chegar ao objetivo final – a produção de um artigo. Segundo ele, os próprios cientistas reconhecem a idéia de que a produção de artigos é essencial para sua atividade. Os artigos passam por diversas etapas de fabricação, como um rabisco num papel de um resultado, portanto Latour tratou de analisálos como objetos “à maneira de produtos manufaturados” (LATOUR e WOLGAR, 1997, p.70). E para fabricar seus inscritos os pesquisadores efetuam diversas operações sobre enunciados, “esses enunciados representam apenas uma pequena parte de centenas de artefatos” (LATOUR e WOLGAR, 1997, p.91). Segundo Latour segue-se aí, um movimento browniano que pode aniquilar de vez um enunciado, ou torná-lo inquestionável caso seja aceito e citado por outro pesquisador. Fazendo se assim o meio para a justificação de verdades que estão ancoradas na crença da verdade de seus antecessores. No meio desse movimento é que se constitui um fato, e quando isso acontece, ele entra para o legado de aquisições científicas. Daí se percebe porque a produção literária é tida em tão alta conta e porque se gasta um milhão e meio de dólares - _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 181 referindo-se ao ano de 1975 - para permitir que 25 pessoas escrevam cerca de quarenta artigos por ano (LATOUR e WOLGAR, 1997, p.69). Os Discursos dos cientistas sociais e dos atores nos informes laboratório e veículo de divulgação científica da Sociologia. No quinto capitulo de seu livro Reensamblar lo social – “Quinta fuente de incertidumbre: escribir explicacioanes arriesgadas” – Latour debruça-se sobre a questão da produção textual – os “informes” - no âmbito das ciências sociais. Para isso, realiza diversas considerações sobre o que seria, a seu ver, um texto “bem escrito” e um texto “mal escrito” em função de sua finalidade. Preliminarmente, cabe abrir um parêntese para transcrever o significado da expressão “informe textual” para Latour. Primeiro Latour deixa claro que é um texto no qual não se deixa de lado a questão da precisão e da veracidade (LATOUR, 2008, p. 183, 184). Caracteriza-se por ser o locus artificial onde o cientista pode oferecer uma apresentação das conexões que conseguiu recortar – “desplegar” –, as quais serão capazes de responder para um público determinado a qual mundo comum pertence seus integrantes (LATOUR, 2008, p. 201). O informe textual é o laboratório do cientista social (LATOUR, 2008, p.185), e se o caráter artificial é o que confere a objetividade, é necessário que se identifique os artefatos por ele produzidos. Sabendo de antemão que os informes textuais podem falhar assim como os experimentos (LATOUR, 2008, p.186). Define um mau informe textual como aquele em que apenas alguns atores são apontados como as causas de toda a trama. Nesses informes, segundo Latour, os atores servirão de telão de fundo ou retransmissores dos fluxos da eficácia causal (LATOUR, 2008, p.189). Como em vários momentos na obra, ele faz uma crítica à sociologia do social, pois o que seria para ela um informe convincente, ou seja, embasado em poucas causas gerais que geram uma massa de efeitos, para a TAR será apenas um informe frágil, que simplesmente repete e tenta transportar uma força social já composta, sem questionar aquilo do que está feita e sem procurar os veículos necessários para expandi-la (LATOUR, 2008, p. 190). Latour entende que há dois motivos centrais pelos quais a literatura das Ciências Sociais é freqüentemente tão mal escrita: o primeiro motivo é que os cientistas sociais tendem a imitar a escrita descuidada dos cientistas das ciências naturais; o segundo motivo é _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 182 que, ao contrário destes, os cientistas sociais não convocam atores o suficientemente recalcitrantes para interferir nessa escrita. Assim, os cientistas das ciências naturais são obrigados a levar em consideração pelo menos algumas das particularidades de seus objetos recalcitrantes enquanto os sociólogos do social podem silenciar com eficácia o vocabulário preciso de seus informantes através da sua própria metalinguagem (LATOUR, 2008, p. 182). Em contraponto, Latour define o que seria um texto “bem escrito”. Para ele, um bom informe é aquele que segue o rastro de uma rede (LATOUR, 2008, p. 187); é aquele que representa o social no sentido de que alguns de seus participantes na ação serão encaixados – “ensamblados” – de modo a que possam ser reunidos (LATOUR, 2008p. 200). Um bom informe da TAR é uma narrativa ou uma descrição ou uma proposta em que todos os atores atuam (interferem) em vez de somente transportar efeitos sem transformá-los (LATOUR, 2008, p. 187). Finalmente, Latour procura desmistificar a dicotomia existente entre descrição e explicação, pois entende que uma boa descrição – que nunca é um retrato não mediado daquilo que se descreve (LATOUR, 2008, p. 197) – prescinde de uma explicação por esta estar contida naquela, caso contrario estar-se-ia diante de uma má descrição. (LATOUR, 2008, p 198). Ainda afirma que a alternativa à explicação é fazer um recorte – “despegar” – das redes que fazem possível certo estado de coisas ou acrescentar uma explicação que se restrinja a afirmar que outros atores ou fatores devem ser levado em consideração. (LATOUR, 2008, p.198) Para Latour é no específico que radica o caráter do social (LATOUR, 2008, p. 199), assim, o objetivo é produzir por meio do informe/discurso uma ciência do social adaptada às especificidades do social (LATOUR, 2008, p. 197). Pois: la buena sociologia tiene que estar bien escrita; si no, lo social no aparece a través de ella (LATOUR, 2008, p. 182). Considerações finais É notória a recorrência do tema do discurso nas obras de Latour. Aparecem em seus textos como dimensão de análise – se referindo às Ciências do Texto, como dado de pesquisa – “inscritos _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 183 literários”, e também como meio de produção do conhecimento do sociólogo – “informes”. Como se percebe o tema - discurso – está presente recorrentemente nas reflexões de Latour, bem como nas discussões dos filósofos da “virada lingüística” – vertente da conhecida Escola de Frankfurt de orientação marxista e hermenêutica, ambas, alvos de crítica de Latour - que a partir dos anos setenta começaram a falar de teoria – que acaba sendo escrita - como uma práxis. A Escola de Frankfurt, grosso modo, propunham como objeto de pesquisa as “práticas lingüísticas” e as interações comunicativas, porém se diferenciando dos lingüistas pelo fato de não se aterem apenas à descrição dos “jogos lingüísticos” desconectados de seu lugar no mundo. Ademais, almejavam lograr a reconstrução dos princípios gerais e “universais” que os regulam (D’AGOSTINI, 1997). Por vezes, tem-se a impressão de que Latour faz o mesmo em menor escala, não universal. Pois, ele intenta conhecer a forma dos documentos produzidos em laboratório, que segundo ele, é o meio por onde se exerce a prática da “arte da persuasão” que seria utilizada para a produção de fatos e verdades e também para a defesa de ambos. Dentro dessa perspectiva ele argumenta que os cientistas têm suas descobertas tidas como fatos pela comunidade científica, se seguem uma tipologia de interpretação e escrita compartilhada pelo grupo. Logo, as verdades e fatos produzidos em laboratório são dependentes da linguagem (informes, Power point e outros), que como ele mesmo diz é o resultado final de 99% das pesquisas. Panorama do qual nem os sociólogos escapam, segundo Latour. Portanto ele defende que é de suma importância o cuidado com nossa escrita enquanto informes, pois muitas vezes, a escrita nos faz falar o que não queríamos, ou mesmo, porque essa é a prova final para saber se fomos bem sucedidos em nossa pesquisa. E ser bem sucedido na pesquisa, é para Latour, ter passado longe da “sociologia do social”, tanto na idealização da pesquisa, quanto na coleta de dados e na escrita. Mas estaria Latour reduzindo a Ciência ao crivo da linguagem? Seria a forma o atestado de excelência do conteúdo? Perguntas para as quais as respostas parecem incertas nas mesmas obras citadas. Outro ponto, inquietante é a ausência, nas citadas obras de Latour, da análise de discursos informais. Como exemplo, na obra Vida de Laboratório, Latour apesar de citar a existência de uma copa (cozinha, espaço para lanche dos cientistas), onde as pessoas tomavam café, não registrou nenhum discurso dado nesse espaço. O porquê _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 184 dessa omissão? Por acaso os discursos informais não afetariam os discursos formais – os informes – tão minuciosamente analisados por ele? Tampouco foi considerada a linguagem gestual dos atores. Porque, em contrapartida, Latour analisou os artigos de forma exaustiva, usando, incluso estatística como ferramenta de análise? Estaria essa ausência dando a conhecer uma possível incompletude de sua pesquisa. Quanto ao status dos discursos presentes na pesquisa, Latour propõe que o discurso do ator e do pesquisador/ator seja visto com o mesmo status epistemológico. Incluso, defende que os conceitos dos atores apareçam mais nos informes do que os dos pesquisadores (LATOUR, 2008, p. 51). Diz Latour que o sociólogo não pode “fagocitar” – termo meu – o discurso do ator numa metaexplicação através de uma metalinguagem como o conceito de “social” (LATOUR, 2008, p. 60). Pois, segundo ele, seria justamente o problema que ocorreu no surgimento da sociologia enquanto ciência quando tentou construir um conhecimento diferente do popular. Ademais, Latour diz que por motivos científicos, políticos e inclusive morais, é crucial que os pesquisadores não definam antes e no lugar dos atores de que tipo de elementos é feito o social (LATOUR, 2008, p.67). Seria isso um convite a neutralidade? Tida por muitos como impossível de ser alcançada em sua totalidade. Ou apenas, uma proposta de que o “social” seja o ponto de chegada (ou não) e não de partida. Porém, é preciso ter em mente, que com treino e reflexão a respeito de metodologia um cientista consiga ser menos diretivo e interventivo no processo de pesquisa. Mas não se vislumbra, tendo por base a proposta laturiana, que o pesquisador não acabe por ser também mais um “mediador” na rede de atores que pesquisa, seja na hora da feitura do roteiro de entrevistas, seja na hora das entrevistas quando, muitas vezes, sem perceber o pesquisador expressa sua aprovação ou reprovação das falas dos pesquisados. Bem verdade é que ele considera vários desses dilemas, porém não deixa claro como ele concilia, na prática, essas dificuldades metodológicas com a proposta de não “calar os atores”. Conclui-se que possamos não calar os atores em nossos informes e monografias, mas pelo fato de aqueles não estarem presentes na hora da escrita destas, parece que se acaba continuamente por brincar de telefone sem fio – com a frase sempre chegando ao final diferente do seu surgimento. E isso, não é algo que inviabilize pesquisas em antropologia e sociologia, pois tanto o “social” quanto os dados sobre ele, não são, estão sendo. _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185. 185 Referências D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e continentais. São Leopoldo: Unisinos, 1997. GROSSI, Miriam Pillar. A dor da tese. In: Ilha Revista de Antropologia. Florianópolis, v. 6, ns.1 e 2, jul. 2004. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. _______. Reensamblar lo social. Uma introducción a la teoria del actor-red. Buenos Aires: Matinal, 2008. LATOUR, B.; WOLGAR, S. A vida de Laboratório. A produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 1997. Caps. 1 e 2. NIETZSCHE, Friedrich. O livro do filósofo. São Paulo: Editora Escala, 2007. Notas 1 Todas as traduções utilizadas no presente trabalho foram feitas pela própria autora do texto e realizadas com base no livro em espanhol. 2 “... red es una expresión que sirve para verificar cuánta energia, movimiento y especificidad son capaces de capturar nuestros próprios informes. Red es um concepto, no uma cosa que existe allí afuera. Es uma herramienta para ayudar a describir algo, no algo que se está describiendo” (LATOUR, 2008, p. 190). 3 “(...) seguimos a los teóricos sociales y comenzamos nuestro viaje definiendo al principio em qué tipo de grupo y nível de análisis nos concentramos o seguimos los caminos próprios de los actores e iniciamos nuestros viajes siguiendo los rastros que deja su actividad de formar y desmantelar grupos” (LATOUR, 2008, p. 49). _____________________________________________________________________________ Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais da UFSC. Ano V, n. 05 – 2010: 175-185.