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V Encontro Nacional da Anppas
4 a 7 de outubro de 2010
Florianópolis – SC – Brasil
A natureza da Crise da Natureza
Reflexões sobre o Natural e Social na Crise Ambiental
Patricia Richetti
Relações Públicas, graduanda em Publicidade, mestre em Geografia pela UFSM
[email protected]
Jodival Mauricio da Costa
Geógrafo, mestre em Geografia, doutorando em Ciência Ambiental pela USP
[email protected]
Resumo
A discussão que segue tem como objetivo uma abordagem da relação sociedade-natureza a partir
de uma crítica da ideia de natureza que se constituiu na modernidade e do seu atual momento,
em que ela aparece como questão – ou seja, como problema. Nesse sentido, direcionamos nossa
análise para as concepções de homem e de natureza que permeiam o universo dessas teorias.
Para isso, nos aportamos metodologicamente nas ideias de antropologia simétrica do pensador
francês Bruno Latour, discutindo natureza e sociedade de forma simétrica, ou seja, sem separá-la,
nem superestimar uma em detrimento da outra. Também buscamos suporte na discussão de
rizoma dos filósofos Francês Gilles Deleuze e Félix Guattari, assim como na concepção de
natureza social do geógrafo inglês Noel Castree. Temos, portanto, a revisão de literatura como
ferramenta metodológica.
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A produção da assimetria Sociedade-Natureza
Quando os ocidentais chegaram às terras da América do Sul e se depararam com os povos
nativos, os acusaram de fabricarem seus próprios deuses – de produzirem fetiches. Pari passu, os
acusadores também traziam, em seus objetos religiosos e técnicos, representações de suas
crenças (LATOUR, 2002).
O alcance dessa breve exposição do encontro dos mundos nos permite pensar que os humanos
criam para si uma representação da realidade, e tal representação é tanto abstrata quanto
concreta – não existe forma de materialização que não possua com o simbólico uma estreita
relação. Nesse entendimento, aquilo em que os povos cultivam como crença não é apenas um
produto de suas mentes, mas um efeito das relações que constroem através da interação social
(LATOUR, 2002). Kosik (1976), referindo-se a essa dimensão da cultura, também expressa que a
realidade do simbólico existe, antes de qualquer coisa por nascer da relação social, o que a torna
concreta. Assim, a cultura tem, portanto, uma sociabilidade e uma espacialidade, uma vez que se
concretiza em formas espaciais que são frutos da vida e que, ao mesmo tempo, dá suporte à
essa.
Algo que podemos conceber, a partir dessa ideia, é que o mundo que uma dada sociedade
constrói como realidade concreta é a mesma relação que produz sua base cultural, no sentido de
que o simbólico constitui com o concreto uma imbricação tão estreita que entendemos não ser
possível uma determinação de onde começa o papel de um na produção do outro. Dito de outra
forma, a realidade concreta do mundo, incluindo sua materialidade técnica, possui nas relações
sociais sua existência.
Por ser uma hibridação, a materialidade do mundo não deve ser tratada como uma construção
absoluta, assim como os conceitos criados para representar tal realidade e que se tornam, em
certo sentido, a própria realidade, também não devem ser tomados fora da realidade espaçotemporal das relações sociais.
Concordamos que o conceito, na forma como o concebem Deleuze e Guattari (1997) não é um
componente isolado, mas o resultado de uma multiplicidade, ligado a outros conceitos, como os
nós de uma rede. Assim, para os autores, o desenvolvimento de um conceito está sempre ligado
às ideias que o precedem, no sentido de que o que surge possui com o anterior uma relação, mas
sem ser daquele uma imitação. Por isso um conceito é relacional e situacional, pois está sempre
propenso a mudanças por ser uma infinidade de possibilidades, uma vez que as relações sociais
representam, em si, essas infinitas possibilidades de se reproduzirem e, nesse processo de
reprodução, gerar transformações de algumas coisas para manter outras, num mesmo processo.
No tocante ao conceito de natureza, concebemos que qualquer afirmativa nessa acepção pode
ser vista como desenho de um repertório amplo de outras imagens e normas sociais – qualquer
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que seja o gênero. E tomado também como discurso, esse gênero pressupõe uma mediação.
Desse ponto de vista, conhecimento e linguagem são os instrumentos que usamos para fazer o
sentido de um mundo natural que ao mesmo tempo em que nos difere o pertencemos, o
construímos e somos menores que ele. A noção de alteridade, diferentes repertórios para fazer
sentido de uma mesma natureza, faz cada discurso, ao mesmo tempo, intersubjetivo e autêntico.
Portanto,
esses
discursos
não
revelam
ou
escondem
verdades
da
natureza,
mas,
preferencialmente, constroem seus próprios sentidos de verdades (CASTREE, 2001).
Tais discursos, em que uma dada ideia de natureza se constrói, não ficam apenas no plano das
ideias, pois os homens e as mulheres materializam em formas espaciais a relação que produzem
com a natureza, que não se descolam das relações que esses homens e mulheres produzem
entre si.
Isso implica, como já elicitado em páginas precedentes, em que a existência da
sociedade e da natureza não se constituíram como externalidades, mas um processo de
hibridização.
A Natureza, pensada como ente ontológico, intrínseco aos processos naturais, é anterior à
espécie humana e tal espécie também se constitui como natureza nesse sentido; assim como
forma da natureza em si mesma, continua existindo. Nesse sentido, a natureza em si existe, negála seria negar uma dimensão do próprio humano. Destarte, quando dizemos que a natureza é uma
produção social não estamos falando de uma natureza não-natural em oposição a essa produzida
pelos homens e mulheres, mas que a forma de apreensão da natureza tem seu sentido nas
relações que as diferentes sociedades constroem entre si e, portanto, com a natureza.
Nesse aspecto, nossa tese é de que sempre que uma dada forma de representação do mundo, de
construção de uma realidade, sofre eventos que a transformam; tal transformação desemboca,
também, na concepção que se tem dos seus semelhantes; dos objetos construídos para a
satisfação das necessidades materiais e culturais; bem como dos elementos apreendidos como
forma de desenvolvimento de um dado modo de produção – o que inclui, também, a produção da
riqueza e sua acumulação em processos sociais desiguais. Isso implica na consideração de que
diferentes formas de relações sociais construíram formas diversas de relação com a natureza, de
forma que no trato histórico da ideia de natureza – podemos falar de naturezas. Assim, junto com
a “crise” da mentalidade medieval européia, no seio da qual se desenvolve a sociedade moderna,
uma ideia de natureza também entrou em crise e outra ideia de natureza passa a se constituir
como simbologia para se materializar no espaço da modernidade.
Assim, o entendimento de natureza como estamos tratando aqui, passa por alguma forma de
apropriação, seja ela político-econômica ou cultural-espiritual como dimensão dominante. Nesse
sentido, não há natureza que possa entrar no campo das relações sociais sem ter, ao mesmo
tempo, nascido nessas próprias relações sociais, como seus resultados e suas causas – como
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processo dialético.
No trato do material-espiritual, sabemos que para algo ser representado
necessita estar integrado ao sistema de significação humano para fazer parte de um universo de
sentido. No processo de significação, vemos que no mundo humano uma coisa só é valor por sua
relação com o homem. Todo objeto integrado nas relações sociais carrega consigo uma relação
de significação que passa a representar uma convenção cultural, nela se manifestam as
produções de sentido de dada sociedade, em dado tempo e espaço.
Nessa acepção, as sociedades produzem objetos representativos da natureza. Os “laboratórios”
onde os objetos são produzidos são sempre técnicos e políticos, se considerarmos que os
processo de apropriação e apreensão da natureza implicam, no sentido tomado aqui, em alguma
forma de utilização dos recursos a partir de uma função empregada a esses (RAFFESTIN, 1993).
É a técnica da política que produz os objetos técnicos, situá-los fora do campo dessa produção
cultural seria emprestar à técnica e à ciência um estatuto de independência que elas não têm.
Não obstante, Latour (1995) discorre que a constituição moderna construiu uma noção de ciência
como um campo separado das decisões políticas e econômicas, através do discurso da
neutralidade científica que, embora recorrentemente discutido, em aspectos gerais, ainda não está
superado. Com isso, os objetos produzidos pela ciência entraram no cotidiano da sociedade,
entrando em suas relações ganharam estatuto de naturalidade social, tornando-se próteses dos
sujeitos.
Assim, a transformação da natureza nos objetos concretizados socioespacialmente se torna
natural nas relações sociais, mas não porque seu resultado seja tratado como fruto das próprias
relações que desenvolvem uma ideia de natureza, que transforma essa natureza e, também,
mantém em constante processo de transformação as próprias relações sociais; ao contrário, tal
processo ocorre por intermediação dos discursos que, tenham ou não a finalidade da dominação,
acabam por legitimar a produção científica sem questionar os processos político-econômicos que
a produz.
Dito de outra forma, se os objetos acabam por ganhar naturalidade nas relações sociais,
tornando-se próteses dos sujeitos; o mesmo não acontece quanto ao seu processo de construção.
Isso porque, no plano das relações sociais, tal produção aparece como algo descolado da
dimensão humana; como se os objetos produzidos a partir de uma transformação da natureza e
que tal sociedade utiliza, que passa a fazer parte dessa, não fossem criados por essa própria
sociedade e não se constituíssem numa espécie de intermédio das relações humanas e nas
relações humanas. Para Bruno Latour (1995, 2000, 2004, 2006) tal realidade, entendida por ele
como um processo de produção de assimetria, é um produto da constituição dos modernos.
Foi discutido por diversos autores que o período anterior ao advento do mundo moderno é
marcado por uma relação menos degradante da natureza pela humanidade (SANTOS, 1999;
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PORTO-GONÇALVES, 1989) e, por isso, não nos ateremos a discutir essas questões aqui.
Assim, concentramos nossa abordagem na ideia desenvolvida por Latour (1994), de que o
processo que levou a uma transformação intensa da natureza a partir da modernidade também
operou uma separação entre o natural e o social; e seu principal sentido está na produção de um
espaço mecanizado que desembocou no surgimento de híbridos, como os objetos técnicos.
Nesse sentido, o componente material do espaço é cada vez mais resultado da interação “natural”
e “artificial”, pois os meios de transformação da “natureza” pela ciência são revolucionários a partir
desse período, uma vez que altera-se cada vez mais as propriedades da matéria para produzir
objetos em laboratórios. E, nesse aspecto, a hibridização sociedade-natureza como valor e
representação, junta-se aos objetos híbridos produzidos pela ciência através dessa transformação
cada vez mais acelerada da natureza, e que pela forma como que foram socializados, como já
falamos antes, também ganharam um certo estatuto de naturalização, pois existem de forma tão
autônoma. É como se existissem por si mesmos.
Enfatizando nosso entendimento quanto à tese de produção de tal assimetria, reiteramos que as
intervenções da modernidade não se tratam apenas da intervenção na natureza “natural” e sim,
na própria natureza social, pois é da produção de outra natureza que estamos falando, divergente
e conflitante com aquela produzida no meio natural. É o meio natural como sentido de
organização socioambiental que será alterado. Nesse aspecto, a transformação do meio natural
em meio técnico não trata, somente, das intervenções nos recursos da natureza, mas é
principalmente o resultado das transformações feitas no sentido de relações sociais. Então,
produz-se uma nova natureza porque se desenvolve uma nova relação entre os homens. A
relação homem-homem e, inclusive, o que é o próprio homem, sofrem mudanças para o período
moderno, como bem escreveu Latour (1995) ao fazer referência à constituição dos modernos e
sua relação com o período anterior.
Todas as formas de pensar de outrora tornaram-se ineptas ou aproximativas. Ou,
antes, a simples aplicação da Constituição moderna define um “outrora”
absolutamente diferente do belo presente. O obscurantismo das idades passadas,
que misturavam indevidamente necessidades sociais e realidade natural, foi
substituído por uma aurora luminosa que separava claramente os encantamentos
naturais e a fantasia dos homens. As ciências naturais definiam a natureza e cada
disciplina foi vivenciada como uma revolução total através da qual ela se separava
enfim do Antigo Regime. Ninguém é moderno se não sentiu a beleza desta aurora
e não vibrou com suas promessas (LATOUR, 1995, p 40).
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Produz-se um espaço mecanizado, mas também se produz o divórcio entre o social e o natural.
Claro que, essa idéia que punha de um lado as coisas da natureza e do outro as coisas da
sociedade, assim como também punha de um lado as coisas da ciência e do outro as coisas da
política, nunca representou, de fato, uma separação. Isso porque, quando a modernidade
desenvolve a ideia de natureza recurso, que serve em essencial para oferecer a matéria da
produção dos objetos técnicos está, com isso, introduzindo um novo conceito de natureza.
Por isso, o conceito de natureza desenvolvido pela modernidade está diretamente relacionado a
uma metamorfose nas relações sociais, políticas e econômicas. Se, por meio de uma constituição
moderna, como afirma Latour (1995), operou-se a assimetria entre o natural e o social, entre os
objetos técnicos e a natureza; também é importante relacionar que as relações sociais sofrem
esse processo de fragmentação, uma vez que um importante culto ao individualismo, ao
isolamento do homem e a busca pela satisfação individual, principalmente pela acumulação de
capital; expressa uma nova mentalidade; que era resultado de um longo processo de transição.
Não é apenas a natureza que sofre a transformação, ganhando um estatuto de recurso, cuja
função é a geração da riqueza; a natureza humana também é transformada por essa nova cultura
relacional.
A natureza da crise da Natureza
Enrique Leff, um dos maiores expoentes da literatura sobre a crise ambiental, tem como
argumento a tese de que o que denominamos de crise ambiental (crise da natureza) é muito mais
complexo do que a visão míope que direciona a questão unicamente para a escassez dos
recursos existentes na Natureza e transformados em meios de acumulação de capital (LEFF,
2001, 2006a, 2006b). Para o autor, a crise é do saber ambiental produzido, chamando a atenção
para a necessidade de um tratamento epistemológico da crise.
Carlos Walter Porto-Gonçalves, também dedica especial atenção a essa discussão da separação
entre a crise ambiental e a forma de pensar a natureza e a sociedade. Questiona, inclusive, a
crença hoje bastante difundida de uma solução técnica para as questões ambientais que põem
em risco a existência humana (PORTO-GONÇALVES, 2006). Não se trata de negligenciar a
importância das técnicas nesse problema, mas justamente de negar que a questão diz respeito a
de uma intervenção técnica na natureza, nos chamados ponto críticos, como solução.
Numa abordagem mais metodológica, Edgar Morin enfatiza o tratamento da complexidade da
natureza e das relações sociais, enfatizando a existência do tecido inseparável composto pelo
homem-natureza. Enfatiza a complexidade que une o técnico e o biológico, o técnico e o social
(MORIN, 2008).
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Na mesma linha do questionamento das ações e pensamentos fragmentados e fragmentadores,
Bruno Latour aborda a temática da crise da Natureza com questionamentos acerca do tratamento
das questões ambientais pela ciência e pela política. Ciência e política (incluindo aí os interesses
econômicos) constituem na visão do autor, o meio pelo qual se produz os objetos que compõem a
materialidade técnica da presente sociedade. Assim, uma discussão política da Natureza não
pode acontecer simplesmente pela junção das duas palavras, sem que o processo de hibridação
seja de fato apreendido como dimensão complexa (LATOUR, 2004).
Daí que a junção não acabou com a assimetria, pois o foco permanece ora na natureza ora na
política, como se estivéssemos lidando com dimensões separadas. As ciências naturais
continuam focando na natureza como se esta constituísse um mundo à parte dos humanos, e as
ciências sociais permanecem com o foco na sociedade, mantendo a assimetria. Claro que, de vez
em quando, as ciências naturais visitam a sociedade, e as ciências sociais visitam a natureza;
mas não se reconhecem como híbridos de natureza e cultura. Por isso, continuam as intervenções
técnicas na natureza porque acreditam que basta conhecer o funcionamento do corpo natural e
aplicar uma dada receita, sem o cuidado de que as técnicas, por serem humanas, já são também
natureza – mais que isso, são híbridos de natureza e cultura.
Os fatos científicos são produzidos. Nessa concepção, a crise da natureza é um fato. Mas, se
existe crise da natureza, do que se trata de fato? Se os fatos são fabricados seria a crise um
evento, uma produção? A crise dos recursos naturais não é um obstáculo que surge como
externalidade do modelo, para barrá-lo, ela é uma contradição gerada pelo próprio modelo, que só
apareceu há pouco mais de quatro décadas como problema. O que queremos dizer com isso é
que desde o início do modelo urbano industrial atual, os recursos utilizados começaram a ser um
problema, uma vez que pela sua natureza não ilimitada, já se iniciava o processo do esgotamento.
Então, como definir o início da crise? É lúcido, nesse caso, pensar que ela surge quando o modelo
assim a concebe, a sente imbricada no processo produtivo. Os recursos naturais permanecem
como sempre foram na natureza, porque aí eles não se explicam pela quantidade existente, nem
pela qualidade que os homens atribuem a eles, eles são pela própria dinâmica dos processos da
natureza – que estamos distantes de conhecer. Ser inesgotável ou esgotável é um estatuto social.
Assim, tanto o sentido de esgotável e não-renovável quanto de inesgotável e renovável,
encontram seus significados quando pensados a partir de suas funções sociais, e as funções são
produzidas historicamente, assim como as necessidades que elas buscam satisfazer também são.
Isso não significa negar as necessidades que o ser humano tenha justamente pela condição de
ser humano ou de tornar-se humanidade, num sentido universal do termo, como natural e social,
mas estamos falando de produção de estímulos, aguçamento de desejos – dispositivos de
realização cultural e material.
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Isso significa, de acordo com os autores aqui discutidos, em especial Bruno Latour, que não
podemos concentrar o estudo só na natureza para entendê-la, nem só na sociedade; e sim nas
relações que constroem os homens com a natureza, porque a natureza está no homem tanto
quanto o homem está na natureza. É preciso pensar numa forma de acabar com a assimetria que
ora privilegia uma, ora a outra.
Sabemos que essa separação não existe de fato, mas tomou a forma de um poderoso discurso e
materializou-se como realidade espacial. É como se o que cabe à ciência, como produção dos
não-humanos – dos objetos -, e o que cabe à política, como produção representação dos
cidadãos, fosse passível de separação. A constituição dos modernos amparou-se, evidentemente,
nessa separação – “se a Constituição moderna inventa uma separação entre o poder científico,
encarregado de representar as coisas e o poder político encarregado de representar os sujeitos,
não devemos tirar disto a conclusão que os sujeitos estão separados das coisas” (Latour, 1994, p
35).
Nessa concepção, a problemática da crise da natureza que se apresenta no momento atual nos
leva a pensar na emergência de discussão de qual é a natureza da crise. O desequilíbrio
ambiental existe, a natureza apresenta-se com uma degradação intensa de sua existência como
ente complexo. Mas a crise a qual vivemos, como sociedade imersa na dinâmica da natureza é de
natureza social, no sentido da relação intra-sociedade e desta com a natureza.
No entanto, pelo tratamento que se dá à questão ambiental pelas instituições políticas, inclusive
na forma da legislação, uma vez que elas não servem somente para regular a relação homemhomem, mas também a relação homem-natureza (em especial em sua forma recurso), ou melhor,
homem-recurso-homem, uma vez que o próprio recurso se torna meio de existência dos modelos
desenvolvidos.
Entendemos que a operação assimétrica permanece e, nesse sentido, continua um processo de
purificação entre natureza e cultura, em que a ciência continua sendo porta-voz dos objetos da
natureza e a política permanece sendo porta-voz das representações sociais. De um lado um
sujeito de direito, do outro o objeto da ciência; como se a ciência das coisas – da natureza estivesse separada da política dos homens. Por isso, como escreve Latour (2000, 2001), não é
possível entendermos as assimetrias se não encontrarmos uma porta de entrada. Não há caminho
trilhado para a porta certa, mas tememos pela que ora nos apresentam os portadores das
soluções para crise ambiental. A porta de entrada é, sempre, em algum lugar onde os processos
têm inicio como relações complexas e, sempre, nas redes construídas para que os objetos e os
objetivos se concretizem.
No sentido como entendemos a crise ambiental, defendemos a tese de que o atual modelo de
desenvolvimento absorveu a crise de tal forma que a transformou, hoje, no sentido de existência
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do próprio modelo. O fato de estarmos lidando com recursos que são escassos para a
humanidade, faz com que as práticas mais valorizadas sejam aquelas direcionadas para a boa
administração desses recursos de modo que eles garantam reprodução do modelo e, ao mesmo
tempo, sejam portadores de uma sustentabilidade socioambiental. Becker (2006) e Harvey (2004)
chamam a atenção para as reservas de capital natural como uma das estratégias geopolíticas do
século XXI.
Dito de outra forma, trata-se de produzir os meios para viver na crise, administrá-la sem ter que
questionar-se sobre os valores do processo que a desenvolveu, nem se é possível uma outra
forma de relação com a natureza – uma outra natureza, assim como, pari passu, outra sociedade.
Assim, os novos valores produzidos, que são de natureza comportamental, são direcionados para
a crise. As instituições financeiras que mais lucram são aquelas que desenvolvem práticas que
estejam em maior compatibilidade com a crise, e não com a natureza. Em certo sentido, a crise se
tornou independente, tanto da natureza quanto da sociedade, porque já não está comprometida
com a primeira, nem com a segunda. Claro que, essa independência, não tem nenhum sentido de
isolamento.
Estamos hoje, em processo de construção de uma sociedade da crise, cuja missão é tornar-se
sustentável – sustentabilidade é, no caminho em construção, a sustentabilidade da crise, porque
trata-se de encontrar os meios de sustentabilidade da sociedade urbano industrial, em que a
permanência depende da administração da crise ambiental.
Para não-concluir
Nossas considerações apontam que a crise da natureza não é um fenômeno do nosso tempo, ela
ocorreu em vários momentos da história dos homens em que um novo sentido e função de
relação entre estes (os homens) e destes com a natureza se tornou determinante como realidade
a ordenar as ações sociais em relação a sentidos e funções vigentes. Dito de outra forma, os
períodos históricos que se caracterizaram como formas peculiares de relação entre os homens
também se constituíram como forma de relação entre os homens e a natureza; e o nosso
entendimento é que, sempre que aquilo que move os homens a constituírem uma dada forma de
relação cedeu lugar a uma nova forma de pensar e agir socialmente, também significou mudanças
na forma de conceber a natureza. Assim, as crises que proporcionaram o surgimento de novos
períodos sociais - novas concepções de homem, de sociedade, de economia, de política; também
significaram novas concepções de natureza, se entendermos que não tem como separar o social
e o natural, assim como também não dá pra dissociar a forma de como os homens produzem a si
mesmos como sujeitos sociais do significado que a natureza ocupa nessa relação.
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Sobre o período atual, entendemos que se trata de algo diferente enquanto crise, porque tal
evento não traz a busca de superação de uma mentalidade, da produção cultural da realidade;
mas está direcionado diretamente para o uso da natureza recurso. Nesse aspecto, apresenta-se a
técnica como solução porque parte-se do pressuposto que é preciso agir nas partes afetadas pelo
uso exacerbado. Por isso questionamos o caráter de crise do período, em que os mecanismos
produzidos para a solução são, de acordo com nossa tese, dispositivos de administração da crise
– de forma que a essência e prática contraditórias do modelo não sejam o objeto da mudança.
Não obstante, se por um lado o que vem sendo discutido sobre a crise não abre a possibilidade de
existência de outra sociedade, de outra natureza; a crise, pensada como um evento social, político
e econômico, sim. Como bem salienta o pensador francês Gilles Deleuze (1992), o mais marcante
de um evento não é o seu acontecer como fato histórico, mas a potencialidade que ele carrega
para acontecimentos dentro do acontecimento. Em outras palavras, o mais importante de um
evento é o que ele representa como potência, o surgimento de novos devires – devir
revolucionário - para usar as palavras do autor. Da mesma forma, também vale a pena nos
reportarmos a Hannah Arendt (2009) e acreditarmos que pela própria dinâmica da sociedade, em
que cada ser em si é capaz de produzir o novo – é sempre possível esperar milagres. O milagre
como a ação que transforma a potência em transformação.
Referências
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DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992
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________________, A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro:
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