UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE DIREITO SAULO MEDEIROS DA COSTA SILVA APLICAÇÃO RETROATIVA DA NORMA TRIBUTÁRIA INTERPRETATIVA: UM ESTUDO SOBRE SUA CONSTITUCIONALIDADE CAMPINA GRANDE 2007 SILVA, Saulo Medeiros da Costa. Aplicação retroativa da norma tributária interpretativa: um estudo sobre sua constitucionalidade 53p. , 2007. Trabalho Acadêmico Orientado. Universidade Estadual da Paraíba, Curso de Direito. RESUMO A interpretação, no âmbito jurídico é uma atividade cognoscitiva que visa precisar o significado e o alcance das normas, possibilitando-lhes uma correta aplicação. A interpretação exige a pesquisa, o raciocínio, a experiência empírica, a parcialidade, o conhecimento da ciência e da técnica do Direito. A interpretação, quanto à origem, poderá ser judicial, doutrinal ou autêntica. A interpretação autêntica é a realizada pelo poder de que emana o ato. Ela pode ocorrer em dois momentos: quando o legislador na lei primária conceitua algum instituto, ou quando o legislador, através de uma lei (secundária), posterior, estatui normativamente a interpretação que se deve dar a outra lei (primária). Dentro deste contexto, a atual discussão recai sobre a possibilidade de conferir efeito retroativo a lei interpretativa que objetiva esclarecer o sentido e o alcance de lei anterior. Neste sentido, o presente trabalho analisa o dispositivo previsto no art. 106, inc. I do Código Tributário Nacional, que fundamenta a possibilidade da retroatividade das leis interpretativas no Direito Tributário, confrontando-o com os princípios constitucionais. Os resultados obtidos na pesquisa indicam que parte da doutrina e a maioria dos membros do Supremo Tribunal Federal sustentam que as leis interpretativas são válidas, legais, constitucionais e não afrontam o princípio da Separação dos Poderes. Parte dessa corrente defende que a melhor interpretação é a autêntica, pois é realizada pelo próprio autor da lei. Bem como, sustentam que o legislador pode interpretar leis e institutos sem usurpar a função do Judiciário que poderá interpretar a própria lei interpretativa. Por fim, admitem a retroatividade da lei meramente interpretativa no âmbito tributário. Todavia, a corrente contrária defende a inconstitucionalidade das aludidas leis, pois, ferem o princípio da Separação dos Poderes, haja vista, ser o Judiciário e não o legislativo o ente, constitucionalmente, incumbido de interpretar e aplicar a lei. Sustentam também que a lei é opção política, enquanto interpretá-la é opção jurídica, logo, elaborar e interpretar as leis não cabe ao mesmo ente público. Ademais, para esta doutrina, não é dado a uma lei interpretar outra, pois, a lei é o direito objetivo que inova inauguralmente a ordem jurídica, e não método de interpretação. Defendem que o acolhimento das leis interpretativas cria um círculo vicioso, uma vez que elas também devem ser interpretadas e isto fatalmente acaba por acarretar uma série infinita de interpretações, pondo em xeque o princípio da segurança jurídica. Para essa corrente, as leis interpretativas não devem ser acolhidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas, em caso de aceitação, produzirão efeitos ex tunc, ou seja, não retroagiram. Conclui-se que as leis interpretativas “riscam” o princípio da Separação dos Poderes, além de criarem um círculo vicioso, uma vez que elas também devem ser interpretadas e isto fatalmente acaba por acarretar uma série infinita de interpretações. Ademais a possibilidade dos efeitos retroativos da norma interpretativa tributária fere os princípios constitucionais da retroatividade e da segurança jurídica. Contrário ao entendimento de alguns ministros do STF, entendemos que o art. 106, inc. I do CTN não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. PALAVRAS-CHAVE: Princípios constitucionais, irretroatividade, lei interpretativa. SILVA, Saulo Medeiros da Costa. Aplicação retroativa da norma tributária interpretativa: um estudo sobre sua constitucionalidade 53p. , 2007. Trabalho Acadêmico Orientado. Universidade Estadual da Paraíba, Curso de Direito. SUMMARY Interpretation in the juridical area is a cognoscitive activity that aims to determine meaning and meet rules by providing their accurate application. Interpretation requires research, rationale, empirical background, involvement, knowledge in science, and Law techniques. As for its origin, interpretation can judicial, doctrinal or authentic. As an authentic instrument, it can be conducted by the power that generates the act. It may occur as the legislator conceptualizes an institute in a primary law, or when he (she) through a secondary law enforced afterwards, normatively establishes the interpretation that can be given to this law (primary). In this context, the current discussion relates to the viability to confer retroactive effect to the law interpreted that attempts to clarify the meaning and the reach of the previous law. Thus, the present paper analyzes the legal provision in article 106, subparagraph I of the National Tax Code (NTC) which reinforces the viability of retroactivity of the interpreting laws in the Tributary Right by judging it through constitutional principles. The results obtained in the survey show that part of the doctrine and most of the members of the Supreme Court emphasize that the interpretative laws are valid, legal and constitutional, and that they don´t threaten the Power Separation principle. Part of this trend claims that the best interpretation is authentic because it is conducted by the own author of the law. Also, it claims that that the legislator can interpret laws and institutes without seizing the judiciary power of interpreting the own interpretative law. Finally, it is admitted that the interpretative law can be retroactive in the tributary scope. However, there is an opposing chain that claims that such laws are not constitutional because they can harm the Power Separation principle, since it is the Judiciary and not the Legislative, the organ constitutionally competent to interpret and apply the law. It also emphasizes that the law is a political option, while to interpret it is a juridical option, hence elaborating and interpreting should not be accomplished by the same public entity. Besides, according to this doctrine, a law cannot interpret other law because it is the objective right that can innovate the juridical order, not necessarily the method of interpretation. It is supported that the deference of interpretative laws generates a continuous circle, once they must also be interpreted and this tends to bring an unlimited range of interpretations by affecting the principle of juridical security. For this chain, the interpretative laws should not be accepted just by the Brazilian system, but, in case of acceptance, they will cause ex func effects, that is, they do not retroact. It was concluded the interpretative laws risk the Power Separation principle besides generating a continuous circle, since they should also be interpreted and could cause numerous interpretations. Furthermore, the viability of retroactive effects of the interpretative tributary rule can harm both the constitutional principles of retroactivity and the juridical security. Opposing to the viewpoints of some ministers of the Supreme Court, we believe that art. 106, subparagraph I of CTN hasn´t been accepted by Federal Constitution of 1988. Key words: constitutional principles, irretroactivity, interpretative law SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 5 1. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IRRETROATIVIDADE ............................................................. 7 1.1. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE PRINCÍPIOS JURÍDICOS ......................................................... 7 1.2. CONCEITO DO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE ..................................................................... 8 1.3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA IRRETROATIVIDADE NO DIREITO PÁTRIO .................................. 9 1.4. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE NO DIREITO COMPARADO ......................................... 11 1.5 ESPÉCIES DE RETROATIVIDADE DA LEI ........................................................................................ 13 2. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE E O DIREITO ADQUIRIDO .............................................. 15 2.1. PREVISIBILIDADE E SEGURANÇA JURÍDICA ................................................................................ 16 2.1.1. Exceções ao princípio da irretroatividade previstas no CTN ............................................................ 18 3. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA......................................................................................... 20 3.1. CRITÉRIOS DE INTERPRETAÇÃO DA LEI ....................................................................................... 21 3.1.1. Gramatical ......................................................................................................................................... 21 3.1.2. Lógico ................................................................................................................................................ 21 3.1.3. Histórico-evolutivo: ........................................................................................................................... 22 3.1.4. Teleológico......................................................................................................................................... 22 3.1.5. Sistemático ......................................................................................................................................... 23 3.1.6. Sociológico......................................................................................................................................... 23 3.2. ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO CONSIDERANDO A FONTE DE QUE EMANA O ATO....... 24 3.2.1. Interpretação Autêntica ..................................................................................................................... 24 3.2.2. Interpretação Judicial ........................................................................................................................ 24 3.2.3. Interpretação Doutrinária ................................................................................................................. 24 4. A INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA ........................................................................................................... 26 4.1. CONCEITO.............................................................................................................................................. 26 4.2. CONTRADIÇÃO NA EXPRESSÃO “LEI INTERPRETATIVA” ......................................................... 26 4.3 CRÍTICA E VALIDADE NA CONCEPÇÃO ATUAL ............................................................................. 27 4.4. POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS ACERCA DA INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA ............. 30 5. RETROATIVIDADE DA LEI INTERPRETATIVA NA SEARA TRIBUTÁRIA ................................... 32 5.1. LEITURA DO ART. 106, INC. I DO CTN .............................................................................................. 32 5.2. CRÍTICA À APLICAÇÃO RETROATIVA DA NORMA INTERPRETATIVA .................................... 33 5.3 CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA INTERPRETATIVA RETROATIVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO .................................................................................................................................................. 36 6. ANÁLISE DA LEI COMPLEMENTAR Nº 118/05: ARTS. 3º E 4º ........................................................... 38 CONCLUSÕES ................................................................................................................................................... 46 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................. 49 INTRODUÇÃO A noção de princípio, latu sensu, relaciona-se com a de origem. Há uma similitude com a idéia de causa primária, com a concepção de algo que seja fundamental para a construção ou apoio de alguma coisa. Reale (2002, p. 305) com muita propriedade nos lembra que os “princípios são enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber”. Com base nesse ensinamento podemos conceituar os princípios jurídicos como enunciados normativos que funcionam como condição ou validade para as normas que compõem o sistema jurídico. Dentre os grandes e basilares princípios que respaldam e limitam o exercício do poder de tributar temos o princípio da irretroatividade. A irretroatividade, juntamente com a legalidade, anterioridade, tipicidade fechada, não-confisco, incita e obriga o Estado a planejar com antecedência, e de acordo com os preceitos legais, a sua política tributária. A observância destes princípios garante a mínima segurança jurídica indispensável, no Estado Democrático de Direito, ao sujeito passivo da relação tributária. O princípio da irretroatividade, pelo exposto no art. 6º do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, conhecido como Lei de Introdução ao Código Civil – LICC, e pelo que consta no art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, é regra geral no Sistema Jurídico Brasileiro: Art. 5º (Omissis): XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ressalta-se a grande contribuição dos anteprojetos do Código Civil de 1916 para a matéria em voga. O célebre “Esboço” – Anteprojeto de Teixeira de Freitas – postulava em seu Título Preliminar, nos artigos 1.° e 2.°, que “as leis deste Código não serão aplicadas fora dos limites locais, e nem com efeito retroativo [...] Os limites de sua aplicação quanto ao tempo serão designados em uma lei especial transitória” (SELBACH; COLZANI, 2006). 6 O princípio da irretroatividade, além de ser regra geral no Direito Brasileiro, é princípio específico no Direito Tributário, pois a Carta Magna o consagrou, de forma expressa, ao elencar que: Art. 150 (Omissis): III - Sem prejuízos de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. O Código Tributário Nacional (CTN) criou uma exceção ao princípio em comento, determinando no seu art. 106, inc. I, que a lei se aplica a ato ou fato pretérito: em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados. Dessa forma, o CTN criou, em matéria tributária, a figura da retroatividade da lei interpretativa. As leis interpretativas, aquelas que objetivam interpretar outras leis, retroagem no tempo alcançando fatos ocorridos anteriormente a sua vigência, regulados e consolidados de acordo com os preceitos legais vigentes à época. Nesse sentido, questionamos se a aplicação retroativa da norma interpretativa, prevista no art. 106, inc. I, do Código Tributário Nacional, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988? O objetivo geral é analisar a constitucionalidade da aplicação retroativa da norma tributária interpretativa. Por sua vez, especificamente busca-se enfatizar a importância dos princípios constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro; demonstrar a falta de técnica do legislativo; analisar a norma interpretativa em face da atual Carta Magna; examinar a interpretação autêntica frente aos princípios da democracia e da separação dos poderes; analisar a norma tributária interpretativa em face dos princípios da irretroatividade e segurança jurídica. A técnica de pesquisa utilizada foi a investigação bibliográfica. Adotamos o método de abordagem crítico-informativo. Exploramos os contornos da literatura através dos mais variados materiais publicados em livros, jornais, revistas, bem como na Internet. 1. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IRRETROATIVIDADE 1.1. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE PRINCÍPIOS JURÍDICOS Para melhor visualização dos princípios e da sua importância para o Direito, utilizaremos uma analogia sempre feita pelos ilustres Ataliba e Mello (apud CARRAZA, 2002, p. 32): O sistema jurídico ergue-se como um vasto edifício, onde tudo está disposto em sábia arquitetura. Contemplando-o, o jurista não só encontra a ordem, na aparente complicação, como identifica, imediatamente, alicerces e vigas mestras. Ora, num edifício tudo tem importância: as portas, as janelas, as luminárias, as paredes, os alicerces etc. No entanto, não é preciso termos conhecimentos aprofundados de Engenharia para sabermos que muito mais importantes que as portas e janelas (facilmente substituíveis) são os alicerces e as vigas mestras. Tanto que, se de um edifício retirarmos ou destruirmos uma porta, uma janela ou até mesmo uma parede, ele não sofrerá nenhum abalo mais sério em sua estrutura, podendo ser reparado (ou até embelezado). Já, se dele subtrairmos os alicerces, fatalmente cairá por terra. De nada valerá que portas, janelas, luminárias, paredes etc. estejam intactas e em seus devidos lugares. Com o inevitável desabamento, não ficará pedra sobre pedra. Pois bem, tomadas as cautelas que as comparações impõem, estes “alicerces” e estas “vigas mestras” são os princípios jurídicos. Os alicerces e as vigas mestras estão para um edifício assim como os princípios estão para o sistema jurídico. Este é formado por regras de conduta, normas legais e morais (portas, janelas etc) e também por princípios (vigas mestras, alicerce). Se infringirmos uma simples norma é claro que o ordenamento jurídico sofrerá uma lesão, mas nada que venha a comprometer a sua base. Por outro lado, se desdenharmos os princípios estaremos colocando em risco toda a harmonia e congruência do sistema que pode vir a “desabar”. Logo, percebe-se que os princípios são verdadeiros alicerces para o ordenamento jurídico, mandamentos nucleares de um sistema. É com base nessa assertiva que podemos afirmar que ferir um princípio é muito mais repudiável do que ferir uma norma. A inobservância de um princípio equivale à quebra de todo o sistema jurídico. Os princípios estão na base do ordenamento jurídico, compõem o espírito da norma e servem de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definirem a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. 8 Como observa Borges (apud MACHADO, 2001, P. 14-15): A violação de um princípio constitucional importa em ruptura da própria constituição, representando por isso mesmo uma inconstitucionalidade de conseqüência muito mais gravosa do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional. Com as devidas cautelas, podemos equiparar os princípios à palavra grega Arkhé, cuja definição está relacionada à concepção de origem. Não a origem passada, embrionária e estática, e sim a origem imperecível e contínua, aquela que está sempre se renovando e dando origem a todas as coisas. 1.2. CONCEITO DO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE O princípio da irretroatividade se traduz na proibição de estender a eficácia da lei a situações ou relações pretéritas. A legislação tributária, uma vez vigente, tem aplicação imediata, contudo, não se aplica aos fatos geradores já consumados no passado (art. 105 do Código Tributário Nacional). O princípio da irretroatividade é regra geral no Direito Brasileiro. Em tese, o constituinte tornou-se redundante ao tê-lo elencado, novamente, na parte das vedações ao poder de tributar. Contudo, como aponta Calmon (2005, p. 206) “em face das peculiaridades de nossa recente experiência jurídica, fez-se necessária a sua menção expressa no capítulo do Sistema Tributário”. A Constituição Federal de 1988, da Republica Federativa do Brasil, consagrou o princípio da irretroatividade de forma expressa no art. 150, III, a, CF/88. Assim como, de forma implícita, asseverou que “a lei não prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito” - Art. 5º, XXXVI, CF/88. No primeiro caso, temos a proteção do contribuinte, no segundo, visualizamos a proteção do cidadão. Em outros países, como na Alemanha, os germânicos extraem a irretroatividade do Direito - não apenas das leis, mas também dos atos administrativos e da jurisprudência - do princípio do Estado de Direito. Os italianos, por sua vez, extraem os fundamentos da irretroatividade tributária do princípio da capacidade contributiva. 9 Como dito alhures, diferente de outros Estados, no Brasil a irretroatividade da lei é princípio constitucional expresso. 1.3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA IRRETROATIVIDADE NO DIREITO PÁTRIO A irretroatividade da lei, em observância ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, tem nível constitucional no Brasil, desde a Constituição do Império de 1824, no art. 179, inc. III. Senão vejamos: Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: [...] III - A sua disposição não terá effeito retroactivo;1 [...] No Brasil, desde o Império que o princípio da irretroatividade tem "status" constitucional e é uma constante nas Constituições republicanas. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, no seu art. 11, inc. 3º, vedava aos Estados, como à União, a prescrição de leis retroativas: Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União: [...] 3 º) prescrever leis retroativas. O Estatuto Político de 1934 introduziu, no seu art. 113, inciso 3º, a proteção ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito. Nestes termos: Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 3) A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. 1 Mantida a grafia original. 10 Em 1937, com o golpe do Estado Novo, Getúlio Vargas outorgou a terceira constituição republicana, denominada de "Polaca", inspirada no modelo fascista e, conseqüentemente, de cunho autoritário (BASTOS, 2002, p. 189). Foi neste momento também que surgiu uma inovadora e provisória etapa do direito intertemporal no Brasil. Com efeito, esta Carta Magna, rompendo a tradição, silenciou a respeito da retroatividade da lei, delegando à lei ordinária esta tarefa, aplicando, assim o modelo europeu. Neste período, nada impedia que o legislador desse à lei efeitos que atingissem direitos já adquiridos. Todavia, a antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Lei nº 3.071/16), no seu art. 3º, dispunha que: Art. 3º A lei não prejudicará, em caso algum, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. Por imperativo da primitiva Lei de Introdução ao Código Civil, que à época estava em vigor, o juiz estava obrigado a observar a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Contudo, como destaca Delgado (1999, p. 9-29) “Como era de se esperar, a Constituição de 1937 não assegurou o referido princípio. Por essa razão, várias leis surgiram com efeitos retroativos e foram interpretadas de modo não uniforme, gerando instabilidade na aplicação do direito”. Na vigência desta omissa constituição, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, com base na teoria objetiva de Roubier, a Lei de Introdução ao Código Civil – LICC (Decreto-Lei nº 4.657/42) admitindo que a lei nova, desde que expressa neste sentido, pudesse retroagir, de sorte que o princípio da irretroatividade se aplica tão somente ao Juiz e ao Administrador. O art. 6º deste Decreto-Lei dispunha que "a lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do acto jurídico perfeito"2. A omissão constitucional quanto à irretroatividade da lei e à possibilidade do legislador conferir à lei efeitos pretéritos fomentou insegurança nas relações jurídicas. Os efeitos da nova LICC foram amenizados pelo curto espaço de tempo 2 Mantida a grafia original 11 entre sua entrada em vigor (1942) e a nova Constituição Federal de 1946, que voltou a proteger o direito adquirido. A Constituição de 1946, no Capítulo que trata dos direitos e das garantias individuais, no art. 141, §3º, restabeleceu plenamente o princípio de que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada: Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 3º - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Redação repetida pela Constituição de 1967 (art. 150, § 3º) e pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969 (art. 153, §3º). Com o regresso, na Constituição de 1946, do princípio da irretroatividade no tocante ao direito adquirido, calcificado no art. 141, § 3º, o texto original do art. 6º da LICC se tornou parcialmente incompatível com a nova ordem jurídica, não sendo recepcionado. Entretanto, a fim de dirimir qualquer dúvida a respeito da sobranceira aplicação da teoria subjetivista em matéria de direito intertemporal, a Lei nº 3.238/57 alterou a redação do art. 6º da LICC que passou a ter os seguintes termos: Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada: § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2º Consideram-se adquiridos, assim, os direitos que seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba mais recurso. A Constituição da República Federativa de 1988, no seu art. 5º, inc. XXXVI, também reproduz a mesma redação da Constituição de 1946: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. 1.4. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE NO DIREITO COMPARADO 12 A irretroatividade das leis exprime um dos postulados ancilares do direito intertemporal que, no dizer de Roubier, integra o patrimônio comum dos povos civilizados (BALEEIRO, 2003, p. 664). Historicamente, a irretroatividade remonta ao direito romano, onde mereceu o reconhecimento do jus civile, tendo ressurgido com Ulpiano e posteriormente com as regras Teodosianas, sendo também disciplinado pelo Código de Justiniano (JARDIM, 1999, p. 190). O marco relevante na trajetória do princípio em tela verificou-se na Carta Magna dos Estados Unidos, quando o princípio da irretroatividade das leis foi constitucionalizado. Em termos de Direito Constitucional Comparado, a primeira Constituição que, no mundo, cuidou do tema foi a Constituição norte-americana, de 1787, que, em seu art. I, seção 9, nº 3, determina que “No Bill of Attainder or ex post facto Law shall be passed”. A Constituição norte-americana é, portanto, a matriz do instituto. Registra-se que o aludido princípio tem "status" constitucional em pouquíssimas constituições, apenas nas Constituição do México, dos Estados Unidos da América, da República Federativa do Brasil e da Noruega. (VELLOSO). Na Europa, conforme noticiado, especialmente por autores italianos e franceses, o princípio da irretroatividade da lei é estabelecido, em regra, em lei ordinária (codificação civil), vinculando o magistrado, mas não o legislador (SARAIVA FILHO, 2000). Naqueles sistemas, estando a obrigatoriedade da não retroatividade vinculada somente ao juiz, o legislador tem a faculdade de elaborar leis retroativas, quando entender que seja justo, independente da violação que acarrete. Nestes casos, pois, a irretroatividade tem a característica de política legislativa, donde "o juiz não pode atribuir efeito retroativo às disposições novas, a não ser que o legislador tenha claramente manifestado sua vontade neste sentido” (PEREIRA, 2002, p. 34). Como observa Pereira (2002, p.34), essa "é a doutrina em vigor na França, cujo Código Civil (art. 2º) prescreve que a lei só dispõe para o futuro, e não tem efeito retroativo; da mesma forma o Código italiano de 1865 estatuía (art. 2º) e o novo, de 1942, determina (art. 11); o Código Civil espanhol (art. 3º) diz que a lei não tem efeito retroativo, salvo se o contrário dispuser o legislador". 13 Como observa Ataliba (apud MANEIRA, 1994, p. 39): Impressiona muitos espíritos a circunstâncias de no Direito europeu não haver violação explicita à irretroatividade, nem proteção constitucional expressa e formal ao direito adquirido. Nesses sistemas, como no norte americano, a segurança dos direitos repousa mais nos princípios implicitamente consagrados, que são arraigados na consciência dos parlamentares, administradores e juízes. O grau de civilização alcançado por esses países permite que a garantia da liberdade e do patrimônio dos cidadãos dependa unicamente dos critérios do legislador e dos juizes, não tendo sido necessário nenhuma consagração constitucional expressa. Diferentemente, no Brasil, mesmo estando expresso o princípio da irretroatividade da lei, não raro, deparamo-nos com violação explícita à irretroatividade e ao direito adquirido. 1.5 ESPÉCIES DE RETROATIVIDADE DA LEI As leis, como é sabido, devem dispor para o futuro. Regulam os atos praticados durante a sua vigência. A vigência representa a característica de obrigatoriedade da observância de uma determinada norma, ou seja, é uma qualidade da norma que permite a sua incidência no meio social. Em geral, o início da sua vigência coincide com a data da sua publicação. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro trata da vigência da lei, estabelecendo de forma pragmática os critérios que determinam o início da vigência. Afirma que, salvo disposição em contrário, a lei começa a vigorar em todo o território nacional quarenta e cinco dias após a sua publicação. Observe-se que, nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada. Pelo princípio do tempus regit actum, que é regra geral no Direito Brasileiro, os atos regem-se pela lei do tempo em que foram praticados. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN 493-0/DF, cujo Relator foi o Ministro Moreira Alves, por meio da interpretação jurídica, estabeleceu que há três tipos de retroatividade, tendo como critério a gradação por intensidade: máxima, média e mínima. (PEIXOTO, apud DEMO, 2000, p. 48). 14 A retroatividade máxima é a que retroage para atingir a coisa julgada ou os fatos jurídicos consumados. O exemplo clássico citado pela doutrina é a decretal de Alexandre III que, em ódio à usura, mandou os credores restituírem os juros recebidos. Alves (apud CASSONE, 2004, p. 67) A retroatividade média dá-se quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico celebrado antes dela. A lei nova alcança até mesmo prestações pretéritas, desde que ainda se encontrem pendentes de adimplemento. A retroatividade será mínima, também denominada de temperada ou mitigada, quando a lei nova atinge os efeitos futuros dos negócios jurídicos celebrados no passado. Sob a égide da retroatividade mínima, a lei nova alcança tanto os contratos celebrados após a vigência da lei quanto as prestações futuras de contratos celebrados no passado e que estejam em curso. Velloso (apud DEMO 2000, p. 53) assevera que: Nenhuma dessas retroatividades a Constituição brasileira permite. A retroatividade mínima, confundida com a aplicação imediata da lei, costuma ser comum na ordem jurídica brasileira, ou costuma ser admitida, em razão dessa confusão que se faz com aplicação imediata da lei, até por ilustres tribunais. Mas devemos estar atentos: na ordem jurídica brasileira tanto os ‘facta praeterita’, os fatos realizados, quanto os ‘facta pendentia’, os efeitos dos fatos realizados, são intangíveis pela lei nova. Sendo assim, dependendo do ramo do direito, a retroatividade mitigada poderá ser considerada como válida pelo Direito pátrio, quando importar em aplicação imediata da lei. 2. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE E O DIREITO ADQUIRIDO O princípio da irretroatividade da lei está entrelaçado com os direitos adquiridos. Pereira (apud DELGADO, 1999, p. 5) identificou a existência de três fases na evolução histórica do direito adquirido e do principio da irretroatividade: a embrionária, a pré-científica e a científica. A fase embrionária é composta pelos pensamentos firmados sobre direito adquirido e cultuados, na época, pelos povos do Egito, da Mesopotâmia, da Índia, da China, entre outros. No Egito, com a edição do Código de Bocchoris, suprimiu-se o juramento como causa das obrigações civis imitando o ius gentium de origem caldaica, mas forneceu um meio de neutralizar a interferência do fas no ius, mandando apelar para o próprio faz e obrigando o devedor a rezar uma oração solene, que o impedia de apelar para os deuses. No Código Manu, antigo diploma legal dos indianos (Século XIII a. C.), depositário da doutrina do Bramanismo e das normas fundamentais da organização social da Índia e um dos mais importantes no Direito Oriental, a noção de direito adquirido já se fazia presente, pois, o soberano devia considerar o lugar e o tempo, os meios de punir e os preceitos da lei. Por sua vez, o povo chinês, desde o século XVII, por força da denominada compilação de TSINGS que vigorou até 1912, data da Proclamação da República, consagrou o princípio da retroatividade das leis. O Direito Romano antigo, com o aprimoramento das suas entidades presentes, levou os estudiosos a concluírem que, ao tempo de Cícero (106-43 a. C), a regra da irretroatividade havia lançado raízes profundas na consciência jurídica dos romanos. (PEREIRA, apud DELGADO, 1999, p. 5). A fase pré-científica do direito adquirido pode ser situada como sendo a que abrange o Direito Romano, o Direito Medieval e o Direito Moderno. A contribuição do Direito Romano é identificada pelos seguintes fatos: o de Cícero ter advogado, em várias oportunidades, a impossibilidade de a lei nova modificar as regras da sucessão testamentária já aberta; de Ulpiano e Paulo terem construído a idéia de “causa finitae”, “relação jurídica definitivamente estabelecida e a salvo da incidência da lei nova, somente aplicável às causas pendentes”; a irretroatividade como princípio expresso na Constituição de Teodósio I, no ano 393; a legislação de Justiniano dispondo que a lei regula o futuro, não o passado, sem poder ser aplicada aos casos ainda não julgados, salvo se fosse expressa nesse 16 sentido; por fim, tendência de se aceitar tal princípio, também, no Direito Público. No Direito Medieval, o Código Visigótico, dos bárbaros, destaca-se como precursor da teoria do efeito imediato da lei nova, ao lado dos Códigos da Península Ibérica onde o princípio da irretroatividade das leis é claro. Pereira (apud DELGADO, 1999, p. 7). Na fase científica, destacam-se dois marcantes episódios. O primeiro caracterizado pela consolidação da doutrina clássica sobre direito adquirido, tendo como limite à retroatividade das leis, conforme disposto em algumas Constituições e Códigos Civis do Século XIX, mencionadas alhures. O segundo pela contribuição doutrinária de Merlin, Blondeua, Mailher de Cassata, Demolombe e Theódosiades, no Direito francês; Savigny, Lassalle, Windischeid e Dernburg, no direito alemão; Saredo, Pacific-Mazzoni, Gianturco, Lomonaco e Gabba, na Itália. (FREIRE, apud DELGADO, 1999, p. 8) Nunes (apud DELGADO, 1999, p. 14), em seu Dicionário de Tecnologia Jurídica, 1948, afirma que: Direito adquirido é toda vantagem que, proveniente do fato jurídico concreto, que a lei determinou, consentâneo com a lei então vigente, alguém incorpora definitivamente ao seu patrimônio, desde quando começa a produzir efeito útil, dele não podendo ser subtraída por mera vontade alheia. Com maior precisão o definiu Silva (apud DELGADO, 1999, p. 14): Direito adquirido é o direito que já se incorporou ao patrimônio da pessoa, já é de sua propriedade, já constitui um bem, que deve ser protegido contra qualquer ataque exterior, que ouse ofendê-lo ou perturbá-lo. Devemos constatar que o STF tem afirmado que o direito adquirido é instituto constitucional, embora esteja definido na Lei de Introdução ao Código Civil que é norma infraconstitucional. O plenário da Suprema Corte, no julgamento do RE 226.855 – RS, cujo relator foi o Ministro Moreira Alves, examinou a questão de saber se a ofensa ao direito adquirido ensejaria Recurso Extraordinário, prevalecendo o entendimento de que a ofensa seria direta à Constituição Federal. Corrente vencedora liderada pelo relator. 2.1. PREVISIBILIDADE E SEGURANÇA JURÍDICA 17 A transparência, a previsibilidade, a projeção para o futuro, bem como a observância da capacidade contributiva são garantias que conferem estabilidade, credibilidade e segurança às relações jurídicas entre o ente tributante e o sujeito passivo, que poderá ser contribuinte ou responsável, nos termos do Código Tributário Nacional. Caso o Poder Legislativo pudesse baixar leis retroativas, alteraria a essência do Estado de Direito e atropelaria o princípio da segurança jurídica, já que a lei, mesmo revestida do princípio da legalidade, poderia alcançar fatos e atos lícitos praticados na vigência de leis tributárias anteriores. Tal medida como aponta Carrazza (2002, p. 304) “quebraria, irremediavelmente, a confiança que as pessoas devem ter no Poder Público”. Em suma, o princípio da irretroatividade da lei tributária provém da necessidade de assegurar às pessoas segurança e certeza da intangibilidade dos atos e fatos lícitos praticados em face de lei nova. Ao analisar o instituto “lei” em sua essência, constata-se que não é compatível com a possibilidade de vigência retroativa. Lei, na sua acepção técnica, é “um ato normativo primário que edita normas gerais e abstratas”. Deixando de lado a sua significação técnica, a lei nada mais é do que um retrato da vontade da sociedade, por conseguinte, enquanto perdura uma lei que disciplina determinada matéria, pode presumir-se que a vontade da sociedade é que aquela normatização seja aplicável ao tema tratado. Quando é aprovada nova lei versando sobre matéria anteriormente disciplinada de forma diversa, pode-se concluir que a vontade da sociedade é que, somente a partir daquele momento, recebesse aquela nova normatização. E nem sequer poderia ser de forma diversa, mesmo porque um dos objetivos do Direito é o de assegurar a “segurança jurídica”, posto que disciplina as relações humanas de forma a possibilitar uma certa previsibilidade em relação a circunstâncias futuras, o que efetivamente não ocorreria caso pudesse uma norma retroagir. O que determinou a existência do Direito foi a necessidade de garantir segurança na vida social. O Direito surge para limitar a atuação do homem, ponderando a sua atuação em relação aos demais e conferindo certeza as suas ações. É preciso que o homem saiba o que pode fazer ou o que não pode, para não 18 ficar imerso no mundo das incertezas e insegurança. Neste sentido, Rao (apud BASTOS, 2002, p. 183) afirma que: A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto a sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças. Concordamos com o posicionamento acima, no sentido de resguardar o passado. Com esta finalidade existem os institutos jurídicos do direito adquirido, ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Os fatos pretéritos, pela própria natureza do homem, devem ser resguardados, apenas o futuro deve ser incerto. Vale salientar que a segurança jurídica, no sistema jurídico pátrio, é reforçada, porque o princípio da irretroatividade - ao contrário do que ocorre em outros países em que o legislador ficou bem mais livre para legislar, alcançando fatos pretéritos, tendo em vista a ausência de norma constitucional versando sobre a matéria ora discutida - tem a mesma dignidade constitucional que os princípios da legalidade e da isonomia. Assim, é cercado de maior rigidez não sendo cabíveis as teorias atenuadoras que permitem à lei nova atingir os efeitos econômicos de um ato inteiramente ocorrido e consumado no passado. Se o legislador pudesse editar leis retroativas, ninguém saberia mais como se comportar porque deixaria de confiar na lei, que a qualquer momento poderia ser alterada com reflexos nos fatos já ocorridos, tornando-se desta forma praticamente inexistente o padrão do certo e do errado. 2.1.1. Exceções ao princípio da irretroatividade previstas no CTN 19 A lei, em regra, não retroage, por força do principio constitucional da irretroatividade, art. 150, III, a, da CF. Tratando-se de lei que institua ou majore tributos essa regra é absoluta. Excepcionalmente e de modo expresso, pode a lei tributária reportar-se a fatos pretéritos. As exceções ao princípio da irretroatividade estão elencados no art. 106 do Código Tributário Nacional. Senão vejamos: Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados; II - tratando-se de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.” [Grifo nosso] Há, também, as leis que, pela sua própria natureza, retroagem no tempo e alcançam fatos passados como a anistia (modalidade de exclusão do crédito tributário, previsto no art. 180 e seguintes do CTN. A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede, não se aplicando aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele; salvo disposição em contrário, às infrações resultantes de conluio entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas) e a remissão (modalidade de extinção do crédito tributário, previsto nos arts. 156, inc. IV e 172 do CTN. A remissão pode ser conceituada como “perdão da dívida” e, em observância ao princípio da legalidade, decorre exclusivamente da lei). Logo, a lei tributária, com fulcro no art. 106 do CTN, só retroagirá em relação às penalidades quando não tiver feito coisa julgada (ainda encontram-se em litígio, administrativo ou judicial) para beneficiar o contribuinte; quando for de cunho, puramente, interpretativo; ou para corrigir situação de inconstitucionalidade, desde que não agrave a situação do contribuinte, ferindo o art. 5º, XXXVI da Carta Magna. 3. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA Para que a lei possa vigorar de forma plena, para que seja aplicada com Justiça, é preciso decifrá-la. Em outras palavras, para conhecer, cumprir ou bem aplicar a lei, é preciso captar seu verdadeiro significado e alcance: interpretá-la. Como ensina o sublime Nóbrega (1969, p. 197): A lei se exprime por intermédio de signos, palavras escritas que concretizam a norma jurídica. Interpretar a lei é descobrir a sua significação, é descobrir a significação da norma jurídica, de que ela é apenas a expressão verbal [...] O trabalho de interpretação visa não só a precisar o exato sentido da lei, como a descobrir as suas conexões dentro do sistema a que pertence, conexões que podem limitar, ou reforçar a sua órbita de aplicação. Interpretar é uma atividade cognoscitiva (que tem a faculdade de conhecer) que visa precisar o significado e o alcance das normas jurídicas, possibilitando-lhes uma correta aplicação. A arte de interpretar envolve uma correlação entre teoria e prática, tendo em vista que a teoria (norma) só é bem entendida visualizando a prática (fato). A interpretação exige a pesquisa, o raciocínio, experiência empírica, o conhecimento da ciência e da técnica do Direito Tributário. A interpretação, nas lições de Barroso (1999, p. 97), “é a atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto”. De acordo com o Kelsen (1998, p. 387), “a interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”. A interpretação, como nos ensina Bastos (2002, p. 89), “faz caminho inverso daquele feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituações mais concretas, o que só é factível procurando atribuir o exato significado à norma”. Como é cediço, entre os ramos do Direito: O Direito Tributário é aquele em que a interpretação ganha maior importância, não porque seja superior às demais disciplinas jurídicas, mas pelo fato de que, diariamente, o praticante da legislação tributária vê-se frente a frente com inúmeros atos legais, primários e 21 secundários, que necessitam ser interpretados. (CASSONE, 2004, p. 209-210) 3.1. CRITÉRIOS DE INTERPRETAÇÃO DA LEI 3.1.1. Gramatical Também denominado de lingüístico. Este critério limita-se a descobrir o significado que a língua portuguesa confere a lei. “A lei é uma realidade morfológica e sintática que deve ser, por conseguinte, estudada do ponto de vista gramatical” (CASSONE, 2004, p. 368) O intérprete deve, a priori, utilizar-se do critério gramatical para revelar um exame imparcial do texto, sem lhe atribuir outros elementos valorativos. Por mais importante que seja este critério, ele é insuficiente para ser utilizado de forma isolada porque a palavra é mau veículo para o pensamento, quase nunca o exprime com fidelidade, deixando grande parte subentendido. Não devemos ficar na superfície, no exame da lei, é necessário ir além, penetrar mais fundo, para alcançar o que se acha implícito por trás das palavras. (NÓBREGA, 1969, p. 205). 3.1.2. Lógico Verifica-se, através deste critério, a correlação ou coerência da norma. A interpretação lógica quer descobrir a razão suficiente que explica e justifica a emanação da norma sem a qual ela não teria surgido (FALSITTA apud CASSONE, 2004, p. 373) Utiliza-se do raciocínio geral para determinar qual teria sido a possível intenção do legislador, ou seja, a mens legis. O sentido lógico é pesquisado com o emprego dos processos lógicos da dedução e da indução. Procura-se desdobrar a norma em todas as suas 22 implicações. A dedução se faz pelo processo de silogismo, auxiliado por várias regras e argumentos emprestados da lógica (NÓBREGA, 1969, p. 202). 3.1.3. Histórico-evolutivo: Para este critério, a interpretação deve considerar o momento histórico em que a lei foi elaborada. Tendo em vista que as coisas sofrem, ou podem sofrer, através dos tempos, alterações, neste critério não se pesquisam tão somente as circunstancias que levaram o legislador a elaborar a norma, mas também qual a finalidade que o legislador, à época, visou atingir, para então proceder, através de interpretação, a uma espécie de “adaptação” da lei aos fatos ou situações atuais, sem, contudo, ir “além da lei” (CASSONE, 2004, p. 375). Como observa Nóbrega (1969, p. 203): A lei não tem, pois, conteúdo fixo, invariável, não pode viver para sempre imobilizada dentro de sua fórmula verbal, de todo impermeável às reações do meio, às mutações da vida. Tem de ceder às imposições do progresso, de entregar-se ao fluxo existencial, de ir evoluindo paralela à sociedade e adquirindo significação nova, à base das novas valorações. Assim, busca-se o sentido da norma no contexto histórico em que ela foi elaborada e procura evoluir os seus conceitos para enquadrá-los na realidade socialjurídica vigente. 3.1.4. Teleológico Também denominado de finalístico. Interpreta-se a lei buscando a sua finalidade, o que pretende atingir. Busca-se o fim que a norma jurídica tenciona servir ou tutelar. 23 3.1.5. Sistemático Interpreta-se a norma não de forma isolada, mas, dentro do sistema jurídico como um todo. Parte do postulado da unicidade do direito para afirmar que as normas não são postas de forma aleatória, desordena e incongruente. Pelo contrário, são organizadas e sistematizadas, observando-se a necessidade da sua correlação com as demais. 3.1.6. Sociológico O intérprete deverá conjugar a norma legal com os elementos do meio social. Este critério é utilizado, não de forma isolada, mais conjugado com os demais, para realizar justiça social. Conforme as lições de Nóbrega (1969, p. 201), pelo critério sociológico, “Uma vez publicada, a lei destaca-se da vontade que a editou, adquire vida própria, tornase entidade autônoma, capaz de viver por si mesma e de adaptar-se a todas as exigências e novas condições sociais”. Este critério transcende a própria norma tributária, servindo de inspiração para sua elaboração. A justiça fiscal ocorre, não com a interpretação sociológica da norma, mas com o surgimento de leis fiscais justas e proporcionais. É no momento da elaboração das leis que devem ser observados os elementos sociológicos. Sendo assim, as leis tributárias devem atender aos pressupostos da pessoalidade e capacidade contributiva, tributando os sujeitos passivos não de forma igualitária, e sim observando os sistemas da progressividade, pessoalidade e seletividade, sempre que possível. Sendo assim, uma vez posta a norma, não poderá ser utilizado o critério sociológico para sua interpretação, pois, para a aplicação do Direito Tributário são irrelevantes os elementos sociológicos. 24 3.2. ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO CONSIDERANDO A FONTE DE QUE EMANA O ATO 3.2.1. Interpretação Autêntica “Entende-se, geralmente, a interpretação feita pelo órgão da qual emanou um determinado acto normativo” (CANOTILHO, 2000, p. 1230). A interpretação autêntica poderá ocorrer em dois momentos: quando o legislador na lei primária conceitua algum instituto; ou quando uma segunda lei sobrevém para dizer como deve ser interpretada lei anteriormente editada e publicada. A interpretação autêntica, conforme nos ensinamentos de Nóbrega (1969, p. 208), “foi sistema em grande voga na antiguidade, quando o legislador pretendia assegurar a fixidez das leis, monopolizando a faculdade de interpretá-las. [...] Hoje, é sistema abandonado na maioria dos países, sendo regra geral a autonomia da magistratura no interpretar e aplicar o direito”. 3.2.2. Interpretação Judicial É a interpretação feita pelos juízes e Tribunais e, em regra, é casuística – o juiz interpreta a lei em cada caso concreto. Em outras palavras, “a interpretação judicial é a realizada pelos juízes na aplicação do direito às questões submetidas a seu julgamento” (Nóbrega, 1969, p. 209). 3.2.3. Interpretação Doutrinária 25 É a interpretação feita pela doutrina. É a realizada cientificamente pelos doutrinadores e juristas em suas obras e pareceres. Conforme discorre Nóbrega (1969, p. 208) “a doutrina não tem força normativa, não obriga o juiz, que fica livre de aceitá-la ou rejeitá-la, como mais justo lhe parecer”. Para este jurista, “nos paises de direito escrito, como o nosso, a jurisprudência vai mais e mais perdendo a importância, reduzindo-se praticamente a uma casuística rotineira e estéril, de que nada de útil pode advir. A verdadeira interpretação é a doutrinal”. Data venia, não concordamos com a opinião do ilustre jurista, na medida em que a interpretação judicial tem se mostrado além de justa, bastante técnica. 4. A INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA 4.1. CONCEITO Interpretação autêntica é a realizada pelo poder de que emana o ato, que se pretende interpretar. É a interpretação que está contida em ato do próprio órgão a que a Constituição atribui função legislativa. Diz-se interpretação autêntica a que “resulta do próprio órgão legislativo ou de outro que a Constituição do País invista dessas atribuições” (BALLEIRO, 2003, p. 670). A interpretação autêntica pode ocorrer em dois momentos: quando o legislador na lei primária conceitua algum instituto, exemplo, art. 3º do CTN que define o que seja tributo - “interpretação” possível, dentro da nossa ótica; ou quando o legislador, através de uma lei (secundária), posterior, que estatui normativamente a interpretação que se deve dar a outra lei (primária). Este estudo terá o seu enfoque no segundo caso, quando a lei secundária interpreta lei primária. 4.2. CONTRADIÇÃO NA EXPRESSÃO “LEI INTERPRETATIVA” A atividade elaborativa da lei deflui, sem dúvida, de uma opção política, enquanto manifestação das elites constituídas, a serviço do Estado dominante, freando a dinâmica das relações sociais, na medida do descompasso entre os fatos e a sua regulamentação (BASTOS, 1988, p. 148-150) Razão pela qual, admitindo-se que o legislador pudesse fixar o seu conceito, a posteriori, através de uma lei interpretativa, estaríamos reduzindo a atividade do aplicador ou intérprete ao mero exercício e pesquisa da mens legislatoris. Agravando ainda mais a situação, no Brasil, sabemos que o Poder Legislativo, quando resolve interpretar uma norma, não observa os ditames de 27 hermenêutica, pelo contrário, atende os interesses regionais, de determinado segmento da sociedade, ou até mesmo pessoal. Para BASTOS (1988, p. 148-150): [...] se a lei constitui a estrutura básica do ordenamento jurídico, não afasta a produção de direito por outras fontes, e muito menos, e principalmente, não tem a primazia de disciplinar a interação social, eis que a sua implementação no cotidiano sofre as injunções das variáveis de pluralidade de significações da palavra ou da seqüência de palavras pela qual se exprime. O legislador pode até criar conceitos quando da elaboração das leis, contudo, esses conceitos não serão imutáveis. Pela própria dinâmica do direito, o executivo e o judiciário poderão interpretar aqueles conceitos, não mais o legislativo. A elaboração das leis é opção política, enquanto que interpretá-las é opção jurídica. O Congresso Nacional, minoritariamente, é composto por jurisconsultos (homens versado na ciência do direito; jurista), sendo a maioria meros políticos. Na elaboração das leis há a interferência de diversos fatores, como a falta de conhecimento jurídico, ausência de técnica-legislativa, forte influência da mídia, busca de interesses pessoais e eleitorais, entre outros. Além do mais, “raramente os propósitos de justiça orientam as suas deliberações”. Por sua vez, a interpretação da norma é algo mais técnico, elaborado por especialistas, buscando-se o sentido jurídico da norma. 4.3 CRÍTICA E VALIDADE NA CONCEPÇÃO ATUAL Ferrara (apud BASTOS, 1988, p. 148-150) salienta que é de se negar que a chamada interpretação autêntica se trate de verdadeira interpretação. A vontade do legislador não é um meio de interpretação, até porque se torna possível, muitas vezes, darmos por assente, como vontade do legislador, um sentido que nunca se achou presente no espírito do autor da lei. Pode, inclusive, o intérprete entender a lei melhor que o seu autor. 28 Com o passar dos séculos, a interpretação autêntica se revestiu de caráter excepcional, ademais impróprio à democracia, cedendo terreno à interpretação judicial e à doutrinal. Como bem ilustra Nóbrega (1969, p. 208): A interpretação autêntica foi um sistema de grande voga na antiguidade, quando o legislador pretendia assegurar a fixidez das leis, monopolizando a faculdade de interpretá-las. Surgindo dúvida na aplicação das leis, o juiz devia recorrer ao legislativo, que baixava uma lei especial, lei interpretativa, fixando a orientação a seguir. Hoje, é sistema abandonado na maioria dos países, sendo regra geral a autonomia da magistratura no interpretar e aplicar o direito. Dando continuidade a esse raciocínio, Barbosa (1989, p. 97) nos lembra que: A lei interpretativa foi muito utilizada em séculos passados. Na atualidade, no Estado de Direito e nos regimes democráticos, a lei interpretativa reveste-se de caráter excepcional porque a função interpretativa conclusiva é reservada ao Poder Judiciário. Maximiliano (apud COELHO, p. 9) destaca: A interpretação autêntica foi outrora a de maior prestígio, talvez a única em certas épocas. O Imperador Justiniano repelia qualquer outra exegese, isto é, a que não procedesse dele próprio. Generalizou-se o preceito seguinte: ‘Interpretar incumbe àquele a quem compete fazer a lei’ – Ejus st interpretari legem cujus est condere. (...) Em França existia o apelo, obrigado, ao legislador, para resolver as dúvidas ocorrentes na prática (réferé au législateur), interrompido, para aquele fim, o andamento da causa. A lei de 1º de abril de 1837 aboliu a consulta forçada e restabeleceu a autonomia da magistratura no interpretar e aplicar o Direito. Prosseguiu a evolução no mesmo sentido, de dilatar dia a dia o campo da exegese doutrinal e restringir o da autêntica; esta ‘filha do absolutismo’ é hoje uma exceção, rara e antipática exceção, em todos os países cultos: assim declara a torrente unânime dos civilistas. Em consonância com a Constituição Federal de 1988, e com os princípios da Separação dos Poderes e do Estado Democrático de Direito, ao nosso ver, não mais existe a figura da “lei interpretativa”, ou seja, não mais se confere legitimidade ao Poder Legislativo para legislar interpretando outra lei. Como observa Carrazza (2002, p. 314): 29 [...] no rigor dos princípios, não há leis interpretativas. A uma lei não é dado interpretar uma outra lei. A lei é o direito objetivo e inova inauguralmente a ordem jurídica. A função de interpretar leis é cometida a seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que aplica as leis aos casos concretos submetidos à sua apreciação, definitivamente e com força institucional. Ravà, com toda razão, demonstra que o acolhimento das chamadas ‘leis interpretativas’ cria um círculo vicioso, uma vez que elas também devem ser interpretadas. Isto fatalmente acabaria por acarretar uma série infinita de interpretações. Ademais, há uma barreira constitucional à edição de leis interpretativas. Essa barreira está implicitamente contida no princípio da separação dos Poderes. Em função dele, não é dado ao Legislativo estabelecer critérios de interpretação e aplicação das leis para o Executivo e para o Judiciário. De fato, esses Poderes interpretam e aplicam as leis de acordo com critérios próprios, isto é, com critérios que haurem da Constituição e da Ciência do Direito. Não é tarefa do Legislador “ensinar” ao administrador público e ao juiz a maneira adequada de interpretar e aplicar a lei. Ademais, o intérprete deve, antes de qualquer coisa, conhecer as peculiaridades da norma, entender como o sistema funciona para, a partir daí, poder interpretar a norma tributária. E como é cediço apenas o judiciário e o administrativo, principalmente aquele, e não o legislativo, possuem essas qualidades ou características. Levando em consideração que, na interpretação da norma jurídica de incidência tributária, devem ser pesquisados os princípios concernentes às limitações constitucionais do poder de tributar, ou seja, se a norma tributária obedeceu aos princípios da legalidade, isonomia, capacidade contributiva, nãoconfisco e irretroatividade, acreditamos que o Poder Judiciário, com ajuda da doutrina, é constitucionalmente o órgão competente (qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa; capacidade, habilidade, aptidão, idoneidade) para interpretar a norma jurídica de incidência tributária. Vejamos a clássica lição de Maximiliano (2000, p. 93-94): O ideal do Direito, como de toda ciência, é a certeza, embora relativa; pois bem, a forma autêntica de exegese oferece um grave inconveniente - a sua constitucionalidade posta em dúvida por escritores de grande prestígio. Ela positivamente arranha o princípio de Montesquieu; ao Congresso incumbe fazer as leis; ao aplicador (Executivo e Judiciário) - interpretá-las. A exegese autêntica transforma o legislador em juiz; aquele toma conhecimento de casos concretos e procura resolvê-los por meio de uma interpretação geral. 30 Amplifica-se, deste modo, a autoridade da legislatura, num regime de freios e contrapesos; revela-se desamor pelo dogma da divisão dos poderes, pedra angular das instituições vigentes. Em resumo: se a lei tem defeitos de forma, é obscura, imprecisa, faça-se outra com o caráter franco de disposição nova. Evite-se o expediente perigoso e retrógrado, a exegese por via de autoridade, irretorquível, obrigatória para os próprios juízes; não tem mais razão de ser; coube-lhe um papel preponderante outrora, evanescente hoje. Sendo assim, entendemos que a interpretação autêntica, aquela em que lei secundária interpreta lei primária, deve ser retirada/proibida no ordenamento jurídico brasileiro, pois, a Carta Magna atribuiu aos Poderes Executivo e Judiciário o papel de interpretar a norma, não ao Legislativo. 4.4. POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS ACERCA DA INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA O Plenário do Eg. Supremo Tribunal Federal não corrobora com a tese da inconstitucionalidade a lei interpretativa, por invasão ou usurpação da competência do Judiciário. Não reconhece, assim, pela lei meramente interpretativa, a necessária contrariedade ao art. 2º da Constituição, proclamando-a compatível com a separação de Poderes. Acrescenta inexistir monopólio do Judiciário quanto à definição do sentido e da extensão das leis. Aduz, no entanto, que apenas aos atos judiciais é atribuído o caráter de definitividade. Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 605-3, DJ 05.03.93, relatada pelo Ministro Celso de Mello, foi prolatado pelo C. Plenário do Eg. Supremo Tribunal Federal, acórdão ementado como se segue: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Medida Provisória de caráter interpretativo. Leis interpretativas. A questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória. Princípio da irretroatividade. Caráter relativo. Leis interpretativas e aplicação retroativa. - É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica. - As leis interpretativas – desde que reconhecida a sua existência em nosso sistema de direito positivo – não traduzem usurpação das 31 atribuições institucionais do Judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder. Mesmo as leis interpretativas expõem-se ao exame e à interpretação dos juízes e tribunais. Não se revelam, assim, espécies normativas imunes ao controle jurisdicional. Conforme Hernandez (apud DIANEZI, 2005), foram no mesmo sentido o RE 441.890/MC, DJ 04.02.05 e o RE 442.297/MC, DJ 03.02.05. Logo, percebe-se que a Corte Suprema reconhece a possibilidade de o Poder Legislativo exercer, de forma anômala, atividade consistente na interpretação das leis, ou seja, reconhece a interpretação autêntica. Mas, para sua validade é mister que seja proveniente da mesma “fonte de produção normativa de que se originou o ato estatal a ser interpretado” “e ostente o mesmo grau de validade e de eficácia jurídica da regra de direito positivo interpretada” (excerto do voto na ADIn 605 MC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, j. 23/10/1991, DJ 05.03.1993). Segundo o magistério do eminente Ministro Celso de Mello, a interpretação autêntica deve "atender à dupla exigência legitimadora dessa especial modalidade hermenêutica, consistente, de um lado, na igualdade hierárquico-jurídica do ato interpretativo e do ato interpretado, ambos situados na mesma esfera de validade e de eficácia; e, de outro, na homogeneidade das vontades político-jurídicas" (MELLO, ADIn 605-3, DJ 05.03.93). É inatacável a argumentação do eminente Ministro Sepúlveda Pertence, contida em seu voto na mesma ADIn 605 MC: Para mim, no sistema brasileiro, lei interpretativa ou é inócua ou é lei nova. Se é mera interpretação de lei preexistente e veicula - se isso é possível - a única interpretação admissível dessa lei preexistente, a lei interpretativa vale exatamente o que valer a interpretação que traduz, isto é, nada vale, porque, evidentemente, se é a única interpretação, ou não, a afirmação, no caso concreto, continuará entregue ao Poder Judiciário. Se, no entanto, a título de lei interpretativa, a segunda lei extrapola da interpretação, é lei nova, que altera a lei antiga, modificando-a ou adicionando-lhe normas inexistentes. E assim há de ser examinada. Portanto, o STF reconhece a existência, no ordenamento jurídico brasileiro, da interpretação autêntica, desde que seja oriunda da mesma fonte de produção normativa de que se originou o ato estatal a ser interpretado. E entende que as leis interpretativas não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder. 32 5. RETROATIVIDADE DA LEI INTERPRETATIVA NA SEARA TRIBUTÁRIA 5.1. LEITURA DO ART. 106, INC. I DO CTN O art. 106, inc. I do Código Tributário Nacional dispõe que: Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados. Na leitura do CTN, a lei será retroativa alcançará fatos pretéritos, anterior a sua vigência, quando for expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados. Pela simples leitura do dispositivo já constatamos a falta de técnica do legislativo. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito em qualquer caso ou quando seja expressamente interpretativa? Ademais, o que é “expressamente interpretativa”? Baleeiro (2003, p. 670), com sua visão peculiar, sugou do dispositivo em tela que, apesar da cláusula “em qualquer caso”, o texto se refere à lei realmente interpretativa, isto é, que revela o exato alcance da lei anterior, sem lhe introduzir gravame novo, nem submeter à penalidade por ato que repousou no entendimento anterior. A “expressamente interpretativa” não quer dizer que o novo diploma deva empregar essas palavras sacramentais, apresentando-se como tal na ementa ou no contexto. Basta que, reportando-se aos dispositivos interpretados, lhes defina o sentido e aclares as dúvidas. Considerando a lei interpretativa existente, o intérprete deverá utilizar o método sistemático quando for analisar a expressão “em qualquer caso”, previsto no art. 106, inc. I do CTN, pois, deverá buscar o seu alcance dentro do sistema normativo, observando os direitos e as garantias postos na Constituição. 33 5.2. CRÍTICA À APLICAÇÃO RETROATIVA DA NORMA INTERPRETATIVA Para Torres (1999, p. 117): A lei interpretativa retroage (art. 106, I, CTN), pois tem eficácia meramente declaratória. Não cria direito novo nem tributo, senão que apenas fixa o sentido da norma tributária preexistente. A partir de sua edição as conseqüências dos fatos ocorridos no passado passam ao seu império, salvo se houver coisa julgada, direito adquirido ou ato jurídico perfeito surgidos ao tempo de lei interpretada. [Grifos nossos]. Perfazendo o mesmo caminho, Carvalho (2004, p. 93) assevera que: As leis interpretativas exibem um traço bem peculiar, na medida em que não visam à criação de novas regras de conduta para a sociedade, circunscrevendo seus objetivos ao esclarecimento de dúvidas levantadas pelos termos da linguagem da lei interpretada. Encaradas sob esse ângulo, despem-se da natureza inovadora que acompanha a atividade legislativa, retroagindo ao início da vigência da lei interpretada, explicando com fórmulas elucidativas sua mensagem antes obscura. [Grifos nossos] Machado (2005, p. 111/112): Lei interpretativa é aquela que não inova, limitando-se a esclarecer dúvida surgida com o dispositivo anterior. [...] Pode, sem dúvida, legislador adotando entendimento diverso, e mesmo oposto, ao que sido adotado pela jurisprudência. Neste caso, porém, não estará produzindo lei simplesmente interpretativa, e sim lei que indiscutivelmente inova na ordem jurídica, removendo o entendimento jurisdicional. [...] art. 106, I, do Código Tributário Nacional, considerando sobretudo que o referido dispositivo não teve ainda declarada sua inconstitucionalidade, e, por isto, segue integrando nosso ordenamento jurídico. Primeiramente, como observa Machado (2006, p. 111) “A rigor não se devia falar de aplicação retroativa, pois na verdade a lei não retroage. Nada retroage, posto que o tempo é irreversível”. Data venia, acreditamos que, em face da CF/88, não há mais espaço para a lei interpretativa no ordenamento jurídico brasileiro. A simples existência da interpretação autêntica já afronta o “bloco constitucional”. Admitir a tese do art. 106, inc. I do CTN de que a lei expressamente interpretativa surtirá seus efeitos 34 retroativamente é um absurdo, fere a consciência jurídica das nações civilizadas. Pois, além de afrontar o Estado Democrático de Direito, fere o princípio da segurança jurídica e harmonia dos poderes. A Constituição não dá competência ao Poder Legislativo, antes lhe veda, de modo expresso, dispor retroativamente contra situações já consolidadas no tempo. O órgão legislativo, por meio da lei escrita, dispõe de modo geral e para o futuro. Aquela corrente sustenta que “a lei não cria direito novo, senão que apenas fixa o sentido da norma tributária preexistente”. É inadmissível que uma lei posterior fixe o sentido da norma tributária preexistente, pois, como dito alhures, esta lei reflete a opinião da sociedade naquele momento. Ou seja, através de uma norma, dita tributária, o Poder Legislativo exterioriza a vontade da população, na seara tributária, naquele momento. Logo, uma lei nova expressará a vontade da sociedade neste momento, e não naquele. Sendo assim, é inaceitável a aplicação da lei nova para fixar o sentido da norma tributária anterior. É de conhecimento de todos que os legisladores brasileiros são mais políticos do que jurisconsultos. Essa realidade deve ser invertida. As leis devem ser elaboradas com maior perfeição técnica e clareza. É no momento da elaboração das leis que o legislativo deve afastar as obscuridades e incertezas. Quando a norma ingressa no ordenamento jurídico a competência para interpretá-la passa a ser, precipuamente, do Poder Judiciário e não do Legislativo. Mais uma vez divergirmos, em parte, dos ensinamentos de Hugo de Brito Machado, quando este afirma que “[...] Pode, sem dúvida, legislador adotando entendimento diverso, e mesmo oposto, ao que sido adotado pela jurisprudência”. É notório que o legislador futuro não pode ficar condicionado ao prescrito em leis pretéritas. Quando a sociedade o achar conveniente pode elaborar lei em sentido contrário a lei anterior, o que não raro acontece em virtude da dinâmica do direito e da própria sociedade. Contudo, Hugo de Brito se excede ao utilizar a expressão “sem dúvida”. A possibilidade de lei alterar entendimento consolidado nas Cortes Superiores é algo sério e deve ser questionado. Pois, pelo princípio da harmonia dos poderes é , no mínimo, “interessante” que o legislativo não edite leis opostas ao entendimento dos tribunais superiores. 35 Ademais, se aceitarmos esta situação – leis editadas opostas ao entendimento da jurisprudência – estaremos abrindo precedente para, quando os Poderes Executivo ou Legislativo entenderem que o Judiciário não caminha no sentido que desejavam, promulgarem nova lei, dando a interpretação que lhes aprouver. “Pelo argumento ex-absurdo teríamos a seguinte situação: mediante leis interpretativas o Legislativo, a serviço do Executivo (maiorias parlamentares), anularia as interpretações judiciais sem necessidade de ações rescisórias do julgado”. (COELHO, p. 19). O próprio Hugo de Brito Machado que assevera que “Lei interpretativa é aquela que não inova, limitando-se a esclarecer dúvida surgida com o dispositivo anterior” e que “art. 106, I, do Código Tributário Nacional, considerando, sobretudo que o referido dispositivo não teve ainda declarada sua inconstitucionalidade, e, por isto, segue integrando nosso ordenamento jurídico”. No mesmo Curso de Direito Tributário, Machado (2006, p. 128), em folhas posteriores, elenca que: A interpretação de uma lei feita por outra lei não chega a ser propriamente interpretação. Ou se trata de regra jurídica nova, e neste caso o que se tem é outra lei, e não a interpretação da primeira, ou a lei nova nada acrescentou, nem retirou, da antiga, e neste caso é inócua. Na verdade assim é. A lei interpretativa, a rigor, é inócua, no sentido de que não constitui regra jurídica nova. Concordamos com Amaro (2003, p. 90) quando defende que: O CTN imaginou ser possível abrir a possibilidade de retroação das leis ditas interpretativas, a pretexto de que, tratando-se de "interpretação autêntica" (ditada pelo próprio legislador), a lei nova "apenas" objetivaria "aclarar" o sentido da lei anterior, devendo, por essas razões, aplicar-se o preceito interpretativo retroativamente, desde o momento em que principiou a vigorar a lei interpretada. [...] A lei "interpretativa" sofre todas as limitações aplicáveis às leis retroativas, e, portanto, é inútil. Com efeito, a dita "lei interpretativa" não consegue escapar do dilema: ou ela inova o direito anterior ou ela se limita a repetir o que já dizia a lei anterior (e, nesse caso, nenhum fundamento lógico haveria, nem para a retroação da lei, nem, em rigor, para sua edição). [...] Dar ao legislador funções interpretativas, vinculantes para o Judiciário na apreciação de fatos concretos anteriormente ocorridos, implicaria conceder àquele a atribuição de dizer o direito aplicável aos casos concretos, tarefa precipuamente conferida pela Constituição ao Poder Judiciário. Mais 36 uma vez, não se escapa ao dilema: ou a lei nova dá ao preceito interpretado o mesmo sentido que o juiz infere desse preceito, ou não; no primeiro caso, a lei é inócua; no segundo, é inoperante, por retroativa (ou porque usurpa função jurisdicional). Outros sistemas jurídicos — o francês, por exemplo — admite, plenamente, o conceito de lei interpretativa e a produção de efeitos retroativos. Entretanto, observese que, na França, o princípio da irretroatividade é matéria regulada na lei comum (Código Civil, art. 2º). No Brasil, todavia, a questão é abordada na Carta Magna. Nos países em que a irretroatividade da lei, em relação às situações jurídicas definitivamente constituídas, assumem caráter de direito e garantia individuais do Estatuto Político, não há espaço para a lei interpretativa retroativa. Em brilhante e didático voto no REsp 327043/DF, o min. Teori Albino Zavascki enunciou que: Lei interpretativa retroativa só pode ser considerada legítima quando se limite a simplesmente reproduzir (= produzir de novo), ainda que com outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é hipótese de difícil concreção, quase inconcebível, a não ser no plano teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática, não podendo ser definido isoladamente. A lei interpretativa é, simplesmente, lei nova e como tal, só se aplica nos casos não definitivamente consolidados sob o pálio da lei interpretada. O princípio da irretroatividade das leis, enquanto opção do poder constituinte, em sistemas como o nosso, inibe a eficácia retrooperante atribuída à chamada interpretação autêntica do legislador ordinário. 5.3 CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA INTERPRETATIVA RETROATIVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO Quanto à constitucionalidade do art. 106, inc. I do CTN, Machado (2006, p. 111) elenca que o aludido dispositivo não teve ainda declarada inconstitucionalidade e, por isto, segue integrando nosso ordenamento jurídico. sua 37 Esse entendimento, possivelmente, baseia-se na presunção de constitucionalidade que milita a favor das leis. Pelo princípio da recepção, quando surge uma nova Constituição, as normas anteriores à sua vigência, que não colidirem com o seu texto, são recepcionadas. Ou seja, as normas anteriores quando se coadunarem com a nova constituição são mantidas no direito positivo e, como observa Cassone (2004, p. 25) as disposições em contrário ficam automaticamente “revogadas”. Pois bem, partindo dessa premissa podemos asseverar que o Código Tributário Nacional – Lei nº 5. 172, de 25 de Outubro de 1966 - foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, e como lei complementar. Contudo, na nossa singela opinião o dispositivo suso mencionado sequer foi recepcionado pela atual constituição no momento em que esta calcifica como direitos e garantias fundamentais do cidadão-contribuinte a irretroatividade da norma, salvo para beneficiá-lo, e a segurança jurídica. Logo, corroboramos com a doutrina que defende que o aludido dispositivo não faz parte do ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, se considerarmos o dispositivo como existente, deverá ser declarado inconstitucional pela Suprema Corte por violação direta dos princípios constitucionais da irretroatividade, separação dos poderes e segurança jurídica e, indiretamente, do Estado Democrático de Direito. 38 6. ANÁLISE DA LEI COMPLEMENTAR Nº 118/05: ARTS. 3º E 4º O estudo do art. 106, inc. I do CTN é de extrema relevância, pois, estamos diante de uma norma tributária que viola diversos princípios, entre eles, os princípios da irretroatividade, da segurança jurídica e da separação dos Poderes. A observância destes princípios garante a mínima segurança jurídica indispensável, no Estado Democrático de Direito, aos sujeitos passivos. A apuração do aludido artigo ganha mais relevância quando vislumbramos as suas conseqüências na prática, senão vejamos o gravame gerado pela Lei Complementar nº 118/05, arts. 3º e 4º. Com a finalidade de adaptar os dispositivos do Código Tributário Nacional (CTN) à nova Lei de Falências (Lei nº 11.101) - mais especificamente na parte em que toca as garantias e privilégios do crédito tributário, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar nº 118, que foi publicada em 9 de fevereiro de 2005 e promulgada, pelo Presidente da República, na mesma data. Infelizmente, os parlamentares aproveitaram a oportunidade para fazer outras alterações no CTN, inconvenientemente, sob alegação de estarem, apenas, interpretando norma do aludido código. Na verdade houve inovação: reduziram o prazo prescricional que o sujeito passivo tinha para recuperar tributos pagos a maior ou indevidamente, quando estes estiverem sujeitos ao lançamento por homologação. Como sabemos, o critério utilizado pelo legislador do Código Tributário Nacional ao diferençar as “modalidades de lançamento” foi o grau de colaboração do sujeito passivo. Deste modo, estipulou, em seus artigos 147, 148, 149 e 150, três espécies de lançamento tributário, sendo eles: de ofício, por declaração e “por homologação”. No lançamento de ofício – conhecido também por direto, toda a atividade é efetivada pela autoridade administrativa, independendo de qualquer colaboração do sujeito passivo. Por sua vez, no lançamento misto ou por declaração, o contribuinte fornece todas as informações à Administração, para que esta o efetivasse (ofício). Enquanto na última, quase todo o trabalho seria realizado pelo sujeito passivo da obrigação, devendo apenas o fisco homologar de forma expressa ou tácita a 39 atividade levada a efeito pelo primeiro. Esta modalidade é conhecida como “lançamento por homologação”. O CTN, no art. 142, nos oferece o conceito de lançamento: Art. 142 - Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível. [Grifos nossos]. Por sua vez, o art. 150 do CTN, conceitua lançamento por homologação: Art. 150 - O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. § 4º - Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de 5 (cinco) anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. Percebemos que o art. 150, caput, define o lançamento por homologação expresso, e no § 4º surge a figura do lançamento por homologação tácito. Até o advento da Lei Complementar nº. 118, expressiva maioria da doutrina, apoiada em entendimento consolidado pelo STJ, apontava como sendo correto o critério para cálculo do prazo prescricional das ações de repetição de indébito o prazo decorrente da tese dos "cinco mais cinco anos". Partia-se da premissa de que a extinção do crédito tributário só se daria quando a homologação do lançamento, seja ele tácita ou expressa. Como o prazo para homologação é de cinco anos a contar do fato gerador, conforme artigo 150, parágrafo 4º do Código Tributário Nacional, no caso da homologação tácita, somente após o decurso dos cinco anos se iniciaria o prazo prescricional para a postulação da restituição do valor indevidamente recolhido. Com base no entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) há cerca de 15 anos, o sujeito passivo vinha conseguindo um prazo maior do que o estabelecido no CTN para a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação, quando recolhidos a maior ou indevidamente. 40 Isso porque o artigo 168 do CTN, conforme veremos a seguir, estabelece que o prazo prescricional para o contribuinte pleitear a restituição dos tributos que recolheu a maior ou indevidamente é de 5 (cinco) anos, contados a partir da data da extinção do crédito tributário. Como nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação é o próprio contribuinte quem calcula e recolhe o montante devido, fica a administração tributária incumbida de verificar e homologar tal pagamento, seja de forma expressa ou tácita. Contudo, se esse lançamento tributário não for homologado e nada dispondo a lei acerca do assunto, considerar-se-á definitivamente constituído o lançamento tributário após o transcurso do período de 5 anos, extinguindo-se o crédito tributário (CTN, artigo 150, parágrafo 4º). Assim, o STJ adotou o seguinte entendimento: se o contribuinte efetua o recolhimento a maior ou indevido de um determinado tributo e esse tributo está sujeito a lançamento por homologação, a data inicial de contagem do prazo prescricional para o contribuinte pleitear o valor que recolheu indevidamente será a data em que o lançamento tributário foi homologado. Na hipótese de o lançamento não ter sido homologado expressamente, o contribuinte passa a contar o “marco inicial” de seu prazo prescricional a partir do último dia em que a homologação do seu lançamento poderia ter sido feita, isto é, o último dia útil dos 5 (cinco) anos que sucedem o pagamento antecipado feito pelo contribuinte. Esse entendimento do STJ ficou conhecido como “a Tese dos Cinco mais Cinco”, porque o contribuinte, nesses casos específicos, passou a ter 10 (dez) anos para pedir a restituição do que pagou a mais ou de forma indevida. Na maior parte dos casos, essa tese é utilizada para se pleitear a repetição de tributos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Senão vejamos (Coelho, p. 17/18): EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESTITUIÇÃO/COMPENSAÇÃO. TRIBUTO DECLARADO INCONSTITUCIONAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. CINCO ANOS DO FATO GERADOR MAIS CINCO ANOS DA HOMOLOGAÇÃO TÁCITA. ENTENDIMENTO DA COLENDA PRIMEIRA SEÇÃO. No entender deste Relator, nas hipóteses de restituição ou compensação de tributos declarados inconstitucionais pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, o termo a quo do prazo prescricional é a 41 data do trânsito em julgado da declaração de inconstitucionalidade, em controle concentrado de constitucionalidade, ou a publicação da Resolução do Senado Federal, caso a declaração de inconstitucionalidade tenha-se dado em controle difuso de constitucionalidade (veja-se, a esse respeito, o REsp 534.986/SC, Relator p/acórdão este Magistrado, DJ 15.03.2004, entre outros). A egrégia Primeira Seção deste colendo Superior Tribunal de Justiça, porém, na assentada de 24 de março de 2004, houve por bem afastar, por maioria, a tese acima esposada, para adotar o entendimento segundo o qual, para as hipóteses de devolução de tributos sujeitos à homologação declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a prescrição do direito de pleitear a restituição se dá após expirado o prazo de cinco anos, contados do fato gerador, acrescido de mais cinco anos, a partir da homologação tácita (EREsp 435.835/SC, Rel. p/acórdão Min. José Delgado - cf. Informativo de Jurisprudência do STJ n. 203, de 22 a 26 de março de 2004). Dessarte, na hipótese em exame, deve prevalecer o entendimento exarado no acórdão paradigma, que fixou o prazo prescricional qüinqüenal a partir da homologação tácita ou expressa do lançamento. Registre-se que, in casu, ocorreu a prescrição, em parte, uma vez que a demanda foi ajuizada em 30/10/2001 e os créditos objeto do pedido de compensação datam setembro de 1991 a julho de 1994. Embargos de divergência providos em parte. (Embargos de Divergência no Recurso Especial 497.466/RS, Relator Ministro Franciulli Netto, Primeira Seção, DJ 04.04.2005). Contudo, diferindo do entendimento dos Tribunais, foi publicada a Lei Complementar nº 118/05 que, no seu art. 3°, mudou c ompletamente aquele entendimento quanto ao prazo de pleitear a restituição dos tributos pagos a mais ou indevidamente. Vejamos: Art. 3º. Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei. [grifos nossos]. O inciso I do art. 168 dispõe que o direito de pleitear a restituição, total ou parcial do tributo, extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados, nas hipóteses do inciso I (cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido) e inciso II (erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do 42 montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento) do artigo 165 da data da extinção do crédito tributário. Pela interpretação dada pelo legislativo, o início do prazo para restituição dos tributos é o momento do pagamento antecipado de que trata o art. 150, § 1: Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. § 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento. Constatamos que o legislador infraconstitucional ao introduzir o artigo 3º da Lei Complementar nº 118 pretende criar uma forma de interpretar o pagamento “antecipado” nos casos de “lançamento por homologação” apenas, e exclusivamente, para fins de interpretação do inciso I do artigo 168 do CTN. Ou seja, os efeitos jurídicos previstos neste novo artigo (extinção do crédito tributário oriundo do pagamento “antecipado”), segundo o legislador, somente terão aplicação nos casos de contagem de prazo prescricional nas ações de repetição de indébito tributário. Como observa RIBEIRA FILHO (2005, p. 1) “seria como se esta abolição de vínculo obrigacional não implicasse outras relações jurídicas, como se não integrasse o mesmo ordenamento jurídico nacional, podendo ser alterado sem que seus reflexos interfiram nas demais relações a ela vinculadas, de forma direta ou indiretamente”. Como se não bastasse a postura do legislador complementar em reduzir o prazo prescricional da Ação de Repetição de Indébito Tributário, objetivando que um menor número de contribuintes ingressem com tal instrumento, visando, exclusivamente, a não devolução dos valores pagos indevidamente a quem por direito pertence, ainda conferiu a tal “interpretação” efeito retroativo. Senão vejamos o artigo 4º da Lei Complementar em questão: Art. 4º. Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional. 43 O referido artigo determinou que a lei entrasse em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional. A lei terá vacância de 120 dias, mas, quanto ao art. 3º (aquele que reduziu o prazo para repetição de indébito para cinco anos, pondo fim à tese dos "cinco mais cinco" do STJ) por ser, meramente interpretativo, deverá ser retroprojetado no tempo, alcançando os fatos anteriores a sua instituição. É evidente que o art. 3º da LC 118/05 veio para acabar com a interpretação que o próprio Superior Tribunal de Justiça chama de tese dos "cinco mais cinco". Apesar de se declarar interpretativo, estatui direito novo. Por sinal, esse direito gerou um gravame para o contribuinte, pois, como dito alhures, antes da referida Lei Complementar n. 118, ele tinha o prazo de 10 (dez) anos para solicitar a devolução do que tinha pago a mais ou indevidamente e, agora, teve o prazo reduzido para 5 (cinco) anos. Para que a lei possa ser considerada interpretativa é necessário que disponha no mesmo sentido das decisões judiciais, pois, caso resolva conflito jurisprudencial ou estabelecer orientação contrária à da jurisprudência vitoriosa, não será interpretativa, mas lei de natureza constitutiva. Uma norma interpretativa tem por objetivo aclarar o texto de outra norma. Se a lei interpretativa inovar em relação à matéria, deixará de ser interpretativa em relação aos dispositivos inovados que não terão eficácia “retroativa”, posto que não cabe, a título de interpretar lei anteriormente promulgada, criar ou alterar instituto ou norma jurídica. O ministro Fux (2005), em relação à Lei Complementar n. 118, arts. 3 e 4, asseverou que: Camuflou-se a realidade em processo oblíquo cujo único objetivo, ao invés de verdadeiramente interpretar dispositivo legal que justificasse tal providência, foi o de anular, inclusive retroativamente, entendimento jurisprudencial que se mostrava benéfico aos contribuintes e prejudicial aos interesses do fisco. Ele sustenta que, ao tentar driblar a jurisprudência consolidada sobre o assunto, o dispositivo incorreu em "manifesto desvio de finalidade e abuso de poder legislativo, usurpando a competência do Poder Judiciário (...) em clara violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes, segurança jurídica, 44 irretroatividade, boa-fé, moralidade, isonomia e neutralidade da tributação para fins concorrenciais". Acatando o disposto no art. 3º da aludida lei, estaremos abrindo precedente para os Poderes Executivo ou Legislativo promulgarem nova lei, dando a interpretação que lhes aprouver, quando entenderem que o Judiciário não caminha no sentido que desejavam. “Pelo argumento ex-absurdo teríamos a seguinte situação: mediante leis interpretativas o Legislativo, a serviço do Executivo (maiorias parlamentares), anularia as interpretações judiciais sem necessidade de ações rescisórias do julgado, quando e se admitida a tese da retroação, e encabrestaria o Poder Judiciário (pro futuro), na medida em que fossem consideradas (leis novas)”. (COELHO, p. 19). O STJ já se posicionou quanto à matéria nos seguintes termos: PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DOS DISPOSITIVOS LEGAIS VIOLADOS OU INTERPRETADOS DE FORMA DIVERGENTE. SÚMULA 284/STF. TRIBUTÁRIO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO DO STJ, NA APRECIAÇÃO DO ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO ERESP 327.043/DF. LIMITES PERCENTUAIS À COMPENSAÇÃO. INAPLICABILIDADE. RESSALVA DO PONTO DE VISTA DO RELATOR. 1. A ausência de indicação dos dispositivos violados ou interpretados de forma divergente por outros Tribunais não autoriza o conhecimento do recurso especial, quando interposto com base nas alíneas a e c do permissivo constitucional (Súmula 284/STF). 2. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (votovista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003). 3. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, § 1º, 160, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que 45 defensável a “interpretação” dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência. 4. No julgamento do EREsp 327.043/DF, a 1ª Seção entendeu que o art. 4º, segunda parte, da LC 118/2005 não é aplicável às ações propostas a partir da data da sua vigência, mas apenas às demais, ainda não propostas. Assim, por considerar que a ilegitimidade da norma restringe-se a algumas hipóteses de aplicação e não a outras, considerou-se dispensável a instauração do incidente de inconstitucionalidade de que trata o art. 97 da CF. Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator. 5. Restou pacificado, no âmbito da 1ª Seção, no julgamento do ERESP 432.793/SP, Min. Peçanha Martins, em 11.06.2003, o entendimento segundo o qual os limites estabelecidos pelas Leis 9.032/95 e 9.129/95 não são aplicáveis quando se tratar de compensação de créditos por indevido pagamento de tributos declarados inconstitucionais pelo STF, como é o caso das contribuições em exame. Ressalva do posicionamento pessoal do relator. Precedentes: EDCL no RESP. 515.769/RJ, 2ª Turma, Franciulli Netto, DJ 08.03.2004 e ERESP. 438.042/PI, 1ª Seção, Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 23.05.2005. 6. Recurso especial a que se dá parcial provimento. (REsp 888592 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2006/0209074-4. Relator Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124). Órgão julgador T1 – PRIMEIRA TURMA. Data do julgamento 06/02/2007. DJ 22.02.2007 p. 172). [Grifos nossos] O STJ, cristalinamente, em conformidade com a doutrina majoritária, entendeu que o art. 3º da LC nº 118/2005 terá eficácia, apenas, prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência, prevalecendo o princípio da irretroatividade das leis. CONCLUSÕES Para garantir a harmonia do Sistema Tributário é necessário que as normas tributárias respeitem os princípios constitucionais, pois, os princípios são verdadeiros alicerces para o ordenamento jurídico, mandamentos nucleares de um sistema. É com base nessa assertiva que podemos afirmar que ferir um princípio é muito mais repudiável do que ferir uma norma. A inobservância de um princípio equivale à quebra de todo o sistema jurídico. Os princípios estão na base do ordenamento jurídico, compõem o espírito da norma e servem de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definirem a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. O Sistema Tributário Brasileiro, como todo ordenamento jurídico, não é infalível. No seu Universo encontramos algumas anomalias que servem apenas para enfraquecê-lo e tornar a relação entre a administração tributária e o sujeito passivo ainda mais colidente, e.g, o art. 106, inc. I do CTN que extirpa a essência do princípio constitucional da irretroatividade. O aludido dispositivo elenca que a lei, quando interpretativa, retroagirá alcançando os fatos pretéritos. A interpretação autêntica poderá ocorrer em dois momentos: quando o legislador na lei primária conceitua algum instituto; ou quando o legislador, através de uma lei (secundária), posterior, estatui normativamente a interpretação que se deve dar a outra lei (primária). O art. 106, inc. I do CTN faz menção à segunda forma de interpretação autêntica. Quando o legislador utiliza uma lei posterior para interpretar lei primária, acreditamos que tal atitude não se amolda dentro do ordenamento jurídico brasileiro, pois, no mínimo, “risca” o princípio da Separação dos Poderes proposto por Montesquieu, haja vista que cabe aos Poderes Executivo e Judiciário interpretar as leis - elaboração de uma lei é opção política, enquanto que interpretá-la é opção jurídica, na medida em que os parlamentares brasileiros são, minoritariamente, jurisconsultos sendo a maioria meros políticos. Naquela há a interferência de diversos fatores, como: falta de conhecimento jurídico, ausência de técnicalegislativa, forte influência da mídia, busca de interesses pessoais e eleitorais, etc. Além do mais, “raramente os propósitos de justiça orientam as suas deliberações”. 47 Por sua vez, a interpretação da norma é algo mais técnico, elaborado por especialistas, buscando-se o sentido jurídico da norma. Em outras nações, em que a garantia da liberdade e do patrimônio dos cidadãos dependa unicamente dos critérios do legislador e dos juizes, não tem sido necessário nenhuma consagração constitucional expressa nesse sentido. Por sua vez, o grau de civilização alcançado pela nação brasileira resume-se no fato de termos princípios constitucionais expressos que consagram e garantem a liberdade e o patrimônio dos cidadãos-contribuintes e, mesmo assim, são transgredidos pelo próprio Estado (entenda executivo) e constitucionalizados pelo legislativo ou pelo STF. Admitindo-se que o legislador pudesse fixar o seu conceito, através de uma lei interpretativa, estaríamos reduzindo a atividade do aplicador ou intérprete ao mero exercício e pesquisa da mens legislatoris. Ademais, o acolhimento das leis interpretativas cria um círculo vicioso, uma vez que elas também devem ser interpretadas. Isto fatalmente acaba por acarretar uma série infinita de interpretações. Em obediência à flexibilidade que deve existir em todo sistema, admitimos que o legislador conceitue algum instituto, contudo, deverá fazê-lo na lei primária. Mesmo assim, este conceito não será imutável, podendo ser interpretado pelo Judiciário e Executivo. Vale ressaltar que a lei interpretativa poderia ser utilizada como instrumento hábil para esclarecer o real alcance das leis recém publicadas, porém, em países como o nosso em que o Legislativo quando resolve interpretar texto legal o faz, não em busca do seu real alcance, mas em favor de determinado segmento da sociedade, região ou por interesse pessoal, torna-se inviável à Democracia. O art. 106, inc. I do CTN, ainda confere a lei interpretativa efeito retroativo. Contudo, a irretroatividade das leis é princípio geral no ordenamento jurídico e princípio específico do Direito Tributário, previsto na Constituição da Republica de 1988. Logo, não poderá uma lei retroagir para alcançar outra lei, a menos que seja mais benéfica ao sujeito passivo. A lei nada mais é do que um retrato da vontade da sociedade, por conseguinte, enquanto perdura uma lei que disciplina determinada matéria, pode presumir-se que a vontade da sociedade era de que aquela normatização fosse a aplicável ao tema tratado. A inviolabilidade do passado é princípio que encontra 48 fundamento na própria natureza do ser humano. A lei interpretativa não consegue escapar do dilema: ou ela inova o direito anterior ou ela se limita a repetir o que já dizia a lei anterior. Se inovar não poderá retroagir por proibição expressa do princípio da irretroatividade; se apenas repete, nenhum fundamento lógico haveria, em rigor, para sua edição. Ante o exposto, corroboramos com a doutrina que defende que o art. 106, inc. I do CTN, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. REFERÊNCIAS AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário. 11. Ed. atua. por Mizabel Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 1999. 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