FEMINISMOS EM MOVIMENTO: diálogos na ação coletiva de

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FEMINISMOS EM MOVIMENTO: diálogos na ação coletiva de mulheres rurais
Sara Deolinda Cardoso Pimenta
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Brasil
Resumo
A política feminista assumida pelas mulheres rurais em suas ações coletivas, não apenas indica a
consolidação de diálogos com concepções e produções teóricas feministas, como sugerem releituras e
ressignificações do feminismo, que se expressam num campo diverso e dinâmico como feminismos em
movimento. Este trabalho apresenta os resultados da análise de diálogos travados com a produção
feminista, que orientam e definem o caráter político de ações coletivas protagonizadas por mulheres rurais
na última década. Para tanto, procedeu-se à análise de documentos públicos – plataformas, cartas políticas,
e pautas de reivindicações da Marcha das Margaridas, produzidos no processo de preparação e de
realização dessa grande ação coletiva nos anos de 2003, 2007 e 2011. O resultado dessa investigação,
ainda em curso, conduz à identificação da emergência de novos sujeitos políticos do feminismo, de novos
feminismos e de desafios para a sustentação no tempo e no espaço do projeto político feminista das
mulheres rurais.
Palavras Chave: Mulheres Rurais, Ação Coletiva, Feminismos.
Introdução
A referência ao feminismo tem sido uma constante nas ações coletivas protagonizadas pelas mulheres
rurais. Podemos constatá-la nos discursos, lemas, plataformas, eixos de ação, atividades de formação, e
também em indagações frequentes sobre o que é o feminismo, o que significa ser e se assumir feminista.
Tais indagações sugerem a sustentação de uma pergunta, individual e coletiva, e comporiam processos de
identificação, de construção de identidades coletivas e de formação de novos sujeitos políticos do
feminismo.
Em maio de 2014, cerca de mil mulheres rurais – camponesas agricultoras familiares, extrativistas,
quebradeiras de coco, quilombolas, indígenas, pescadoras artesanais, ribeirinhas - de diversos movimentos
e organizações sociais de todo o país, participaram do III Encontro Nacional de Agroecologia. Durante os
seminários temáticos, oficinas e manifestações públicas defenderam e traduziram o lema “Sem Feminismo
não há Agroecologia”, como também o fizeram constar na carta política lida e aclamada no plenário final
pelo conjunto dos seus participantes.
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A Marcha das Margaridas, que vem mobilizando milhares de mulheres desde o ano 2000, anuncia
sua próxima mobilização para os dias 11 e 12 de agosto de 2015 com cem mil mulheres na capital federal,
mobilizadas por diferentes organizações e movimentos feministas. Em sua plataforma política organizada
em sete eixos sob o lema “Desenvolvimento Sustentável com democracia, justiça, autonomia, igualdade e
liberdade”, declara o seu caráter feminista e assume o desafio de enfrentar a cultura patriarcal e machista.
As ações coletivas acima citadas integram experiências de mulheres rurais e são expressivas do seu
protagonismo político numa trajetória de lutas e conquistas, que emerge na década de 1980. Num contexto
de efervescência política, o movimento feminista e diversos movimentos de mulheres compuseram com
outros movimentos sociais as lutas por liberdades democráticas, direitos, igualdade e cidadania, que se
constituiu na grande novidade política das décadas de 1970 e 1980.
As diferenciações estabelecidas entre movimento feminista e movimentos de mulheres resultaram
em diversas leituras, em geral baseadas na associação do primeiro a reivindicações de caráter
sociocultural, e do segundo a reivindicações socioeconômicas. Esse esforço de caracterização, desde
então, revelou um campo complexo de múltiplos lugares de militância e ações coletivas diversas (Alvarez,
2000; Soares, 1994).
Se a princípio esses movimentos apresentavam motivações e caráter distintos, as mútuas
interpelações indicam um terreno de solidariedades, tensões, conflitos, e de fortes convergências em seus
ideários de luta contra as diversas formas de opressão e desigualdades. Essa dinâmica contribuiu nos
deslocamentos das fronteiras entre privado e público, cultura e política, e na reconfiguração da relação
entre o político e a política, entre cidadania e democracia (Pinto, 2003; Soares, 1994; Souza-Lobo, 2011).
O slogan feminista “o pessoal é político” é revelador desses deslocamentos que concorreram para a
recriação da esfera pública com novos temas, questões e demandas (Matos, 2009; Miguel & Biroli, 2013).
Ainda que vários movimentos de mulheres não se identificassem como feministas, vários de seus
segmentos se apoiavam em reflexões originárias das correntes que se formavam no feminismo, na busca
de interpretar a discriminação fundada na diferença sexual e nas especificidades da condição da mulher. A
militância, que trazia questões do cotidiano aos espaços público e privado, instigava e desafiava a
expressão do feminismo na teoria, na arte e na política, de modo a questionar as relações de poder e as
múltiplas condições de subalternidades que definiam a diversidade de sujeitos (Soares, 1994; Souza-Lobo,
2011).
O contexto social e político dos anos de 1980, marcado pela expansão de valores democráticos
como liberdade e igualdade, fez emergir uma diversidade de atores coletivos, mulheres, jovens, negros e
homossexuais, e diversificar os movimentos de mulheres e feminista nas suas concepções, temas, formas
organizativas e ações estratégicas. Nesse contexto, uma vertente expressiva do movimento de mulheres,
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em diálogo com o feminismo, se desenvolveu no âmbito do sindicalismo urbano e rural (Pinto, 2003;
Soares, 1994; Souza-Lobo, 2011). As mulheres rurais reivindicavam reconhecimento, direito à
sindicalização e ampliaram suas bandeiras de luta como sujeitos de direitos, trazendo o questionamento
dos papéis sociais historicamente impostos pela cultura patriarcal-machista que as colocou no lugar da
desvalorização e da invisibilidade (Cappellin 1990, p.20).
As mulheres rurais, impulsionadas pelos direitos conquistados na Constituição Federal promulgada
em 1988, ampliaram sua condição organizativa e política, para o que concorreu o diálogo com as
sindicalistas organizadas na Central Única dos Trabalhadores (CUT) e as atividades de formação política
desenvolvidas por diversas organizações não governamentais (ONG’s) feministas.
No movimento sindical criaram coletivos e comissões e aprovaram a cota mínima de 30% nos
cargos de direção. Por outro lado, criaram “movimentos autônomos” na perspectiva de avançarem, sem as
amarras do sindicalismo, o que contribuiu para compor a diversidade do campo identitário das mulheres
rurais - extrativistas, quebradeiras de coco, sem-terra, quilombolas, camponesas, agricultoras familiares,
ribeirinhas, pescadoras, indígenas e outras mais.
Se as dinâmicas sociais que marcaram a emergência do movimento feminista no Brasil já
apontavam sua pluralidade, a ampliação e movimentação das fronteiras no campo acadêmico e da
militância envolvendo as mulheres rurais provocam a referência a “feminismos em movimento”. Trata-se
dos feminismos que se encontram, se interpelam, se intersectam e se constroem no diálogo com as ações
coletivas de mulheres rurais e engendram processos de subjetivação. Trata-se, portanto, de processos de
construção de sujeitos políticos, de trajetórias de vida movidas por projetos coletivos de mudança e
transformação social.
A investigação, ainda em curso, no âmbito da linha de pesquisa “Política, Participação Social e
Processos de Identificação” do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais – área de concentração psicologia social – busca compreender o processo de constituição de
sujeitos políticos em ações coletivas de mulheres rurais, em diálogo com os feminismos visibilizados,
construídos, vividos e significados.
Feminismo e feminismos
As dinâmicas sociais que marcam a emergência e ampliação do movimento feminista no Brasil
revelam a movimentação de fronteiras nos campos acadêmico, da militância, e entre estes. Nesse contexto
as mulheres rurais articulam a denúncia das desigualdades, opressão e violência sexista às demandas por
reconhecimento, ampliação, acesso aos direitos e políticas públicas e se constituem como sujeitos
políticos, protagonistas de processos articulatórios, organizativos e identitários, que transitam e deslocam
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fronteiras entre as esferas privada e pública, entre o pessoal e o político. Nessa movimentação tem lugar a
expressão de feminismos que resultam de interpelações e diálogos construídos nas e pelas ações coletivas
de mulheres rurais, que engendram processos de subjetivação.
As referências teóricas do feminismo dão conta de uma associação dinâmica e dialética entre
movimentos sociais feministas e teoria crítica, entre teoria e prática, que faz renovar a noção de práxis em
sua dimensão utópica e real. Essa peculiaridade se impõe como um requisito para compreender o
feminismo como “[...] um movimento que produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria” (Pinto,
2012:269).
“No se nace mujer: se llega a serlo” (Beauvoir, 1999, p. 207). Este enunciado amplamente
conhecido como “Não se nasce mulher: torna-se mulher”, da obra de Simone de Beauvoir de 1949, ainda
se constitui em referência, fonte de polêmicas e de novas formulações, tanto no campo acadêmico, como
no universo da militância feminista. Como uma espécie de declaração da emergência de uma nova
identidade, do sujeito do feminismo, esse enunciado pode ser identificado de diversas formas nas ações
coletivas de mulheres rurais, estampado em cartazes, camisetas, expresso nas falas e nos discursos
políticos.
O impacto da obra de Beauvoir se reflete no slogan “o pessoal é político”, que expressa a recriação
do político nas esferas pública e privada, com o enfrentamento às desigualdades fundadas no gênero e à
violência sexista, associadas às demandas por cidadania e democracia. Nesse contexto se consolidam
como categorias do feminismo contemporâneo: gênero e patriarcado, público e privado, identidade e
diferença, autonomia, cidadania, poder e democracia. Tais categorias, trabalhadas em diversas áreas das
ciências humanas e sociais, são identificadas com o feminismo no campo de diálogo das ações coletivas
de mulheres rurais e provocam a perspectiva de compreender esse processo de apropriação na qualidade
de fenômenos psicossociais, que ensejam processos de identificação, subjetivação e construção de
identidades coletivas e políticas.
Ao focalizar a ação coletiva de mulheres rurais as reconhecemos como sujeitos políticos,
protagonistas de processos articulatórios, que em contextos específicos mobilizam recursos, potencializam
oportunidades políticas e, sobremaneira mobilizam interesses, sentimentos, emoções e projetos de futuro.
Nesse processo constroem e reconstroem significados num campo de pertença e de intersubjetividades
marcado por tensões, conflitos, rupturas e continuidades, que desafiam a sustentação do seu projeto
político no espaço e no tempo. Nessa dinâmica psicossocial toda e qualquer estabilidade de fato é
transitória, pois se trata de um processo contínuo de mudanças socais (Prado, 2002).
A capacidade articulatória e de mobilização de grupos sociais conforma um processo de construção
de identidades coletivas, “[...] garante uma continuidade da experiência de um “NÓS” e diz algo sobre a
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pertença a determinado grupo”, como argumenta Prado (2002, p. 67). A experiência nesse sentido não é
algo de indivíduos, mas constitutiva dos sujeitos: “Pensar a experiência dessa forma é historicizá-la, assim
como as identidades que ela produz” (Scott, 1999, p.5). Trata-se de processos de subjetivação, que ao
produzir subjetividades abrigam a transformação do indivíduo em sujeito.
O rural, de onde emerge o processo de mobilização dessa experiência, não se contrapõe ao espaço
urbano; ao contrário suas fronteiras são tênues e reveladoras de um Brasil rural em permanente
transformação. Em sua diversidade territorial, econômica, política, cultural e ambiental, constitui
múltiplas ruralidades, que se apresentam em permanente tensão, num campo de resistências e reconstrução
cotidiana pela ação de homens e mulheres, que buscam construir projetos emancipatórios frente à
devastação dos setores do capital representados pelo agronegócio e pelas transnacionais.
A referência a “mulheres rurais”, se por um lado sugere uma forma de essencializar o sujeito da ação
coletiva, por outro se constitui num artifício temporário para se referir à diversidade de identidades
coletivas que se constroem a partir do sentimento de pertença, que se traduz, dentre outros, no “[...]
compartilhamento de valores e crenças que definem uma cultura política do grupo, colaborando na
configuração e mediação da relação entre diferentes grupos [...]” orientado pelos projetos de futuro
traçados coletivamente (Prado, 2002, p. 66-67).
Mulheres rurais refere-se a uma diversidade de posições identitárias – camponesas agricultoras
familiares, quilombolas, quebradeiras de coco, extrativistas, ribeirinhas e outras, de múltiplas ruralidades.
Trata-se de diversas “posições de sujeito”, como se refere Mouffe (1999b), articuladas num campo
identitário, que integra diferentes condições organizativas, socioeconômicas, políticas e culturais, Dessa
forma se apresentam nas ações coletivas que protagonizam, onde articulam dimensões da igualdade e da
diferença e tornam possível a defesa de plataformas e pautas de reivindicações unitárias. Essa articulação
desafia a construção de novas relações e a expansão do campo identitário, que em sua instabilidade e
tensão podem assumir configurações diversas num dado tempo e lugar. (Mouffe, 1999b).
A categoria “mulheres rurais”, compreendida como sujeito dos feminismos, apresenta-se associada
às marcas da dominação masculina associada a outras dimensões e marcadores de opressão e
desigualdade. A construção do gênero não somente denuncia a dominação, mas desnaturaliza os atributos
baseados na diferença sexual. Como uma categoria de análise, o gênero é definido como “[...] constitutivo
das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos [...]” e “[...] uma forma primária de
dar significado às relações de poder [...]” (Scott, 1995, p. 86-88).
A categoria mulher, e nesse caso “mulheres rurais”, se refere, portanto, a um sujeito múltiplo
constituído no gênero, nos códigos linguísticos e representações culturais, engendrado na experiência de
relações de sexo, classe, raça, que superam as narrativas ocidentais marcadas pelo modelo heterossexual
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(Lauretis, 1994). O gênero não denota, pois, um ser substantivo, mas se materializa a partir de normas
reguladoras em relação ao que se define como sexo, prática sexual e desejo; tampouco se limita ao
enfoque heterossexual, à dualidade macho-fêmea, mas supõe a existência de corpos abjetos, excluídos, à
margem (Butler, 2003). Concebido como uma relação entre sujeitos historicamente situados, o gênero é
um fenômeno mutável que se define em suas intersecções políticas e culturais com as dimensões de classe,
raça e etnia, orientação sexual (Butler, 2003).
A interseccionalidade diz respeito às multideterminações do gênero, à relação recíproca entre as
diferentes “fontes estruturais de desigualdade” ou “organizadores sociais” que estruturam a vida das
pessoas e expressam estratégias de exercício do poder (Méndez, 2014). A sua identificação se faz
fundamental contra os procedimentos comuns que tendem a essencializar o sujeito do feminismo e das
ações coletivas, para que se torne possível reconhecer em contextos específicos como operam as diferentes
formas de opressão inscritas nas diferenças de classe, raça e etnia, geração, orientação sexual e outros
marcadores que se traduzem em desigualdades.
A relação entre igualdade e diferença está no centro dos debates sobre identidades e
reconhecimento, que em permanente tensão, compõe um paradoxo a que Scott (2005, p.15) chamou
“enigma da igualdade”. Nessa perspectiva, a igualdade, considerada como “[...] um princípio absoluto e
uma prática historicamente contigente”, não elimina a diferença, mas antes a reconhece, embora ao fazê-lo
não significa que realmente a tomará em consideração nos processos de luta por igualdade.
O uso da categoria mulher que comumente se justifica pela condição mesma do feminismo como
movimento político que se desafia a construir a unidade na diferença, ao fazê-lo incorre no risco
permanente de essencializar, invisibilizar e excluir. A expressão “essencialismo estratégico” cunhada por
Gayatri Spivak é justificada na perspectiva de produzir a identificação necessária ao processo de
mobilização política (Miguel e Biroli, 2013), porém em seu caráter de provisoriedade.
E como se
posiciona Spivak, citada por Butler (2006), a categoria “mulheres” não pode se sustentar como categoria
unitária, mas antes deve expor suas fraturas no discurso público, a partir do que a autora citada,
desenvolve a noção de “sujeito fraturado”.
Nessa perspectiva a construção do sujeito político do feminismo implica em dinâmicas relacionais
e em deslocamentos que conduzem à “desconstrução das identidades essenciais” e a uma política
feminista que, ao invés de contemplar as mulheres como um todo homogêneo e coerente, as tenha na
condição de múltiplas "posições de sujeito", que significa múltiplas relações de subordinação e de poder,
contra a ideia de uma fonte única de ação (Mouffe, 1999a, p.31).
Nessa perspectiva se situa o questionamento à existência de uma base universal do feminismo,
como crítica à concepção de um patriarcado universal para explicar as diversas formas de desigualdade e
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opressão em contextos sociais específicos. O questionamento à condição de representação política e de
uma identidade que abranja diferentes culturas acompanha essa perspectiva crítica à qual se associam as
teorias do multiculturalismo, do feminismo pós-colonial e as noções de margem, subalternidade e
agenciamento feminino, que fazem Spivak (2010) interrogar: “Pode o subalterno falar?”.
Os feminismos, como teoria e movimento, promovem deslocamentos na constituição e significado
da esfera pública - lugar do exercício da política, fundada em princípios universais da razão e da
impessoalidade que não comporta diferenças de sexo, sexualidades, raças e etnias; e da esfera privada
como o lugar da intimidade, do âmbito pessoal, do domínio doméstico e familiar, onde não cabe a
intervenção do Estado e da justiça. Tais deslocamentos indicam trânsitos nas fronteiras de um feminismo
que se pretende universal e unitário para revelar novos sujeitos, historicamente silenciados, como a
reclamar a descolonização da política feminista e um novo exercício do político.
Mulheres rurais e feminismos
A investigação em curso é conduzida pelo questionamento à pretensa objetividade transcendente e
universalista, que opõe sujeito e objeto, em favor da objetividade, que se constrói com saberes parciais e
corporificados, histórico e socialmente localizados, que estão na base dos debates sobre ciência e
feminismo (Haraway, 1995, p.33). A metodologia adotada incorpora a concepção de objetividade como
racionalidade posicionada com que o feminismo interpela a ciência, e a esta agrega a perspectiva
descolonial, que considera o lugar das mulheres rurais, como um lugar geopolítico, de enunciação, um
lugar de fala da histórica subalternidade, um lugar social e epistêmico (Matos, 2012).
Com essa perspectiva adotou-se nessa etapa da investigação a análise dos documentos públicos das
marchas das margaridas realizadas a partir de 2003. Foram identificadas e estão em processo de análise as
identidades reveladas e as categorias gênero, reconhecimento, cidadania, autonomia e violência, com as
quais as mulheres rurais dialogam com o feminismo e constroem sua ação coletiva.
O deslocamento das fronteiras entre público e privado impulsionado pela defesa feminista de que “o
pessoal é político”, e pelo caráter multidimensional da cidadania (Matos, 2009), relaciona-se ao redesenho
do político e da política. Nos termos definidos por Mouffe (1999b) o político se revela em múltiplas
formas de expressão de antagonismos que se fazem presentes nas relações sociais e nas diversas formas de
opressão às mulheres, enquanto a política cuida de estabelecer [...] uma ordem, organizar a coexistência
humana em condições que são sempre conflituosas porque atravessadas pelo político (Mouffe, 1999b,
p.270).
A cidadania da perspectiva feminista não é concebida como algo dado e estático, mas se constitui
num campo de tensões e negociações, no qual se fazem presentes conflitos e antagonismos de forma a
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articular diferentes lutas contra a opressão, incluindo aquelas vinculadas ao gênero. Esse processo implica
em demarcação de fronteiras que, se por um lado expressa antagonismos e são irreconciliáveis, por outro,
apresentam-se na condição de exercerem, pelo princípio da liberdade e igualdade “[...] o direito de
transformar espaços sociais em espaços de lutas” (Mouffe, 1999b, p.270).
A Marcha das Margaridas expressa o exercício do político que se apresenta investido de uma ampla
dimensão subjetiva e simbólica associada ao legado da sindicalista Margarida Maria Alves trabalhadora
rural, presidente do Sindicato de Alagoa Grande no estado da Paraíba, brutalmente assassinada por
latifundiários usineiros, em 12 de agosto de 1983. Esse legado é traduzido pelas mulheres numa
multiplicidade de símbolos que remetem, dentre outros, à força, garra, coragem, compromisso e
permanente convocação para a organização e luta por democracia, justiça, autonomia, igualdade e
liberdade para as mulheres.
Em sua plataforma política e pautas de reivindicações, “as margaridas” tratam da reforma agrária e
desterritorialização; da crescente pobreza rural promovida pela ação do latifúndio, do agronegócio e das
transnacionais; da defesa dos bens comuns e da soberania e segurança alimentar. Em seus documentos
públicos combatem a violência sexista, as práticas homofóbicas, a mercantilização do corpo e da vida das
mulheres; defendem a autonomia sobre seus corpos e a descriminalização do aborto e reivindicam
políticas públicas que as reconheçam em seus direitos de cidadania e na sua condição de agentes do
desenvolvimento rural sustentável.
A Marcha das Margaridas se insere no espaço político das lutas emancipatórias, de caráter feminista,
que transpõe fronteiras entre público e privado, política e cultura, dando materialidade ao lema “o pessoal
é político”, para o que concorre o questionamento à naturalização das diferenças e à divisão sexual do
trabalho (Cappelin, 1990; Matos, 2009). Esse processo remete a tensões entre igualdade e diferença, que
longe de serem “[...] escolhas morais e éticas intemporais [...]” devem ser devidamente contextualizadas,
para que se apreendam suas incorporações políticas específicas (Scott, 2005:14).
As “margaridas” se identificam como “mulheres trabalhadoras rurais”, “mulheres do campo e da
floresta”, e mais recentemente, “mulheres do campo, da floresta e das águas”. Essas variações sinalizam
deslocamentos identitários construídos no processo de realização das marchas, e indicam uma ampliação
para além da nomeação ”trabalhadoras rurais” própria da tradição sindical.
Os deslocamentos identitários que as “margaridas” promovem, buscam atender a demanda por
inclusão de mulheres de outras origens, filiações, tradições organizativas e trajetórias de lutas, e
respondem à necessidade de se criar uma nomeação que atenda à diversidade. “Mulheres do campo, da
floresta e das águas” reporta diretamente a uma diversidade territorial que define pertencimentos, abriga
uma multiplicidade de condições socioeconômicas, culturais e ambientais e diz respeito à construção de
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um novo campo identitário. Trata-se de um processo dinâmico, que integra tensões, instabilidades e
produz uma cultura política própria, construída a partir da elaboração dos elementos comuns às trajetórias
de lutas, da convergência de expectativas e projetos de futuro compartilhados na forma de crenças e
valores, e de estratégias para mobilizar recursos materiais e simbólicos.
As mulheres do campo, da floresta e das águas com sua ação coletiva e política vêm ampliando o
exercício da cidadania para além da sua dimensão civil e política, que reproduziu por longos anos a sua
exclusão e legitimou práticas antidemocráticas (Matos, 2009, Pimenta, 2012).
A interligação e
simultaneidade entre democracia e cidadania se evidenciam num amplo espectro de bandeiras de lutas a
partir da demanda por reconhecimento e acesso igualitário aos recursos materiais e não materiais. Reside
nesse processo a possível passagem da condição de subalternidade para a condição de opressão
caracterizada por um antagonismo que integra sentimentos comuns de injustiça social e conscientização
dos direitos, que caracterizam a construção da identidade política. Desse modo é possível desativar o
perigo de exclusão, e ativar a defesa da autonomia, igualdade e liberdade das mulheres como parte
integrante da cidadania para todas (Mouffe, 1999a).
Essa movimentação pode ser compreendida a partir da concepção de pluralismo democrático
defendida por Chantal Mouffe, que se constrói e se fortalece num campo de articulações de várias
formações discursivas, de modo a possibilitar uma cadeia de equivalências entre diferentes lutas e
reivindicações. Portanto, não se trata “de vínculos a priori”, mas de construir articulações como “[...]
vínculos históricos, contingentes e variáveis entre diferentes posições de sujeitos [...]” num campo
diverso, instável e mutável, dado pela capacidade objetiva de construir articulações e movimentar
fronteiras. (Mouffe, 1999a, p. 33).
Feminismos em movimento – novos desafios
As ações coletivas das mulheres rurais – do campo, da floresta e das águas - acessadas por meio dos
documentos públicos das marchas das margaridas, realizadas nos anos 2003, 2007 e 2011, revelam a
emergência de novos sujeitos políticos do feminismo. A expressão de um projeto político de caráter
feminista, que defende a autonomia, justiça, igualdade e liberdade para as mulheres, a partir de lugares de
fala historicamente silenciados, é revelador de um movimento de tradução e recriação do feminismo, que
por sua dinâmica e diversidade cultural revelam feminismos em movimento. Feminismos que emergem
das margens, das fronteiras, como vozes pela libertação numa perspectiva emancipatória que encontra
ressonância nos debates sobre os feminismos pós-coloniais e nas interpelações acerca de uma
epistemologia da fronteira, como se refere Matos (2012, p.49).
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O esforço bem sucedido de articular um conjunto diversificado de organizações feministas e
movimentos de mulheres e mobilizar milhares de mulheres em todo o país traz consigo o desafio
permanente de reconhecer e assegurar a expressão da diversidade de posições de sujeito relacionadas às
dimensões territoriais, socioeconômicas, culturais e organizativas, ambientais, como também aquelas que
se intersectam com gênero e definem formas de opressão e desigualdade, como a raça e etnia, a geração e
a sexualidade. Reside nessa perspectiva a possibilidade de se estabelecer dinâmicas comunicativas capazes
de garantir a articulação dos princípios da igualdade e da diferença em plataformas e pautas comuns e
sustentar o projeto político emancipatório de caráter feminista das mulheres rurais.
Acolher tal desafio a partir da perspectiva dos feminismos em movimento implica em reconhecer a
necessária expansão do campo identitário, que em sua instabilidade e tensão pode assumir configurações
diversas, de acordo com os interesses e projetos comuns num dado tempo e lugar.
A defesa da igualdade, que passa por reconhecer e acolher as diferenças remete a criação de um
campo identitário que atente para a “desconstrução das identidades essenciais” e uma política feminista
que, ao invés de contemplar as mulheres como um todo homogêneo e coerente, as tenha na condição de
múltiplas "posições de sujeito”. A cidadania, dessa perspectiva, implica em combinar equivalência e
diferença, de modo a articular um campo de equivalências que se traduz numa forma de identidade
política fundamentada nos princípios de liberdade e igualdade para todos, e de outro, em acolher a
expressão das diferenças como um princípio articulador de diferentes posições de sujeito (Mouffe, 1999a).
A emergência dos novos sujeitos políticos, da passagem da invisibilidade ao reconhecimento, se
situa nessa dinâmica da construção democrática e cidadã, que constrói nexos a partir de demandas
concretas e recria laços de pertença numa construção identitária, que tem na sua base o desafio da relação
entre igualdade diferença articuladas, não como oposições, mas em suas intersecções.
A sustentação no tempo e espaço do projeto político emancipatório das mulheres do campo, da
floresta e das águas, sugere a necessidade de se desenvolver estratégias de mobilização e lutas
permanentes, capazes de articular a construção da unidade feminista a uma perspectiva que reconheça as
intersecções de território, raça e etnia, sexualidade e outras que venham compor toda a diversidade.
Essa perspectiva pode se traduzir no desafio de assegurar a voz e força política às mulheres do
campo, da floresta e das águas, na perspectiva da sua emancipação, capitaneada por um projeto de
democracia radical e cidadania integral no contexto brasileiro atual de ofensiva das forças conservadoras.
O desafio implica em transformar a utopia da igualdade e liberdade em práticas emancipatórias,
contingentes, e abertas ao permanente exercício do pluralismo democrático que garanta a expressão dos
feminismos recriados, significados e visibilizados pelas mulheres situadas nas margens, nos diversos
territórios que compõem o Brasil rural.
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