14 CAMINHOS PARA UMA CRISTOLOGIA CONTEXTUAL NA ÁFRICA SUBSAARIANA Júlio Macuva Estendar* Resumo: O presente artigo surge da necessidade de apresentar a pessoa de Jesus Cristo e sua obra dentro do contexto cultural tradicional da África Subsaariana, e de traçar uma cristologia que seja identificada pelos povos bantu onde é gerada e vivenciada. A vida e obra de Jesus Cristo têm sido anunciadas para as comunidades tradicionais africanas sem que esse anúncio seja relevante para a vida religiosa e espiritual do povo. Jesus Cristo tem sido apresentado como um estrangeiro em vários povos de culturas tradicionais, sua vida e obra tem se tornado insignificante ou de pouca relevância para estas comunidades de matriz tradicional. Surge então o desafio de se apresentar uma cristologia autóctone que anuncie a pessoa de Jesus Cristo com o rosto bantu que não despreze e nem desvalorize suas culturas, que fale suas línguas e se assemelhe a eles e se solidarize com seus vários problemas. Palavras Chaves: Cristologia. Bantu. Mediador. Antepassado. Humanidade. Abstract: This work arises from the need to present the person of Jesus Christ and his work within the traditional cultural context of sub-Saharan Africa, and to draw a Christology that could be identified by the Bantu people where it is generated and experienced. The life and work of Jesus Christ have been announced for African traditional communities without the concern about if announcement was relevant to the religious and spiritual life of these people. Jesus Christ has been presented as a foreigner in various traditional culture peoples, his life and work has become insignificant or of little relevance to these traditional communities’ matrix. Because of this comes the challenge of presenting an autochthonous Christology, announcing the person of Jesus Christ with the Bantu face that does not despise nor devalue their cultures, who speaks their languages and resembles them and sympathizes with their various problems. Keywords: Christology. Bantu. Ancestor. Mediator. Humanity. * Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil e graduando em Direito pela Universidade Paulista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2242131336555563 E-mail: [email protected]. ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 15 INTRODUÇÃO Puãi, eci Espiritu Sandu o wili, oco vu kuata unene, kuenje vu linga olombangi viange vo Yerusalãi, ló vo Yudea yosi, ló vo Samária, kuenda toke kasulilo okilu lieve (Olinga 1.8)1. O texto de Atos 1.8 descreve as ultimas palavras de Jesus antes de sua ascensão aos céus a seus discípulos, onde os ordena a testemunhar sobre tudo o que Dele viram e ouviram. Este testemunho era para ser anunciado em Jerusalém, Judeia, Samaria e em todos os confins da terra. Os contextos de Jerusalém, Judeia e Samaria foram influenciadores no desenvolvimento de suas compreensões cristológicas. Com isso foram geradas várias interpretações cristológicas que circulavam juntas no século I na Palestina. Assim os outros povos que se encontravam “nos confins da terra” também tinham que desenvolver suas cristologias tomando como base o testemunho de Jesus anunciado pelos apóstolos e tendo em conta o contexto que se encontravam inseridas. Os povos bantu ao ouvirem o testemunho de Jesus anunciado pelos textos do Novo Testamento e os cunhados na tradição teológica da Igreja são chamados a desenvolver uma cristologia que toma como base o testemunho de Jesus Cristo e a realidade de seu contexto. Todos estes fatores são fundamentais para se traçar algumas aproximações para a elaboração de uma cristologia da mediação desde as comunidades bantu da África subsaariana. 1. Uma leitura bíblica da Epístola aos Hebreus: cristologia bíblica da mediação Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles. Pois, tanto o que santifica como os que são santificados, todos vêm de um só. Por isso, é que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos. Dizendo: A meus irmãos declarei o teu nome, cantar-te-ei louvores no meio da congregação. E outra vez: Eu porei nele a minha confiança. E ainda: 1 O texto está escrito em Umbundo, tradução literal: “mas quando o Espírito Santo vier sobre vocês, receberam grande poder e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e em Samaria, também em todas as terras”. Atos 1.8 ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 16 Eis aqui estou eu e os filhos que Deus me deu. Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo. E livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a vida. Pois ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de Abraão. Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados. (Hebreus 2.10-18). A Epístola aos Hebreus é bastante rica em mostrar a transcendência de Cristo como revelador e o plano da salvação de Deus para com a humanidade, tendo como ponto de partida uma cultura tradicional como a do povo Judeu. O autor aos Hebreus toma a tradição do povo para poder expor sua visão cristológica de quem é Jesus e de como se dá sua obra redentora em Deus. Nosso trabalho volta-se a traçar um percurso exegético dos primeiros capítulos tendo maior destaque os versículos acima citados da Epístola, para entendermos a exposição cristológica de Hebreus. São levantados alguns questionamentos: como o autor descreve a pessoa de Jesus Cristo? De que modo se da sua obra redentora? Como se dá a mediação entre Deus e humanidade? Estas questões são levantadas ao longo do estudo da Epístola aos Hebreus. A exposição do sermão aos Hebreus começa com uma extraordinária apresentação tradicional do Filho, como sendo o único, eficaz, e o meio pela qual Deus fala a seu povo, porque no passado como diz o autor Deus falava de varias maneiras, pelos Pais e pelos profetas; mas só que agora o Filho alcança proeminência na mediação direta entre Deus e a humanidade (1.1,2). Hawthorne descreve que a expressão “nestes últimos dias falou-nos” (o verbo traz a ideia de “de uma vez por todos”), onde fica evidente a completude e perfeição dessa revelação que agora veio nesse estágio final do plano de Deus para a revelação (BRUCE, 2008, p.2092). O Filho é o herdeiro de todas as coisas, por quem tudo veio a existir; “Ele é o resplendor da glória e a expressão exata do Pai”, a palavra “esplendor” traduz o termo ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 17 grego apaugasma, que também tem significado ativo, “que irradia” ao proferir essa palavra o autor demonstra a origem divina do Filho, sua semelhança com o Pai e ao mesmo tempo sua independência pessoal (BRUCE 2008, p.209). É no Filho e somente por meio dele que todo o universo é sustentado em meio ao poder de sua palavra. No Filho são purificados todos os pecados da humanidade desgarrada, e ao se realizar a purificação por meio do Filho, Deus o eleva às alturas e faz se assentar a direita de sua Majestade. Os anjos são inferiores ao Filho que herdou o nome que está à cima deles (1.1-4). Esta apresentação do Filho feita pelo autor de Hebreus não se mostra estranha para seus ouvintes, porque tal apresentação faz parte da tradição do Filho de Deus existente neste mesmo período. No Filho temos o agir de Deus completamente realizado, pois as palavras de Deus encontram seu agir no Filho que é a expressão exata do seu Ser. A palavra de Deus agiu diretamente em nossa história por meio do Filho que é sua ação. [...] O início do sermão reflete fielmente essa realidade, pois, em uma frase única, ele apresenta sucessivamente a Palavra de Deus e o ministério de Cristo, associando-os estreitamente. Reduzida a seus elementos essenciais, a frase, com efeito, afirma que “Deus nos falou por meio de seu Filho, que, depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se à sua direita”. A partir daí, a palavra de Deus nos chega em sua plenitude, pois encontrou sua forma perfeita graças à encarnação do Filho de Deus, que é “o resplendor de sua glória e a expressão do seu Ser” (1.3). Agora, a ação de Deus transforma a nossa existência, pois se desencadeou por nós de modo mais completo e definitivo na glorificadora Paixão de Cristo. Desse modo, para nós, a palavra de Deus e a ação de Deus estão indissoluvelmente ligadas à mediação de Cristo. É em Cristo que Deus nos fala, é em Cristo que Deus nos salva (VANHOYE, 1983, p.52). O autor aos Hebreus ao descrever sua cristologia faz uma relação importante entre o Filho de Deus que descreve no capítulo 1 com Jesus, o Cristo, que ao assumir nossa humanidade se tornou no único mediador entre Deus e humanidade. Esta mediação só é possível porque o Filho é “o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser”, estas palavras nos revelam a coexistência do Filho com Deus, é nessa relação que Ele “tornasse semelhante aos irmãos” gerando com isso a mediação entre humanidade e Deus. Porque convinha que o Filho fosse um de nós para poder ser o único e suficiente mediador diante de Deus. Na primeira parte do texto da Epístola aos Hebreus o autor traça um paralelo ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 18 entre o Filho que é Jesus, o Cristo e a figura dos anjos. Em sua exposição sobre o assunto fica claro que o Filho é muito mais elevado que os anjos, ou seja, estes estão a seu serviço a ao serviço dos que hão de herdar a salvação. O autor mostra que a tradição judaica que atribui o papel da mediação aos anjos é superada por Jesus Cristo. No entanto o texto mostra que o Cristo é muito mais qualificado do que qualquer anjo para cumprir com esse papel. O Filho ao tornar-se semelhante a nós compreende nosso ser e ajudanos, e Ele mesmo em sua relação intima com Deus nos representa. “[...] ele é mais do que um simples intermediário, pois foi pelo mais profundo de seu ser que ele se tornou, por meio de sua Paixão, o verdadeiro mediador entre Deus e os homens” (VANHOYE, 1983, p.55). Sendo “semelhante aos irmãos” Ele não se torna indiferente a nós, mas antes pelo contrario é solidário com a humanidade. No versículo 14 do capítulo 2 o texto descreve que Jesus se tornou participante da carne e do sangue, no texto em grego o autor usa a palavra paraplēsiōs que pode ser traduzida por (de forma absolutamente idêntica) demonstrando assim sua identificação com a humanidade, o que se deu por meio de sua encarnação. Para tornar-se o mediador era necessário que assumisse a carne e o sangue, e sendo como um de nós venceu a morte por sua própria morte, é no evento de sua morte que Ele destruiu o poder eterno da morte a aquele que detém esse poder “a, saber, o diabo”. No versículo seguinte o texto mostra a abrangência da libertação de Jesus Cristo, a todos que estavam sendo dominados ou escravizados (douleia), pelo poder da morte que os sujeitava a vida toda. E somente no Filho a libertação do poder da morte é possível, porque Ele se tornou no (archēgos) que é o Pioneiro, ou o Autor da criação, aquele que venceu a morte e todo seu poder, se tornando o caminho para Deus. O autor fala sobre a identificação do Filho com a humanidade na sua exposição de 2.14, ao fazer isso ele usa dois verbos (são e participou) que representam dois diferentes verbos gregos, no primeiro “marca a natureza comum compartilhada entre os homens enquanto a raça durar”; já no segundo verbo “expressa o fato singular da encarnação como aceitação voluntária da humanidade”. Ao se tornar humano fica suscetível à morte, o grande paradoxo é que por meio de sua morte Ele destruiu o Diabo que tem o poder da morte. E trousse liberdade aos que eram prisioneiros da morte (BRUCE, 2008, p.2099). O autor volta a trazer o assunto dos anjos no versículo 16 do capítulo 2, mas só que dessa vez ele mostra que a salvação é concedida exclusivamente à humanidade e ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 19 não é endereçada aos anjos, esta afirmação se faz transparecer no momento em que o autor descreve o “socorro à descendência de Abraão”, a palavra usada pelo autor em grego é epilambanesthai que pode ser traduzida por “pegar ou tomar”. Esta afirmação suscita varias interpretações, uma delas diz que a salvação se dá “[...] os filhos de Abraão incluem todos quantos participam da sua fé” (GUTHRIE,1984, p.88). A abordagem que nos propomos está voltada para a ideia de que no trecho a figura da descendência de Abraão não se aplica simplesmente ao povo judeu, mas antes à toda humanidade. A salvação não é para os anjos, mas sim para toda a humanidade em Cristo Jesus. Na sua exposição o autor aos Hebreus mostra-nos que a salvação herdada pela humanidade, se tornou possível porque o Filho que é identificado em Jesus Cristo fezse semelhante aos “irmãos”, ou seja, com a humanidade. Ele em tudo foi semelhante a nós exceto no pecado, sendo misericordioso e fiel para com a humanidade diante de Deus. “Ele teve de participar das dificuldades da humanidade e identificar-se com seus irmãos na carne. Suas provações e fardos, suas dores e suspiros, tornam-se dele. Ele aprendeu a ver as coisas do plano da humanidade” (LIGHTFOOT, 1981, p.91). Como humano Ele também sofreu e foi tentando, mas em tudo se mostrou vencedor para poder servir de modelo para os “irmãos”. O essencial destes versículos que compõe os primeiros dois capítulos da Epístola é demonstrar a Jesus Cristo como sendo poderoso para socorrer e salvar os “irmãos”. Nisso Ele é perfeito para ser o único e suficiente representante da humanidade no seu relacionamento com Deus. Não existe um relacionamento entre Deus e humanidade se Jesus, o Cristo não for o meio de ligação, ou seja, o mediador, no entanto, é no Cristo que humanidade e Deus se fazem presentes e em plena relação. 2. Yesu Kristu wa linga Kapitiya (Jesus Cristo feito Mediador): Aproximações para uma cristologia da mediação desde as comunidades bantu da África Subsaariana. Nossa discussão se fundamenta na premissa de que não existe uma “cristologia”, mas sim existem “cristologias” porque cada povo é chamado a pensar e falar sobre sua fé em Jesus Cristo a partir de sua realidade contextual. Tal como afirma o teólogo Felix Wilfred em seu texto Pluralismo cristológico: algumas reflexões, onde ele traz à tona os seguintes questionamentos: Os sistemas totalizantes de cristologia não nos levam, como muitas vezes se ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 20 supõe, ao mistério pleno de Jesus Cristo, que permanece sempre maior (cada vez maior). Falando do amor de Cristo, Paulo torna-se contemplativo e maravilha-se com “a largura e o comprimento e a altura e a profundidade do amor de Jesus Cristo, que ultrapassa o conhecimento” (Ef. 3.18). Este caráter apofático e incomensurável pede uma multiplicidade de cristologias, que permanecem todas minúsculas diante do mistério avassalador de que tratam. Todas as cristologias compartilham a mesma sorte; todas elas têm um lugar, mas nenhuma delas pode afirmar ser a explicação última de Jesus Cristo. Em outras palavras, qualquer cristologia precisa ser, no fundo, necessariamente apofática [...] (WILFRED, 2008, p.90). O mistério pleno de Jesus Cristo permanece imensurável para toda a humanidade, no entanto, as comunidades bantu da África Subsaariana são chamadas a dar seu contributo no estudo da cristologia tendo como ponto de partida sua particularidade contextual. A autenticidade da teologia e cristologia africana são fundamentadas nas Escrituras, pois é no texto bíblico que temos o primeiro momento do fazer teológico nas comunidades africanas; também é tomada a tradição cristã como fator influenciador do pensamento teológico; depois é tomada a cultura tradicional e antropologia africana como elementos indispensáveis para se interpretar a fé em Jesus Cristo. Para pensarmos uma cristologia africana da mediação nos atemos às cláusulas pétreas do cristianismo que se fundamentam na crença em Jesus Cristo como o único portador da salvação de Deus para toda a humanidade tal como é apresentado nas Escrituras e nas decisões advindas de todas as formulações do pensamento cristológico dos primeiros séculos da Igreja e nos seus desenvolvimentos teológicos ao longo da história. Desde os testemunhos de Jesus Cristo e de sua obra presentes nos textos do Novo Testamento e posteriormente nos desenvolvimentos teológicos do período clássico da Igreja, a ideia de Jesus Cristo como sendo o único e suficiente mediador é trabalhada e defendida. Tanto a soteriologia como a cristologia se fundamentam na premissa da mediação de Cristo entre humanidade distante e Deus. Somente em Jesus Cristo é que a humanidade experimenta a salvação de Deus. Para que fosse possível a Jesus Cristo tornar-se mediador da humanidade diante de Deus e vice versa, diz o Credo de Niceia: “por nós homens e pela nossa salvação que Cristo desceu do céu, foi feito carne, foi feito homem, sofreu, ressuscitou ao terceiro dia, ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 21 ascendeu aos céus e virá para julgar os vivos e os mortos”. Ao assumir a carne e sangue Ele se torna “um de nós” com exclusão do pecado e ao ser “um de nós” sofre nossas dores e entende nossa condição humana, por ser pré-existente com o Pai e vindo da parte de Deus e por ser o esplendor de sua imagem, nos faz conhecer a Deus e com Ele nos relacionarmos. Como apresentado no desenvolvimento teológico e cristológico da Igreja, o grande evento salvífico de Cristo se dá na sua identificação com a humanidade ou sua encarnação. O teólogo do período da patrística Ireneu nos II e III séculos desenvolveu sua ideia doutrinaria da recapitulação da salvação, onde defendia que os cristãos devem imitar a Jesus Cristo que imitou a humanidade perfeita de Adão. Ireneu dizia que “Jesus assimilou a si mesmo ao homem, e o homem a ele mesmo em sua vida e em sua paixão”. Assim Ireneu defende que o evento salvífico de Deus se plenifica na encarnação de Jesus Cristo que se fez homem. Onde em sua encarnação Cristo recapitulou e atravessou todos os estágios do crescimento humano, e os santificou e redimiu cada um deles. Ele se tornou um exemplo de piedade, e de justiça para a humanidade, porque naquilo em que Adão se tornou imperfeito pelo pecado, Cristo o restaurou e o santificou. Em Jesus nossa humanidade é completamente restaurada (PELIKAN, 2014). Assim, a Palavra foi feita carne a fim de que o pecado destruído por intermédio dessa mesma carne por meio da qual conquistara o poder, consolidara-o e governava-o – não mais existisse em nós; e, portanto, nosso Senhor assumiu a mesma formação para a encarnação, para que ele pudesse se ajuntar à batalha em nome de seus antepassados e, por intermédio de Adão, derrotar o que nos atingira por meio de Adão” (Iren. Dem. 31 [ACW] 16:68). Cristo se tornou o exemplo para os homens, da mesma maneira como Adão tinha sido um exemplo para Cristo; Cristo, sendo o Logos de Deus, não era só o exemplo, mas a imagem exemplar de Deus e o protótipo dela de acordo com a qual o homem fora criado (PELIKAN apud HARVERY, 2014, p.158). Em sua encarnação Jesus Cristo se habilitou a ser o mediador da salvação de Deus para a humanidade, e no seu ato salvífico está o modelo de imitação para toda a humanidade em sua relação com Deus. Ireneu com isso mostra-nos que a imitação da humanidade com relação a Jesus Cristo produz incorruptibilidade e salvação, ou seja, a humanidade caída é aperfeiçoada e restaurada diante de Deus. Esse Jesus Cristo que se encarnou tornando-se humano em perfeição é totalmente divino e totalmente humano e “completamente um”, tinha nele tanto o ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 22 universal quanto o particular. O que Ele assumiu na unidade com sua divindade não era um ser humano particular, mas “o homem universal, ou o homem todo”, ou seja, a natureza humana no seu todo (PELIKAN, 2014). O autor da Epístola aos Hebreus descreve no inicio de sua homilia que o Filho de Deus se tornou semelhante a nós para salvação nossa. E nos compêndios teológicos dos primeiros séculos da Igreja temos claramente refletido a ideia que Jesus Cristo tomou a semelhança da humanidade para salvação de toda a humanidade que se havia afastado de Deus por causa do pecado e que somente na encarnação do Logos divino é possível aceitar a salvação por Ele mediada. Em todo desenvolvimento teológico e cristológico a doutrina da encarnação é apresentada como sendo universal e não particular, porque Jesus Cristo é o primogênito de toda a criação, Ele é o modelo da nova humanidade universal. No pensamento religioso tradicional bantu se concebe a ideia de Deus como totalmente transcendente e distante da humanidade, sua presença permeia todo o Cosmos, mas a relação entre Deus e o ser humano é completamente transcendental. Daí a grande importância dos seres mediadores, porque entre Deus e os seres humanos há espíritos e poderes bons e maus, estes fazem a mediação, mas de forma insuficiente. Para os bantu o antepassado fundador é o verdadeiro mediador. E dele se recebe a salvação comunicada por parte de Deus para toda a humanidade que espera pela manifestação das bênçãos divinas. Entre as comunidades bantu existe a crença da existência de um mediador suficiente entre Deus e a humanidade, este para que seja eficaz na mediação precisa ter conhecimento do ser humano, não existe ninguém que melhor conheça o ser humano na sua totalidade se antes não for humano. E os antepassados antes de ascenderem a essa categoria viveram como humanos. Por isso eles estão aptos para mediar e comunicar o Deus transcendente que se torna imanente no seio nas comunidades por meio da figura dos antepassados. Uma cristologia da mediação que se desenvolva originariamente no seio das comunidades bantu não se torna num elemento estranho e estrangeiro na espiritualidade cristã dos bantu. Pois existe no pensamento religioso tradicional destas comunidades a correspondência da figura mediática com o divino. Ao se propor uma cristologia da mediação bantu se faz necessário correlacionar a doutrina bíblica da mediação e também a que se desenvolveu nos primeiros séculos ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 23 da Igreja, ou seja, a tradição cristã acerca da mediação de Jesus Cristo com a figura religiosa e tradicional do antepassado como o modelo bantu de mediação com o divino. Essa correlação não é meramente um trabalho de resignificação ou de inculturação de termos cunhados pela cristologia ocidental, mas antes é o esforço de se pensar uma cristologia da mediação desde os povos bantu, onde o antepassado fundador é tomado como modelo figurativo para se explicar a pessoa e obra de Jesus Cristo narrada nos textos do Novo Testamento. Neste caso o antepassado é tomado como uma sombra que reflete Jesus Cristo para a mentalidade religiosa e tradicional bantu. O Cristo não é transformado no antepassado africano, e nem nele se resume, antes pelo contrario Ele é Filho de Deus manifestado na humanidade, é a exata expressão de Deus que permeia todo o Cosmos com sua presença. No texto 8.1-6 da Epístola aos Hebreus o autor mostra que Jesus Cristo é o sumo sacerdote que se encontra assentado nos céus à direita do trono da Majestade, e que Ele é ministro do santuário, do verdadeiro tabernáculo que o Senhor fundou, e não o homem (8.1-2). Mais adiante em sua exposição o autor diz que o tanto o santuário como os sacrifícios terrenos “servem de figura e sombra das coisas celestiais” (8.3-6). O autor da Epístola aos Hebreus toma a instituição sacerdotal judaica para explicar a obra e pessoa de Jesus Cristo para as comunidades do contexto histórico e religioso que estavam inseridas. Ao fazer isso o autor não encerra Jesus Cristo a figura terrena do sacerdote judaico, mas antes ele afirma que todo o sistema sacerdotal e sacrifical serve como “figura e sombra” das coisas celestiais que são muito mais excelentes que as terrenas. E continua dizendo que foi por isso que Jesus Cristo alcançou um ministério mais excelente que o terreno, e por isso Ele é mediador de uma aliança melhor (8.6). Seguindo o mesmo caminho trilhado pelo autor da Epístola aos Hebreus é que traçamos uma cristologia da mediação desde os bantu, onde o antepassado fundador é tomado como figura e sombra reflexiva para explicar a pessoa e obra de Jesus Cristo para as comunidades marcadas pelo contexto histórico e religioso da África Subsaariana. A necessidade de se pensar em uma cristologia da mediação a partir da figura do antepassado fundador nos povos bantu não se fundamenta simplesmente em um esforço epistemológico, mas antes é um esforço para a encarnação de Jesus Cristo no coração do africano, que é permeado pelo pensamento religioso tradicional da mediação com o divino por meio dos antepassados. ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 24 Seja o tradicional ou moderno, o africano está, implícita ou explicitamente, determinado, em todos os domínios importantes da vida, seja o religioso, o sociológico, econômico ou político, por esta relação, ou melhor, por esta referência aos antepassados. Com efeito, esta importância percebe-se melhor a partir do momento em que se considere no centro da religião tradicional africana se encontra a noção de vida. Toda a vida do africano se manifesta com uma conquista profunda da própria vida. Esta tem uma dimensão escatológica que só se realiza na plena comunhão com os antepassados. Ela é o bem supremo que Deus oferece aos homens. O próprio Deus é a “força vital”. Ele comunica-a aos homens pela mediação dos antepassados (BUJO e MUYA, 2012). É com esta visão da mediação da vida de Deus para a humanidade por intermédio dos antepassados que se situa a cristologia bantu da mediação. Esta proposta cristológica defende a mediação da humanidade diante de Deus por meio de Jesus Cristo, e sua obra salvífica. Entre os bantu a crença nos antepassados é fundada na premissa que só chega a esta categoria aquele que primeiro viveu como humano e sua vida tenha sido modelo de inspiração para sua comunidade e família e depois por meio da morte tenha alcançado a categoria de antepassado. E ao correlacionarmos o modelo do antepassado a pessoa e a obra de Jesus Cristo são tomados o cerne desta crença bantu. Onde as narrativas do Novo Testamento e da teologia cristã mostram que Jesus Cristo é préexistente com o Pai e recebeu a vida de Deus e a comunicou a toda humanidade, Ele se encarnou como homem e experimentou todas as nossas dores e limitações humanas e para salvação nossa morreu na cruz e ao assentar-se no trono da Majestade de Deus se tornou no único mediador da humanidade diante de Deus. Em seu livro Afrikaniche Theologie in ihrem gesellschaftlichen Kontext, o padre congolês Bujo desenvolve sua cristologia do protoantepassado como sendo a resposta africana acerca da obra e pessoa de Jesus Cristo a partir do contexto tradicional africano, para isso se faz valer de um vasto material bíblico e patrístico. Desenvolvendo assim seu pensamento: Tal cristologia tem raízes bíblicas profundas. Ela apoia-se na linguagem imagética de Jesus (Cf. Jo 15,5s) e na analogia paulina entre Adão e Cristo (Rm 5,14s.; 1 Cor 15,45), na última ceia de Jesus com seus discípulos (em analogia com a refeição de um pai de família prestes a morrer, com toda a sua família), na descida de Jesus Cristo aos infernos (1 Pe 3,19;4,6). Jesus Cristo é o “primogênito de toda a criação” (Cl 1,15, cf. ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 25 Heb 1,6), “primogênito de uma multidão de irmãos” (Rm 8,29), “primogênito de entre os mortos” (Cl 1,18, cf. Ap 1,5), “primogênito dos que morreram” (1 Cor 15,20). Nele tudo foi reconciliado (Cl 1,19-20). Ele tem a supremacia relativamente a toda a criatura. Numa perspectiva joanina encontramos igualmente fundamento para a ideia de vida aplicada a Cristo. Ele é aquele que veio para que as ovelhas tenham vida em abundância (Jo 10,10), Ele deu a sua vida pelas suas ovelhas (Jo 10,11.15), ele é a verdadeira videira (Jo 15,1-6), a ressurreição e a vida (Jo 11,25s.), o pão da vida (Jo 6,32-58). Em face desta abundância de material bíblico, e mesmo patrístico, para fundamentar uma cristologia proto-ancestral, [...] (BUJO e MUYA, 2012, p.126). Yesu Kristu kapitya (Jesus Cristo mediador) é a forma como as comunidades cristãs tradicionais da etnia Ovimbundo que fazem parte dos povos bantu em Angola professam sua fé viva em Jesus Cristo, como sendo o único mediador diante de Deus, Ele apresenta-se como o caminho único que liga-nos a Deus. Para que Ele fosse o kapitya (mediador) de toda comunidade era necessário que assumisse a humanidade toda. O kapitya é “um de nós”, mas ao mesmo tempo é “diferente de nós” por ter vindo da parte de Deus e nos comunicar à vida que Dele recebeu. A vida para o bantu é compartilhada, a recebemos de Deus que a comunicou para o antepassado fundador que por sua vez comunicou a toda humanidade, e Jesus Cristo é verdade e vida o lugar de nosso encontro com Deus. Mas não basta que Jesus seja verdadeiro Filho e Deus, por uma parte, e verdadeiramente homem, por outra. Se essas duas solidariedades permanecerem externas uma à outra, nada passará da primeira à segunda. É preciso ainda que elas realizem uma unidade verdadeira. Dessa unidade depende a mediação única de Cristo. Toda a comunicação de Deus com o homem passa por essa comunhão do homem e de Deus vivida em sua própria pessoa. Toda separação entre humanidade e divindade no Cristo tornaria intransponível o abismo entre o homem e Deus [...] (SESBOÜÉ e WOLINSKI, 2005 p.295). O bantu acredita que na crença e homenagem ao antepassado fundador está o encontro místico com o Deus transcendente, mas Este se faz presente na figura do antepassado. Na cristologia da mediação bantu se faz presente o mesmo principio, Jesus Cristo conjuga em si mesmo a humanidade e divindade, formando uma verdadeira unidade indivisível e com isso proporciona um relacionamento entre a comunidade dos humanos e Deus realidade última. ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 26 CONSIDERAÇÕES FINAIS O fazer teológico contextual no Terceiro Mundo é feito a partir de baixo, do reverso da história. Seu ponto de partida não é a Escritura ou a tradição da Igreja, mas no caso o africano, o pobre, o culturalmente marginalizado e privado de sua autonomia. As Escrituras devem ser lidas, bem como a tradição, a partir desse novo ponto de vista. Tendo em vista esta nova forma de se fazer teologia surge então a necessidade de se desenvolver uma nova epistemologia teológica, que nasça dos povos de África. O ponto de partida para se pensar uma cristologia e teologia no contexto africano não precisa ser a partir das “prisões e imposições da epistemologia e culturas ocidentais”, mas na africanidade recuperada em cada homem e mulher, ancião, jovem ou criança. Estes são pressupostos primários, dos quais não se pode abrir mão, ao se elaborar uma cristologia africana e que consequentemente desencadearia um entendimento da obra e pessoa de Jesus Cristo genuinamente africano. Ao se percorrer os textos do Novo Testamento é nítido observar uma pluralidade de testemunhos de Jesus Cristo, trazendo a existência de várias cristologias e não a existência de uma única cristologia dominante. O mesmo se observa no desenvolvimento cristológico dos primeiros séculos da Igreja, com suas várias controvérsias e concílios. A cristologia de Calcedônia não pode ser entendida como um determinismo cristológico, mas antes precisa ser uma fonte de inspiração e motivação para o surgimento de novas formulações cristológicas nos vários contextos atuais. Na correlação entre o contexto cultural, religioso e tradicional bantu marcado pela crença dos antepassados e a cristologia bíblica e seu desdobramento ao longo da Patrística e Modernidade, são as pedras necessárias para se edificar uma cristologia da mediação desde a África Subsaariana. Cristologia essa que é originaria dos povos bantu e que se caracteriza com suas culturas, línguas e que seja relevante para sua vida espiritual. REFERÊNCIAS BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27. 27 BÍBLIA. Umbundo. Embimbiliya Li Kola: Otestamento Ya Kuenda, Otestamento Yokaliye. Luanda, Angola: Sociedades Bíblicas Unidas, 1963. BRUCE, F.F. Comentário bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008. BUJO, Bénézet e MUYA, Juvénal. Bénézete Bujo: o despertar de um pensamento sistemático e autentico africana. In ______ Teologia africana no século XXI: algumas figuras, volume 1. Lisboa: Paulinas, 2012. p.97-135. GUTHRIE, Donald. Hebreus: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1984. LIGHTFOOT, Neil R. Comentário bíblico “Vida Cristã”: Hebreus. São Paulo: Vida Cristã, 1981. PELIKAN, Jaroslav. A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: o surgimento da tradição católica 100-600, volume 1. São Paulo: Shedd Publicações, 2014. SESBOÜÉ, Bernard SJ e WOLINSKI, Joseph. História dos dogmas tomo 1: O Deus da salvação (séculos I – VIII). São Paulo: Loyola, 2005. VANHOYE, Albert. A mensagem da Epístola aos hebreus. São Paulo: Paulinas, 1983. (Cadernos bíblicos; 21). WILFRED, Felix. Pluralismo cristológico: algumas reflexões. Concilium, revista internacional de teologia: Jesus como Cristo: o que está em jogo na cristologia? Petrópolis, RJ, v. 3, n. 326, p. 90-102, 2008. ESTENDAR, Júlio Macuva. Caminhos para uma cristologia contextual na África Subsaariana. INTEGRATIO, v. 2, n. 1, jan. - jun. 2016, p. 14-27.