REPORTAGEM DESENVOLVIMENTO Por Yolanda Stein Uma agenda para o século 21 Curso de Desenvolvimento promovido pela Associação Brasileira de Instituições Financeiras de Desenvolvimento (ABDE), em parceria com o Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ), e que teve como coordenadora a professora Jennifer Hermann, eleva o debate sobre o tema e inspira a conceituação do Sistema Nacional de Fomento, conjunto de instituições cujo mote é a promoção do desenvolvimento do Brasil. RUMOS - 16 –Setembro/Outubro 2012 SXC A dotar um modelo com forte participação estatal na economia, ou navegar nas ondas do liberalismo econômico, parece não ser mais a questão principal quando o assunto é desenvolvimento. A crise de 2008 nos EUA, que se espalhou pelo mundo e ainda atinge pesadamente a maioria dos países, mostrou que sem o Estado as economias iriam à bancarrota. A questão é saber a medida dessa ingerência e como o Estado deve desempenhar o papel de planejar, articular e promover o desenvolvimento. Seja qual for o modelo a ser adotado, é unânime a opinião dos economistas ouvidos por Rumos sobre a importância do papel das instituições financeiras de fomento no caminho para o desenvolvimento sustentável. A sexta economia do mundo ainda patina quando o tema é investimento, indus- Produção industrial: termômetro do processo de desenvolvimento. trialização, apoio ao setor de pesquisa e tecnologia e educação de qualidade. São estes os entraves mais citados para que o país entre no círculo tornando-se o mercado um instrumento de política pública. virtuoso e trilhe a rota do verdadeiro desenvolvimento. Neste cenário, o setor financeiro dificilmente sobreviverá sem a intervenção do Estado”. Estado versus mercado – Valendo-se de uma citação do eco“O que resta desse grande embate do século 20 não é um nomista Eric Hobsbawm, o professor Luiz Carlos Prado do caminho único, são várias versões de um sistema muito eficaz Instituto de Economia da UFRJ, ao olhar o cenário do século 20 a para produzir riquezas, mas com dificuldade quanto à distribuição partir da perspectiva da crise de 2008, constata que a agenda deste dessas riquezas, ou a sustentabilidade de longo prazo, porque é período desapareceu. No século 21, deixam de existir a polarizasujeito a crises”, afirma Prado. ção liberalismo versus socialismo, a oposição entre Estado e merSe, por um lado, o socialismo real não se sustentou, o liberaliscado, restando os diversos tipos de capitalismo, ou seja, a economo arrasou economias latino-americanas, gerou grande instabilimia de mercado. dade financeira, afetou o crescimento bem como as relações entre “A crise é a pá de cal da agenda liberal clássica do século 20 e países. Sobra o que foi chamado nos anos 1950 de economia traz de volta toda a complexidade da relação Estado-mercado, mista: Estado e mercado. SXC “A versão de capitalismo de Estado til, também do Instituto de Economia da China, as políticas indianas com forte da UFRJ. “O câmbio apreciado benefiprotecionismo, ou mesmo o Brasil com ciou os importados e isso provocou um seu ecletismo, são formas diferentes de desmantelamento da indústria nacional, administrar a economia de mercado. A que perdeu cadeias produtivas inteiras. relação entre Estado e mercado na forÉ imprescindível a formulação de uma mulação de políticas públicas é a agenda política industrial, sem a qual o processo por excelência deste século”, enfatiza de desenvolvimento econômico não Prado. deslancha”, constata. “Essa é a discussão contemporânea. Segundo ela, a indústria brasileira O mercado não é um senhor, é um servo perdeu seu papel de carro-chefe, encara serviço de políticas públicas. O desenregado de gerar inovações, incorporar volvimento da infraestrutura do Brasil O comércio com a China tem influenciado tecnologia de ponta e fazer a difusão pode ser feito usando o mercado, desde a forma como os países atuam no mercado dessa tecnologia para os demais setores que haja regulação para definir os parâ- mundial. da economia. “Nos últimos 10 anos, a metros da concorrência nesse setor.” produtividade vem caindo ano a ano e o Cita como exemplo as políticas antitrustes. O Conselho AdmiBrasil passou a adotar um modelo de desenvolvimento com base nistrativo de Defesa Econômica (Cade), em defesa da concorrênem commodities e serviços, o que significa uma regressão, um anticia, impede que um mercado, se deixado à sua própria dinâmica, desenvolvimento.” acabe com o livre mercado. Ao estabelecer limites à concentração Denise é incisiva em sua postura crítica ao modelo brasileiro: da economia, agindo contra os cartéis, o Estado está, em última “Isso acontece no momento em que o país ocupa a sexta posição instância, controlando o livre mercado para promover o livre na economia mundial. São essas coisas bizarras da história econômercado. mica do país. Nesse cenário entra a China, grande consumidora Prado mostra que ação do Estado é fundamental também na de commodities (alimentos e metais), desenhando uma nova divisão área social para combater as desigualdades. “Uma sociedade com internacional do trabalho, onde o Brasil participa como produtor melhor distribuição de renda, mais justa, é mais segura para todos. de matérias-primas.” A instabilidade decorrente de uma excessiva injustiça social não é Uma situação que, segundo ela, compromete a importante uma boa política. O caos não interessa a ninguém.” política social do governo. Como elevar salários se a produtividaQuais os limites para a intervenção do Estado? Por um lado, de não cresce? “É absolutamente desconcertante o baixo investiexiste a preocupação quanto à desordem decorrente da sua mento do governo brasileiro em ciência, tecnologia e educação. ausência, na outra ponta está o Estado excessivamente intervenciNão há como sustentar a política social sem mudanças na estruonista oprimindo a liberdade do indivíduo. Entre esses dois limitura produtiva. Não existe processo de desenvolvimento sustentes encontra-se a margem de intervenção. tável baseado numa perna só.” Segundo o professor, o mix ideal entre Estado e mercado é definido historicamente. No caso dos países escandinavos, é uma Contramão da história – Também Carlos Pinkusfeld, do Insticarga tributária elevada e uma política de bem-estar social igualtuto de Economia da UFRJ, considera que o Brasil está na contramente ampla. Em sociedades como a americana, a carga tributária mão da história em termos de política industrial. Ao contrário, a é muito mais baixa e há muito menos segurança individual garanChina vem ganhando espaço com a fabricação de produtos que tida pelo Estado. É uma questão de escolha da sociedade que se inundam os mercados de todos os continentes. pretende ter. Ele critica o fato de o Brasil não seguir uma política industrial No caso brasileiro, políticas públicas como Bolsa Família ou moderna, não promover o adensamento da cadeia produtiva, outras de natureza social são vitais não só por gerar melhor districomo no final dos anos 1950 e 1960, quando foi instalada a indúsbuição de renda, como para melhorar o clima social. tria automobilística. Antes se fazia o produto final e os insumos, o carro e as peças, agora se produz apenas o carro. Indústria, o calcanhar de Aquiles – Quando se pensa o Brasil e “Além de não acompanhar o processo de modernização de suas perspectivas de desenvolvimento, a questão industrial entra países como China e Japão, pode-se dizer que houve perda da na ordem do dia. É possível continuar crescendo a taxas razoáveis estrutura produtiva industrial, num processo contínuo desde os sem uma expansão do setor industrial na mesma proporção? anos 1980 e 1990”, diz o professor, ao explicar que nem por isso a “Com a indústria ameaçada por problemas como câmbio, entrada política econômica liberal deu bons resultados, como o esperado maciça da China como grande exportador mundial de manufatuaumento da competitividade e das exportações. “Ao contrário, a rados, política monetária dos EUA, instabilidade dos países ricos, economia manteve baixo crescimento, ficou rastejando.” é imprescindível uma estratégia para a promoção da indústria As medidas de aceleração econômica, adotadas nos anos brasileira”, alerta Prado. 2000, não o entusiasmam: “foram insuficientes para colocar o A questão é se o Estado deve fazer escolhas com referência a país num círculo virtuoso, não havendo a contrapartida de setores industriais e apostar neles, como o pré-sal, ou se concenmodernização da estrutura produtiva industrial, nem a aceleratrar na área agrícola e nos produtos associados a ela, como tratoção de setores mais competitivos.” res e fertilizantes. “Ainda não está claro quais serão as escolhas “Não estamos caminhando na fronteira tecnológica, nem domésticas”, afirma. investindo em setores dinâmicos, como eletroeletrônico, compuA baixa participação da indústria no PIB total da economia é tação, telecomunicações; a indústria está concentrada no agrobusium dos entraves apontados pela professora Denise Lobato Genness e setores de base, como o siderúrgico, além das construtoras”, RUMOS - 17 –Setembro/Outubro 2012 REPORTAGEM DESENVOLVIMENTO diz Pinkusfeld. Entre outros problemas, destaca a falta da figura central, que é a empresa nacional. tendo na outra ponta comércio e serviços, num claro retrocesso da estrutura produtiva da economia.” Integração com vizinhos – Há os que veem na integração regional uma saída para o fortalecimento do setor industrial brasileiro. Prado diz que o país poderia se voltar para os vizinhos da América do Sul, mesmo que isso represente a perda de participação em certos segmentos industriais. O Brasil poderia, por exemplo, valer-se da mão de obra mais barata no Paraguai e na Bolívia, nos moldes da atuação do Japão e da China na Ásia, integrando economias com diferentes graus de desenvolvimento. Denise Lobato também acena para uma aliança regional como forma de enfrentar o processo de destruição do valor agregado industrial. “O projeto de desenvolvimento e de poder que aí está é baseado no agrobusiness e no setor de serviços e não na indústria nacional. Dá força aos exportadores de commodities, Baixo crescimento – Outro entrave ao desenvolvimento, apontado por Denise Lobato, são as descontínuas taxas de crescimento do país que, desde 2003, não consegue manter dois anos consecutivos acima de 5%, devido, principalmente, às políticas monetária e cambial: foram muitos anos de taxas de juros extremamente altas, taxas de câmbio não competitivas para a indústria nacional e uma política fiscal de elevadíssimo superávit primário. A professora critica também “a baixa taxa de investimento, associada a uma política macroeconômica desestimuladora, que durante muitos anos não esteve voltada para a construção da infraestrutura necessária ao desenvolvimento do país.” Constata que os investimentos são muito tênues, originários principalmente do Plano de Aceleração Econômica (PAC), que apresenta enorme atraso na sua execução e muita parci- O socorro dos bancos públicos Ao contrário de alguns países vizinhos, como Argentina e México, ou mesmo de economias maduras, que eliminaram instituições de desenvolvimento e fomento no bojo das reformas neoliberais dos anos 1980 e 1990, o Brasil manteve sua estrutura, apesar do desmantelamento das redes regionais. Os bancos públicos, que pós-década de 1930 contribuíram para viabilizar a industrialização, passaram por um período de turbulência. Insolventes, muitas instituições estaduais receberam um aporte de recursos do governo federal no âmbito da renegociação das dívidas dos estados, foram saneados e depois privatizados. Da mesma forma, bancos de desenvolvimento regionais foram liquidados, incorporados a outras instituições ou transformados em agências de fomento. Agora, é preciso avaliar se as instituições que ficaram e se reordenaram têm capacidade de atuação e capitalização para alavancar créditos adequados ao processo do desenvolvimento brasileiro nos próximos anos, diz André Moreira Cunha, professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em países onde os bancos públicos são fortes, caso do Brasil, estes atuaram no sentido de minimizar os efeitos da crise. Assim, quando os bancos privados pararam de abastecer o mercado com crédito, foram os públicos que mantiveram a economia em funcionamento. O mesmo aconteceu na China, Índia, Rússia, onde os bancos públicos foram preservados. Como a iniciativa privada, no geral, concentra suas operações em segmentos de menor risco, nos setores mais arriscados – como imobiliário, agrícola, regiões com menores taxas de desenvolvimento, pequenas e médias empresas, empresas de tecnologia – o socorro vem dos bancos públicos. Segundo Cunha, “o retorno do protagonismo estatal é claro, especialmente na área financeira, e recoloca a legitimidade do conceito de Estado desenvolvimentista e dos seus instrumentos. Não por acaso, países como Inglaterra e França reavali- am a recriação de seus bancos de desenvolvimento”. O professor ressalta a importância das instituições regionais, que são os vasos capilares interligados às realidades locais. São elas que levam os créditos às diversas regiões e setores e, por isso, precisam ser fortalecidas. “A perspectiva de crescimento dessa rede de agências de fomento depende, por um lado, da força financeira fiscal dos governos estaduais e, de outro, da possibilidade de construir articulações com recursos federais, seja por repasses do FGTS, seja por acesso a fundos constitucionais.” Fio da navalha – Também o professor Victor Leonardo de Araujo do Instituto de Economia da UFRJ aposta na atuação dos bancos de desenvolvimento para o país recompor a capacidade produtiva: “o processo envolve projetos com riscos e prazos normalmente não atendidos pelo setor privado.” Ele reconhece a pujança do BNDES e sua capacidade para responder ao desafio. Mas acredita que as pequenas agências de fomento podem exercer o papel de financiar algumas cadeias produtivas complementares dentro dos grandes projetos, além de focar nas micro e pequenas empresas. Em sua opinião, “não se trata apenas de financiamento. É grande o número de médios e pequenos empresários que montam seus empreendimentos e, em pouco tempo, são obrigados a fechar por carência de assistência técnica, estudos de mercado, desenho de projeto etc. Portanto, a consolidação de um Sistema Nacional de Fomento teria um importante papel a cumprir nesse sentido.” Segundo Araujo, as instituições financeiras de desenvolvimento no Brasil têm características de atuação conservadoras, tendem a se voltar para empresas já estabelecidas em lugar de financiar aquelas com projetos inovadores ou localizadas em regiões mais pobres, onde o risco é maior. Em número de operações, o BNDES privilegia financia- RUMOS - 18 –Setembro/Outubro 2012 EVOLUÇÃO PIB BRASIL (1967-2011) 15;0 13;0 11,0 9,0 7;0 5,0 3,0 2011 2009 2005 2007 2001 2003 1999 1995 1997 1991 1993 1989 1985 1987 1981 1983 1979 1975 1977 1971 1973 1969 -3,0 1967 1,0 -1,0 mônia no gasto do dinheiro público. Denise considera a atuação dos bancos de desenvolvimento absolutamente decisiva e vê isso como o lado positivo da economia. “Os bancos públicos, particularmente Banco do Brasil e BNDES, voltaram a ser um alicerce para investimentos de longo prazo, numa economia que precisa de um projeto de desenvolvimento agressivo. Os recursos existem, mas faltam projetos arrojados e investidores para captá-los.” Análise similar é feita por Pinkusfeld, para quem os bancos de desenvolvimento são vitais como instrumento de incentivo às indústrias, sobretudo as que apresentam capacidade de inovação. Ele defende a exigência de contrapartidas aos financiamentos, como a participação de conteúdo nacional, embora reconheça que muitas empresas não têm como atendê-las. -5,0 André Moreira Cunha Eduardo Silveira Eduardo Silveira “O retorno do protagonismo estatal é claro. Não por acaso, países como Inglaterra e França reavaliam a recriação de seus bancos de desenvolvimento.” Victor Leonardo de Araujo mentos de micro e pequenas empresas, mas em valor o peso maior recai nas grandes empresas. Também Banco do Brasil e Caixa concentram suas atuações em regiões mais ricas, no Centro-Sul do país. Para reverter esse quadro e romper o círculo vicioso, recomenda o relaxamento da regulamentação a que essas instituições são submetidas. Bancos que não captam depósitos, por exemplo, não poderiam se submeter às mesmas regras dos bancos comerciais. “Bancos públicos operam como bancos privados e atuam no fio da navalha, porque têm que ser lucrativos, apresentar bons resultados econômico-financeiros e também cumprir um papel de fomento.” O professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, Luiz Fernando de Paula, igualmente destaca o papel dos bancos de desenvolvimento, por sua capacidade de mobilização de recursos e de redirecionamento de crédito na economia. “Eles devem beneficiar segmentos do crédito não providos pelo setor bancário tradicional, como é o caso do financiamento de longo prazo e microcrédito. Além de influir na definição da política industrial e políticas de redução de desigualdades regionais.” No modelo brasileiro, como nos demais emergentes, o financiamento de investimentos tem como base empréstimos bancários Noel Joaquim Faiad Três motores – Numa visão mais otimista, Ricardo Bielschowsky, do Instituto de Economia da UFRJ, acredita que condições históricas novas configuram um quadro promissor à defini- Fonte: Ipea Data Luiz Fernando de Paula de longo prazo, e o fato de haver um forte sistema de bancos de desenvolvimento é uma vantagem a ser explorada, afirma. No mundo, o sistema de financiamento é provido por bancos de grande porte, universais (Alemanha) ou especializados (Japão). Neste modelo há liderança (não exclusiva) de bancos privados no processo de financiamento industrial e a estrutura do sistema é concentrada, com pouca variedade de instituições. Mas são modelos que vêm sofrendo alterações nos últimos 20 anos, por conta de várias inovações financeiras, explica o professor. Já o sistema baseado no mercado, adotado nos EUA e no Reino Unido, se caracteriza pela importância do mercado de capitais no financiamento de longo prazo; os bancos atuam basicamente no segmento de crédito de curto prazo (pessoal e capital de giro) e crédito imobiliário. Segundo Luiz Fernando de Paula, a crise de 2007-2008 foi uma crise de um sistema financeiro excessivamente desregulamentado, que permitiu a criação de instrumentos opacos que passaram ao largo da regulamentação financeira. “Daí a necessidade de uma boa regulamentação, que não sufoque as inovações, mas evite atividades especulativas. O equilíbrio não é fácil, e está no cerne da discussão sobre regulamentação financeira.” RUMOS - 19 –Setembro/Outubro 2012 REPORTAGEM DESENVOLVIMENTO ção de uma estratégia de desenvolvimento, o que não se via desde os anos 1980. “Depois de mais de duas décadas de estagnação, vem se delineando, desde meados dos anos 2000, um novo padrão de transformações estruturais condutoras do desenvolvimento.” E cita três motores que impulsionam a economia hoje e podem se revelar poderosas frentes de expansão no futuro: mercado interno de consumo de massa, forte demanda por recursos naturais e perspectivas favoráveis de investimento em infraestrutura. Tais motores, ressalta, precisam ser turbinados por intenso processo de inovação nas empresas e por adensamento das cadeias de valor, a exemplo do que vem tentando realizar a Petro- bras. “Se o processo de inovação receber a ênfase necessária por parte de governantes, da academia e de empresários nacionais, poderá tornar-se o quarto motor do investimento.” Segundo ele, o consumo de massa, constante do Plano Plurianual 2004-2007, tem sido elemento decisivo na expansão econômica recente e é resultante de forte aumento dos salários e das transferências de renda, além da política de crédito. “Trata-se de um primeiro passo, mais de 40 anos depois, na direção da proposta, de Celso Furtado e outros intelectuais e políticos progressistas, de mudanças do modelo econômico, de renda concentrada e consumo de elite para renda desconcentrada e consumo de massa.” Mas o que ainda não está claro, para ele, é se a produção estimulada pelo consumo de massa será feita no país, ou Do II PND ao neodesenvolvimentismo Havia uma crença compartilhada de que o Brasil estava destinado a crescer e isso teve um efeito muito positivo para a economia, durante muitos anos. Do lado da estabilidade, a ideia era de que a inflação tinha seus efeitos maléficos minimizados pelos mecanismos de indexação. Com os choques dos anos 1980, esta convenção se quebra, pois a inflação assume proporções de grande magnitude, relata Lavínia. Plano Real – A partir de 1986, segue-se um período de instabilidade macroeconômica e várias tentativas fracassadas de estabilização, com múltiplos planos, até se chegar ao Plano Real, da era FHC, em 1994, que atacou a inflação e, posteriormente, promoveu a desvalorização da moeda. Além da ênfase na questão inflacionária, ela destaca a criação de programas sociais no segundo período desse governo, marcado também pela liberalização comercial e financeira, além das privatizações. A economista menciona, ao lado dos pontos positivos do governo FHC, como o combate a inflação, as sequelas macroeconômicas pelo uso do câmbio como estratégia de estabilização por um período muito longo. Enfatiza, no entanto, que “o ponto principal é o fato de o Plano Real ter conseguido desmontar, em grande medida, o aparato de indexação construído no país desde 1964”. Noel Joaquim Faiad O que mudou no Brasil desde a formulação do II Plano Nacional de Desenvolvimento, no governo do general Ernesto Geisel, ao chamado neodesenvolvimentismo da era Lula-Dilma, passando pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso? Na análise de Lavínia Barros de Castro (foto), professora do Ibmec e da Coppead, está claro que nos últimos anos houve mudanças profundas na estratégia da política econômica. Diferentemente da gestão FHC, que apostava na realização de reformas como caminho para o crescimento, o atual governo pressupõe que a distribuição de renda não é incompatível, ao contrário, beneficia o crescimento – e que isso é possível sem detrimento da estabilidade e sem piora significativa da situação fiscal. Em relação ao período de1974 a 1979, há duas linhas de interpretação. De um lado, a tese de economistas da PUC e FGV, que considera o II PND um equívoco, responsável por uma década de estagnação nos anos 1980. De outro, a tese defendida pela UFRJ e endossada por parte da Unicamp, de que esse plano representou uma bem-sucedida estratégia, extremamente ousada, para superar o subdesenvolvimento, resultando na recuperação das contas externas na segunda metade dos anos 1980. Esta tese, sustentada pelos economistas Antônio Barros de Castro (morto em 2011) e Francisco Eduardo Pires de Souza, explica a crise dos anos 1980 pelos choques externos e mudança de modelo: a economia brasileira passa a ter como prioridade o combate à inflação, numa guinada em relação ao modelo desenvolvimentista. Em livro póstumo, recém-organizado por Lavínia e sua mãe, a economista Ana Célia Castro, filha e esposa (Do Desenvolvimento Renegado ao Desafio Sinocêntrico), Castro defende a tese do desenvolvimento renegado. Trata-se de uma leitura institucionalista, de 1950 a 1980, que agrega uma interpretação do desenvolvimento no período baseado em duas convenções: do crescimento e da estabilidade. Nova era – A era Lula, iniciada em 2002 em meio a uma crise de confiança, é analisada em dois períodos: o primeiro, caracterizado por políticas de continuidade do governo FHC; o segundo, a partir de 2006, representou uma guinada em direção a um modelo de crescimento que vem sendo chamado de neodesenvolvimentismo. A ideia é que se pode melhorar a distribuição de renda com políticas sociais e sem consequências fiscais catastróficas. Chega-se, portanto, a uma época de maior crescimento com diminuição das desigualdades, ao contrário do chamado milagre brasileiro dos anos 1968-73. Isso sem abandonar os pilares do equilíbrio econômico construídos no governo FHC: câm- RUMOS - 20 –Setembro/Outubro 2012 bio flexível, metas de superávit fiscal e de inflação. Lavínia destaca os benefícios da reestruturação, ampliação e aprofundamento das políticas sociais para a economia. Mas alerta para um fator crucial que foi a melhora do cenário internacional, com ascensão da China e o aumento da demanda pelas commodities brasileiras. Ou seja, a vulnerabilidade externa diminui muito nesse período. O câmbio depreciado também contribuiu, segundo ela, para a recuperação das exportações, inclusive de manufaturados. Configurou-se um crescimento baseado no consumo, impulsionado por políticas públicas como o crédito consignado, o aumento real do salário mínimo e do nível de emprego. A crise financeira de 2007/2008 nos Estados Unidos chegou ao Brasil, mas ficou limitada em função da rápida atuação do Estado, principalmente pela resposta dos bancos públicos – Banco do Brasil, Caixa e BNDES – que promoveram políticas anticíclicas, como o aumento do crédito bancário. Diante do agravamento da crise mundial, o governo da presidenta Dilma Rousseff, dando seguimento à gestão de Lula, toma diversas medidas de maior intervenção na economia, como câmbio mais competitivo, redução dos juros, diminuição de impostos, desonerações. Além do foco em programas de políticas públicas como PAC 2, Brasil Maior, Minha Casa Minha Vida, Brasil sem Miséria, Alfabetização. Apesar desses avanços, a professora Lavínia preocupa-se com a questão da coordenação de uma série de medidas pontuais. E faz uma comparação com o Plano de Metas do governo JK, quando havia políticas integradas, um aparato institucional para coordenar as diversas medidas. Isso também ocorreu no II PND. “A economia brasileira tem grande necessidade de investimento. Temo que haja uma estimativa de que esse investimento possa vir majoritariamente pelo setor privado. Acredito que será necessária maior participação do setor público do que se supõe, ainda que seja sob a forma de garantias e outras formas de apoio. Em investimentos de prazos muito longos, muito dificilmente o mercado sozinho assumirá os riscos. Os principais desafios da economia brasileira são: baixo investimento, baixa produtividade e competitividade. Há todavia um consenso de que esses problemas precisam ser superados, sem abrir mão das conquistas sociais, que devem continuar.” SXC importada, ponto de convergência com os outros economistas. “Se houver consumo em massa no Brasil e produção em massa na China, o modelo não se sustentará.” “O desenvolvimento requer a produção, no país, de parte substancial das cadeias produtivas geradoras de bens e serviços. Continuamos com excessiva especialização em recursos naturais e insuficiente diversidade nas exportações, um quadro agora agravado por uma a ‘reprimarização’ da atividade econômica.” Bielschowsky também ressalta o papel dos bancos públicos e agências de fomento no processo de desenvolvimento: “Estamos anos-luz de um mercado financeiro que viabilize projetos de infraestrutura, produtiva e social, além dos de fronteira tecnológica, e apoie empresas pequenas e médias nas atividades de investimento fixo, tecnológico e de sustentabilidade ambiental.” Se o processo de inovação ganhar força e ainda contemplar as cadeias de valor – como tem feito a Petrobras –, poderá se tornar o quarto motor do investimento. Boas perspectivas – Uma voz mais branda e menos crítica aos caminhos percorridos nos últimos anos pela economia brasileira aponta os bons resultados auferidos, entre 2003 e 2010, com a política de expansão do crédito, crescimento da renda e do emprego da população. O professor Antonio Corrêa de Lacerda, do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUC-SP, cita dados otimistas. Diz que nesse período o Brasil cresceu 4% ao ano, em média, propiciando a incorporação de cerca de 40 milhões de pessoas à classe C e a redução pela metade da taxa de desemprego. “As mudanças mais recentes nas políticas de câmbio e de juros abrem novas perspectivas para o crescimento da economia. Após dois anos de crescimento reduzido, tudo indica que retomaremos a média de 4%, a partir deste segundo semestre.” Segundo ele, existe um grande mercado consumidor no país, sendo preciso, no entanto, desenvolver mais a produção local e ampliar os investimentos. Para isso, “o financiamento de longo prazo é imprescindível e os bancos de desenvolvimento cumprem um papel crucial, como financiadores, ou, em um futuro próximo, como formatadores de estruturas de financiamento envolvendo os financiadores privados”. “Temos que estimular os instrumentos de mercado, além de direcionar o crédito público. Para o caso da participação privada, o novo cenário de taxas de juros básicas mais próximas do padrão observado nos países em desenvolvimento vai estimular os financiamentos às empresas e aos projetos”, afirma Lacerda. Em sua opinião, é grande o potencial de ampliação do crédito, especialmente o habitacional, embora admita que não deva se repetir os últimos cinco anos, quando duplicou o volume de crédito em relação ao PIB. Lacerda observa, como os demais economistas, a perda de dinamismo da indústria, devido ao longo período de câmbio valorizado, custo de capital elevado e fatores de competitividade adversos, como tributação e burocracia. Reconhece que há barreiras estruturais ao aumento da produção e dos investimentos, mas não irremovíveis. Além das políticas macroeconômicas e de competitividade voltadas para o desenvolvimento, aponta uma lista de desafios, incluindo a melhora dos padrões educacionais, da capacidade de inovação, da gestão pública, com mais transparência e menos corrupção. Mas não esconde o otimismo: “O Brasil, ao contrário da maioria dos países do G-20, tem desemprego em queda, redução da pobreza e melhora na distribuição de renda. Precisamos de políticas que favoreçam esse processo, em detrimento da especulação e dos lucros fáceis e rápidos que durante tanto tempo foram proporcionados pela dobradinha câmbio valorizado e juros reais elevados.” RUMOS - 21 –Setembro/Outubro 2012 REPORTAGEM DESENVOLVIMENTO O Sistema Nacional de Fomento, capitaneado pela ABDE, e que reúne os grandes bancos federais, bancos de desenvolvimento regionais e estaduais, além das agências de fomento e do Banccob, da Finep e do Sebrae, vem se sedimentando em suas funções de conceder créditos de longo prazo para investimentos produtivos. É um conjunto de instituições públicas que têm como foco principal a atuação em prol do desenvolvimento. O poder desse sistema pode ser medido pela participação do BNDES, que financia entre 25% e 30% dos recursos para aquisição de máquinas e construção de infraestrutura no país. Portanto, é grande sua importância na formação de capital fixo, constata o presidente da Associação Brasileira de Bancos de Desenvolvimento (ABDE), Carlos Henrique Horn. Esse tipo de financiamento é composto metade por recursos próprios dos empreendedores e a outra metade por recursos de terceiros. Dessa última metade, o BNDES participa com uma fração em torno de 25%. Há ainda o crédito tomado no exterior, que pode chegar a 7% ou 8%, debêntures e muito pouco correspondente à oferta primária de ações no mercado de capitais. Daí a importância decisiva dessas instituições financeiras para o investimento produtivo de empresas privadas, cooperativas e infraestrutura. Como há grande diferença entre os tamanhos das instituições, as funções também são diferenciadas. Em uma ponta, estão os grandes bancos federais (BB, Caixa e BNDES), que respondem pela maior parcela. Na outra, há o conjunto de instituições especializadas, como as agências de fomento, os bancos regionais do Nordeste (BNB), da Amazônia e do Sul (BRDE), que atuam nas suas regiões, sobretudo como repassadores de recursos do BNDES ou de fundos constitucionais, fundos de desenvolvimento regional, ou fundos dos próprios estados. Esses agentes dão suporte de crédito para investimentos de empresas de menor porte, distantes geograficamente do BNDES. Essa seria uma especificidade da malha dos agentes públicos, diz o presidente da ABDE. As agências de fomento são instituições criadas no final dos anos 1990, que ganharam importância nessa última década. Algumas se enraizaram e são plenamente operacionais, como as de São Paulo, do Rio Grande do Sul, da Bahia, de Santa Catarina, de Goiás. Outras não conseguiram ganhar vida operacional efetiva. Existem juridicamente, mas ainda precisam dar passos no sentido de se tornarem instituições importantes para o financiamento dos investimentos em seus estados. Horn mostra o caminho a ser seguido. O primeiro passo seria a capitalização. Como essas agências foram criadas com uma base de capital pequena, os estados precisam aportar recursos para capitalizá-las, de forma que possam se credenciar junto ao BNDES como efetivas repassadoras de recursos. A segunda condição dessas pequenas agências, ao passarem a operar efetivamente, é fazer a gestão das operações, ou seja, definir fluxos operacionais de recebimento de pedidos, análise, contratação, liberação de recursos. Plano estratégico – No final do ano passado, a ABDE aprovou um plano estratégico com ações voltadas para as agências de fomento. Como associação representante dessas instituições, pode dar suporte, ajudando-as na formação de recursos humanos, sendo interlocutora junto ao BNDES, Banco Central e Congresso, nas questões de seus interesses. Será elaborado ainda um modelo de Agência de Fomento, espécie de manual de constituição e boas práticas, com vistas ao crescimento das instituições, adianta Horn. “Precisamos fazer com que as relações entre as instituições locais (agências de fomento e bancos de desenvolvimento) e o BNDES, o BB e a Caixa, sejam mais funcionais. O BNDES, que é o grande provedor do crédito de longo prazo no Brasil, precisa ter uma relação especial com essa malha de agentes públicos e cooperativos”, acrescenta. “O papel do BNDES, como difusor e quase coordenador desse sistema, é absolutamente decisivo. Não haverá um Sistema Nacional de Fomento efetivo se não houver uma decisão desse banco em favor da sua constituição. Quando tudo estiver definido, poderá se dizer que há um sistema com funcionalidade, operando além do mero arranjo de tantas agências”, assegura. Para melhor definir o que é o Sistema Nacional de Fomento estão sendo promovidas diversas iniciativas, como um Curso de Desenvolvimento para os associados e dois workshops na sequência. “Estamos atravessando um momento na economia brasileira e mundial, após a crise financeira de 2008, que requer criatividade nas soluções para os problemas econômicos. Daí a necessidade de formalizarmos essas instituições especializadas no crédito ao investimento”, explica. O presidente da ABDE cita estudo recente do Banco Mundial sobre bancos de desenvolvimento no mundo, segundo o qual essas instituições são mais importantes do que se imaginava nos anos 1990 e precisam ser fortalecidas. RUMOS - 22 –Setembro/Outubro 2012 Fernando Maia ABDE articula Sistema Nacional de Fomento