A DESCENTRALIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E PLANEJAMENTO NO

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II Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
Mestrado e Doutorado
Santa Cruz do Sul, RS – Brasil - 28 setembro a 01 de outubro.
A DESCENTRALIZAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E PLANEJAMENTO NO
DESENVOLVIMENTO REGIONAL: O CASO DO COREDE MISSÕES
Ivar José Kreutz1
Claudete Maria Zimmermann2
Resumo
O presente artigo aborda o desenvolvimento regional sob os três aspectos que
ganharam crescente importância no Brasil a partir da década de oitenta, com a intensificação
dos movimentos pela democratização do país: a descentralização política-administrativa como
potencializadora de iniciativas regionais, a participação social como expressão de poder e as
iniciativas de planejamento que procuraram incorporar as demandas regionais. Estes três
referenciais são discutidos com base no projeto de regionalização do RS. Essa concepção de
planejar o desenvolvimento procura ser distinta daquela apresentada por muito tempo apenas
como sinônimo de crescimento econômico. A abordagem do tema não ignora que os efeitos
da globalização realizada com base no fluxo descendente de decisões e ações contrapõem-se
às contribuições de um processo regional endógeno, capaz de instalar um processo de fluxo
contrário. Para isso, esta pesquisa buscou identificar os principais espaços de participação e
poder que começam a se delinear no início da década de noventa, com a formação e o
funcionamento dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDEs), em especial do
COREDE-Missões. Procurou também verificar o tipo e a forma de participação da população.
A opção metodológica aproxima-se de uma pesquisa exploratória, compreendendo a busca de
dados secundários, contatos informais com lideranças e agricultores e entrevistas semiestruturadas com atores sociais. Como procedimento de decodificação, foi utilizada a “análise
de conteúdo temático”. A pesquisa revelou que continua existindo o viés da espera pelas
demandas do poder público, apesar de haver um crescente envolvimento participativo na
1 MSc em Agroecossistemas pela UFSC e Eng. Agr. da EMATER/RS – ASCAR, com lotação no município de
São José do Hortêncio na Av. Mathias Steffens, 3322, sala 05 e e-mail [email protected]
2 MSc em Relações Internacionais para o Mercosul com área de concentração em Administração.
execução de projetos. Revelou também que uma participação no Conselho Regional tem
relação com a metodologia utilizada e, de forma mais expressiva, com a postura dos
coordenadores, alguns pouco preocupados com a emancipação das lideranças regionais.
Finalmente, constatou-se que o processo participativo é lento, necessitando de constante
aperfeiçoamento para se constituir numa ação continuada e propositiva.
Palavras-chave: Desenvolvimento regional, descentralização, participação e
planejamento.
Abstract
The present article refers to the regional development in the three aspects that
gained an increasing importance in Brazil since the decade of the 80`s, by the intensification
of the movements for the democracy of the country: the political-administrative
descentralization as main power of regional experiences, the social participation as power
expression and the planning experiences that tried to incorporate the regional demands. These
three points are discussed with basis on the RS regionalization project. This conception of
planning the development seeks to be different of that showed for a long time just as a
synonym of economical growth. The approach of the theme does not ignore that the
globalization effects made with basis on the discending flux of decisions and actions opposes
to the contribution of a regional endogeneous process, able to instale a process of opposite
flux. Therefore, this research sought to identify the main spaces of participation and power
that started to outline in the beginning of the 90`s decade, with the structure and work of the
Regional Development Councils (COREDEs), in particular, COREDE-Missions. The research
also tried to verify the kind and way of the people`s participation. The methodological option
becomes near to an exploring research, including the search of secundary datas, informal
contacts with leaderships and farmers, as well as semi-strctured interviews with social actors.
As decodification procedure was made use of the "analysis of thematic content". The research
disclosed that the sloping of expectation for the Government demands, still exists, despite the
increasing participative involvement of the population on the projects execution. The search
also revealed that
a participation on the Regional Council has relation with the applied
methodology and in a greater expressive way, the posture of the coordenators, some little
worried with the emancipation of the regional leaderships. At the end, was testified that the
participating process is slow, and a constant improvement is needed to constitute it in an
extended and purposed action.
Key-Words: regional development, descentralization, participation and planning.
1 Introdução
Cada vez que ocorre um debate sobre "desenvolvimento", as representações
múltiplas e contraditórias que os interlocutores têm sobre este conceito pesam, contribuindo
para gerar confusão. Como é sabido, a palavra desenvolvimento foi apresentada por muito
tempo como sinônimo de crescimento econômico.
O que se buscava medir como
desenvolvimento eram os resultados em grandes agregados e em termos de produção e de
produtividade, esquecendo-se a análise de aspectos como a melhoria da qualidade de vida da
população. A insuficiência de uma perspectiva centrada em objetos (construir mais infraestrutura, mais estradas, produzir mais capitais e mercadorias, fazê-los circular etc) para
resolver problemas de pobreza e de clivagem social, passou a indicar a necessidade de uma
atenção para os atores sociais e as ligações entre eles.
Neste quadro, a metodologia que está subentendida em cada projeto de
desenvolvimento passou a ser pelo menos tão importante quanto os objetivos. Passa a haver,
então, um questionamento dos processos descendentes, de cima para baixo, ou seja, dos
processos de formulação e de operacionalização de propostas de desenvolvimento. Surgem e
se fortalecem, nesse contexto, noções como descentralização, participação, "construção
social" e empoderamento dos atores locais, havendo, ao mesmo tempo, uma valorização dos
seus "saberes".
Inaugura-se, assim, uma nova fase em que se reconhece a importância dos
processos endógenos. Entretanto para que aconteçam ações "de dentro para fora", é preciso
garantir espaços de expressão para atores sociais locais. Esta constatação fez com que muitos
passassem a reconhecer, na liberdade das pessoas de um determinado espaço, o principal meio
para o desenvolvimento.
Não se trata, contudo, de um processo simples, já que exige a inflexão de valores e
de práticas de atores locais e de profissionais "exteriores" que atuem no espaço do projeto,
sem esquecer o papel das instituições aí presentes. E há o problema adicional de que são
gerados, nesse tipo de processo, novos espaços de poder e novas relações de força.
O tema aqui apresentado será contextualizado com base numa rápida abordagem
teórica para, em seguida, serem descritos os espaços de poder conquistados pela população ao
longo de sua história, destacando-se para a descentralização político-administrativa, bem
como a autonomia e poder decisório para as instâncias regionais a partir das constituições de
1988 e 1989. O estudo do tema será complementado com dados primários obtidos através do
“olhar” dos atores locais. Isso nos permite constituir um diagnóstico e realizar uma análise,
permitindo identificar possíveis iniciativas emergentes de gestão social3. Como parâmetro
para a presente análise será usado o projeto de regionalização do estado do Rio Grande do Sul,
tendo como foco o Conselho Regional de Desenvolvimento da região das Missões.
2 A contextualização do tema
Com a abordagem do desenvolvimento regional busca-se compreender os efeitos
da globalização sobre a situação local, efeitos estes representados pelo fluxo descendente de
decisões e ações. Nesse contexto, procura-se verificar as contribuições que a descentralização,
a participação e o planejamento podem trazer para ações regionais capazes de melhorar a
satisfação e a qualidade de vida de sua população. Busca-se também compreender o
imobilismo e o pessimismo que tomam conta de muitas regiões - inclusive do COREDE
Missões - quando estas não são contempladas com empreendimentos externos, vistos muitas
vezes como a única forma de desenvolvimento.
O referencial teórico se apóia principalmente em Buarque (2002), que associa a
descentralização ao fortalecimento do poder local e entende este como fator decisivo para a
participação e para a democratização do processo decisório, sem ignorar a sua importância
para a própria educação política da sociedade. O autor entende que a descentralização também
contribui, no sentido de atuar sobre a efetividade das iniciativas e ações do planejamento
(terceiro elemento de nossa análise), fazendo com que todos se sintam parte do processo e
com condições de reconhecer e de incorporar demandas locais. A descentralização
desencadeia, portanto, uma trajetória pedagógica na formação da cultura democrática de um
3 O conceito de Gestão Social, neste estudo, se baseia na proposta de Carvalho (1999), que representa, a gestão
das demandas e necessidades dos cidadãos pelos próprios atores sociais locais. É a capacidade de se articular
determinado espaço, já que reestrutura a própria hegemonia e a prática política no plano local,
transferindo para a comunidade a responsabilidade e a capacidade de decisão e escolha sobre
seu futuro.
No Quadro 01 buscou-se ilustrar, de forma resumida e esquemática, a
complexidade e as principais inter-relações que podem ser consideradas numa abordagem
sobre o desenvolvimento de um determinado território.
Quadro 01 – As principais inter-relações que envolvem o desenvolvimento.
O quadro demonstra que o primeiro conceito a ser compreendido é o de
desenvolvimento com o enfoque se deslocando no sentido horizontal, tanto para o lado da
globalização, como para o da ação local. Se esse conceito for assumido, o desenvolvimento
não será norteado somente por um desses processos, de mercado ou de desenvolvimento local,
mas por ambos, modificando-se apenas a intensidade do fluxo, aspecto que pode ser
administrado, em certa medida, nas instâncias regionais.
Definidas as características do desenvolvimento, o que não representa a única
“entrada” para compreender o quadro 01, configuram-se elementos para analisar os aspectos
que envolvem a descentralização, a participação e o planejamento. Mesmo que cada um
desses componentes tenha suas variáveis, elas estabelecem uma profunda inter-relação entre si
e agem sobre o desenvolvimento. Portanto, quando as lideranças regionais estabelecem uma
ação local, através de seus públicos, com a condição de estabelecer políticas descentralizadas
que estimulem a participação dos atores sociais, cria-se uma condição propícia para
reorganizar os rumos do planejamento. Isto é possível por meio da incorporação de demandas
da população, envolvendo-a em processos de reflexão, decisão e ação, que desemboquem num
processo de gestão da própria sociedade. Evidencia-se, assim, a estreita relação existente entre
descentralização, participação e planejamento.
3 A Descentralização
A discussão sobre o processo de globalização tem sido crescente em todo o
mundo. Geralmente, a leitura predominante é a de que a globalização representa o único
iniciativas múltiplas, revitalizando o envolvimento voluntário da comunidade e de setores da sociedade civil.
caminho possível, constituindo um modelo imutável, cuja conseqüência é uma certa paralisia
ou imobilismo dos atores locais. Em nível regional freqüentemente não se consegue avançar
em ações que busquem a descentralização e o desenvolvimento local pelo fato de a
participação ficar presa a uma legitimação de ações externas, não evoluindo na compreensão
de um processo gradativo de “emancipação social”, tão necessário depois dos recentes
períodos autoritários vividos no Brasil. O planejamento então, fica freqüentemente restrito a
uma técnica de organização de ações pré-determinadas, sendo pouco usado como um processo
educativo pelo qual se procura, a partir das oportunidades locais, elaborar um plano capaz de
gerar inclusão social e qualidade de vida para os cidadãos.
Ultimamente, tem-se falado muito em globalização e em políticas neoliberais.
Para Schmidt, Schmidt e Turnes (2003), a globalização levaria a uma homogeneização
cultural, e as políticas neoliberais, a uma possível homogeneização técnico-produtiva. Apesar
de ser necessário reconhecer o peso desse processo e dessas políticas, bem como, as
tendências homogeneizadoras que deles decorrem, também é necessário destacar que a
realidade aponta para as diversidades. Assim, para os autores citados, deve-se ter em conta
que, junto ao processo de globalização, existem também os processos de fragmentação e de
valorização das características diferenciadoras, expressas no reforço de identidades locais ou
regionais, ligadas, em geral, às políticas ambientais e/ou culturais (grifo dos autores).
Segundo Albagli (1998, apud Buarque 2002), podem ser identificadas duas
interpretações ou hipóteses opostas sobre a globalização: primeira, ao promover a
padronização, esse processo levaria ao declínio das identidades locais; segunda, a
globalização não significa o fim de toda identidade territorial estável, mas, ao contrário, cada
sociedade ou grupo social é capaz de preservar e desenvolver seu próprio quadro de
representações, expressando uma identidade ao mesmo tempo espacial e comunitária em torno
da localidade. A segunda hipótese permite vislumbrar um horizonte de atividades que podem
ser desenvolvidas, para romper com o imobilismo, a incapacidade e a crença de que tudo está
dado e definido. Nesse sentido, Dowbor (1995) destaca:
A globalização não é geral. Se olharmos o nosso cotidiano, desde a casa
onde moramos, a escola dos nossos filhos, o médico para a família, o local
de trabalho, até os horti-fruti-granjeiros da nossa alimentação cotidiana,
trata-se de atividades de espaço local, e não global. É preciso, neste sentido,
distinguir entre os produtos globais que indiscutivelmente hoje existem,
como o automóvel, o computador e vários outros, e os outros níveis de
atividade econômica e social. Isto nos evitará batalhas inúteis – não há
nenhuma razão para que um país tenha de se dotar de uma indústria
automobilística para ser moderno – ao mesmo tempo que nos permitirá
enfrentar melhor as batalhas possíveis. Daí a necessidade de substituirmos a
visão de que ”tudo globalizou” por uma melhor compreensão de como os
diversos espaços do nosso desenvolvimento se articulam, cada nível
apresentando os seus problemas e as suas oportunidades, e a totalidade
representando um sistema mais complexo (DOWBOR, 1995 p. 2).
Os espaços de autonomia serão tanto maiores quanto maiores forem as
potencialidades locais e mais forte for a organização da sociedade em torno de um projeto
coletivo que articule o local com o global. E mais, os impactos do processo de globalização
dependem das iniciativas internas e das posturas políticas dos atores sociais no plano local
(BUARQUE, 2002).
Por isso, se todas as coisas já estivessem dadas ou pré-determinadas, não teria
sentido nenhum mobilizar a população a participar de diversos fóruns para, provavelmente, só
legitimar o que está previamente conformado. Diferente é a interpretação quando se
constituem espaços que são oportunidades de desenvolver ações e projetos que podem mudar
determinada realidade local, ambientes em que todos se comportam como atores sociais.
Sob este olhar, a descentralização é concebida por Buarque (2002) como a
transferência de autoridade e do poder decisório de instâncias agregadas para unidades
espacialmente menores, entre as quais o município e as comunidades, conferindo capacidade
de decisão e autonomia de gestão às unidades territoriais de menor amplitude e escala. Esse
processo representa uma efetiva mudança da escala de poder entre instâncias públicas e
instituições privadas. O mesmo autor diferencia também os conceitos de descentralização e
desconcentração, sendo este último interpretado como a transferência de responsabilidades
executivas para unidades menores, mas sem repasse do poder decisório e autonomia de
escolha.
Segundo Carvalho (1999), os processos de descentralização vêm ocorrendo desde
os anos 70, seja como uma alternativa à crise do “Estado de bem-estar social” – já que a
centralização ocasionou uma enorme expansão do aparato burocrático, comprometendo a
eficácia e tornando onerosa a gestão da política social - seja como resposta às demandas de
maior democratização da esfera pública. Mas é na constituição de 88 e nos anos
imediatamente subseqüentes que a descentralização ganha relevância. O município, muitas
vezes tido como sinônimo de “local”, apresenta-se como a esfera administrativa mais
representativa e mais legítima para implementar e realizar políticas públicas.
Buarque (2002) afirma, também, que a descentralização pode apresentar diferentes
níveis de autonomia. Um desses níveis compreende uma descentralização denominada
dependente, que é associada ao repasse de recursos das instâncias superiores para as unidades
hierarquicamente inferiores, por vontade e decisão das primeiras. Outro nível, denominado
autônomo, certamente o mais desejável, ocorre quando existe a transferência de autonomia e
efetivo poder decisório para as instâncias de menor escala. Essa descentralização, segundo o
autor, pode ocorrer de duas maneiras: a) Estado - Estado, onde se efetua a transferência de
funções e responsabilidades de gestão interna do setor público para instâncias espacialmente
diferenciadas, da mais ampla para a mais reduzida e local; b) Estado - sociedade, na qual se dá
a democratização da gestão e transferência para a sociedade, conferindo-lhe a capacidade de
decisão a execução de atividades, a gestão de recursos e a prestação de serviços,
tradicionalmente concentradas nas mãos das unidades estatais e governamentais. O mesmo
autor ainda ressalta que as mudanças na estrutura e organização do Estado e sua relação com a
sociedade podem levar à construção de uma nova institucionalidade, que se caracteriza pela
emergência de um segmento público não estatal. Este, de forma descentralizada, exerce
atividades e executa ações de natureza pública, em contrato e parceria com o Estado, mas
independente e com grande flexibilidade. Esse componente novo do sistema institucional
surge com a propagação das organizações não governamentais, isto é, instituições sem fins
lucrativos que têm a missão de prestar serviço público.
A descentralização só deve ser realizada, segundo Buarque (2002), quando visa
melhorar a gestão dos bens e serviços públicos, elevando os resultados e reduzindo os custos,
ao mesmo tempo em que assegure sua contribuição para o desenvolvimento local e a
democratização da sociedade. Assim, fortalece-se o poder local, ampliando as oportunidades
que tem o cidadão de escolher suas alternativas, de participar das decisões sobre ações de
desenvolvimento local, enfim, de decidir seu destino. Esse processo fortalece também o papel
pedagógico na formulação de uma cultura democrática.
A descentralização começa progressivamente com a abertura política, acontecendo
muito lentamente dentro do Estado, porém mais rapidamente entre Estado e sociedade. No
Brasil, após a Constituição Federal de 1988, criaram-se mecanismos, principalmente através
da pressão dos movimentos sociais, para maior controle e fiscalização do Estado. Entre estes
mecanismos estão os conselhos, os quais proliferaram rapidamente, embora sem muitas vezes
definir bem os seus objetivos. Parece inegável que inicialmente esses conselhos assumiam
mais o caráter de fiscalização e controle das políticas públicas, mas com o tempo e em alguns
casos, avançavam para a gestão dessas políticas e, promovendo seu autodesenvolvimento.
Mais recentemente tem se dado ênfase à necessidade de geração de um processo de criação de
capital social, vinculado a características da organização social que contribuam para melhorar
a sociedade.
Para Abramovay (2003), a noção de capital social é uma espécie de resposta a um
dos mais decisivos mitos fundadores da civilização moderna: o de que a sociedade é um
conjunto de indivíduos independentes, cada um agindo para alcançar seus objetivos. A idéia
de capital social sugere um conjunto de recursos (boa parte simbólicos) de cuja apropriação
depende, em grande parte, o destino de uma certa comunidade. É um processo de aquisição de
poder e até de mudança na correlação de forças no plano local. Para o autor, mais importante
que os fatores naturais é construir novas instituições propícias ao desenvolvimento local, o
que consiste, antes de tudo, em fortalecer o capital social dos territórios, muito mais do que
em promover o crescimento desta ou daquela atividade econômica. As implicações do capital
social sobre o poder de um grupo social são ilustradas no Quadro 02.
Quadro 02 – Reflexos do capital social sobre o poder de um grupo social
Para Wilheim (1999), o contexto histórico a partir da década de noventa
caracteriza-se menos por ajustes do que por descontinuidades e rupturas. A sociedade civil,
finalmente, passa a ser protagonista emergente, na maioria das vezes, representada pelas
ONGs. O chamado terceiro setor - que se auto define como um setor público, de origem
privada, não lucrativo, atuando em prol do desenvolvimento e da defesa e ampliação dos
direitos do cidadão - ganha maior densidade e influência política. Esta transformação, para o
autor, significa um gradual redesenho das instituições democráticas, alterando a
representatividade e os formatos, aproximando os cidadãos das decisões que lhes dizem
respeito, aumentando a transparência do poder e ampliando os direitos civis.
Uma democracia redesenhada e expandida implica em uma gestão social que
constantemente está em busca de parcerias, objetivando um trabalho conjunto de entidades de
natureza diversa, cada qual com sua estrutura, portanto, entidades não sujeitas a uma
hierarquia única. Essas parcerias freqüentemente criam uma rede para executar suas tarefas
em conjunto, sem afetar as vinculações que cada uma mantém para outros fins. Sob essa ótica,
o terceiro setor pode ser reconhecido hoje pela sua capacidade de gerar projetos, assumir
responsabilidades, empreender iniciativas e mobilizar pessoas e recursos necessários ao
desenvolvimento social do País.
4 A Participação e planejamento
Dowbor (1999), quando introduz a noção de gestão social, compreende-a como
estreitamente vinculada ao conceito de articulação. Conforme o autor, quem estuda hoje a
gestão social preocupa-se com novas formas participativas de elaboração do orçamento
público, de representação política e de um novo potencial de comunicação. Ainda a seu ver, a
gestão social não é mais um setor, é uma dimensão humana do próprio desenvolvimento, que
envolve tanto o empresário como o pesquisador ou o ativista do Movimento dos Sem-Terra. O
autor afirma também que o interesse direto do cidadão pode ser capitalizado para se desenhar
uma forma desburocratizada e flexível de gestão social, apontando para novos paradigmas que
ultrapassem tanto a pirâmide estatal como o vale-tudo do mercado.
Segundo o mesmo autor, as tendências recentes da gestão social nos obrigam a
repensar formas de organização social, a redefinir a relação entre o político, o econômico e o
social, a desenvolver pesquisas cruzando as diversas disciplinas, a escutar de forma
sistemática os atores estatais, empresariais e comunitários. Trata-se hoje de um universo em
construção, onde as políticas sociais não se resumem à ação local, às parcerias com o setor
privado e à dinâmica do terceiro setor, mas abrangem também a reformulação da forma como
está concebida a política nacional nas diversas áreas da gestão social.
Tenório (2002) afirma que o exercício de uma administração pública com
características de uma gestão social tem a intenção de valorizar ações nas quais existe a
participação da sociedade civil, por meio de seus diferentes sujeitos. No entanto, isso requer
tempo suficiente para diminuir a dependência que, historicamente, a sociedade civil tem em
relação aos poderes públicos constituídos. O que se observa é que o poder público tem a
iniciativa das ações. Apesar da existência dos conselhos municipais e regionais nos mais
diversos setores, as suas ações ainda carecem de uma maior sinergia com as políticas
projetadas pelas instituições públicas de um determinado espaço.
O reconhecimento da cidadania, segundo Carvalho (1999), implica na adoção de
programas e estratégias voltadas ao fortalecimento emancipatório e autonomização dos grupos
e populações-alvo das ações públicas. Uma pedagogia emancipatória põe acento na força dos
cidadãos usuários dos programas, empoderando-os e potencializando talentos e autonomia,
bem como, fortalecendo vínculos relacionais capazes de assegurar inclusão social. Dessa
forma, ganham primazia as dimensões ética e comunicativa.
Para Franco (2000), a ascensão do pensamento sistêmico, o estudo dos padrões,
das redes e dos sistemas complexos, enfim, a emergência de auto-organização, têm revelado
que em sistemas em que predominam fortes desigualdades sociais podem se desenvolver
processos surpreendentes de amplificação de pequenos estímulos por meio de laços de
realimentação e reforço, onde eventuais instabilidades podem gerar novas formas de
organização. Tudo isto tem sugerido uma nova maneira de olhar a realidade social.
O pensamento sistêmico, que surgiu e se expandiu inicialmente mais entre as
ciências naturais, vem sendo estudado progressivamente pelas ciências sociais, ajudando a
aproximação entre ambas. Assim, a visão sistêmica tem contribuído muito para a
compreensão da complexidade, das particularidades locais e da importância da participação
dos atores locais, onde cada um é considerado um observador e tem uma interpretação
singular sobre determinada realidade. Neste sentido, Morin (2001) ressalta:
Efetivamente, a inteligência que só sabe separar, fragmenta o complexo do
mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o
multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão,
eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma
visão a longo prazo. Sua insuficiência para tratar nossos problemas mais
graves constitui um dos mais graves problemas que enfrentamos (MORIN,
2001, P. 14).
O desenvolvimento de uma região e de seu entorno depende de uma melhor
produtividade social que muitos querem medir pela maximização e soma das produtividades
micro-econômicas. A simples soma de lucros obtidos com alta produtividade, sem levar em
conta as conseqüências refletidas sobre as condições de vida da sociedade, não pode ser
referência exclusiva para a avaliação do desenvolvimento. Zimmermann (2004) observa, por
exemplo, que muitos empresários e economistas explicam que jogar os dejetos no rio pode ser
mais barato a curto prazo; por isso, não raras vezes entendem que ambientalistas são
exagerados. Consideram também mais importante a produtividade e competitividade que, para
eles, podem assegurar mais empregos e, em última instância, mais bem-estar por meio de
salários. Porém, essa atitude em relação ao meio ambiente, pode ser uma ilusão de dinheiro
economizado, já que rios poluídos tendem a gerar doenças e gastos consideráveis em saúde
curativa, além da perda de áreas de lazer dentre outras conseqüências. Além disso, para fazer a
recuperação da água poluída, investem-se os impostos em obras freqüentemente pouco
efetivas e custos maiores do que teria sido o da prevenção. Ao serem desconsiderados estes
custos nas análises econômicas da produtividade, ou seja, ao ser desconsiderado o balanço
social e ambiental, pode ser gerado um impacto social capaz de comprometer o
desenvolvimento local ou regional.
Neste contexto de sistemas mais complexos e abstratos (como sistemas sociais),
segundo Pinheiro (2000), o interesse passa a ser o entendimento das relações humanas e as
interações dos seres vivos com o meio ambiente, cujos resultados se refletem na construção
social.
Se a divisão de poder, de um lado, permite uma maior participação, de outro
remete à condição de assumir responsabilidades. Assim como existem diferentes níveis de
descentralização, existem também diferentes categorias de participação da sociedade. Estas
categorias podem variar desde a participação passiva à automobilização, conforme ilustrado
no Quadro 03. Neste estudo, mais importante do que tentar formular uma única definição
sobre a participação, procura-se evidenciar as diferenças entre os diversos níveis de
participação categorizados na tipologia do Quadro 03, todos igualmente importantes e
presentes nas diversas ações de desenvolvimento.
A participação tem sido crescentemente desejada e promovida, mas, na prática,
permanecem muitos desafios e conflitos. Por exemplo, em muitos processos de formação de
conselhos, estes parecem se traduzir por uma “prefeiturização”4 das ações. Entre outros,
existem também conflitos sobre as propostas de desenvolvimento setorial e territorial5, sobre
as formas de representação, as diferenças de atribuições e ações dos conselheiros num
conselho de caráter consultivo e em outro que é deliberativo.
Pinheiro, Pearson e Chamala (1997) lembram que é muito comum falar de
4 Quando o poder descentralizado é “capturado” pelos agentes políticos que estão no comando da Administração
Municipal.
5 O desenvolvimento territorial se restringe ao conhecimento de determinado espaço, e o setorial, às diferentes
atividades que este espaço incorpora.
participação, parceria ou colaboração nas instituições quando outros setores participam de
nossas iniciativas, são parceiros ou colaboram com os projetos que coordenamos. Contudo,
quando outros atores nos convidam a participar dos projetos deles, nem sempre demonstramos
o mesmo entusiasmo. Em outras palavras, facilmente existe entusiasmo com a idéia de dividir
responsabilidades, mas, quando se trata de dividir poder (descentralizar), o entusiasmo logo
desaparece. Isto revela que, embora se esteja tentando mudar e aperfeiçoar os métodos, em
geral se continua pensando e agindo de acordo com os velhos paradigmas. No caso específico
do meio rural, esta contradição parece estar enraizada nos serviços de extensão rural, os quais
têm tido dificuldades de se aproximar de uma alternativa epistemológica, como, por exemplo,
a “abordagem construtivista”6 sugerida pelos autores. Em se tratando da esfera rural e
agrícola, o estímulo à participação interativa torna o ambiente propenso à aprendizagem, que
vai ser recriada e reconstruída entre os agricultores e entre estes e os extensionistas, no sentido
de compreender as relações entre os diversos componentes dos agroecossistemas. São da
mesma maneira importantes as relações das pessoas do local com os agentes externos, e de
ambas as partes com o ambiente, buscando uma melhor compreensão do contexto, visando
manejar os agroecossistemas dentro de um enfoque ecológico. Isto certamente representa um
processo de desenvolvimento rural mais complexo e, talvez, mais lento, que deve ser
construído com a participação e planejamento da maioria dos atores sociais locais.
A perspectiva de uma descentralização permite também que se pense em
reconhecer a possibilidade de existirem dois fluxos de decisões. Sampaio (2000) afirma que
os mais conservadores entendem que o poder político, econômico, paterno ou sacerdotal deve
ser exercido de “cima para baixo”, e que os espaços públicos democráticos possuem um
sentido subversivo, na medida em que subvertem a concepção tradicional de poder, no sentido
de construir a sociedade de “baixo para cima”. Na dimensão de um fluxo ascendente, ganha
espaço a participação que, para o autor, humaniza o planejamento, ao invés de coisificá-lo. De
um processo de planejamento com participação, enquanto norteador das políticas públicas,
resulta a conquista emancipadora dos indivíduos em relação ao Estado. Isso significa a
possibilidade de os indivíduos se pronunciarem antes das decisões serem tomadas, em vez de
se limitarem a protestar diante dos fatos já consumados. Quanto aos resultados, a participação
6 Segundo Minini-Medina (2000) a abordagem construtivista, que tem como grandes mentores Piaget, Ferrero e
Furth defendem os seguintes pressupostos metodológicos: não existe uma metodologia única; é baseada na
investigação, no trabalho de equipe, na discussão, na prática da liberdade em comum; ativa, flexível e adaptável
às condições dosalunos (agricultores); respeita o ritmo individual de trabalho e estabelece relações entre as
no planejamento leva as pessoas a sinalizar para aspectos associados à qualidade de vida e
para o desejo emergente da sociedade de ser feliz, diferentemente das asas do Bem-Estar
Social e da exploração da natureza (grifos do autor).
O planejamento, segundo Buarque (2002), é um processo ordenado e sistemático
de decisão, o que lhe confere, além de uma conotação política, uma conotação técnica e
racional de formulação e suporte para as escolhas da sociedade. Ou seja, o planejamento
incorpora e combina uma dimensão política e uma dimensão técnica, constituindo uma síntese
técnico-política. Assim, o processo de planejamento cria condições para a (re)construção da
hegemonia, na medida em que articula, técnica e politicamente, os atores sociais para escolhas
e opções sociais.
Para o mesmo autor, o planejamento local e os planos de desenvolvimento são,
antes de tudo, um instrumento de negociação com os parceiros potenciais – tanto na fase de
elaboração quanto, após a produção do documento (síntese) – e de aglutinação política dos
atores, na medida em que estes expressam, de forma técnica e organizada, o conjunto das
decisões e compromissos sociais.
5 Os espaços de poder deixados pelo Estado brasileiro
Ao longo da história brasileira, a democracia se encontrou fragilizada na maior
parte dos períodos de nossa história. Zimmermann (2003) cita que no período colonial, ela foi
ignorada. No Império existia a discriminação do direito de voto, além de fraudes no processo
eleitoral e eleição limitada a representantes do Poder Legislativo. Na República, desde seu
princípio até 1930, os grupos oligárquicos regionais mantinham o poder por intermédio de
processos eleitorais fraudados, por práticas coronelistas, quando os governadores, apoiados
pelos coronéis, controlavam o poder central. Nos períodos autoritários, de 1930 a 1945 e de
1964 a 1985, houve a quebra total do regime democrático e do exercício da cidadania.
Restam, portanto, os períodos de 1945 a 1964 e, para este estudo, o de 1985 em diante, onde o
exercício da democracia e da cidadania conquista espaço formal em nossa sociedade.
Segundo Allebrandt (2003), no processo de redemocratização do Brasil, iniciado
na década de oitenta, a sociedade civil lutou para que seus representantes constituintes
garantissem, pelo menos, a instituição de uma democracia semidireta, com a combinação de
diferentes ciências.
aspectos de participação indireta, através da representação de vereadores, deputados,
senadores, conselheiros; e por outro lado, a instituição de uma participação direta através de
leis de iniciativa popular, referendo, plebiscito e assembléias deliberativas. É este regime
político que está garantido no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, o qual, no seu
parágrafo único, define que “todo poder emana do povo que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”.
A Constituição Federal, por sua vez, estabelece no art. 25º, parágrafo 3º, que os
Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerados
urbanos e microrregiões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para
integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum
(BRASIL, 2001).
A Constituição Federal estabelece, também, a criação de órgãos colegiados que
deliberem sobre a seguridade social. Esses órgãos devem assegurar direitos relativos à saúde,
à previdência, à assistência social e à educação, prevendo, para isso, a formação de conselhos,
dentro do âmbito da ordem social. Diferentes modalidades de conselhos foram
regulamentadas posteriormente em nível federal. Muitos destes conselhos nacionais têm seus
equivalentes na esfera estadual e municipal, com atribuições semelhantes para as respectivas
esferas. Entretanto, no conjunto de artigos que fazem menção à agricultura, nenhum trata da
formação de conselhos ou fóruns para discutir o tema.
Para Buarque (2002), com a promulgação da Constituição de 1988, iniciou-se um
processo desorganizado de descentralização político-administrativa no Brasil, com
distribuição de responsabilidades e poder decisório para os estados e municípios, reduzindo
assim o peso da União. Desde então, esse processo avança de forma desordenada e desconexa,
tratando, de maneira desigual, o repasse de responsabilidades e recursos, bem como,
apresentando distorções na gestão da esfera pública. O mesmo autor entende que a
descentralização só deve ser realizada quando concorre para melhorar a gestão dos setores
públicos, elevando os seus resultados e reduzindo os custos, ao mesmo tempo em que
assegure sua contribuição para o desenvolvimento local e a democratização da sociedade.
6 A regionalização e as formas de participação no Rio Grande do Sul
O programa de regionalização no Estado do Rio Grande do Sul vem de longa data
e envolve aspectos relacionados à economia, ao planejamento regional e à gestão pública em
geral. Em 1987, segundo De Toni e Klarmann (2002), o Programa Estadual de
descentralização Regional teve, como objetivo, definir a regionalização do Rio Grande do Sul
e implantar a descentralização das atividades setoriais da Administração Estadual direta e
indireta, com base em regiões territoriais. A discussão desse assunto se intensificou no final
da década de 1980, culminando com a elaboração e a aprovação da Constituição Estadual, em
1989.
A Constituição Estadual trata, entre os artigos 166 e 170, da política de
desenvolvimento estadual e regional. Em seu artigo 167, prevê que a definição das diretrizes
globais, regionais e setoriais da política de desenvolvimento caberá a órgão específico, com
representação paritária do Governo do Estado e da sociedade civil, através dos trabalhadores
rurais e urbanos, servidores públicos e empresários, dentre outros, todos eleitos por suas
entidades. No artigo seguinte assegura que o sistema de planejamento disporá de mecanismos
que assegurem ao cidadão o acesso às informações sobre qualidade de vida, meio ambiente,
condições de serviços e atividades econômicas e sociais, bem como a participação popular no
processo decisório (RIO GRANDE DO SUL, 1989).
Dessa forma, surgiu no estado a proposta de criação dos Conselhos Regionais de
Desenvolvimento, inicialmente conhecidos pela sigla CRDs e, a partir de 1994, pela sigla
COREDEs. A criação desses Conselhos aconteceu logo depois do processo de elaboração das
constituições federal e estadual e objetivava suprir a falta de instâncias de articulação regional.
Paralelamente, essa criação era considerada instrumento de mobilização da sociedade e fórum
de discussão e decisão a respeito de políticas e ações que visassem o desenvolvimento
regional.
Os primeiros passos concretos para a implantação dos CRDs começaram a ser
dados a partir de 1990, com a realização das primeiras reuniões e seminários informativos em
alguns municípios-pólo do Estado, sendo promovidos pelas Universidades regionais. No ano
seguinte a nova administração estadual dá continuidade a essas iniciativas, tanto que, até o
final do ano de 1991, 17 Conselhos Regionais de Desenvolvimento foram organizados. Os
outros 5 conselhos, que completam a abrangência territorial do Estado, surgiram ao longo do
processo (DE TONI, KLARMANN, 2002).
Em 1994, depois de longa tramitação e mobilização dos representantes e agentes
envolvidos, foram criados e regulamentados oficialmente os COREDEs, (em substituição aos
CRDs), pela Lei nº 10283, de 17 de outubro de 1994. Esta lei dispõe sobre a criação,
estruturação e funcionamento desses Conselhos, sendo regulamentada, através de decreto de
28 de dezembro do mesmo ano, a delimitação territorial de cada uma das regiões. Este foi um
dos últimos atos administrativos da gestão de 1991-1994. Embora a lei e o decreto não
fizessem referência direta aos Conselhos Municipais de Desenvolvimento (COMUDEs),
estava implícita a posterior criação dos mesmos em todos os municípios.
A atual região das Missões passou por diversos recortes regionais até que, no
início da década de 1990, foram estruturados os Conselhos Regionais de Desenvolvimento
(primeiro com a sigla de CRD e depois COREDE). O CRD – Missões, instalado oficialmente
em 30 de agosto de 1991, surge da fusão de duas Associações de Municípios vinculados à
Federação da Associação de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS) o que vem
demonstrado nas Figuras 01 e 02. Uma dessas Associações é a de Cerro Largo, na qual a
maioria dos municípios participantes localiza-se na margem direita do rio Ijuí, ao longo da
rodovia BR 392. Nos municípios pertencentes a essas Associações, existe a ampla
predominância de etnias européias. O município de Cerro Largo foi a grande referência da
colonização alemã na região, e o município de Guarani das Missões foi o mesmo em relação à
etnia polonesa. A outra Associação formadora do CRD-Missões é a de Santo Ângelo, que
incorpora municípios da margem esquerda do rio Ijuí, ao longo da rodovia BR 285,
compreendendo um trajeto situado nos Sete Povos das Missões. Nos municípios pertencentes
a essa Associação ocorre uma forte presença luso-brasileira (cabocla).
Figura 01 – Localização do COREDE Missões
Figura 02 – Mapa do COREDE Missões
No contexto CRD ou COREDEs se torna relevante a noção de território de
desenvolvimento. Para Schmidt; Schmidt e Turnes (2003), os limites de um território
normalmente são definidos a partir de alguns indicadores de homogeneidade, sejam eles
naturais, culturais ou históricos. Esta condição, no entanto, mascara uma série de
especificidades e heterogeneidades quase sempre presentes no interior de unidades
administrativas; e estas diferenças podem constituir-se numa riqueza local, como foi frisado
no início do capítulo, quando se postulou que a sociedade era constituída por um conjunto de
fatores.
A região de abrangência do COREDE Missões é formada por 25 municípios, que
concentram 2,6% da população do Estado e, 4,9% de sua área, sendo a densidade demográfica
de 18,80 hab/km², o que é praticamente a metade da média estadual. Na região desse
COREDE há inclusive, 5 municípios com uma média inferior a 10 hab/km² . O IDH-M7 é
considerado um dos mais baixos do estado.
A etapa de delimitação das regiões caracterizou-se, segundo De Toni e Klarmann
(2002), por uma grande flexibilidade, não se fixando a nenhum critério mais rígido para o
7 O IDH-M é o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, elaborado pelo Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), com apoio do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e a
Fundação João Pinheiro (FJP). O IDH-M baseia-se em três dimensões: Educação, Longevidade e Renda,
incluindo variáveis específicas para cada indicador.
agrupamento dos municípios. Respeitava-se a autonomia das comunidades na decisão dos
limites geográficos do respectivo CRD, desde que fosse respeitada a contigüidade territorial.
Depois de várias simulações, a proposta final se aproximou da regionalização da Federação
das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS), que possuía uma
delimitação prévia e já ajustada entre as administrações municipais.
O processo de formação de cada Conselho envolveu, de maneira geral, três etapas:
a definição dos representantes dos diferentes segmentos sociais de cada município, a
realização de uma Assembléia Geral Regional, congregando os representantes desses
segmentos, e a escolha de uma Diretoria Executiva para a condução dos trabalhos do CRD por
um período de dois anos. Este processo procura superar o fórum restrito de prefeitos que as
Associações de Municípios representavam na discussão de temas relevantes para cada região,
buscando envolver toda a sociedade civil.
Neste contexto, os COREDES são criados sem dispor de uma estrutura mínima,
capaz de articular ações em nível regional. Muitos deles passaram a ser coordenados por
professores universitários de instituições que tivessem inserção regional, sendo aproveitada a
estrutura destas instituições para encaminhar o estritamente necessário. Outros recorriam aos
funcionários das associações de município, que contribuíam para o encaminhamento das
ações.
Entre 1995 e 1998, que marca um novo período administrativo estadual,
ensaiaram-se os primeiros passos para efetivar uma nova territorialidade regional. Em 28 de
junho de 1995 é assinada a Emenda Constitucional nº 07, que agrega novos princípios para a
administração pública. Entre estes está o da participação dos diversos setores da sociedade,
que passa a ter uma referência explícita na Constituição para a Administração Pública direta e
indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios.
7 Formas de participação através dos COREDEs
Em 1998, último ano da gestão estadual em curso, o Governo do Estado
implantou a Consulta Popular, coordenada pelos COREDEs e apoiada pelos COMUDEs em
municípios previamente organizados, estimulando a participação da população por meio de
votação direta dos principais projetos regionais. Este processo foi polêmico, sendo
questionada a forma de construção dos projetos, seu conteúdo e, principalmente, sua
contribuição para as políticas de desenvolvimento. Além disso, a realização da iniciativa se
deu em último ano de governo, para que sua execução acontecesse em outra gestão, que
representou a principal divergência.
Em 1999, inicia um novo período administrativo estadual, que procura estabelecer
um protocolo entre o Governo e os COREDEs, pelo qual o Orçamento Participativo (OP)8
estadual incorpora a delimitação regional das 22 regiões já existentes. O novo Governo passa
a constituir a estrutura do Gabinete de Relações Comunitárias (GRC), com um coordenador e
equipe de apoio. Para implementar o OP, foi garantida a infra-estrutura básica para a
locomoção e atendimento da população regional. Mesmo havendo identidade em termos de
divisão regional, as atividades entre COREDEs e o OP não se fundiram, caminhando muitas
vezes de forma paralela e conflituosa.
No ano de 2000, o Governo reconhece as dificuldades de articulação da ação
pública em um determinado território. Por isso, institui oficialmente a delimitação das 22
regiões como Regionalização de Referência para toda a administração direta e indireta através
do decreto nº 40.349, de 11 de outubro de 2000. O objetivo era fazer com que os órgãos
gradativamente se adequassem uns aos outros, tornando mais produtiva e qualificada a tarefa
de refletir o desenvolvimento regional, pela referência territorial comum. Institucionalizou-se
o Programa de Regionalização Administrativa do Estado (PRAE) para coordenar e fazer a
compatibilização dos diferentes órgãos estaduais, que tinham, até então, recortes regionais
distintos. Objetivavam-se ambientes propulsores de uma regionalização mais uniforme de
toda a estrutura de administração do Estado.
Para De Toni e Klarmann(2002), através dessas providências, houve o
reconhecimento da dimensão do problema resultante das diferentes regionalizações dos órgãos
públicos da administração direta e indireta, tanto por parte dos próprios setores do governo
como por parte das comunidades que o pressionavam para uma racionalização no
atendimento. A ação governamental traz uma expectativa positiva no sentido de conquista de
níveis crescentes de integração entre os organismos governamentais. Esta ação pode resultar
em um aumento da eficiência e eficácia nos serviços, além de uma maior universalização e
inclusão social e uma delimitação regional eficaz e racional, que atenda os anseios
8 O Orçamento Participativo foi instituído em 1999 no início do Governo do Partido dos Trabalhadores para ser
mais um canal de participação direta da sociedade civil na gestão das políticas públicas.
majoritários das comunidades e que sirva também como catalisador da ação pública no
desenvolvimento regional.
Em 2003, o novo Governo decreta o fim do Orçamento Participativo, retomando a
estratégia de ação dos COREDEs e COMUDEs9, que passam a ser os fóruns legítimos de
discussão e priorização das políticas públicas. Os cidadãos, por sua vez, podem participar e
participam votando temas previamente definidos, ou seja, referendando ou não as decisões
desses fóruns. O Processo de Participação Popular (PPP) vem sendo estudado e aperfeiçoado
com o intuito de ser um novo modelo de participação social na elaboração da peça
orçamentária do Estado. As demandas são elaboradas nos COMUDEs (município). Em
seguida, são niveladas nos COREDEs (região) e depois, passam para a consulta popular (voto
dos cidadãos).
A partir de entrevistas realizadas para esta pesquisa, foi possível montar o Quadro
04, que procura destacar as principais diferenças entre os três processos de participação social,
embora os dados e as informações se restrinjam àquilo a que se teve acesso.
Quadro 04 - Principais características dos processos de participação social regional.
Características
Consulta Popular
Orçamento Participativo
Processo
popular
Período
1998
1999-2002
2003 em diante
Organização Regional
COREDEs
GRC e COREDEs
COREDEs
Estruturas Regionais
COREDEs
sem
estrutura, GRC com estrutura própria e COREDEs,
vinculados
às
vinculando-se prioritariamente as COREDEs
universidades e criação do agente
universidades
de desenvolvimento
Estruturas de definição
prioridades municipais
Eleição das prioridades
das Encontro de lideranças
Assembléias municipais
de
Participação
Encontro de lideranças e, a partir
de 2004, os COMUDEs
Votação direta com cédulas pelos Votação pelos participantes da Votação das prioridades pelos
munícipes
assembléia
munícipes, através de urna
eletrônica.
Fiscalização, controle e execução COREDEs e lideranças municipais Delegados eleitos e indiretamente Gabinete da Vice Governadoria,
das ações priorizadas.
todos
os
participantes
da COREDEs e lideranças municipais
assembléia
Construção
da
orçamentária Regional
proposta Definida pelo resultado das Assembléia com os delegados Definido pelo resultado das
eleições da região e ajustada nos municipais e representantes dos eleições e ajustado em cada
COREDEs
COREDEs, que definiam as COREDE
9 Foi exigido que em 2003, cada município organizasse por meio de lei municipal, o Conselho Municipal de
Desenvolvimento (COMUDE), conforme modelo distribuído pelo Gabinete da Vice Governadoria. Compete ao
COMUDE, entre outras atribuições, elaborar e/ou propor Plano Estratégico de Desenvolvimento Municipal,
realizar a integração com as atividades do COREDE, acompanhar e fiscalizar a execução das ações ou
investimentos escolhidos através do COMUDE, incluídos no orçamento municipal e estadual. É proposta uma
estrutura básica com Assembléia Geral Municipal,Conselho de Representantes, Diretoria Executiva, Conselho
Fiscal e Comissões Setoriais. Surpreende, por enquanto, que as comissões setoriais, que atuam, conforme o
projeto, em áreas específicas, não apresentem nenhuma interface com os demais conselhos municipais.
COREDEs
COREDEs, que definiam as COREDE
prioridades regionais e elegiam os
conselheiros estaduais
Construção da peça orçamentária Definida pelas eleições com Assembléia Estadual com os 220 Pela eleição e pelos ajustes junto
Estadual
pequenos ajustes pelos COREDEs conselheiros,
sendo
176 aos COREDEs
diretamente
escolhidos
pela
população e 44 dos COREDEs
(dois/COREDE)
Amplitude
Restrito à eleição de prioridades
Espaço
de
cobranças, Eleição de prioridades por urna
manifestação de inquietações eletrônica
elaboração de demandas.
Principal finalidade
Incentivar a participação das Estimular a participação direta dos Estimular a formação de fóruns
lideranças regionais na definição cidadãos, sem desconsiderar a municipais que discutam o
das prioridades
representação indireta.
desenvolvimento e, a partir destes,
encaminhar as prioridades
Fonte: Pesquisa de campo
Considerando certos fatores contextuais, Allebrandt (2003), sugere que a noção
de participação ainda incorpora uma razoável confusão conceitual, principalmente se busca a
distribuição do poder, e não apenas a aplicação de métodos e técnicas participativas. Para
tanto, o autor entende que a participação não é neutra e representa, quando autêntica, mudança
no processo de tomada de decisões.
Os três processos de participação social descritos no quadro 04, podem ser
graficamente representados pela Figura 03, que tem como base a tipologia definida nesta
pesquisa e as características de cada processo sistematizadas no quadro citado.
Figura 03 – Comportamento dos processos regionais de participação social frente à
tipologia da participação
Os entrevistados consideraram como aspectos relevantes dos processos
participativos regionais, o espaço de participação, o intercâmbio, a expressão popular, o
estímulo ao debate e a possibilidade de conhecer algo mais sobre a máquina pública estadual.
Na opinião de alguns entrevistados, foi através do OP que eles tiveram a oportunidade de
conhecer melhor o que o pessoal realmente precisa, sendo este, portanto, um processo
motivador da participação. Permanecia muito presente a sensação de terem participado, serem
parte do Governo do Estado, cabendo-lhes também a responsabilidade para que as prioridades
locais fossem executadas. O fato de cada um poder decidir onde aplicar os recursos e em que
prioridades foi lembrado com freqüência.
O maior descrédito dos processos de participação regional é atribuído ao não
atendimento das demandas; ou, quando isso não ocorria, prazos pré-estabelecidos não eram
observados. Certas atividades participativas criavam uma expectativa, que pela demora,
transformava-se frustração. Uma pessoa manifestou seu descontentamento ao dizer que o que
se decide hoje somente é realizado daqui a dois ou três anos. Foi lembrado, por vezes, que a
aquisição de máquinas que foram priorizadas em 1998 até hoje não chegaram ao município,
mesmo tendo sido realizados vários seminários e refeitos projetos. A falta de recursos para o
investimento foi lembrada com freqüência, sendo questionada a validade de decidir quando
não se tem dinheiro. Ou seja, havia uma clara demonstração de que diversas prioridades
sugeridas não foram executadas.
As análises retrospectivas feitas pelos fóruns regionais ajudam a compreender
melhor as questões locais. O movimento regional tem sua interface com o municipal, fazendose uma opção de começar por uma estrutura mais macro para, em seguida, planejar o espaço
local.
A inserção do caso aqui analisado no seu contexto regional também possibilitou
que se percebessem várias inter-relações e características similares entre municípios
limítrofes, demonstrando a necessidade de não prender o olhar somente ao local sem perceber
o seu entorno.
8 Para continuar refletindo
Na análise do funcionamento do Conselho Regional de Desenvolvimento da
região das Missões, que exerce um papel importante na definição das políticas para o
desenvolvimento regional, constatou-se que o mesmo mantém o forte viés de esperar que o
poder público gere demandas. Mesmo assim, tem-se percebido uma crescente participação da
população na discussão de temas ligados aos seus interesses. Disso resulta a constituição de
um planejamento com mais comprometimento, que chega a constituir, embora ainda
timidamente, interessantes ações de gestão social.
A percepção dos diversos aspectos que envolvem o desenvolvimento passa a ser,
de forma inovadora, realizada de maneira mais integrada, sendo efetuada a partir da região.
Esse novo enfoque passa a ser incorporado, mesmo que timidamente, aos processos de
interação com a população que tem, como finalidade, melhorar suas condições de vida.
Na região, mais uma vez se demonstrou que os processos participativos utilizados
não trazem embutidos, por si mesmos, uma ação democrática. Percebeu-se que, enquanto
estava aberta a possibilidade de emitir opiniões, o trabalho fluía bem. No momento dos
comprometimentos, contudo, existia uma forte tendência de transferir a responsabilidade para
outras instituições e atores externos. Por isso, o sucesso de um processo participativo depende
fundamentalmente da postura de profissionais que valorizem as ações interativas. Isso
evidencia a importância dos procedimentos pedagógicos, os quais podem, por um lado, levar
ao “empoderamento” da população, mas por outro, também podem ser usados como estratégia
de manipulação e apropriação de demandas por agentes externos. Os próprios desejos
levantados como sendo de base (município), podem ter, em sua essência, interesses das
pessoas detentoras do poder local, dando uma aparência de processo participativo e
democrático à tradicional situação de poder.
As ações participativas têm estimulado uma maior organização da sociedade
regional na gestão de suas próprias demandas. Isto tem suscitado o aparecimento de ações
específicas a determinados grupos de pessoas que, por muito tempo, não eram sequer notadas.
Percebe-se que os movimentos são recíprocos e complementares em um processo que busca a
participação. De um lado, se alguém gera estímulos, normalmente disponibilizando recursos
financeiros, de outro, há organizações que lutam por seu espaço e por recursos que possam
ser acessados.
Da mesma forma que pode ser visualizada a importância da contribuição da
sociedade civil no encaminhamento de políticas públicas, cresce a necessidade de as empresas
e organizações da sociedade pública ou privada construírem instrumentos conjuntos que
atendam a interesses de consumidores e produtores, de modo que resultem em
desenvolvimento local e regional.
Antes de finalizar, é preciso reconhecer que o processo de “empoderamento” dos
cidadãos e a conseqüente formação de capital social não são processos rápidos, restritos a uma
ação específica; são, isso sim, uma construção progressiva de conhecimentos usados pelos
atores sociais para seu auto-desenvolvimento. Neste sentido, é inegável a contribuição dos
processos de envolvimento regional que oportunizam a reflexão sobre a possibilidade de
substituição do modelo de exclusão social e degradação ambiental por um de inclusão social
regional e de maior preservação ambiental. O processo de mudança normalmente é mais
difícil num meio em que atores locais estiveram historicamente excluídos do debate, sendo
meros receptores de políticas compensatórias.
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