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LITERATURA E MÚSICA: UMA ANÁLISE DE CANÇÕES DO PROJETO
MUSICAL WILLIAM SHAKESPEARE’S HAMLET E SUA RELAÇÃO
MULTIMODAL COM A TRAGÉDIA SHAKESPEARIANA
Me Ana Paula de Castro Sierakowski (UNICENTRO/I)
Resumo. Esse artigo visa discorrer acerca do projeto brasileiro intitulado William
Shakespeare’s Hamlet, que se trata de uma adaptação para a música, mais
especificamente, o metal (e suas várias vertentes), de uma das tragédias humanas mais
conhecidas da literatura canônica: Hamlet, de Shakespeare. Tal projeto, lançado pela
Die Hard Records, em 2001, apresenta dezenove faixas musicais; quinze delas são
cantadas por quatorze bandas do cenário heavy metal brasileiro a fim de expor a história
de Hamlet. Dentre as quinze canções, são interpretadas quatro vinhetas que as separam
em ‘quatro atos’. Assim, como objetivo específico, buscar-se-á analisar a canção The
King’s Return, interpretada pela banda Krusader, a ‘vinheta’ que a antecede, Villainy, e
suas respectivas relações com a tragédia shakespeariana. Para tanto, utilizar-se-á Clüver
(2007), Kress (2006), Hutcheon (2011), Walsen (1993), Oliveira (2002), Costa (2007) e
Nakamura (2009), por meio da análise intermidiática. Os resultados que podem ser
adiantados são no sentido de mostrar que, entre semelhanças e diferenças, o texto
adaptado, ou seja, a letra da canção The King’s Return e sua vinheta, mantém sua
autonomia em relação ao texto original.
Palavras-chave: Literatura Inglesa. Adaptação. Hamlet.
Abstract. This article aims to discuss the Brazilian project titled William Shakespeare's
Hamlet, which is an adaptation to music, more specifically, heavy metal music (and its
various genres), from one of the most known human tragedies of canonical literature:
Hamlet, by Shakespeare . This project, idealized by Die Hard Records, in 2001, features
19 musical tracks; 15 of them are sung by 14 bands from the Brazilian heavy metal
scene to expose the story of Hamlet. Four vignettes are interpreted among these 15
songs, which separate them in 'four acts'. Thus, as a specific goal, this work aims to
analyze the song The King's Return, played by the band Krusader, the vignette that
precedes it, Villainy, and their relations with the Shakespearean tragedy. To
accomplishes this end, it will be use scholars as Cluver (2007), Kress (2006), Hutcheon
(2011), Walsen (1993), Oliveira (2002), Costa (2007) and Nakamura (2009), using the
intemidiatic analysis. The results that can be yet shown are in order to explicit that,
among similarities and differences of ad the adapted text, i.e. the lyrics of The King's
Return and its vignette, maintains its autonomy in relation to the original text.
Keywords: English literature; adaptation; Hamlet.
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1 Considerações iniciais
Qual é a função da arte? Qual é a função da literatura? Que lugar a música ocupa na
vida do homem? Alguns podem afirmar que não servem para nada... que são ‘artigos de
perfumaria’; ou, ainda, que são artes descompromissadas... ou seja, não são produzidas
por propósito algum. Compagnon (2009, p.24), versando, especificamente acerca de
literatura, questiona: “qual é a sua força, não somente de prazer, mas também de
conhecimento, não somente de evasão, mas também de ação?”. Por meio das perguntas
de Compagnon, podemos perceber, então, que literatura é mais do que apenas prazer
“pelo belo” ou fuga; ela é também fonte de conhecimento e propulsora de ações. Assim
igualmente é a música.
Música e literatura, ainda que, por vezes, consideradas, essencialmente, como artes
despretensiosas, agem no indivíduo das mais variadas formas e dizem sobre o mundo e
os homens de maneiras tantas que talvez outros tipos de discursos não seriam capazes
de dizer. O fato é que, servindo para muito ou nada, são duas artes que –
desconsiderando qualquer efeito de discussão do que é considerado arte ou não pelas
academias – movem o mercado e tocam o público de diversos modos. Comprova-se tal
fato pelos inúmeros meios em que a literatura circula, fazendo-se disseminada e fruída,
ou pelas multidões que se aglomeram para assistir a um espetáculo musical; ou até
mesmo pela sobrevivência (e também florescimento) das duas artes em tantos gêneros
distintos.
Isso posto, mais do que as formas estéticas de cada uma dessas artes, elas tocam
também o público por meio dos seus temas; temas humanos considerados universais.
Temas que podem ser moldados e remoldados em mídias diferentes. Adotando, então,
o caminho da literatura em outras linguagens, tomou-se conhecimento do projeto,
lançado em 2001, intitulado William Shakesperare’s Hamlet que trata de uma adaptação
da tragédia do príncipe da Dinamarca, Hamlet, para o contexto musical, mais
especificamente, para o heavy metal.
Com vistas a trazer à luz o projeto brasileiro de música underground que recodifica,
dessa forma, umas das tragédias humanas mais conhecidas na literatura, como objetivo
geral, propõe-se discorrer acerca de tal projeto, mas, especificamente, objetiva-se
analisar a canção The King’s Return, interpretada pela banda Krusader e sua relação
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com a tragédia shakespeariana1. Para tanto, basear-se-á em autores como Clüver (2007),
Kress (2006), Hutcheon (2011), Walser (1993), Oliveira (2002), Costa (2007) e
Nakamura (2009).
2 Fundamentação Teórica
Segundo Kress (2006), o nosso corpo tem uma variedade de modos de
relacionamento com o mundo e, dessa maneira, uma ampla variedade de modos de
percepção. Esse relacionamento se dá por meio dos chamados ‘sentidos’: ver, ouvir,
cheirar, degustar, sentir. Cada um deles está relacionado de uma forma muito específica
ao nosso ambiente, dando-nos informações muito diferenciadas sobre ele. O
engajamento do ser humano com as artes, então, pode ser realizado a partir desses
variados modos de ‘fruir’ um objeto artístico, sendo ele imbricado a um único ou a
vários sentidos.
Nessa perspectiva, nenhum desses sentidos age de forma separada dos outros; são
eles capazes de proporcionar a multimodalidade de nosso mundo semiótico. Assim,
cada sociedade seleciona, no seu leque de escolhas, desenvolver essas possibilidades de
relacionamento com o mundo a partir de cada sentido. As chamadas sociedades
ocidentais letradas têm, por muito tempo, insistido na prioridade de um modo particular
de relacionamento, por meio de uma combinação do ‘ouvir’ e do ‘ver’: o senso ‘ouvir’
especializado nos sons da fala e o senso do ‘ver’, especializado na representação gráfica
dos sons por meio das letras, representando, assim, principalmente, a mídia escrita.
À parte a preocupação concernente à qual das mídias é vista como majoritária, o que
é interessante perceber é a relação que se pode encontrar entre as mídias e como o ser
humano se comporta em relação a elas. Enquanto leitores de uma obra literária, lê-se tal
mídia de uma forma, seguindo os elementos de seu modo específico de funcionamento.
Mas parece que, mesmo que uma história já exista, ou seja, já tenha sido contada na
mídia escrita, há uma atração do ser humano em recontar a mesma história de diferentes
modos e suportes, pois há, consequentemente, uma grande busca dos leitores de um
1
Neste trabalho, como se trata ainda de um início de pesquisa, debruçar-se-á apenas no material escrito
do projeto, ou seja, as letras das canções indicadas como corpus de pesquisa. O material audível, musical,
propriamente dito, não é objeto de análise por ora.
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livro pelas transposições desse suposto livro, seja para o filme, teatro ou outro meio.
Isso mostra a fascinação do homem pelas adaptações, tanto no sentido de produzi-las,
quando de frui-las. Hutcheon confirma tal fato com um insight de Benjamin (1992, p.90
apud HUTCHEON, 2011, p.22) que diz que “contar histórias é sempre a arte de repetir
histórias”.
Em Uma Teoria da Adaptação, Hutcheon (2011), em resumo, ensina que uma
adaptação pode ser descrita como: a) uma transposição declarada de uma ou mais obras
reconhecíveis; b) um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação; e c) um
engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada. Nesses três pontos, fica
obviamente clara a estreita relação da adaptação com a obra original. Todavia, a autora
argumenta que essa relação é de derivação, sim, mas que isso não torna a transposição
intersemiótica em uma obra secundária.
De forma diversa aos estudos que se focam na superioridade do texto literário ou na
fidelidade requerida no processo de adaptação, principalmente, pelo receptor do texto
adaptado, esta pesquisa reflete sobre a autonomia do texto ‘refeito’ em outra mídia.
Podendo ser o texto entendido como uma unidade de expressão carregada de sentido,
possuidora de características próprias para seu funcionamento, sendo ele um filme, um
espetáculo de balé, uma peça de teatro ou uma canção, acredita-se que há uma relação
de ‘diálogo’ entre os textos, mas essa relação não deve ser pensada enquanto
dependência que confere valor maior à obra que ‘veio primeiro’, ou seja, a literatura não
tem de ser considerada uma mídia superior por ter vindo dela a obra de inspiração para
o texto adaptado.
Baseada nos estudos de Barthes (1997), Hutcheon (2011, p.28) ensina que as
adaptações são textos que possuem uma “estereofonia plural de ecos, citações e
referências”. Nesse sentido, acrescenta que, mesmo que as adaptações sejam objetos
estéticos em seu próprio direito, só serão consideradas enquanto adaptações se forem
entendidas como obras “inerentemente duplas” ou “multilaminadas”. Elas são obras
‘segundas’, mas não secundárias. A obra original exerce relação com a adaptada no
sentido de que foi a partir dela que a ‘segunda’ foi criada, mas isso não significa que ela
é necessária para a compreensão da adaptação. É assim que se pensa, aqui, então, as
adaptações: como ‘diálogos’ autônomos com o texto original, não como um texto
secundário e dependente do original para a sua realização.
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Clüver (que é quem usa o termo ‘transposição intersemiótica’ que é utilizado neste
trabalho) também discute sobre as relações de ‘intermidialidade’ que as artes possuem,
ou seja, as relações concernentes às diferentes mídias. Nesse contexto, define que
o texto intersemiótico ou intermídia recorre a dois ou mais sistemas de
signos e/ou mídias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou
musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam
inseparáveis e indissociáveis (CLÜVER, 2007, p.20).
Considerando, desse modo, o corpus selecionado para esta pesquisa, tal conceito é
aplicável uma vez que, para Oliveira (2002), a música se caracteriza por uma
pluridimensionalidade que nos permite entendê-la em sua realidade física enquanto uma
arte de movimentos no espaço sonoro concreto, não só mental. Acrescenta ainda que “a
sonoridade literária apela somente para a voz humana, seja ela audível, ou silenciosa e
mental, enquanto que a música recorre também a objetos fabricados, os instrumentos”
(OLIVEIRA, 2002, p. 37). Desse modo, a canção é vista como uma mídia de essência
dupla, que conjuga o material escrito (a letra da música) com o material sonoro,
composto esse, então, não apenas pela interpretação vocal (entonação de voz, timbre,
etc), mas também pela sonoridade complementar que os instrumentos musicais
exprimem e contribuem para a produção dos sentidos. O mesmo ocorre com a tragédia
shakespeariana em questão. Por se tratar de um texto dramático, seu primeiro intuito é
ser encenado, utilizando atores, palco, figurino, etc, para que isso ocorra. Mas, antes da
encenação, temos a produção do texto escrito, que, por sua vez, é constituído, também,
de elementos próprios (direções de palco e, em sua maioria, o discurso direto como
parte estruturante do gênero).
De acordo com Costa (2007, p. 107), “a canção é um gênero híbrido, de caráter
intersemiótico, pois é o resultado da conjugação de dois tipos de linguagens, a verbal e a
musical (ritmo e melodia)”. Nesse sentido, o material audível do CD é considerado,
então, nesse seu status de gênero duplo, que é, além disso, chamado por Costa de um
gênero que exige uma “tripla competência”, ou seja, a verbal, a musical e a líteromusical, “sendo esta última a capacidade de articular as duas linguagens” (COSTA,
2007, p. 107). Tendo isso em vista, o material audível não pode ser entendido apenas
como a representação da mídia escrita por meio da interpretação vocal, pois cair-se-ia
no reducionismo de colocar a sonoridade unicamente enquanto um veículo para a
representação da escrita. Por outro lado, a letra da música tem sua existência essencial,
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uma vez que se configura como o registro do material a ser cantado. Dessa maneira, “a
canção não é nem exclusivamente texto verbal, nem exclusivamente peça melódica, mas
um conjugado de duas materialidades” (COSTA, 2007, 108). Ela, por si só, é
multimodal. E assim também é o teatro.
Além disso, Oliveira aponta uma intrínseca relação entre literatura e música.
Segundo ela,
“[...] música e literatura têm em comum um material parcialmente
semelhante, o som, representado visualmente na partitura musical e no
texto impresso. Ao som em si e por si da música corresponde com o
som articulado da linguagem verbal. Há, de um lado, um discurso que
é também som, isto é, entonação e ritmo. Do outro, um material
sonoro que se superpõe e se organiza em grupos animados pelo ritmo,
mas percebidos de forma diversa, por meio da harmonia vertical e do
contraponto horizontal. Daí a dificuldade de precisar a noção de ritmo,
que se encontra nas duas artes. A literatura é ritmo, a música é ritmo.
Mas o som na música é animado por um ritmo próprio, enquanto na
literatura é também impregnado pelo sentido do discurso”
(OLIVEIRA, 2002, p.38-39).
Assim, além de o texto dramático, então, ser visto como um texto que tem seu ritmo
próprio, repleto de sentidos, ele tem o seu outro lado que é o espetáculo em si, a
representação da palavra escrita, a encenação.
Se tem ainda, ao deparar-se com o CD do projeto em questão, as letras das músicas,
apresentadas como o registro do material musical no veículo ‘encarte’. Observa-se,
além da sua configuração enquanto parte do gênero ‘canção’ mencionada anteriormente,
uma outra configuração, que pode ser considerada autônoma a essa. No encarte, as
letras das canções funcionam como partes de um todo que não precisa, essencialmente,
da mídia musical para ser realizada. Em um encarte de um CD comum, temos,
basicamente, os dados essenciais da produção do álbum e as letras das músicas. Já no
encarte do projeto William Shakespeare’s Hamlet, encontra-se mais do que apenas a
transcrição das letras das músicas; é possível, nele, observar um outro texto escrito que
conta também a história do príncipe da Dinamarca. Entremeados às letras das canções
(que aqui se configuram, na realidade, como partes de uma história), o CD contém
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quatorze poemas, vinte e uma ‘direções’2 dadas por um narrador, além de imagens que
complementam a significação do texto como um todo. Tudo isso – letras das músicas,
poemas, direções e imagens – forma um texto coeso independente do material musical
contido no álbum.
Encontram-se, então, em um projeto, duas mídias contando a mesma história, mas de
maneiras diversas. Entretanto, neste artigo, o encarte do CD ainda não fará parte da
análise, tampouco as mídias em sua essência completa. O corpus deste trabalho não se
fixa na representação teatral de Hamlet, nem no objeto sonoro das canções do projeto.
Focar-se-á, aqui, no material escrito que baseia as duas outras vertentes dessas mídias.
Pensemos, então, as duas mídias enquanto multimídias, multimodais, uma vez que
conjugam mais do que uma forma de expressão. O teatro não é só representação, mas é
também o texto escrito, e a música (à parte as músicas instrumentais) não é só material
sonoro, mas é também letra.
3 A tragédia de Hamlet no heavy metal
O heavy metal, considerado por muitos como um gênero musical marginal, ‘popular’
– por ser distante do erudito – grosseiro e obscuro, surge nos anos 70, com o intuito de
radicalizar os ideais de contestação que o rock, primeiramente, havia pensado, mas que
fracassou (NAKAMURA, 2009). Todavia, é na década de 80 que teve sua maior
popularidade e influência. Walser (1993) tira (ou ameniza, talvez) esse rótulo de
‘rudeza’ expondo que, apesar de preferirem participar de criações coletivas e
priorizarem a oralidade derivada da tradição das músicas populares, os músicos do
heavy metal são grandemente influenciados pelas práticas dos conservatórios de
músicas.
Além disso, elegendo como tema predominante do gênero o mundo das sombras e
das forças ocultas, utilizando-se de imagens grotescas e alusões à morte, e buscando nas
guitarras distorcidas e no pesado ritmo binário da bateria uma sonoridade agressiva e até
primitiva (no sentido psicanalítico), o rock pesado, aponta Jannotti (1994, p. 9 apud
NAKAMURA, 2009, p.42), buscaria “uma vivência simbólica longe da serialidade do
2
‘Direções’ foi o nome aqui encontrado para dar aos trechos que são colocados entre os poemas e as
letras das músicas no encarte. Em outras pesquisas, uma nomenclatura posterior poderá substituir essa.
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cotidiano e sua extrema racionalização”. Tenta, então, de certa maneira, se afastar das
esferas populares de consumo e se caracterizam pelo tom de contestação cultural.
Ficavam, propositadamente, no submundo, talvez numa tentativa de negação e protesto
contra a sociedade que eles se encontravam.
Diante de tal fato, parece uma dessintonia afirmar que o heavy metal encontra
relações com a literatura. Mas não é. Literatura também é contestação. Também é
negação de muitos valores impostos pela sociedade. É um prisma que projeta problemas
a serem questionados. William Shakespeare, um dos maiores dramaturgos da literatura,
é um exemplo disso. Tratando muitas vezes de temas polêmicos, toca em pontos fulcrais
da condição humana. E a vingança e a obsessão são temas seminais de uma das
tragédias fundamentais da literatura inglesa e também universal: Hamlet.
Basicamente, a tragédia inicia-se com a descoberta de Hamlet (por meio do fantasma
do antigo rei da Dinamarca, seu pai) de que seu pai havia sido assassinado por Claudius,
irmão do rei. Depois da descoberta, seu único pensamento é vingar-se de seu tio que
acaba por desposar Gertrude, viúva do rei. Contudo, a essência do príncipe Hamlet
tende mais à reflexão do que ao assassinato. O resultado disso mostra que o fim do
Príncipe da Dinamarca é a sua própria destruição.
O projeto William Shakespeare’s Hamlet, de iniciativa da Die Hard Records, lançado
em 2001, apresenta dezenove3 faixas; quatorze delas são cantadas por quatorze bandas4
do cenário heavy metal brasileiro em suas variadas vertentes a fim de contar e cantar a
história de Hamlet. Na última canção, To Be..., tem-se a reunião de todos os vocalistas
das bandas participantes do projeto, além da participação especial de André Matos, um
dos mais famosos vocalistas do cenário metal tupiniquim. Essa última canção teve a
melodia composta pelo maestro José Luiz Ribalta e é acompanhada por uma orquestra.
Dentre essas quinze canções, são interpretadas quatro vinhetas que as separam em
‘quatro atos’. Todas as letras das canções do álbum foram compostas pelo poeta
Adriano Villa, e transpostas para o inglês arcaico por Alexandre Calliari. Segundo dois
dos produtores executivos do projeto, Fausto Mucin e André Mesquita, em entrevista ao
3
1. From Hades to Earth; 2. Sweet Flavour of Justification; 3. The Happiness of the Queen; 4. Visions of
the Beyond; 5. Villainy; 6. The King’s Return; 7. The Truth Appears; 8. The Play; 9. A Letter to Ophelia;
10. Dagger of Words; 11. Prayers in the Wind; 12. Stormy Nights; 13. Hands of Fury; 14. Hidden by
Shadows; 15. Mandate for Freedom; 16. Trap; 17. Good by my Dear Ophelia; 18. The Last Words; 19. To
Be.
4
São elas: Delpht; Santarem; Hammer of the Gods; Krusader; Nervochaos; Symbols; Hangar; Torture
Squad; Fates Prophecy; Tuatha de Dannan; Eterna; Vers Over; Imago Mortis e Sagga.
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site Whiplash5, as letras das músicas foram entregues para cada banda considerando-se
o estilo musical de cada uma e o momento da tragédia que a canção representava.
A canção escolhida para esta análise é a sexta das dezenove, intitulada The King’s
Return (O Retorno do Rei). Ela é interpretada pela banda de Jundiaí, São Paulo,
Krusader, formada em 1989 e que se caracteriza como banda do gênero heavy e power
metal. Os membros da banda que participaram do projeto foram Rafael Reis (baixo e
violino), André Almeida (bateria), Paulo Soares (guitarras), Fábio Thesta (teclados), e
Rick Ricci (vocais), além de contarem com a participação de Mário Linhares (da banda
Dark Avenger) como convidado especial.
Uma das cenas mais marcantes da peça faz parte do ato I, cena V e se trata do
momento em que Hamlet se encontra com o fantasma de seu pai. Em cenas anteriores,
Horatio e Marcellus veem um fantasma e acreditam ser ele o fantasma do pai de
Hamlet. Então, contam sobre o acontecimento ao príncipe que, ao saber, suspeita que
algo está errado, como pode ser constatado no seguinte monólogo:
Hamlet: [...] o espírito de meu pai! E armado! Nem tudo está bem;
Suspeito de alguma felonia. Queria que já fosse noite!
Te contém até lá, meu coração!
A infâmia sempre reaparece ao olhar humano,
Mesmo que a afoguem no fundo do oceano (SHAKESPEARE, ato I,
cena II)6.
Tal passagem expressa, nesse sentido, a suspeita de que algo nefasto aconteceu no
reino da Dinamarca, uma vez que o espírito do pai de Hamlet, que deveria descansar em
paz, está vagando e ainda traz consigo suas armas de guerra – se traz suas armas, é
porque algo, realmente, não está em ordem, e o uso das armas se faz necessário. Esse
excerto, assim como na tragédia, é apresentado no projeto Hamlet antes da cena do
encontro entre pai e filho. No projeto, temos quatro ‘vinhetas’ que introduzem canções
em momentos diferentes e que acabam por fazer o papel de separá-las em atos. A
vinheta (a segunda do CD) começa com o som um tanto quanto fúnebre do toque de
algumas notas no piano e depois é instrumentalizada a partir de flautas; é intitulada de
Villany e foi composta por José Luiz Ribalta,
5
Entrevista completa disponível em: http://whiplash.net/materias/entrevistas/001406-hamlet.html;
Acesso em: 8 ago.2014.
6
Os excertos de Hamlet aqui colocados são da edição de 2011, da editora LPM, traduzidas por Millôr
Fernandes.
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FLUTE VIGNETTE - VILLAINY
"My father's ghost carries weapons
No, things are not going well
I suspect of some villainy
Let's wait for the night to come
And until then my soul will stay calm
Even if the whole land tries to hide them
At the end, the evil acts will appear!" 7
A vinheta introduz a canção e reproduz o solilóquio de Hamlet transposto
anteriormente. Mostra a preocupação de Hamlet com algo que tenha acontecido no
reino e descreve também a sua certeza de que, se algo realmente aconteceu, a verdade
aparecerá. Além disso, transpõe um verso que remete a uma explicação de Horatio a
Marcellus sobre a condenação dos espíritos a unicamente poderem vagar durante a
noite. Hamlet diz: “– Let’s wait for the night” (“– Vamos esperar pela noite”), pois o
cantar do galo, considerado ‘trombeta da alvorada’, desperta o ‘Deus do dia’ e que, ao
escutar esse sinal, os espíritos que vagam errantes, voltam aos seus túmulos (ato I, cena
I). Aqui, então, há uma modificação da peça shakespeariana no sentido de que diálogos
de outros personagens (no caso, o de Horation com Marcellus) são transformados nas
falas únicas de Hamlet. Entretanto, essa mudança não afeta em nada na construção de
sentidos desse texto.
Após isso, a cena da conversa entre Ophélia e Laertes (ato I, cena III) não é
demonstrada nesse momento do projeto, direcionando o receptor diretamente à cena do
encontro entre Hamlet e o fantasma de seu pai, retirando também as partes em que
Horatio e Marcellus participam; sumariza, dessa forma, a cena da peça. Hamlet, então,
meio receoso em relação ao fantasma, (pois seres sobrenaturais eram vistos, na época,
como sinal de mau agouro, como que se os fantasmas tivessem o poder de tomarem a
forma de um humano para levar um homem vivo ao inferno), vai ao encontro do
espectro de seu pai. Nesse encontro, o pai revela ao filho que fora assassinado por seu
próprio irmão enquanto dormia e pede, então, que Hamlet busque por vingança.
7
“Vilania – O fantasma de meu pai carrega armas/Não, as coisas não andam bem/ Eu suspeito de alguma
vilania/ Vamos esperar o cair da noite/ E até lá minha alma se acalmará/ Mesmo que o mundo todo tente
escondê-los/ No final, os malfeitos irão aparecer” (WILLIAM SHAKESPEARE’S HAMLET, 2001;
nossa tradução).
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THE KING'S RETURN - Krusader
Skies that art over my head
Heaven or hell is this emissary from?
Cheating my soul art my eyes!
How canst such a resemblance exist?
No! Among sun and moon
Resemblance there is
The most correct word for what I see
Is: Equality
This sensation that drowns my spirit
Makes me call thee Hamlet,
King of Denmark, my father!
I do not fear for my life, because
I'm so immortal as thee
And there's no way to lose something
That doth not has belonged to us
Go ahead, I'll follow thee and soon
I'll know the reasons...
Why hath the king returned…
Tell me, my beloved father
What make thee rip out of thy shroud
And walk once again in a world
That doth not belong to thee anymore
Tell me, lord of the lords,
Owner of my soul
Thou art so generous for giving me life
Tell me what I canst do
To bring thee peace
And I shall satisfy thy will
Thou hast broken the walls which
Separate the worlds. Why?
Thou hast broken the peace that awaits
For us since born we wert
Tell me father, I'm begging
In the name of the years
That I hast given thee
All my honest feelings
Primeiramente, na primeira estrofe, Hamlet demonstra apreensão por não saber se o
fantasma é enviado pelo céu ou pelo inferno, mas mal consegue acreditar na semelhança
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que seus olhos enxergam. O fantasma é muito parecido com seu pai, então, ele não tem
o que fazer a não ser acreditar que o fantasma, é mesmo, seu pai. O refrão da canção,
marcado na terceira estrofe, remete à resposta aos conselhos de Horatio para Hamlet não
ir ao encontro do fantasma:
Hamlet: Porquê? Qual é o medo?
Minha vida não vale um alfinete
E à minha alma ele não pode fazer nada,
Pois é tão imortal quanto ele (SHAKESPEARE, ato I, cena IV).
No verso seguinte, Hamlet deixa claro que seguirá o fantasma, certo de que
descobrirá o que aconteceu. Então, nas próximas estrofes podemos entender que ele está
sozinho com o fantasma e implora para que o pai lhe conte o motivo de ter saído de sua
mortalha e voltado ao mundo dos vivos. Entretanto, temos, na canção toda, apenas a voz
de Hamlet, clamando para que o fantasma do pai lhe traga à luz a verdade, e o pai, por
sua vez, nada responde. Cria-se, dessa forma, um suspense em relação à resposta do pai
e tal resposta só é dada na canção seguinte, The Truth Appears (A Verdade Aparece).
Como o próprio título da canção diz, o rei retornou. A canção, desde a vinheta que a
apresenta, demonstra ao receptor que algo de errado aconteceu no reino da Dinamarca.
Como diria Marcellus: “– Something is rotten in the state of Denmark” (Há algo podre
no reino da Dinamarca). Todavia, nada é revelado ao receptor na letra da canção
número seis.
Na peça shakespeariana, fica claro o desejo do pai Hamlet de que o filho seja tão
corajoso quanto ele um dia foi e vingue sua morte. Mas Hamlet filho não tem quase
nada em comum com o pai, pois Hamlet “é um intelectual universitário, representante
de uma nova era” (BLOOM, 2001, p. 484). Ele pensa, pondera, questiona, duvida e,
eventualmente acaba por vingar a morte do pai, mas encontra também, seu próprio fim.
Na canção, é possível ver apenas o lado ponderado de Hamlet que suspeita do fantasma,
mas depois, por acreditar na semelhança que seus olhos encontram com a figura que era
seu pai, ele implora para que a verdade seja contada. E a verdade tem de esperar até a
outra faixa do CD.
É óbvia a semelhança entre a peça shakespeariana e a letra da canção, visto que uma
originou da outra. Entretanto, como foi exposto no aporte teórico, o fato de a adaptação
ter acontecido em decorrência de um texto original, não significa que ele seja inferior.
Pelo contrário. O texto que se vê na letra da canção é tão rico quanto o da peça... e tão
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autônomo quanto. Ele recupera falas da peça, personagens, ambiente e a própria tensão
e dúvida do personagem Hamlet também fica muito bem delineada na letra. Além disso,
é criado um suspense entre as canções para se saber o que realmente há de errado no
reino da Dinamarca. Isso faz com que o ‘leitor-ouvinte’ tenha de ouvir as canções
seguintes, caso queira descobrir o mistério que o fantasma do rei esconde.
4 Considerações finais
As relações encontradas entre as artes são várias. Literatura e música, então, parecem
ter uma afinidade muito grande em suas estruturas de funcionamento. Talvez, alguns
pensem que o heavy metal, por ser visto como um gênero do submundo, não se
relacionaria com a literatura, tão aclamada por sua erudição e beleza. Entretanto, ambos
podem encontrar relações, e isso foi demonstrado pela pequena amostragem do projeto
brasileiro William Shakesperare’s Hamlet, especificamente, por meio da canção The
King’s Return. Nesse sentido, o tema principal da tragédia shakespeariana, a vingança e
tudo que decorreu a partir dela na peça, pode encontrar relação com o tom de violência
reconhecido na expressividade dos sons do heavy metal. Além disso, dentre
semelhanças e diferenças, encontra-se no texto da letra da canção analisada nesse artigo
a sua autonomia em relação ao texto original. O conhecimento do texto original não é
requisito para que a compreensão da história aconteça ao se ouvir o álbum. Mais que
autonomia, as canções, por elas mesmas, criam um clima de suspense a fim de prender a
atenção do receptor que, se quiser saber como a história de Hamlet se desenvolve, tem
de ouvir o CD todo – e caso queira, ainda, ver a história de outro modo, basta checar o
encarte.
Referências
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O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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Material de Análise
Várias Bandas. William Shakespeare’s Hamlet [áudio]. São Paulo: Die Hard Records,
2001. 1 CD: 74 min.
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