Um instantâneo da economia solidária no Brasil André Ricardo de Souza Esta coletânea reúne relatos de diversas experiências de apoio e de trabalho em empreendimentos de economia solidária no Brasil. É um rico painel retratado por pesquisadores e militantes das organizações solidárias, existentes sobretudo nos estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Os empreendimentos de economia solidária relatados nesta obra agregam por volta de cem mil trabalhadores. Este conjunto é ínfimo no quadro ocupacional brasileiro1, mas está em evidente expansão e é extremamente promissor, sobretudo no que se refere a mudanças de qualidade das condições e relações de trabalho. Os empreendimentos solidários ainda têm pouco peso econômico, mas possuem grande significação cultural, afinal são experiências destacadamente educativas. Os dois primeiros capítulos apresentam as trajetórias de duas cooperativas industriais do Sul do país, Bruscor e Wallig. Em ambas empresas, nascidas na década de 1980 e de tamanhos distintos, é nítido o desafio da comunicação para fins de socializar o conhecimento técnico-administrativo e de promover ampla participação política. Para que a cooperativa seja democrática, ela precisa superar a “incompetência comunicativa”, traduzida em timidez e omissão de parte de seus cooperados, especialmente os operários de chão de fábrica. Por outro lado, a empresa autogestionária tende a comunicar-se externamente com outras organizações sociais do meio em que elas nascem, mantendo uma interação mutuamente positiva. Isso remete à idéia propalada por Paul Singer de que uma empresa autogestionária é mais que uma empresa, pois se assemelha a uma família, marcada por laços afetivos e também é uma organização social de orientação ideológica. Nesses relatos, com rigor científico, as autoras Dalila Pedrini e Lorena Holzmann aprofundam a questão da autogestão propriamente dita. Os sindicatos vêm exercendo papel importante no apoio a trabalhadores que assumem o comando de empresas falidas ou pré-falimentares. No capítulo sobre a Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteag), Marilena Nakano destaca o apoio sindical local e do Departamento Intersindical de Estudos Sócio-econômicos (Dieese) para que os trabalhadores assumissem em 7 1991 a indústria de calçados Makerli, em Franca (SP), fato que propiciou a formação dessa associação de empresas autogeridas em 1994. A autora menciona também como “sementes” da Anteag o fundo de greve da Associação Comunitária de São Bernardo do Campo, surgido no contexto de florescimento do novo sindicalismo no final da década de 1970. Hoje a Anteag conta com 103 projetos autogestionários, com cerca de 25 mil trabalhadores e está crescendo rapidamente, sobretudo no Rio Grande do Sul, onde celebrou um convênio com o governo do estado em 1999 para fomentar a autogestão no combate ao desemprego. Foi no solo fértil de organização sindical do ABC paulista que em 1999 brotou outra associação de empresas geridas pelos próprios trabalhadores: a União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo (Unisol). A Unisol congrega atualmente 11 cooperativas industriais mantenedoras de cerca de seiscentos postos de trabalho. Essa associação é fruto do trabalho de articulação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC , ligado à Central Única dos Trabalhadores ( CUT ), que aliás vem tomando outras iniciativas notáveis de combate ao desemprego e à exclusão social, negociando com governos e empresários. Há algum tempo a central vem discutindo a crise sindical e do desemprego. Premida pelos trabalhadores que procuravam seus sindicatos para apoiá-los na formação de cooperativas, a CUT vem discutindo seriamente a economia solidária. Desde o final de 1998 a CUT vem promovendo discussões sobre cooperativismo junto com o Dieese e a Fundação Unitrabalho, culminando no lançamento da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS) em dezembro de 1999. Preocupados em distinguir cooperativas efetivamente igualitárias e democráticas de “cooperfraudes”, fruto da terceirização da produção, os autores mencionam a intenção do movimento sindical de contribuir para as mudanças pertinentes da legislação e também enfatizam o compromisso da ADS com os princípios norteadores da história da CUT de defesa dos direitos dos trabalhadores. Além de mobilizar trabalhadores em prol da reforma agrária, e educar seus adeptos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ( MST ) vem organizando cooperativas em áreas de assentamento. As primeiras cooperativas de produção agropecuárias ( CPA ) foram formadas em 1989. Além dessas, há também cooperativas de crédito e de prestação de serviços no âmbito do movimento, totalizando hoje 86 cooperativas espalhadas em nove centrais estaduais de cooperativas dos assentados ( CCA ), todas congregadas nacionalmente na Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab). Segundo Elenar Ferreira, secretário-executivo da Concrab, as cooperativas propiciam assimilação da cooperação como um valor no movimento e também melhoram a qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos. 8 Gonçalo Guimarães e Paul Singer, a partir de experiências pessoais diferentes, trazem a história do desenvolvimento da Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, hoje presente em 14 universidades em diversos estados brasileiros. Essas incubadoras são decorrência do heróico trabalho de mobilização nacional do saudoso sociólogo Betinho, por meio da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Os autores chamam a atenção para a importância da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), da CUT, que por meio do Projeto Integrar se aliou na empreitada da formação de cooperativas populares. Também mencionam outras instituições importantes na formação da rede: Banco do Brasil, Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e sobretudo a Unitrabalho. As incubadoras dispõem de manancial de recursos humanos (professores e estudantes) interessados em aprender e a trabalhar juntos com as comunidades carentes envolvidas, compondo assim um projeto de ensino, pesquisa e extensão universitária. A questão do crédito é crucial para o desenvolvimento da economia solidária e do país como um todo. Nesta coletânea há dois capítulos a respeito: um tratando de uma experiência urbana, a Instituição Comunitária Portosol, de Porto Alegre; e outro do Sistema Cresol de cooperativas de crédito rural, da região Sul do país. A primeira instituição nasceu em 1995 para atender microprodutores porto-alegrenses, sob influência de iniciativas similares às de instituições como o Banco do Povo (organizações não governamentais de crédito) em outros países, cuja gênese é o Grameen Bank, de Bangladesh. O Grameen foi criado em 1976 e congrega hoje mais de dois milhões de pessoas, sobretudo mulheres bastante pobres. Já o Sistema Cresol surgiu em 1996, a partir de agricultores familiares, como alternativa ao sistema bancário e aos cooperativismos de crédito e agropecuário tradicionais. Ambos dão mostras do que pode representar a democratização do acesso ao crédito neste país. Há várias iniciativas relativamente pequenas, comunitárias, de geração de trabalho e renda em muitas localidades do Brasil. São em grande parte informais e consideradas pré-cooperativas. Projetos comunitários de confecção de roupas, artesanato, coleta seletiva e reciclagem de lixo, entre outras atividades, são tema de três capítulos desta coletânea. Redes e fóruns de empreendimentos comunitários que recebem apoio de igrejas, universidades, ONGs, sindicatos, órgãos públicos, foram analisadas em pesquisas no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A entidade que se destaca nesse trabalho de apoio a projetos comunitários no Brasil é a Cáritas, da Igreja católica, que só no Rio Grande do Sul, desde o início da década de 1980, já constituiu 750 projetos, envolvendo cerca de 17 mil pessoas. Os clubes de troca são outra novidade no cenário brasileiro. Existentes já há algum tempo em países da Europa, da América do Norte e na 9 vizinha Argentina, essas organizações de troca e crédito mútuos, com “moeda” própria, representam alternativa de produção e comercialização para microprodutores. Os autores contam a experiência do Clube de Trocas de São Paulo, mas há similares no Rio de Janeiro. A tendência é espalharem-se pelo país. Outra alternativa de organização econômica é tratada no texto de Otávio Urquiza Chaves, sobre a cooperativa de trabalho da qual faz parte e que se relaciona com cooperativas de habitação do Rio Grande do Sul e um banco cooperativo de crédito da região metropolitana de Porto Alegre. Na última parte do livro são apresentadas duas experiências de organização econômica, balizadas por princípios éticos e que tomam forma de movimento internacional. Uma é a Aliança por um Mundo Responsável e Solidário, articulada no Brasil, pelo Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), uma organização não-governamental que também se empenha na implementação do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro. O PACS vem promovendo discussões sobre alternativas econômicas desde sua criação em 1986. A outra experiência é a Economia de Comunhão, nascida em 1991 no interior do movimento católico Focolares que, no Brasil, se propaga a partir de uma comunidade chamada Mariápolis Araceli, no município de Vargem Grande Paulista. A Economia de Comunhão promove a distribuição dos lucros gerados pelas empresas filiadas, proporcionando distribuição de renda e um trabalho de assistência social. Segundo Márcia Baraúna Pinheiro, há no momento dez empresas ligadas ao movimento no país, contando com cerca de trezentos trabalhadores ao todo. Este é apenas um retrato da economia solidária neste momento. São organizações em expansão e desenvolvimento. Essas iniciativas parecem ser transformadoras de mentalidades. Os relatos indicam que nos empreendimentos solidários vêm ocorrendo outros ganhos, diferentes do econômico em si, tais como auto-estima, identificação com o trabalho e com o grupo produtivo, companheirismo, além de uma noção crescente de autonomia e de direitos cidadãos. De forma educadora essas iniciativas vêm apontando sinais de uma sociedade baseada na democracia jurídica e econômica, numa palavra, socialista. NOTA 1 Representa cerca de 0,5% do total de trabalhadores ocupados, de acordo com a estimativa da população ocupada do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 10