Dissertação de Felipe Chaves - Faculdade Nacional de Direito

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS
FACULDADE NACIONAL DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
PIXOTES E FALCÕES, MENINOS E PIVETES: OBSERVANDO O DIREITO POR
MEIO DO CINEMA
Por
Felipe Chaves Pereira
Linha de Pesquisa: Direitos Humanos, Sociedade e Arte
Professora Orientadora: Juliana Neuenschwander Magalhães
RIO DE JANEIRO
2012
FELIPE CHAVES PEREIRA
PIXOTES E FALCÕES, MENINOS E PIVETES: observando o direito por meio do
cinema
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Direito da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, requisito
necessário e parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Direito.
Linha de Pesquisa: Direitos Humanos, Sociedade e Arte
Professora Orientadora: Juliana Neuenschwander Magalhães
RIO DE JANEIRO
2012
Pereira, Felipe Chaves
Pixotes e Falcões, meninos e pivetes: observando o direito por meio do
cinema / Felipe Chaves Pereira. – 2012.
110 f.
Orientadora: Dra. Juliana Neuenschwander Magalhães
Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Programa de Pós-Graduação em Direito.
Bibliografia: f. 105-110.
1. Teoria do direito – Dissertações. 2. Direito. 3. Cinema. 4. Infância e adolescência. I.
Neuenschwander Magalhães, Juliana. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas. Programa de Pós-Graduação em Direito.
III. Título.
CDD 342.17
FELIPE CHAVES PEREIRA
PIXOTES E FALCÕES, MENINOS E PIVETES: observando o direito por meio do
cinema
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Direito da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, requisito
necessário e parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Direito.
Rio de Janeiro. Data da aprovação: 28/03/2012.
Banca examinadora:
Professora Dra. Juliana Neuenschwander Magalhães
(PPGD-UFRJ)
Professor Dr. Ricardo Nery Falbo
(UERJ)
Professora Dra. Hebe Signorini Gonçalves
(IP-UFRJ)
A Leiliane, minha flor Lili, companheira
aguerrida e apaixonante.
A Aurea, cuja perseverança e alegria de
viver sempre me farão refletir e querer ir
avante.
A Daniel, aquele que no silêncio (ou
turbilhão) de minha alma, acompanha-me
e torce por mim a cada dia em mais uma
conquista.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha linda e atual noiva, em breve, muito breve, esposa, por
compartilhar de meus momentos de desânimo e por, neles, ajudar a resfolegar.
Agradeço, igualmente, à minha mãe, Aurea, que na paciência de mãe sempre foi um
importante ouvido!
À Nádia Pires, minha caríssima coleguinha de mestrado, fiel companheira de
conversas longas luhmannianas e de longos rosários ao telefone. Também agradeço
ao Luiz e à Anícia, marido e filha da Nádia, por cederem a orelha dessa grande
amiga.
Aos coleguinhas de grupo de pesquisa, dos que nomeio, principalmente, a
Carol, pelos momentos de partilha e pelo afobamento sempre constante, que me
deixaram ver que sempre alguém estava mais pilhado do que eu!
Aos meus caros professores, Luiz Eduardo Figueira, por ter me descortinado
o mundo da metodologia do trabalho de campo e da extensão na UFRJ, que me
apresentou à Hebe Signorini Gonçalves, uma incrível professora que desenvolve um
belo trabalho de extensão junto ao DEGASE, onde não pude me engajar pelo tempo
desejado, mas em que minhas tardes de segunda que puderam ser dedicadas a
este evento foram enriquecedoras. Também à Juliana Neuenschwander Magalhães,
pela orientação e motivação para o término da pesquisa. Não posso deixar de
mencionar a minha querida professora por honra e mérito, Vivien Campos de
Albuquerque, ex-chefa de estágio e colega de experiências de vida riquíssimas, meu
sincero agradecimento.
Aos colegas e estagiários do NIAC, projeto de extensão que me fez abrir os
olhos para a vivência e pesquisa-ação, e todos os problemas que estão ali
envolvidos.
A todos os que compartilharam comigo momentos de trabalho e angústia pela
finalização desta pesquisa.
Aos amigos, nomeio alguns: Cris, Sylvia, Jorge, pela disposição de conversar,
quando possível, sobre nossas angústias e felicidades, as dores e as delícias de ser
um mestrando no PPGD/UFRJ.
Agradeço à UFRJ e ao CNPq, que me ofereceram bolsa de estudo que
permitiram a conclusão e o desenvolvimento deste trabalho.
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
(Eugénio de Andrade)
Disponível em
<http://www.astormentas.com/andrade.htm>
RESUMO
PEREIRA, Felipe Chaves. Pixotes e Falcões, meninos e pivetes: observando o
direito por meio do cinema. 110 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2012.
Tendo em vista a perceptível prevalência na sociedade contemporânea da imagem
como forma de comunicação, a presente proposta se embasará em filmes para
observar “adolescentes em conflito com a lei” em situação de internação. Tal
observação se torna possível mediante uma abordagem teórica que articula, desde
uma matriz sociológica, o direito e a arte como sistemas sociais. A partir de filmes
como Pixote: a lei do mais fraco (1981) e Falcão: meninos do tráfico (2006), que
tratam especificamente do tema da “adolescência em conflito com a lei”, buscar-se-á
observar as fricções entre cinema-e-direito para a oferta de novos sentidos, novas
oportunidades de visualizar e ressignificar os conceitos já cristalizados no âmbito
operacional do direito, como a noção dos direitos humanos. Buscar-se-á identificar e
refletir, desnaturalizando o quanto possível, tais categorias, cotejando as imagens
veiculadas nos filmes com as reflexões da teoria do direito. Especial atenção será
dada à noção de “direitos humanos”, expressão frequentemente mobilizada para
uma leitura contextualmente “adequada” do Estatuto da Criança e do Adolescente e
que, precisamente por isto, é capaz de traduzir os paradoxos que decorrem de sua
aplicação.
ABSTRACT
PEREIRA, Felipe Chaves. Pixotes e Falcões, meninos e pivetes: observando o
direito por meio do cinema. 110 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2012.
Apparently is prevalent the image in contemporary society as a means of
communication. This proposal will be based on movies that watch "adolescents in
conflict with the law" in the situation of a “prisoner”. This observation is made
possible by a theoretical approach that articulates from a sociological matrix, law and
art as social systems. From movies like Pixote: a lei do mais fraco (1981) and Falcão:
meninos do tráfico (2006), dealing specifically with the theme of "youth in conflict with
the law", we will seek to observe the friction between film-and-law for the supply of
new directions, new opportunities to view and reframe the concepts already
crystallized operating within the law, as like as the notion of human rights. The
search will identify and reflect, denaturalize everything is possible, such categories,
comparing the images conveyed in the films with the reflections of the jurisprudence.
Special attention will be given to the notion of "human rights", often mobilized to read
contextually "appropriate" the Estatuto da Criança e do Adolescente, and that,
precisely because it is able to translate the paradoxes that arise from its application.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
8
1 DIREITO E ARTE: OBSERVANDO UM ACOPLAMENTO
20
1.1 Um novo começo teórico
21
1.2 O Direito como sistema da comunicação
24
1.3 A Arte como sistema social
27
1.3.1 Estreando: o cinema
31
1.4 Direito e cinema: de olho no acoplamento
37
1.5 Sensibilização das auto-observações do Direito
43
2 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: MUDANÇA?
45
2.1 No início, o “menor”
47
2.2 O paradigma dos Direitos Humanos e o Estatuto da Criança e do
Adolescente: do “menor infrator” ao “adolescente em conflito com a lei” 59
2.2.1 Na transição, operações são feitas...
63
2.3 Mirando um Estatuto futuro, acertando uma legislação passada: o
paradoxo do Estatuto da Criança e do Adolescente
66
3 O DIREITO VISTO NO CINEMA
69
3.1 Apontamentos para observar
70
3.1.1 Agora, a lente com a qual se observa
73
3.2 Observando Pixote... e um pouco mais
75
3.3 No caleidoscópio, Falcão: meninos do tráfico (2006)
80
3.4 Observando paradoxos e o que o direito pode aprender com o cinema:
ativando percepções e auto-observações
82
3.4.1 A operação e os paradoxos: acionando o Estatuto
90
CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
REFERÊNCIAS
105
INTRODUÇÃO
O alvo deste estudo será o grupo dos adolescentes que são internados,
aqueles que foram retirados do convívio familiar/social amplo e foram recolhidos a
educandários para cumprimento de medida socioeducativa1 de internação. Esses
adolescentes que são, por muitos, despidos de qualquer outro papel que não seja
aquele voltado para atuação criminosa, situação que expresso no título deste
trabalho, não sem um quê de ironia. Com a promulgação do Estatuto da Criança e
do Adolescente2, em 1990, aparece a terminologia “adolescente em conflito com a
lei”, trazendo consigo a marca de uma nova forma do sistema jurídico observar a
infância e adolescência. A doutrina da proteção integral, paradigma da nova
legislação3, deixou um espectro de expectativas igualmente novas. Trata-se de um
conjunto de ideias e atitudes que visam, não mais perceber o adolescente como em
situação irregular, mas colocar a irregularidade sobre a sociedade e o Estado,
tratando de pensar o adolescente como pessoa importante a desempenhar vários
papéis na sociedade.
Por mais que alguns autores da dogmática jurídica busquem se colocar como
“críticos” em relação ao que tradicionalmente é produzido, não se encontra a
reflexividade que, às vezes, é anunciada nos títulos, como por exemplo na obra
Introdução crítica ao ato infracional (ROSA, 2007). Noutras obras, acredita-se fazer
um trabalho interdisciplinar ou qualificá-lo através deste rótulo (MACIEL, 2006;
SILVA PEREIRA, 1996), no entanto, não se vê mais do que o mesmo.
Na busca de alternativas teóricas, assim como não seria satisfatória uma
abordagem dogmática da questão, também uma visão inter- ou transdisciplinar
1
Medidas socioeducativas são aquelas impostas aos adolescentes (faixa etária de 12 a 18 anos)
para que se responsabilizem e se ressocializem, tendo como motivo da internação um ato infracional,
crime praticado por esses indivíduos que, pela lei, merecem tratamento diferenciado dos adultos.
2
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma legislação federal (lei n. 8.069/90) que visa dar
proteção integral a crianças e adolescentes, tratando por criança aqueles indivíduos com menos de
12 anos completos e por adolescentes aqueles na faixa de 12 a 18 anos (arts. 1º, 2º e 3º). Essa
divisão legislativa será aproveitada neste trabalho para garantir a operatividade do termo
“adolescente em conflito com a lei” que se pretende observar.
3
Esta nova possibilidade já é trazida através da Constituição de 1988 (art. 227), que afirma ser dever
de todos garantir e assegurar aos jovens que seus direitos fundamentais, por exemplo, sejam
efetivados.
9
poderia acarretar reducionismos exagerados aos olhos deste pesquisador. Na busca
de um caminho alternativo para a observação de tais questões, de um olhar capaz
de capturar a sutileza da gama de problemas, de naturezas distintas, que subjazem
a tais questões, abracei a possibilidade de acessar o tema pela via não mais
interdisciplinar, mas eu diria mesmo “pós-disciplinar”, do cinema4 Não utilizarei nesta
introdução muitos textos de Luhmann, base teórica sobre a qual se ergueu o
desenvolvimento deste trabalho, em razão de sua densidade e necessidade de
explicitações prévias, o que imporia uma introdução deveras longa. Uso da
estratégia dos que, porventura, leram o autor alemão e de alguma forma
trabalharam em algum modo aproximado.
Vivemos num mundo de ilusões, ilusões que, como os iogurtes, têm
prazo de validade e que, se comidas depois de vencidas, deixam de
ser nutrientes e as ideias da Modernidade estão todas vencidas e
são intoxicantes. São ilusões que se transforam em lugares-comuns.
Agora, a função do intelectual parece-me ser a de ajudar as pessoas
a renovar as ilusões [...] (WARAT in NEUENSCHWANDER
MAGALHÃES et al., 2009)
Esta escolha tem sua justificativa, também, na minha trajetória acadêmica na
Faculdade Nacional de Direito, dado meu envolvimento, desde 2008, nas atividades
do Grupo de Pesquisa Direito e Cinema da UFRJ5 na graduação e na pósgraduação, acessar por esta via este tema/problema.
Em suas pesquisas, para além das formas já tradicionais de se trabalhar
Direito e Cinema, quase sempre focadas no cinema como um meio útil ao ensino do
direito, buscou-se explorar de forma radical as possibilidades de compreensão do
fenômeno jurídico no contexto de uma sociedade na qual a comunicação se dá. em
larguíssima escala, na forma de imagens.
Tratando, então, de observar a sociedade a partir de novas tendências,
constatáveis na contemporaneidade, é possível perceber que a imagem tem
assumido um imenso campo de significação e de poder de generalização de
significados. Basta identificar, por exemplo, a vastíssima produção televisiva em
4
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana. A Reconstrução do Saber Jurídico na
Contemporaneidade da Aproximação entre os Povos.Para além da interdisciplinaridade: a
perspectiva Direito e Arte no Ensino Jurídico. 2010. (Seminário).
5
O Grupo de Pesquisa Direito e Cinema foi instituído na FND/Ufrj em 2005 sob a Coordenação da
Professora Juliana Neuenschwander Magalhães. Originalmente, participou do grupo, coordenando de
forma adjunta a pesquisa “Representações do Direito sob a Ditadura no Cinema” o professor Rainer
Maria Kiesow, do Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu.
10
programas dos mais variados formatos, além do visível aumento da quantidade (e
qualidade – duvidosa?) de produção cinematográfica dentro das fronteiras
brasileiras que observa, de algum modo, o direito (PIRES, 2008).
As abordagens do direito, de uma maneira geral, têm descuidado deste
importante aspecto do sistema jurídico – o fato de que suas operações dão-se,
também, por meio de imagens. Quando o interesse se volta para esse aspecto o que
se tem discutido é a influência da mídia ou os aspectos pedagógicos.
No âmbito desta primeira delimitação da observação que se dá na pesquisa,
em razão do marco normativo que se escolhe – Estatuto – e da forma de abordagem
escolhida – sociologia jurídica – faz-se importante mencionar uma distinção:
juventude infratora e adolescência em conflito com a lei.
A tradição da disciplina sociológica exigiria que o tratamento dado à questão
estudada (internação de adolescentes por seu conflito com a lei) se dirigisse para a
categoria ampliadora “juventude infratora”, uma vez que o nicho social que recebe o
influxo de julgamentos baseados na normatividade específica aos adolescentes e
crianças, por vezes, são mais alargados. Não é incomum a explicação de que até os
21 anos é possível o cumprimento de medida socioeducativa (LYRA, 2010).
Contudo, a opção levada a cabo nesta pesquisa vai noutro caminho. A
normatividade do texto legal se torna importante na medida mesma destas opções.
Não serei o primeiro a optar por tratar a questão-mote do trabalho sob o foco do
termo legal “adolescente em conflito com a lei” (MISSE in PAIVA & SENTO-SÉ,
2007). Os autores que pude levantar e observar na pesquisa, em sua maioria,
trabalham mais com a operacionalidade que proporciona o Estatuto da Criança e do
Adolescente ao definir arbitrariamente o que é criança, o que é adolescente, do que
com uma forma de buscarem a desnaturalização da adolescência.
Isso, porém, não impõe uma “crise de identidade” ao texto: fala-se sociológica
ou dogmaticamente? A resposta a esta pergunta vem com a mobilização do marco
teórico escolhido, que permite a realização constante do exercício da observação
das observações feitas pelos sistemas que se olham6. Contudo, por interesse e
desejo do pesquisador, o presente trabalho não oferece um texto linear, totalmente
enquadrado nos moldes acadêmicos. Busco fazer uma variação sutil, com testes
6
Acredito que este simples, e lúdico, jogo de palavras ficará mais claro e complexo ao desenvolver a
tese de pesquisa e com os conceitos que serão trazidos a seguir.
11
epistemológicos dissolvidos por todo o trabalho. Isso, toda, espero, não deve atrair
para o texto uma sensação de inutilidade, mas sim de infinito.
Quando, pelo período de 2005 a 2008, pude observar atores judiciários em
suas lidas diárias com adolescentes em conflito com a lei7, percebi que eles
acreditavam que os adolescentes demandavam mais proteção do que segregação,
mas o “discurso acadêmico-dogmático” era diferente da atuação judiciária. Seguiase o passo da mesma justificativa que ensurdecia os Juízes de Menores em sua
atuação benéfica aos “menores em situação irregular” (RIZZINI, 2008). Tem-se aqui
o descolamento entre o discurso e a prática que caracteriza o nosso problema de
pesquisa.
Havia, definitivamente, a criação de distinção de poder embebida de uma
suposta moralidade jurídica bastante segregacionista e suficiente para ser para
todos aspergida. Mas tais atitudes dependiam de certas opções de seletividade: cor
ou estrutura familiar em que se inseria o adolescente8 eram as mais repetidas, além
da situação de pobreza. Apontava-se, então, o indício da construção do
“adolescente em conflito com a lei” como sendo aquele muitas vezes apreendido
pela Polícia, levado ao Ministério Público para averiguações/explicações, aquele que
está trilhando a escola do crime.
Ali, comecei a poder realizar observações do modo de agir dos envolvidos na
rotina do adolescente em conflito com a lei. Em contrapartida, no ano de 2011, já
engajado em atividade de pesquisa, pude realizar observações atentas, mas
descontínuas, da atividade judiciária da internação no Rio de Janeiro, no DEGASE –
Departamento Geral de Ações Socioeducativas9. Pois isso sinalizou para o fato de
7
O interesse por tal tema surgiu durante o período de 2005 a 2008, quando trabalhei como servidor
público estadual do Ministério Público de Minas Gerais, onde estive junto da orientação dos
Conselhos Tutelares da Comarca de Matias Barbosa, atuando por delegação oficiosa da Promotora
de Justiça local. Nesse espaço de tempo, pude observar o discurso – vazio – da “especificidade” da
atuação jurisdicional, exclusivamente dogmático, e o descompasso com as práticas que adotavam
em assuntos de criança e adolescente.
8
Há que se lembrar que, dogmaticamente, uma criança (categoria definida através da faixa etária, até
12 anos o sujeito é enquadrado aqui) quando comete prática identificada como ato infracional não
pode sofrer sanção na forma de “medida sócio-educativa” (cabíveis aos adolescentes – 12 a 18
anos), mas sua restrição é uma “medida específica de proteção”, mais branda, não podendo haver
internação, por exemplo – art. 2º e art. 105, Lei n. 8.069/1990.
9
Tratarei, indistintamente, as escolas de internação do DEGASE como parte da organização
judiciária, mesmo sabendo que no Rio de Janeiro, este órgão está vinculado à Secretaria de
Educação. Faço isso deixando antever alguns dos problemas que enfrentarei na pesquisa.
12
que a mudança instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente não fora
antecedida por uma mudança profunda das comunicações que envolvam este tema.
Pela pesquisa, notei que os textos do campo do direito que trabalhavam a
temática do “adolescente em conflito com a lei” eram muito insuficientes. A
naturalização da categoria pela doutrina (SILVA PEREIRA, 1996; MACIEL, 2006),
atitude constantemente repetida, retira dela seu potencial reflexivo e impõe
dificuldades de observar paradoxos. Em levantamentos de outras áreas do
conhecimento, como alguns textos de antropologia e sociologia, o mesmo problema:
falta de reflexão sobre o conceito do adolescente em situação de conflito com a lei
cumprindo medida socioeducativa de internação (SCHUCH, 2009; MISSE in PAIVA
& SENTO-SÉ, 2007). Nestes, acrescentaria uma dificuldade: um enorme legalismo
no trato com o assunto, uma vez que buscam comunicações jurídicas
exclusivamente na lei.
Nesse caminho, refletir sobre o “adolescente em conflito com a lei” em
cumprimento de medida socioeducativa de internação pareceu ser um campo pouco
explorado, muito rico e instigante, sobretudo para alguém disposto a explorar novas
formas de acesso aos problemas jurídicos. Isso, claro, sem renunciar à possibilidade
de aprender com as contribuições e insuficiências dos textos já produzidos.
Passando para uma observação da operação do sistema do direito, tem-se
que a terminologia “adolescente em conflito com a lei”, ao menos no que se refere
àqueles que cumprem medida socioeducativa de internação, demanda a mesma
forma de operar que o ramo do direito penal, por exemplo, efetivando uma
discriminação legitimada pelo direito, com os mesmos subterfúgios. O discurso
comum da educação a ser conferida para os adolescentes, muitas vezes, não está
em consonância com a estrutura física das instituições de internação, para apontar o
menor descompasso até agora rastreado.
A combinação legislativa no Estatuto da Criança e do Adolescente de
proteção e segregação soa muito interessante à pesquisa. Isso porque permite
antever a confusão do discurso dos direitos humanos que aparece constantemente
no discurso legislativo e dos seus explicadores. Tal discurso parece blindar o
sistema do direito no que tange à temática do adolescente para não receber críticas
sobre os desvios e exageros ocorridos nas instituições de internação.
Essa blindagem, no entanto, não é necessária todo o tempo. Seu
acionamento ocorre quando se constata o descompasso entre a informação
13
produzida desde a leitura do texto normativo do Estatuto da Criança e do
Adolescente e a observação das organizações de internação (que pode ser
produzida, como se pretende, através de imagens de filmes ou de maneira direta,
nos educandários).
Nesse caminho, de modo a articular a noção de direitos humanos à legislação
“protetiva e preocupada com os direitos humanos” – como diz a dogmática da
criança e do adolescente – aparece o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.
8.069/90). Por detrás dos propósitos10 que ensejaram o Estatuto, escondem-se
paradoxos, como o fato de impor uma noção vazia de direitos humanos perseguindo
a realização completa de seu conteúdo, sendo que, a cada instante de
aplicação/interpretação, uma nova produção de sentidos do que seja direitos
humanos está sendo produzida.
Apesar das produções textuais constantemente chamarem a atenção para a
naturalização de conceitos e buscarem essa reflexão, não se vê muitos trabalhos de
peso sobre a problematização do “adolescente em conflito com a lei”.
Tal reflexão sinaliza para um descompasso entre a forma de produção de
significados que a lei assume e a forma de produzir distinções que a prática da
organização judiciária apresenta. Este conceito mostra o quanto ainda é viva a
tradição da “doutrina da situação irregular” do Código de Menores (1979) na
atualização social da prática da internação (disciplinada ali e também, mas de
maneira diferente, na Lei n. 8.069 de 1990).
Isso pode ser observado mediante as distinções entre o que está na
legislação e o que as imagens mostram, confrontando-as, trabalhando com as
fricções direito-e-cinema, mas sem pretender o tom de denuncismo (embora,
eventualmente, isso possa ocorrer).
Com a mobilização de conceitos de Niklas Luhmann na pesquisa, será
produzido um deslocamento da observação exclusivamente dogmática do Estatuto
da Criança e do Adolescente para a possibilidade de observar e iluminar paradoxos.
10
Considere-se que o Brasil vinha de uma recente discussão ampla com a Assembleia Constituinte.
Ademais, o governo estava transitando de uma ditadura militar para uma democracia, ainda tímida,
mas que alardeava suas benesses e possibilidades de exposição de ideias. Nesse contexto, a
aprovação da Lei n. 8.069/1990 foi celebrada junto de uma grande participação de movimentos
associativos (podemos citar o protagonismo, por exemplo, do Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua). Além disso, somou-se a comemoração por ter, finalmente, o Brasil realizado uma
mudança significativa de tratamento dos direitos fundamentais, acercando-se da normativa
internacional de proteção a direitos humanos. Notícias como essa podem ser encontradas no sítio:
<www.promenino.org.br>.
14
Para isso, o pensamento produzido aqui se voltará para o sistema do direito, tendo
como ferramenta de observação, a arte através de seu meio cinema. Especial
atenção será conferida à reflexividade: um sistema opera uma observação da
operação de reconstrução de sentidos e estruturas, o que chamaremos de
observação de segunda ordem (LUHMANN, 2009).
Para atingir esta ambiciosa meta, a observação que motivará a pesquisa será
a do Estatuto, em especial a situação dos “adolescentes em conflito com a lei” e sua
potencial segregação social por meio de medida socioeducativa de internação. isto,
somente, não bastaria para oferecer uma perspectiva que inove na produção do
conhecimento. Acreditando, então, na possibilidade de articulação e fricção de
sistemas bastante distintos, como direito e arte, buscarei explorar as possibilidades
de “irritação” entre direito e cinema.
Através das fricções que podem ocorrer – e acredito que ocorram – entre
esses sistemas, será buscado trazer à luz construções de sentidos generalizados na
sociedade sobre os adolescentes, bem como sobre a importante categoria dos
direitos humanos, que merece destaque ao longo da pesquisa – em especial no
capítulo final. Quando iluminadas tais construções, acredito que se deixarão ver,
num átimo, como paradoxos que são. Esta visão é constantemente obscurecida
pelas operações (necessárias) dos sistemas. Mas num momento de produção de
conhecimento e de reflexividade do sistema jurídico, faz-se de extrema importância
lançar luz aos paradoxos do direito.
Observando a arte cinematográfica, por exemplo, e aproveitando, no direito,
os novos sentidos que poderão daí advir, acredita-se que o sistema do direito vem
se impregnando pela imagem, como quando se permite irritar pelo sistema da arte como ficou bastante explícito nos Seminários Internacionais Direito e Cinema
promovidos na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ11.
Mesmo propondo uma re-visão do direito através dos sentidos que a arte
pode produzir, deve ser ressaltado que compreender o direito a partir da mídia, esta
última usurpando funções do sistema do direito, e.g., parece reducionista, por supor
determinação do direito pela mídia. Isso não parece razoável, pois o direito, tal como
11
Esses seminários são organizados pelos integrantes do Grupo de Pesquisa Direito e Cinema da
UFRJ, com registro no diretório de grupos do CNPq, obtendo recursos de diversas fontes para
convidar professores do Brasil e de outros países para proferir comunicações tendo como mote filmes
variados, abordando, anualmente, temas distintos. Na última versão do seminário, sexta edição, o
evento contou com discussão sobre Igualdade, Liberdade e Fraternidade (2011).
15
o vemos, é um sistema social diferenciado pela função que opera, restando apenas
a ele dizer o que é ou não é direito. Nessa operação, o sistema pode produzir
distinções com um “plus” para a própria adaptação ao ambiente, sem, contudo, o
assimilarem diretamente (ou seja, tudo aquilo que o sistema vê no ambiente é
traduzido pelo código do sistema).
Nesse passo, se rechaçamos a opção de manipulação midiática do direito se
dá porque a função desempenhada pelo direito é a estabilizar expectativas
normativas e, desta forma, estabelecer vínculos com o futuro (DE GIORGI, 1998).
Esta função não pode ser usurpada por outro sistema, ou então ocorreria aquilo que,
na linguagem da teoria dos sistemas, chama-se “desdiferenciação”. Isso significa
que só o direito é capaz de dizer o que é o direito e o que não é direito, de um lado,
e, de outro, que tudo aquilo que o direito pode fazer é constituir essa modalidade de
vínculo com o futuro. Outra coisa é reconhecer que a produção do direito, ou os
meios pelos quais o direito produz a si mesmo, não se esgotam naquilo que a
doutrina jurídica chamou de “fontes do direito”. O direito pode produzir comunicação
(por que não?) também por outros meios (como a literatura ou o cinema, por
exemplo) sem, com isso, deixar de ser direito: é a referência de uma comunicação à
outra comunicação, na cadeia da produção comunicativa do sentido jurídico, aquilo
que é decisivo para o estabelecimento da diferença entre o jurídico e o não-jurídico.
Partindo desta preocupação primeira em explorar as possibilidades teóricas
de se levar em conta, de maneira rigorosa, as comunicações imagéticas do direito e
sobre o direito é que delimitamos, no vasto território dos problemas jurídicos que
julgo socialmente relevantes para fins de investigação, o objeto desta pesquisa.
Trata-se do tema/problema “adolescente em conflito com a lei”. A articulação teórica
que se desenvolve tem por base a sociologia de matriz luhmanniana, uma
ferramenta importante para fazer esta articulação direito-e-arte, e dela extrair ganhos
de complexidade para a descrição a ser feita.
Sendo assim, o presente trabalho partirá da assunção de que a realidade
social pode ser compreendida como um sistema que produz comunicação. Neste
passo, não me deterei longamente sobre outros sistemas que produzem sentido,
mas que não produzem comunicação, como os sistemas de consciência.
Interessam-nos os sistemas do direito e da arte, como integrantes da comunicação
social.
16
O sistema do direito, como tratado aqui, é visto como uma distinção que se
atualiza desde o código direito/não-direito, um sistema que comunica sob este
código.
Como qualquer outro sistema, sua delimitação constante está intimamente
imbricada com o ambiente, seu entorno. Falando especificamente do sistema do
direito, a cada vez que a distinção é atualizada, que se marca o que é direito, o
ambiente se recria através do não-direito. E essa distinção, constantemente repetida
no âmbito das operações, é feita com base nos próprios elementos de significação
que o direito constrói para si (autopoiese).
Também a arte será aqui tratada como um sistema social12, capaz de “ver o
mundo no mundo” e de operar, portanto, sob um esquema de dupla expectativa (o
que o artista espera que o observador projetará como sua contribuição para a
produção de sentidos da obra). E esse mecanismo é reincorporado na própria
operação criadora da arte, ainda sob um olhar de primeira ordem (operação interna
do próprio sistema) cuja expressão se dá na obra (LUHMANN, 2005a, pp. 130-140).
Note-se que o espectador da arte (sistema observador, que pode ser o que
opera em nível de consciência, sistema psíquico), como aqui encarado, não é mero
complementador de lacunas que o artista deixa, intencionalmente, constar da obra
de arte. Ocorre verdadeira cooperação para a criação de sentidos dentro do sistema
da arte. Os espaços não marcados13 na obra, que poderão ser observados pelo
espectador, e por ele preenchidos, indicam em boa medida a construção social de
sentidos (LUHMANN, 2005a, pp. 117-138).
Cabe, no entanto, alertar que não há interesse naquela observação que se
encerra na mente do observador, mas sim na distinção que será operacionalizada
pelo observador frente à obra de arte e por ele será veiculada, comunicada. Isso
possibilita
uma
maior
NEUENSCHWANDER
“sensibilização
MAGALHÃES,
2008),
do
direito”
ensejando
(WARAT,
complexificação
2004;
das
operações do sistema.
12
O trabalho com a arte cinematográfica não será de crítica artística, mas um meio para a
persecução do objetivo: observar a produção do “adolescente em conflito com a lei” e os ganhos que
podem, então, surgir para o sistema do direito, na medida em que se reflete sobre o que está oculto à
operação jurídica, quando visto pela lente artística.
13
Nos textos de Luhmann, há várias referências à obra de Spencer Brown, Laws of form, que utiliza a
terminologia “unmarked space” para apontar o lado negativo da forma apresentada, aquilo que não
pode ser imediatamente visto.
17
A categoria do observador não está necessariamente implicada à noção de
sujeito ou de indivíduo. O sistema do direito pode ser observador do sistema da arte
(e com isso pretende-se trabalhar). Através dessa ligação, acredita-se que haverá
ganhos de complexidade suficientes para permitir uma releitura do direito,
importando em revisões de categorias e reflexões autoproduzidas, razão pela qual a
matriz teórico-sistêmica é tão importante.
Em vista disso, é possível identificar no operar também do observador da arte
a realização de distinções. Uma obra de arte expressa a comunicação cujo início se
deu com o artista, mas para completar o ciclo da comunicação, depende de
seleções do intérprete. Ela recorta de um universo de possibilidades uma seleção,
que fixa na obra, mas, aquilo que é positivamente apresentado esconde as
possibilidades que deixou de lado. A indicação de que há uma comunicação fixada
pela arte em uma obra revela um lado, mas expressa também o indizível, o
puramente sensível, ao ocultá-lo. É nesse espaço que se acredita haver importantes
distinções a serem construídas.
Nessa esteira, seria possível complexificar e, mesmo, desnaturalizar, em
alguma medida, a categoria “adolescentes em conflito com a lei” (observada através
da comunicação imagética do meio cinema, vinculadora e veiculadora de distinções
construtivas), ressignificada agora pelo direito (notadamente infundida pelos direitos
humanos) e lançar luz a paradoxos que operam no sistema do direito (PIRES, 2008).
A arte será utilizada com instrumento hábil a promover auxílio à observação
de segunda ordem que se pretende levar a cabo na pesquisa. Mesmo quando a arte
opera (observação de 1ª ordem), ela o faz sobre os eventos ocorridos no mundo,
observando-os e produzindo, a partir deles, uma ressignificação posta numa obra
(forma). Contudo, ao ressignificar, a arte não pretende enquadrar, ou melhor,
encaixar um evento dentro de uma forma encerrada. A pretensão da arte é mostrar o
mundo ao mundo, estando no mundo. E, neste sentido, o meio da comunicação
cinema, interpretado pela pesquisa, buscará produzir distinções acerca da categoria
“adolescente em conflito com a lei” em situação de internação, para usar o termo
como manejado hodiernamente e produzirá observações mais claras sobre os
direitos humanos envolvidos no direito da criança e do adolescente.
Com tal inserção de novidades dentro do âmbito do sistema, acredita-se que
será
viável a
observação
do
direito preenchendo algumas
lacunas
que
18
permaneceram abertas no caminho do operar jurídico, suprindo alguns pontos cegos
e, claro, criando outros.
Pois que ao explicitar o que se passa aqui, intento trazer questionamentos a
uma semântica cuja mobilização é constante na modernidade: direitos humanos.
Esta temática serve aqui como mote de comunicação, não é o seu fim. Busco,
finalisticamente, se é que isso seria razoável, comunicar sobre direitos da criança e
do adolescente.
A pesquisa utilizará o método indutivo, apoiado na pesquisa bibliográfica e
filmográfica. Pesquisada literatura jurídico-dogmática acerca do Direito da Criança e
do Adolescente, além de fontes não jurídicas que abordam o nosso tema-problema
(obras, teses e dissertações de Psicologia, Serviço Social, Sociologia e
Antropologia), foi usado o resultado para basear as observações. Foi, ainda,
realizado levantamento de filmes que abordaram as questões dos adolescentes em
conflito com a lei, e em especial, aqueles em situação de internação. Para tal
levantamento, tomou-se como referência o ano de 1990, selecionando filmes tanto
anteriores quanto posteriores ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que foram
comparativamente analisados. A recuperação dos filmes foi possível através da
ferramenta de busca da “Cinemateca Brasileira” (www.cinemateca.com.br). Fez-se
aqui um recorte qualitativo de produções, todas brasileiras.
Através do que se pôde observar de reverberação nos grandes meios de
comunicação de massa (jornais, telejornais etc.), por exemplo, preferiu-se utilizar um
filme que trata do assunto do “adolescente em conflito com a lei” de antes da
mudança que o Estatuto da Criança e do Adolescente propiciou e depois, para tentar
verificar as mudanças e ressignificações, outro filme foi escolhido.
Rastreou-se como filme bastante debatido a tratar da temática do “menor
infrator” em 1981, Pixote – a lei do mais fraco, sob a direção de Hector Babenco.14
Esse é um dos filmes com o qual se trabalha. Para a atualização da documentação
dos
adolescentes
internos,
procurou-se
outro
filme,
igualmente
bem
recebido/comentado pela crítica cinematográfica e pela grande mídia: Falcão:
meninos do tráfico, filme de 2006, produzido por Celso Atahyde, MV Bill e Central
Única das Favelas – CUFA.
14
O filme fez um grande sucesso de público e crítica, principalmente, considerando a novidade do
tema da comunicação, ganhando, entre outros prêmios, o Globo de Ouro (1982).
19
A união da análise dos filmes com a observação do direito seguiu parâmetros
abordados no capítulo primeiro. Ali, faço uma breve apresentação de conceitos da
Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, base teórica sobre a qual se erguerão as
observações desenvolvidas. Justificando a assunção de recortes imagéticodiscursivos dos filmes, trago a contribuição de Gilles Deleuze, que permite um
tratamento teórico, com sua semiótica do cinema, às imagens e recortes de planossequência escolhidos pelo estudioso.
No capítulo 2, apresento mais marcadamente as balizas normativas que
permeiam a observação da pesquisa, mostrando mais de perto as expectativas
normativas que se baseavam no Código de Menores (1979) e no Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990).
O terceiro e último capítulo visa construir a observação dos paradoxos através
da análise da relação direito e cinema pensada, agora, de maneira mais concreta.
Neste momento, a observação dos filmes escolhidos, suas cenas e diálogos, em
forma caleidoscópica, ajudarão a lançar luz aos paradoxos dos direitos da criança e
do adolescente.
Antes de entrar no desenvolvimento da pesquisa, sugiro que o leitor se dispa
de alguns preconceitos e traga apenas suas pré-compreensões. Não espere um
texto clássico, senão a frustração será inevitável. Não espere, também, mais do que
um mestrando possa oferecer. Eventualmente, algum conceito pode ter sido
naturalizado, o que é um risco que corre todo pesquisador. Todavia, este trabalho
seguirá repleto de indagações, beirando a claustrofobia de conhecimento, para
tentar se livrar deste tipo comum de situação.
20
Capítulo 1
DIREITO E ARTE: OBSERVANDO UM ACOPLAMENTO
“Se das investigações apresentadas aqui surgir alguma
conseqüência prática, isso certamente não ocorre para
um ‘engajamento’ não científico mas em vista da
probabilidade ‘científica’ de reconhecer o engajamento
que atua em todo compreender.” (GADAMER, H-G.,
2008, p. 14)
Um dos novos focos de interesse para a Teoria do Direito é explorar as
relações de direito e arte, mediante incursões, desde a década de 80, em temas
como “Direito e Literatura” e “Direito e Cinema”15.
Não é nosso objetivo visualizar modalidades de influência pedagógica direitoe-arte16. Durante o curso da pesquisa empreendida pelo Grupo de Pesquisa Direito
e Cinema, percebeu-se que este acoplamento poderia se dar também entre direito e
literatura, como outrora foi mobilizado. Esta relação, sempre nos moldes de uma
observação da operação realizada pelo sistema, pôde ser mapeada, permitindo a
distinção de dois amplos movimentos: Law and literature e Law as literature. Nesse
passo, a relação pedagógica do uso do cinema (ou da arte, mais amplamente
dizendo) foi bastante refletido. Maior exposição de tais observações geraria um
desvio inusitado e indesejado para o presente escopo.17
A proposta que se buscará efetivar, utilizando elementos da teoria dos
sistemas de Niklas Luhmann, na trilha de investigação do Grupo de Pesquisa Direito
15
A relação entre direito e arte vem sendo trabalhada com periodicidade e produtividade na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, notadamente no Grupo de Pesquisa Direito e Cinema Podese citar, por exemplo, como resultado destes possíveis acoplamentos direito-e-arte, a produção
bibliográfica realizada em alguns dos seminários que esse grupo de pesquisa propôs,
NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, Juliana et al. Construindo Memória. Seminários Direito e
Cinema 2006 e 2007. Rio de Janeiro: FND/UFRJ, 2009.
16
Para isso, veja-se outros textos como: a) O direito no cinema de Gabriel Lacerda; e b) LUZES!
CÂMERA! DIREITO! Reflexões sobre uma aproximação direito e cinema a partir da matriz teórica de
Niklas Luhmann, monografia de conclusão de curso em direito na UFRJ apresentada por Felipe
Chaves.
17
Por esta razão, remeto à leitura dos textos: a) CHAVES, Felipe. No ecrã, o direito: reflexões sobre
uma aproximação direito e cinema a partir da matriz sistêmica, 2009; b) ALVES, Daniela.
Sobrevoando verdes campos e outras produções do Grupo de Pesquisa.
21
e Cinema, é justificar teoricamente a possibilidade de acoplamento estrutural
(conexão momentânea operada no âmbito dos sentidos) entre direito e arte.
Especificamente, veremos como a produção mesma do direito pode ser observada
pelo cinema.
Através da apresentação sumária de alguns conceitos basilares para a
compreensão da abordagem direito e cinema que aqui irei desenvolver, trarei
elementos da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. E deste passo virão outros
que desembocarão na observação de uma observação do direito pelo cinema.
Como é notório, este autor nunca escreveu sobre direito e cinema, ou ainda,
direito e arte. Mas, ao longo dos últimos anos, a pesquisa desenvolvida na UFRJ
lançou mão da teoria dos sistemas para constituir uma forma de abordagem
direito/arte. Sinalizo para a forma como aqui se compreende direito e arte: dois
sistemas sociais, funcionalmente diferenciados, capazes de autorreprodução de
sentidos e elementos, o que ficará mais claro adiante.
Após explicitar a perspectiva teórica aqui adotada, e indicar aquilo que
compreendemos por direito, faz-se importante apresentar o sistema da arte,
pensado como sistema social. Passo seguinte é tratar do acoplamento estrutural de
direito e arte. Em especial, o interesse da pesquisa será aquele de demonstrar como
direito e arte se acoplam pelo meio cinema. Na abordagem do cinema, busca-se
apoio em Deleuze, para pavimentar a relação direito e cinema por meio de um
argumento: a temporalidade. Através de discussões acerca do tempo e da memória,
baseadas em Raffaele De Giorgi, acredita-se construir a ligação que acreditamos ser
produtiva: a operacionalização do direito a partir da irritação que a arte pode lhe
proporcionar.
1.1 Um novo começo teórico
Algumas categorias devem ser mencionadas para tornar claro o parâmetro de
observação que o texto pretende fixar.
Uma pesquisa como esta, que pretende explorar novas possibilidades de
abordagem dos problemas jurídicos, implica, necessariamente, na busca de um
novo começo teórico. A referência teórica primeira deste trabalho, que permitirá o
22
desenvolvimento do tema/problema que aqui se apresenta, é dada pela teoria da
sociedade de Niklas Luhmann. As razões de tal escolha são múltiplas, como por
exemplo, a possibilidade de a teoria se observar e, com isso, relativizar os próprios
resultados de observação e a aproximação entre campos de conhecimento tão
diferentes de modo a se tornarem complementares.
Ainda que escape aos objetivos deste trabalho uma introdução à Teoria dos
Sistemas, o que, por sua importância, abrangência e grau de influência no campo do
direito, já se pode dar por suficientemente realizado, alguns conceitos pontuais
merecem ser marcados. Isso a título de orientação do leitor na construção das
hipóteses e conclusões ao longo desta pesquisa. O primeiro destes conceitos, sem
dúvida, é aquele de sociedade. A sociedade em Luhmann é identificada como um
sistema de comunicação pelo que resta importante explicar seus termos. A
comunicação, operação própria dos sistemas sociais18, é o resultado de três
seleções: a) ato de comunicar; b) informar; c) ato de entender a diferença entre
emissão e informação (CORSI, 2006, pp. 45-6). A compreensão é o evento mais
improvável e mais importante, uma vez que atualiza a distinção que fundamenta a
comunicação, exclui tamanho número de possibilidades e marca uma (ou poucas) e,
ainda, pode permitir que o evento comunicativo prossiga recursivamente.
Para tornar mais provável a comunicação, buscando resolver os problemas
que podem aparecer em cada seleção já apresentada, os sistemas se utilizam dos
seguintes media, normalmente: a) a linguagem (aumenta a probabilidade de
compreensão); b) meios de difusão (ampliam probabilidade de alcance de
interlocutores);
c)
meios
de
comunicação
simbolicamente
generalizados
(incrementam probabilidade de aceite). (CORSI, 2006, pp. 45-48).
Em cada seleção, uma distinção é posta, uma operação se faz, contingências
são criadas deixando à margem um horizonte de possibilidades de significação e, no
outro lado da forma, a distinção tal como marcada. A realização da comunicação vai
se apresentando sempre de maneira improvável, dada a dificuldade de cada etapa
seletiva se efetivar, e, também, da última seleção, a compreensão.
18
Segundo Luhmann, os sistemas sociais mobilizam sentidos para operar. Através de seleções, são
construídas as relações que se apresentam na comunicação. No entanto, não são apenas os
sistemas sociais que usam os sentidos. Também os sistemas psíquicos, as consciências, operam
com base nos sentidos, mas não lançam tais sentidos à comunicação. A operação das consciências
é encerrada nelas mesmas (LUHMANN, 1998).
23
Apesar dos seres humanos, enquanto sistemas vivos e de consciência, serem
ambientes da comunicação, esta não pode ser atribuída a eles, pois as
comunicações sempre ocorrem na sociedade, não se limitando ao indivíduo e sua
consciência (LUHMANN, 2005a, p. 24). Isto porque consciência e comunicação são
operações de diferentes sistemas sociais. Operações constroem distinções, marcam
uma diferença. A indicação de um horizonte de contingências, disforme e
hipercomplexo através de uma marca, uma maneira de realizar uma seleção, irá
apontar o que constitui internamente um sistema e também o limite com o que
trabalha (seu ambiente) (LUHMANN, Niklas, 2009). A especificação e recorrência de
certo tipo de operações desenham a diferença entre sistema e ambiente: algo
acontece no sistema, que não acontece no ambiente. Apesar de distintos, ambiente
e sistema, é inviável pensar um sem o outro.
Embora diferenciados, sistema e ambiente não são âmbitos isolados,
“encapsulados”. Um sistema está sempre em contato com o ambiente, e isso de
diversas formas. Cada operação do sistema pressupõe esse contato, ou seja,
pressupõe que o sistema “observe” o ambiente. O direito não fala dele mesmo, fala
do ambiente, da sociedade e do mundo, atribuindo a eles sentido jurídico. O mundo
adquire significado jurídico quando é tornado tema nas comunicações do sistema
direito. Outras relações também são possíveis: a interpenetração e, também, os
acoplamentos estruturais.
Através de relações de interpenetração, um tipo específico de acoplamento
estrutural, um sistema coloca à disposição de outro, para sua constituição, sua
própria complexidade (CORSI, 1996, pp. 99-101). É uma relação de co-evolução
recíproca.
Essa
participação
recíproca
na
constituição
dos
sistemas
interpenetrantes, porém, não quer dizer que haja confusão ou determinismo, mas a
imbricação destes sistemas é inegável. Cada sistema permanece operando
exclusivamente sob seu filtro distintivo.
Nesta pesquisa, no entanto, a preocupação maior não será no sentido desse
acoplamento estrutural especial (interpenetração), mas do acoplamento pensado de
maneira mais ampla. Não há, aqui, necessidade de co-evolução, e a relação que se
opera pode ser eventual. Pensando de maneira a por um sistema em foco, o
ambiente só pode irritá-lo, através do acoplamento. A partir dessa convulsão
momentânea, os eventos ambientais são re-construídos dentro do sistema, desde as
estruturas do próprio sistema. “Un evento externo, por lo tanto, puede irritar la
24
comunicación sólo al pasar por el doble filtro de la selectividad de los sistemas
psíquicos y de los sistemas sociales.” (CORSI, 1996, pp. 20).
O acoplamento se dá quando um sistema oferece parte de sua complexidade
e sentidos a outro, e este aproveita as estruturas (adensamentos de expectativas)
do sistema ofertante para, então, sobre estas, produzir novas informações e
aprimorar suas próprias operações (LUHMANN, 2009). Toda essa relação se dá
apenas no nível das estruturas, razão pela qual não importa em negar o fechamento
operacional de cada sistema (CORSI, 1996, pp. 19-21). Esta via permite acréscimo
de complexidade em ambos os sistemas envolvidos. Por meio do evento de
interação momentânea de suas estruturas, fazendo produzir irritações do sistema da
arte e do direito, acredita-se que o direito pode se valer desse choque de
expectativas e sentidos que a arte, principalmente por seu meio cinema, pode
proporcionar.
E toda essa complexidade, que envolve toda a sociedade, poderia impor que
um evento jamais tornasse a ocorrer. No entanto, através da fixação (num dado
tempo) de estruturas móveis, pode-se vislumbrar uma recursividade dos eventos
comunicativos, fazendo ocorrer o engate de um fluxo (LUHMANN, 1998, pp. 255324).
Através do acoplamento estrutural (mas não só dele) agrega-se complexidade
a maneiras de explicar/descrever um sistema. Usando essa complexidade, o sistema
pode se irritar com as novas descrições, podendo se redesenhar.
1.2 O Direito como sistema da comunicação
Com essas novidades teóricas, e uma forma diferente de encarar os eventos
do direito, assim pretende-se chegar a uma modalidade de observação sobre a qual
se possa refletir no corpo do trabalho final. Mas para elucidar melhor o que será
observado, vale a pena esclarecer um pouco mais o que está sendo tratado por
direito.
Falando de maneira geral, um sistema, ao se dar a conhecer como sistema
autônomo, produtor de seus próprios elementos constitutivos (autopoiético), pode
oferecer a seu ambiente uma autodescrição de sua situação. Esta nova distinção
25
estaria “revalidada” caso seja referendada, inicialmente, dentro do próprio sistema,
e, depois, no ambiente. Essas maneiras de autoprodução estão diretamente ligadas
às teorias, maneiras de explicação de funcionamento do sistema e de descrição de
expectativas sociais.
Luhmann entendeu que era necessária a distinção entre expectativas
normativas/expectativas cognitivas, considerando o vaivém de expectativas em que
a comunicação transita. Através deste mecanismo, foi possível perceber cada
sistema de comunicação como portador de dupla expectativa, extremamente
frustráveis. Nas cognitivas, há aprendizado do sistema com relação a uma frustração
que dali possa surgir, já com relação às expectativas normativas, não há
aprendizado, mas resistência a modificação e endurecimento dos limites do sistema
(CORSI et alli, 1996, pp. 79-82). Essa diferença será importante, também, por
exemplo, para refletir sobre as maneiras de o direito dizer o que é o direito e suas
possibilidades de aprendizado.
Deste modo, dada a complexidade que se vai produzindo a partir da teoria
dos sistemas de Luhmann, poder-se-ia acreditar que a comunicação não ocorreria:
seriam apenas eventos esparsos jamais repetidos. Para auxiliar nesse processo
comunicativo e explicar como a continuidade comunicativa se dá, um dos media que
aparece com boa visibilidade é o direito, que serve a resolver um problema que
expectativas normativas podem criar. Quando a comunicação social é lançada num
número de possibilidades muito grande, que pode até interromper o processo
comunicativo, a orientação de expectativas normativas de sentido que o direito pode
oferecer produz estabilidade; permite que a comunicação siga (LUHMANN, 2005b,
p. 182).
O direito, como outros sistemas de comunicação, é organizado de maneira a
permitir a repetição de certos sentidos, estabilizando as comunicações, uma vez que
possibilita maior previsibilidade da sociedade. Dessa maneira, pode constituir em
seu bojo algumas semânticas - fixações de sentido (produzidos na comunicação)
que buscam a repetição em eventos similares -, otimizando suas operações. Isso
traz ao operar do sistema maior autorreferência, uma vez que suas próprias
demandas de estabilização atualizam uma maneira de operar simplificada. Por
consequência, também reforça a heterorreferência, já que os sentidos são
26
estabilizados e condensados contando com a codificação19 de constantes influxos
comunicacionais advindos do ambiente do sistema. Através das semânticas que
puderam se confirmar nesse jogo constante, ocorre uma importante facilitação do
acoplamento estrutural e da produção de vínculos com o futuro.20
Nesse passo, o direito é pensado como um sistema autopoiético, ou seja,
capaz de produzir os seus próprios elementos, observando o mundo desde uma
expectativa normativa de sentido, essa estabilização permite a criação de vínculos
com o futuro. O seu ambiente, o não-direito, é tudo o mais que não pode ser
encarado dentro do lado positivo do código direito/não-direito.
A relação entre comunicação e tempo possui relevantes contornos, devendo
ser aprimorada durante toda a pesquisa. Ao mesmo tempo em que uma estrutura
(sentido estabilizado no âmbito do sistema) é construída num espaço de tempo, ela
também o fixa, pois com a sua comunicação há um retrato21 do estado em que se
encontra o sistema naquele momento.
Toda comunicación fija el tiempo en el sentido que determina el
estado del sistema desde el que habrá de partir la siguiente
comunicación. De esto hay que distinguir la fijación de sentido que se
emplea en el uso destinado a la repetición (…) A esta fijación de
sentido de un sistema de comunicación le llamaremos semántica.
(LUHMANN, 2005b, p. 184)
O direito opera como um medium simbolicamente generalizado que possibilita
estabelecer vínculos com o futuro, ou seja, por meio das estabilizações de
expectativas normativas, o direito permite que novas expectativas se construam.
Isso pode se dar através de estabilizações de complexidade por meio de estruturas
19
Todo sistema possui um código binário através do qual ele faz suas seleções e produz, desta
maneira, suas informações.
20
Novamente, pode-se pensar nas autodescrições que o direito produz, as teorias de explicação
normativa de sua forma de observar. É importante perceber que uma operação, ou uma observação
(tipo especial de operação), seja efetivada por qualquer sistema, demanda tempo. Através desta
constatação, uma distinção entre passado e futuro começa a se erguer, sempre no presente, na
medida em que as operações ocorrem. A fixação do tempo, ou melhor, sua marcação, carrega
conseqüências à sociedade, podendo ser apontada como uma delas a criação de expectativas em
relação a um encadeamento comunicacional. A naturalização desta distinção também oferta ao
sistema um ponto fixo de onde observar, tomando o tempo como um dado. Isso possibilita um recorte
de complexidade que aumenta a probabilidade de êxito da comunicação (LUHMANN, 2009).
21
Por precaução, informa-se que a utilização da palavra retrato se dá pela falta de vocábulo mais
adequado. Não há, com isso, referência a uma realidade que existe e pode ser apresentada tal como
é. Lembro que os movimentos descritivos aqui intentados são realizados numa matriz de
construtivismo radical.
27
da comunicação jurídica, ou melhor, através da perseguição de realização de uma
expectativa normativa no mundo (DE GIORGI, 1998).
Assim, foi demonstrada uma operação primária do direito: a decidibilidade dos
conflitos operada através de seu código. O sistema do direito, no entanto, em sua
auto-observação (parcial como qualquer outra), é capaz de produzir explicações
para seu funcionamento, criando as teorias do direito que delineiam a própria
distinção do sistema em relação ao seu ambiente.
Através das autodescrições promovidas (que estão imbricadas com o tempo
que é produzido segundo as distinções do próprio sistema social) uma atualização
constante dos limites do sistema é empreendida. Refazendo-se, a todo instante, as
linhas do sistema, aumenta-se a capacidade cognitiva deste último, uma vez que
mais e mais complexidade chega ao filtro do seu código operativo (direito/não-direito
são bombardeados por diversos influxos comunicativos a cada re-produção teórica
que é empreendida).
1.3 A Arte como sistema social
Definida, ainda que sucintamente, a concepção de direito que será utilizada
aqui, torna-se necessário esclarecer, para fins desta pesquisa, o que aqui se
entende por sistema da arte.
A arte possui, no mínimo, uma especificidade: sua operação busca alcançar a
percepção, por vezes, à imaginação (LUHMANN, 2005a). O objetivo da
comunicação da arte é observar o mundo, no mundo, ofertando ao mundo uma
forma (obra de arte) que lhe permita (em algum aspecto) um acréscimo de
reflexividade.
Também é traço característico da arte a estreita conexão entre a forma (obra
de arte) e a informação que dali é produzida. A compreensão, seleção que também
integra o processo da comunicação, é igualmente importante para a arte, uma vez
que através dela, caso prossiga o fluxo comunicativo, poderá haver irritação de
outros sistemas sociais.
A consciência, que normalmente é visada na operação da arte, também
possui sua distinção: percepção/imaginação. E é na percepção (ligada à construção
28
de sentidos), que trabalha na simultaneidade com o significante e significado, que se
efetiva um acoplamento sistema psíquico e sistema da arte (LUHMANN, 2005a, p.
22).
Cada obra de arte acabada promete uma significação diferente, inovadora,
não importando o meio em que a obra (forma) se apresentará: escrito, imagético,
sonoro. Dali, contudo, não poderá escapar (fixação de limites). O ineditismo e a
própria significação, deixada em aberto para a colaboração do observador, permitem
a identificação do êxito da obra, validando-a como “obra de arte” (LUHMANN,
2005a, p. 59).
Deve-se esclarecer que, no caso da arte, o envolvimento maior no que diz
respeito às consciências torna extremamente relevante explicar mais sobre tal
ligação. Em caso de observações e descrições realizadas sobre outros sistemas,
como direito e política, por exemplo, as consciências podem ser postas rapidamente
de lado. O mesmo, contudo, não pode acontecer quando observamos a arte, que
visa alcançar as percepções.
A relação que se visualiza no acoplamento estrutural é uma importante chave
para pensar a interpenetração consciência e comunicação. Nesse sentido, é
possível sinalizar para a distinção consciência/comunicação através de operações
cognitivas que ocorrem encerradas nos sistemas de consciência e que não vão tocar
aquelas dos sistemas de comunicação. Apesar dessa impossibilidade marcada pela
auto-referência de cada sistema, suas estruturas podem ser compartilhadas, podem
circular. Estruturas são construídas (podendo ser ofertadas ao outro sistema por
meio do acoplamento estrutural), permitindo uma organização das operações de
modo mais ágil e “blindado” diante das incoerências que cada evento pode assumir.
Uma das facetas do sistema de consciência, a percepção, ganha importância
para a re-criação dos limites dos sistemas, conforme se acredita neste trabalho.
Apesar de a percepção não comunicar, a irritação que é produzida ao ter contato
com a arte (que proporciona a sensibilização) pode gerar um fluxo comunicativo,
permitindo a interação que aqui se busca fundamentar.
Se podría afirmar que el arte utiliza la percepción y, con ello, recubre
el logro propio de la conciencia: la externalización. Visto de esta
manera, la función del arte sería integrar lo incomunicable por
principio (la percepción) al contexto de comunicación de la sociedad
(LUHMANN, 2005a, p. 235).
29
Esses processos de irritação e comunicação, no entanto, são bastante
improváveis, mas para aumentar a probabilidade de coerência desta explicação, a
noção de estabilização de expectativas pode ser novamente mobilizada, e um novo
conceito também se torna relevante: o observador (LUHMANN, 2005a, p. 34).
Ao observador não pode ser identificada uma consciência, uma singularidade
(ou indivíduo) ou sistema psíquico. A comunicação se faz para além dos seus
participantes – ela é relação. A possibilidade de que a linguagem22, como meio
generalizado capaz de incrementar a compreensão, não seja a única, nem mesmo a
melhor, é com o que se trabalha. Há que se refletir sobre outro medium que seja
equivalente em função – a imagem, por exemplo, é um significante valioso – como o
cinema, medium do sistema da arte.
Como aponta Luhmann (2005a, p. 39), não podemos pressupor a relação
entre percepção e comunicação como uma constante natural, independente da
história da sociedade. Mas também não podemos naturalizar a forma da
comunicação lingüística como se fosse a única possível.
[…]¿Existe alternativa para la comunicación lingüística? Después de
lo que hemos dicho es evidente que no se puede tratar de
rendimientos de conciencia, de percepciones, de imaginaciones…
Éstas son autopoiesis de tipo peculiar y sobre todo no son
comunicaciones (LUHMANN, 2005a, p. 39).
De
forma
muito
incisiva,
devemos
perguntar
pelas
comunicações
especificamente não lingüísticas, que realizam a mesma estrutura de reprodução
autopoiética das etapas “informação/ato de dar a conhecer/ato de compreender”.
Essas etapas não estão sujeitas às particularidades características da linguagem,
independendo do que, durante este processo, a consciência experimente
(LUHMANN, 2005a, p. 39).
A comunicação pode acontecer independentemente da ordem em que as
operações e observações se efetivem. No caso em que o medium em foco será a
linguagem, algumas ordens (como a sintaxe lingüística) serão importantes para
buscar mais êxito na comunicação, mas quando o medium for imagético, por
exemplo, a observação não guardará ordem tão rígida. Ante uma obra
cinematográfica, há uma sucessão de quadros que criam um tempo próprio da
22
Pensada, aqui, de maneira operacional sobre a unidade da distinção que já se tornou senso
comum entre “letra” e “fala”.
30
imagem, mas como o observador se posta frente à obra, pouco importa. Interessa a
comunicação que daí poderá advir.
Para fazer a passagem entre o espaço das possibilidades e o limite
demarcado pelo observador, é presente uma intenção (expectativa do artista
impressa em sua obra, que deve ser levada em conta para a observação externa).
No entanto, essa intenção só existe para dar o início ao processo de delimitação,
sendo imediatamente desprezível, pois os observadores envolvidos na comunicação
passam a construir suas próprias descrições de sentido desde as distinções
imagéticas possibilitadas pela forma, não necessariamente balizadas pelo pontapé
inicial do artista. Da mesma maneira ocorre com a obra de arte cinematográfica. Um
filme necessita da primeira intenção de produção, mas, quando finalizado, pode ser
observado pelo criador e pelo público, não importando mais como se intencionou
utilizar o medium imagético de produção de sentido.
Segundo Luhmann, pensando a arte em geral, uma primeira intenção para
cruzar o limite entre o espaço-sem-marca e o espaço-com-marca é necessária. Mas
este cruzamento, que produz uma distinção, não pode ser uma distinção, exceto no
caso do observador (LUHMANN, 2005a, p. 48).
[…] Aquello que como obra de arte se propone a la observación,
consuma una aportación, consuma una aportación singular a la
comunicación intraducible por otro medio. Así el artista puede ver lo
que quería, cuando ve lo que ha hecho. También él participa, en
primer lugar, como observador y sólo secundariamente como quien
decide como hábil ayudante – de forma puramente corporal – en la
ejecución de la obra de arte. (Queremos recordar que desde el punto
de vista causal la obra de arte no se generaría sin esta participación
y que eso mismo es válido para toda comunicación). (LUHMANN,
2005a, pp. 48-9)
Algumas maneiras de abordar o tema do acoplamento direito-e-arte são
possíveis, e exemplifica-se com uma questão: a novidade inerente ao êxito de uma
obra de arte23 e a plurissignificação serão abordagens que trarão respostas
interessantes à autoprodução da arte e ao seu acoplamento com o direito? Para os
23
A obra não é a expressão de um gênio criativo (artista), ou o sujeito que a observa. “A obra de arte
ganha seu verdadeiro ser ao se tornar uma experiência que transforma aquele que a experimenta. O
‘sujeito’ da experiência da arte, o que fica e permanece, não é a subjetividade de quem a
experimenta, mas a própria obra de arte” (GADAMER, 2008, p. 155).
31
fins deste texto, a função que cada um desses sistemas exerce oferece razões mais
interessantes.
Por função entende-se a maneira de promover e realizar distinções desde
uma simplificação da complexidade do ambiente, através de um código específico. A
função deve ser encarada como um método, uma comparação entre as soluções
possíveis para um problema de referência cuja disponibilidade se mantém para sua
seleção ou substituição (LUHMANN, 2005a, p. 230).
O maior interesse na observação das funções que se pretende estudar se
deve ao fato de que através de uma pequena descrição das funções de cada
sistema envolvido, mais e mais complexidade pode ser produzida, permitindo
maiores possibilidades de irritação sistêmica, mais comunicação é produzida.
Em tais complexificações, a identificação das funções a uma descrição de um
problema de referência pode acontecer para que, desta maneira, se estabilizem
expectativas advindas das operações do sistema. Em cada sistema, um problema
poderá ser eleito para dar o liame das descrições que poderão surgir dele.
No caso da arte, o problema de referência que se apresenta na reflexão é o
da expressão dos próprios problemas do mundo, apresentada mediante uma obra,
cuja fixação de limites impõe um parâmetro de compreensão. No âmbito do direito,
ao que parece, o problema é a possibilidade de encaixe de um evento social num
quadro de expectativas normativas. Moldamos esses problemas desde uma intuição,
buscando trazer tal identificação para a relação (possível) entre arte e direito.
Nesse passo, pensar mais detidamente sobre o cinema como é visto
atualmente na sociedade oferece uma importante matriz de conexão.
1.3.1 Estreando: o cinema
Por quê dizer cinema e não imagem? Essa pergunta ainda precisa ser mais e
mais refeita para que assuma uma resposta satisfatória. Quando aqui se menciona
cinema, fala-se sobre imagens que são capazes de re-criar o tempo. Da obra de
Gilles Deleuze, Cinema II (2007), retiraremos alguns conceitos que nos apoiarão na
descrição da relação direito-cinema.
32
Este importante autor tem trabalhos muito interessantes, dos quais dois creio
que o destaque é bem-vindo para: Cinema I – a arte das imagens-movimento, onde
Deleuze trabalha os primórdios do cinematógrafo, onde a simulação do movimento
era o que de mais intrigante o cinema podia oferecer. Uma espécie de arqueologia
da imagem é descrita ali. Outra obra, Cinema II, com a qual me preocuparei mais
fortemente. Ali Deleuze aproveita o modelo apresentado em Cinema I para seguir e
aprofundar. A simulação do movimento já não é o que de mais intrigante ocorre.
Agora, o tempo é o chamariz. Pois a partir de uma longa e complica fórmula
descritiva, o autor gera uma classificação, igualmente complicada, das imagens
capazes de distorcer a temporalidade.
O pensamento de Gilles Deleuze será utilizado de maneira parcial, quando
suas categorias deixam ver uma transição entre modelos de imagem: do movimento
ao tempo (modelo da “imagem-cristal”).
Torna-se aqui necessário esclarecer que, apesar de mobilizar categorias de
semiótica24, a pretensão desta pesquisa não é realizar uma análise do discurso ou
mobilizar o clássico perfil de pesquisa desta área. O método, se é que se pode dizer
desta maneira, é o que será aproveitado neste trabalho. A possibilidade de
visualização e de compreensão desde os signos imagéticos, sem que haja
necessária decodificação em palavras, é neste passo que tentaremos seguir. Para
isto ser possível, contudo, apresentaremos um pouco dos argumentos utilizados por
esta escola.
O autor francês constrói uma concepção de interpretação e produção de
conhecimento das imagens através de uma argumentação densa sobre semiótica e
da própria produção de imagens-típicas ideais. Passa pelos primórdios do cinema,
imagem-movimento, onde o cinema se prestava a representar o movimento tido por
dado da vida real, indo em direção ao que chama de imagem puramente ótica e
sonora, germes da imagem-tempo (DELEUZE, 2007).
O autor trabalha com o contraponto da semiologia, modo de explicar da
ciência da linguagem apenas preocupado com a linguística, operações baseadas na
linguagem falada/escrita/gestual. E nesse passo, acredita que a narração deixa de
24
Importante registrar que alguns estudiosos, como Pasolini, buscaram mesmo a construção de uma
semiótica do cinema, acreditando até em um estruturalismo imagético. Chegou-se a propor coisas do
tipo “cinemema”, como a unidade menor de divisão de um quadro cinematográfico, que virá a formar
um plano e no fim, o filme. Tudo isso com o objetivo de fundamentar uma maneira “científica” de
conhecer através das imagens (DELEUZE, 2007, p. 41).
33
ser uma construção lateral às imagens, mas passa a ser decorrência delas mesmas
(DELEUZE, 2007, p. 39). Imagens constroem/modificam o objeto que retratam, na
medida em que a descrição de uma coisa torna a coisa tão possível de ser
conhecida.
Por isso devemos definir, não a semiologia, mas a “semiótica”, como
o sistema das imagens e dos signos independentemente da
linguagem em geral. Quando lembramos que a lingüística é apenas
uma parte da semiótica, já não queremos dizer, como para a
semiologia, que há linguagens sem língua, mas que a língua só
existe em reação a uma matéria não-lingüística que ela transforma.
(DELEUZE, 2007, p. 43)
Segundo Deleuze (2007, p. 43), pelas razões expostas acima que enunciados
e narrações não são um dado das imagens aparentes, mas uma conseqüência que
resulta dessa reação. A narração está fundada na própria imagem, mas não é dada.
Através desse caminho, Deleuze acredita que algumas distinções, muito presentes
na época do auge da imagem-movimento, perderam força, entre elas, a dualidade
subjetivo/objetivo.
[...] Pois acabamos caindo num princípio de indeterminabilidade, ou
indiscernibilidade: não se sabe mais o que é o imaginário ou real,
físico ou mental na situação, não que sejam confundidos, mas
porque não é preciso saber, e nem mesmo há lugar para a pergunta.
(DELEUZE, 2007, p. 16)
Não só a dualidade objetivo/subjetivo perde a força, ou é ressignificada, no
bojo da teoria forjada por Deleuze, mas também a noção de tempo é revisada.
Através da observação das imagens, e da crítica que ele produz a partir das
obras cinematográficas, Deleuze aponta para a visualidade do tempo. Uma maneira
de se produzir um tempo de maneira diferente, através de imagens, é apresentada
em seu texto. Com isso, ele chega a uma constatação: a produção do tempo está
estreitamente vinculada à construção da memória, uma maneira de estabelecer uma
diferença entre o passado e o atual.
Deleuze acredita que a imagem puramente ótica e sonora, germes da
imagem-tempo, são imagens atuais. Elas se encadeiam com uma imagem virtual e,
então, formam circuitos, que apontam para uma re-criação do tempo. Mas revela,
ainda, que o fracasso no estabelecimento das vinculações entre as imagens que
34
(re)criam uma lembrança, uma temporalidade, e a memória mesma, através de
confusões e/ou dificuldades de reconhecimento, estes têm mais êxitos na
construção de importantes distinções que nos permite ver a imagem ótico-sonora
pura (DELEUZE, 2007, p. 63-71).
No entanto, a evolução dos conceitos de imagem-tempo ou imagens óticas e
sonoras puras não ocorre de maneira que um deixe de existir para que o outro entre
em cena. A imagem-movimento, por exemplo, fase inicial do cinema, conforme a
tipificação apresentada por Deleuze, não desaparece para que outra surja, mas
passa a existir como primeira dimensão das imagens óticas e sonoras puras que se
ligam diretamente a uma imagem-tempo (DELEUZE, 2007, p. 33).
É por meio desta imagem-tempo, tipo que consegue produzir uma
temporalidade própria do cinema, tendo o tempo como uma importante chave para o
pensamento, que buscaremos trilhas para relacionar cinema e direito. O cinema,
meio da arte produtor de uma nova temporalidade, visual; o direito, sistema que
estabiliza expectativas normativas permitindo criação de vínculos com o futuro:
através desse tipo de construção as aproximações começam a se justificar.
O tempo, separação do atual e do virtual, é apresentado com base em algo
passado (memória), virtual, e a atualização constante do momento presente, o que,
por sua vez, joga cada vez mais informações para esta memória. Num processo
constante de fracasso/êxito de re-produção de memória, nesta repetida re-criação
do atual/virtual, a imagem começa a trabalhar sob o paradigma do tempo, prolongao. Mas também não só estica o movimento, desse modo refazendo sua
temporalidade, mas cria o próprio tempo, constrói essa diferença, repetidamente,
visualmente (DELEUZE, 2007).
Refletindo um pouco mais sobre a memória e o tempo - o atual e o passado, a
reconstrução do passado no atual, momentos identificados como importantes para a
produção do tempo - a distinção real/imaginário25 surge com alguma importância no
que o autor francês categoriza como imagens-cristal. Nesta conceituação, não há
confusão entre esses recortes (real/fictício) para Deleuze, mas há indiscernibilidade,
característica de algumas imagens, “ambíguas” por sua própria razão de ser. Vale
25
Essa distinção é uma nova forma de representar a dicotomia atual/virtual, por exemplo. Há, ao
longo do texto de Deleuze, ao que parece, uma série de dicotomias que são maneiras diferentes de
se falar desta dualidade bastante fundada na visualidade (refiro-me aqui ao seu argumento da
imagem vista no espelho) (DELEUZE, 2007, pp. 87-121).
35
lembrar que através do indiscernível o autor busca apresentar uma qualidade
objetiva da imagem mesma, não daquele que a observa (DELEUZE, 2007, pp. 8790).
É que a confusão entre real e imaginário é um simples erro de fato,
que não afeta a discernibilidade deles: a confusão só se faz “na
cabeça” de alguém. Enquanto a indiscernibilidade constitui uma
ilusão objetiva; ela não suprime a distinção das duas faces, mas
torna impossível designar um papel e outro, cada face tomando o
papel da outra numa relação que temos de qualificar de
pressuposição recíproca,
ou de reversibilidade.
[...]
A
indiscernibilidade do real e do imaginário, ou do presente e do
passado, do atual e do virtual, não se produz portanto, de modo
algum, na cabeça ou no espírito, mas é o caráter objetivo de certas
imagens existentes, duplas por natureza. (DELEUZE, 2007, pp. 8889)
No compasso da diferença real/fictício, a diferença entre sonho e lembrança
também é mencionada. Ligada à memória, parece, contudo, advir de uma raiz
comum: a re-criação daquele tempo-espaço. Nesse contexto a categoria das
imagens-cristal, que exerce a transição da imagem-movimento para uma imagemtempo, apresenta-se, então, como uma dicotomização imprescindível do tempo: a
dualidade passado/presente26.
Essa diferenciação temporal subjacente à cristalização da imagem é
desvelada pela própria imagem-cristal, que permite observar aquilo que estava
oculto. O que constitui este modelo típico de imagem é a operação mais
fundamental do tempo, é preciso que ele se desdobre a cada instante em presente e
passado (DELEUZE, 2007, p. 102).
É preciso que o tempo se cinda ao mesmo tempo em que se afirma
ou desenrola: ele se cinde em dois jatos dissimétricos, um fazendo
passar todo o presente, e o outro conservando todo o passado. O
tempo consiste nessa cisão, e é ela, é ele que se vê no cristal. A
imagem-cristal não é o tempo, mas vemos o tempo no cristal.
(DELEUZE, 2007, p. 102)
Apontando aquilo que estava oculto - a distinção passado/presente - a
imagem deixa antever a existência da lembrança, memória. Essa memória, contudo,
26
O futuro parece ser apresentado apenas como um poder vir a ser do presente, não merecendo
maiores reflexões. É só outra forma de representar a distinção passado/presente (DELEUZE, 2007).
36
não está num lugar privilegiado do passado e vamos lá para acessá-la; e sim nos
movemos nessa “memória-ser”, num “já-aí” (DELEUZE, 2007, p. 121-2).
Numa releitura de Deleuze, sua análise fica enriquecida quando observada
pelas construções da Teoria dos Sistemas de Luhmann. A maneira como Deleuze
vê no cinema e nas imagens uma forma de produção de tempo, mediante a
distinção passado/presente e, portanto, a construção de memória, nos permite
acrescentar aos desenvolvimentos recentes da teoria dos sistemas uma abordagem
acerca do acoplamento estrutural direito e cinema.
Essa memória, no entanto, será tratada, aqui, segundo a teoria dos sistemas
de Luhmann e Raffaele De Giorgi: uma construção presente do passado. Pode soar
estranho falar em memória quando se fala em tempo e direito, mas tal estranheza
será produtiva.
Através de outras distinções, mas também baseado em inspirações artísticas
- um conto do argentino Borges, que narra a história de um homem, Ireneo Funes,
que não podia esquecer - Raffaele De Giorgi apresenta o tema da memória (DE
GIORGI, 2006, pp. 47-107). A distinção básica de lembrar/esquecer, uma seleção, é
mostrada como nodal para que a cognição possa acontecer: Só através do
esquecimento a complexidade pode ser recortada e, ainda que temporariamente,
uma realidade pode ser criada, uma memória.
Apesar de usar como exemplo um homem, o raciocínio desenvolvido por De
Giorgi é o mesmo para qualquer sistema, também os sistemas de comunicação.
Também o direito possui uma memória. Cada evento considerado importante pelo
sistema, apresenta a si como presente, marca um antes e um depois. Assim, a
construção da memória do sistema social é uma seqüência de seleções. Cada
momento seletivo se desenrola tendo em conta apenas os próprios estados do
sistema que distingue. A memória dos sistemas de comunicação é o ponto cego da
distinção recordar/esquecer, é a auto-referência das descrições elaboradas pelos
sistemas (DE GIORGI, 2006, p. 64).
Tanto no sistema do direito, meio para a estabilização de expectativas
normativas, tanto no cinema, meio da arte que comunica através de imagens recriadoras do tempo, observa-se que por meio do processo de seleções/distinções
uma temporalidade é construída. As interações entre os sistemas vão ocorrendo e o
sistema produz uma atualidade para si e cria uma realidade que distingue também
um passado.
37
A temporalidade é construída quando o sistema interage através de
suas distinções com seus próprios estados. E dado que este
processo interativo é contínuo, o sistema é o produto de suas
próprias modificações, isto é, ele é seu próprio resultado. O processo
não tem começo nem fim, pois o sistema não pode observar nem seu
início nem seu final. O sistema se especializa na prática de suas
distinções e, assim, pode se reconhecer. Pode construir
temporalidade, pode estender ou edificar o tempo e o espaço
ocupado pela sua cognição. (DE GIORGI, 2006, p 56).
Assim como os sistemas de comunicação possuem memória, também, cada
filme - o que será trabalhado no momento oportuno - representa uma seleção do
sistema da arte, é um meio para que sua operação ocorra com maior probabilidade
de êxito. Em suas imagens e narrativas, seleções são postas. Marca-se uma
temporalidade presente que é capaz de remeter a outra temporalidade, um
deslocamento do tempo, presente não apenas nas narrativas, mas também nas
imagens mesmas (DELEUZE, 2007).
Com isso por base, acredita-se que a ligação direito e cinema pode ser muito
mais produtiva do que como normalmente é mobilizada, através de utilização das
imagens como representantes dos institutos jurídicos. O tema da comunicação
veiculado nas imagens pode ser aproveitado para criar uma nova realidade no
âmbito do direito, por exemplo.
1.4 Direito e cinema: de olho no acoplamento
Como já referido anteriormente, a via do acoplamento não é de único caminho
possível, pelo menos dois se abrem: na proposta desta pesquisa, o cinema pode ser
observado pelo direito e também o direito pode ser visto desde as lentes do cinema.
Nesse sentido, o direito e o cinema podem se acoplar por meio dos direitos
autorais27, por exemplo. A obra cinematográfica (filme) é considerada digna de
proteção pelo direito, tornando o autor proprietário daquele filme. Como em qualquer
propriedade, também no caso da propriedade intelectual decorrerão pagamentos
27
Direitos autorais são aqueles que garantem proteção de obra artística ou intelectual, visando
impedir sua reprodução ou uso desmedidos sem que seja pago ao autor um valor que se equipararia
a um aluguel de uma propriedade urbana, por exemplo.
38
quando houver uso, exibição pública da obra intelectual, por exemplo28. Do ponto de
vista do direito, os direitos autorais traduzem a noção de propriedade imaterial sobre
idéias, obras de arte, criação. Do ponto de vista da arte, a existência dos direitos
autorais pode, por exemplo, fomentar a criação de novas obras artísticas, em razão
do argumento econômico que toda propriedade traz consigo.
Deixando apenas a menção dessa possibilidade, no presente texto se busca
refletir sobre como o direito é apresentado pelas lentes do cinema e os ganhos que
daí poderão advir para a reflexão própria do direito.
Nesse passo, todo o caminho pavimentado até agora desenvolvido com a
teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e com algumas noções de A Imagem-tempo,
momentos em que foram se pôde acrescentar aportes de complexidade à descrição
do sistema e deste acoplamento, a isso será agregada mais complexidade numa
descrição sobre a relação arte-e-consciência. Para isso, serão as descrições até
agora empreendidas colocadas em jogo com a hermenêutica (noção bastante
complexa e cuja tradição não se passa em revista), termo que vinculamos à
categoria tal como apresentada por Hans-Georg Gadamer (2008).
Apesar de ser conhecida a enorme polêmica que cerca a tradição
hermenêutica - ligando a ela (ainda que de forma pouco refletida) uma excessiva
subjetividade no ato da compreensão, isto não será aqui abordado em maneira
profunda, senão operacional. As operações efetuadas tomam por base categorias
do pensamento de Hans-Georg Gadamer sobre a forma de compreender das
humanidades29.
Esse exercício parece importante para apresentar como a arte pode ofertar
sensibilização (e também ganho de complexidade) a uma descrição do sistema do
direito, sem que seja preciso mobilizar argumentos marcados por excessos de
subjetivismo.
Parece importante resgatar de Luhmann as etapas pelas quais a
comunicação passa para, então, começarmos a desenhar as conexões que
pretendemos.
28
Não é parte do escopo deste trabalho dar conta das duas vias do acoplamento direito-e-cinema,
mas apenas menciona-se essa possibilidade e se remete, por exemplo, à legislação federal n.
9.610/98.
29
Sob esse rótulo estão abarcadas as chamadas ciências humanas, em oposição àquela forma de
conhecer trazida pelas ciências da natureza (física, matemáticas etc.). Essa apresentação é feita
aproveitando a noção trazida no próprio texto de Gadamer (2008).
39
A comunicação, modo de operar típico dos sistemas sociais, é proveniente de
três seleções, o início da comunicação, a produção de informação e o ato de dar a
entender esta última (CORSI, 2006, pp. 45-6). A compreensão é o evento mais
improvável, e também de extrema importância, uma vez que atualiza a distinção que
fundamenta a comunicação, exclui tamanho número de possibilidades e marca uma
delas (ou poucas) e, ainda, pode permitir que o evento comunicativo prossiga
recursivamente.
Mas sob esta distinção, compreensão, Luhmann não pretende que se
encerrem as mesmas discussões que são travadas a título da hermenêutica (como a
que ele observa). Não é possível, também, reduzir toda a comunicação a este
evento, a compreensão. Apesar disso, parece ser bastante produtiva a relação que
há entre a distinção tal qual apresentada em Luhmann e a compreensão inserida
numa historicidade e produzida pelo próprio “objeto”, conhecido que é, apresentada
por Gadamer.
Nesse passo, para retomar o debate da diferença entre percepção e sistemas
de comunicação, mesmo sabendo que a percepção não é capaz de comunicar, mas
sua irritação poderá produzir novas informações, por exemplo, ou mesmo dar início
a uma comunicação, parece necessário comentar um pouco mais acerca do
acoplamento (direito-e-cinema, sendo baseado no acoplamento arte-consciência)
que pode ocorrer. Através da ferramenta cognitiva da hermenêutica que Gadamer
traz, acreditamos que ocorra a sensibilização do sistema do direito pelo acoplamento
direito-e-cinema, escapando, no entanto, do jogo de subjetividades.
Circunscrevendo-nos ao vaivém da comunicação que nos permite os objetos
mesmos, algumas ideias de Gadamer serão mencionadas para esclarecimento.
Essas categorias, no entanto, serão ressignificadas na medida de sua atualização
pelo uso articulado com a teoria dos sistemas de Luhmann.
A compreensão, tal como entendida pelo filósofo alemão, é uma atitude
imbuída de uma consciência histórica, conectada à sociabilidade, cultura e tempo
em que se dá (GADAMER, 2006). A compreensão “pertence à história efeitual, e
isso significa, pertence ao ser daquilo que é compreendido” (GADAMER, 2008, p.
18).
Se essa informação pode ser verdadeira, então, há que se pensar: a
operação que a hermenêutica realiza não é um evento encerrado na consciência,
muito menos condicionado apenas historicamente. A crítica do subjetivismo que vem
40
colado à noção de hermenêutica tradicionalmente acionada não cabe quando
pensada a partir da proposta gadameriana. A imbricação que há entre objetoconhecido e sujeito-conhecedor permite a ruptura desse esquema de redução de
complexidade (sujeito-objeto), como já sinalizava Deleuze. Isso possibilita a
ocorrência de verdadeira coelaboração30.
Enquanto se pensa de maneira mais geral, universal, isso parece caber bem.
Mas também parece ocorrer quando observamos um sistema em especial. No
sistema do direito, apesar de realizar sua função sem estar necessariamente
acoplado às consciências, o tempo inteiro, operações hermenêuticas estão
ocorrendo.31 Seja o juiz, aplicando a lei através da organização de um tribunal, seja
o advogado, interpretando textos legislativos para, então, oferecer uma peça
processual - seja o professor de direito que interpreta, junto de seus alunos, textos e
a própria relação desenvolvida pelo direito e as pessoas envolvidas -, sempre se
coloca uma realidade hermenêutica, nos termos aqui veiculados.
O fato de o direito ser fixado na forma escrita faz surgir a diferença
entre texto e sentido e o expõe, portanto, à interpretação. Todo o
direito escrito é direito que deve ser interpretado. A interpretação
permite ao direito aprender a partir de si, observar-se através da
diferença identidade/diferença e, portanto, operar de modo que torne
visíveis tanto as transformações do direito, como as distinções em
relação ao caso. (DE GIORGI, 2006, p. 149)
Para repensar a noção de hermenêutica, num profundo e bem-elaborado
exercício, o filósofo alemão Gadamer busca oferecer as razões através das quais é
possível aceitar a relação percepção, compreensão e consciência como pertencente
à realidade objetual e, portanto, não como uma atitude solipsista. Discute ricamente
com Kant e Dilthey, mostrando suas insuficiências e avanços. Discorre, ainda, sobre
a noção de tempo, importante conector da realidade compreendida, e, também,
aponta para o jogo da compreensão, uma relação de produção de saber entre a
consciência e a historicidade circundante e o “objeto” a ser conhecido (GADAMER,
2008, p. 114).
30
Apenas para marcar e reforçar a característica de participação e construção do evento, utilizo o
termo coelaboração, podendo, no entanto, nesse texto ser substituído por colaboração, sem a perda
do sentido.
31
A função do direito é estabilizar expectativas normativas, produzir a distinção direito/não-direito.
Para isso, não é necessária a constante presença do sistema de consciência no foco. Não há como
se desprezar, contudo, a imbricação entre sistemas de consciência e sistemas sociais, como já foi
explicado por Luhmann em vários outros lugares.
41
Nesse jogo da compreensão estabelecido, não há um sujeito fixo que esteja
ativado, mas o próprio jogo é seu sujeito. O jogador é enredado pelo caminho. Da
mesma maneira acontece este atropelamento do observador e sua experiência
frente uma obra de arte (GADAMER, 2008, pp. 156-9). Torna-se irrelevante quem é
o observador ou suas idiossincrasias.
O vaivém pertence tão essencialmente ao jogo que em sentido
extremo torna impossível um jogar-para-si-somente. Para que haja
jogo não é absolutamente indispensável que outro participe
efetivamente do jogo, mas é preciso que ali sempre haja um outro
elemento com o qual o jogador jogue e que, de si mesmo, responda
com um contralance ao lance do jogador. (GADAMER, 2008, p. 159)
Esse jogo é apresentado como um “representar para”, uma forma de expor as
manifestações, por exemplo, da compreensão a um “outro” em potencial32.
Buscando relacionar os temas até agora apresentados, acredita-se que a
comunicação é também um “representar para”. Ela ocorre criando-se distinções
tendo como envolvidos ao menos dois sistemas diferentes. Não se pensa sobre as
subjetividades, as consciências, os atores envolvidos, mas a presença dos
envolvidos permite que a comunicação se faça.
Desde uma perspectiva sistêmica é possível entender que a posição
de jogador, introduzida aqui por Gadamer – e o mesmo pode-se dizer
do hermeneuta surrealista de Warat – é uma posição comunicativa.
Uma posição comunicativa é sempre variável material (quanto aos
sentidos produzidos), social (face às outras posições igualmente
estabelecidas) e temporalmente (sempre no presente, constrói o
passado como lembrança e o futuro como expectativa) não
indicando, desse modo, uma única possibilidade comunicativa já que
sempre constituída em relação a outras posições comunicativas, em
um contexto de dupla contingência, expectativa de expectativa
(PIRES, 2011, p. 72).
Trilhando essas pistas, também a arte, ou a compreensão dela, não está
centrada na subjetividade do artista, como já foi indicado, mas também não está na
subjetividade do espectador33, que apenas realiza o que é o jogo enquanto tal. O
observador da obra de arte assiste a ela mesma o que, segundo Gadamer, coloca-o
32
Isso permite o deslocamento temporal imposto pelos meios de difusão, por exemplo (já não é
exigida a presença dos jogadores, mas sua potencialidade).
33
A isso Gadamer identifica a expressão de uma consciência estética, uma capacidade subjetiva de
raciocinar desde a matriz estética. Não é disso que se pretende falar.
42
na posição de colaborador constante da obra. Mesmo que ela tenha sido feita em
uma época, quando de sua assistência ocorrerá um prolongamento do tempo,
circundado dos eventos culturais e históricos atuais, marcado pela atualização da
obra em sua nova compreensão. A cada interpretação, há uma re-produção da obra,
consolidando, a cada momento, o ser da arte. “Toda re-produção já é interpretação
desde o início e quer ser correta enquanto tal. Nesse sentido, também ela é
‘compreensão’.” (GADAMER, 2008, p. 18).
O ponto de partida da apresentação de Gadamer é que o verdadeiro ser da
arte não pode ser compreendido a partir do espectador, de sua subjetividade, mas
sim como um estar-fora-de-si que realiza o jogo da arte (GADAMER, 2008, p. 183).
Por trabalhar com a ativação das consciências, a hermenêutica pode atualizar
a arte para que ocorra uma sensibilização, que logo será posta adiante, em
comunicação. Mas essa relação do jogo da compreensão não se esgota num
evento. Ela comporta uma extensão, a duração da própria compreensão e sua
comunicação. Além disso, ao próprio ser da arte é bastante interessante um caráter
de concomitância que está intimamente ligado ao assistir, à colaboração do
espectador (GADAMER, 2008, pp. 178-186).
Nessa trilha, de acordo com o que apresentamos aqui, em Deleuze e
Gadamer
podem
temporalidades,
ser
tornando
apresentadas
laterais
as
operações
discussões
que
sobre
vinculem/produzam
as
singularidades,
subjetividades que possam estar envolvidas no processo interpretativo. O objeto
constrói sua temporalidade na medida em que faz distinções entre seu estado
passado e seu estado atual. Essa construção se dá por meio da interpretação, mas
não é o sujeito quem age ou faz, mas ele atualiza a construção permitida pelo
objeto, mobiliza-se a memória do sistema para buscar mais coerência para a
operação hermenêutica que se faz. Além disso, através desta possibilidade a
sensibilização ofertada pela obra de arte, por exemplo, pode ser aproveitada sem
que seja respaldada numa atitude encerrada na consciência.
Seguindo esta trilha, o observador que se debruça sobre a arte
cinematográfica, ou melhor, aquele que se deixa impressionar por ela, está
participando do jogo da arte, re-construindo uma temporalidade diferente a cada
instante. Com esses acréscimos de complexidade se pode enriquecer as discussões
que sigam nesse caminho em outros sistemas. Essa é nossa hipótese, que
referenda a interlocução arte e direito.
43
Nesse passo, é interessante perceber que um jurista que utilize a arte como
possível apresentação de um sentido de direito diferente do comumente mobilizado,
tem um aporte de complexidade bem razoável. Mais do que mero exemplar de
institutos jurídicos aparentemente retratados no ecrã, a arte pode oferecer sentidos
de direito e novas distinções de tempo que podem trazer maior complexificação da
operação de observação do direito que se pretende realizar. Um jurista que
aproveite o sensível numa operação de autodescrição do direito, numa maneira de
explicar o direito para o direito: essa é a complexificação procurada. Não se nega o
paradoxo que está apresentado na sensibilização e na dificuldade de manutenção
da complexidade que ela proporciona ao ser novamente traduzida pela
comunicação. No entanto, acredita-se que há como ser feito importante uso criativo
deste paradoxo.
[…] El sistema del arte concede a la conciencia perceptora realizar
su propia aventura al observar las obras de arte – al tiempo que
mantiene disponible como comunicación la selección de la forma que
da pie a ello. A diferencia de la comunicación lingüística – que se
dirige demasiado rápido a la bifurcación sí/no –, la comunicación
orientada por la percepción afloja el acoplamiento estructural entre
conciencia y comunicación; obviamente sin destruirlo. Las libertades
de movimiento propias del campo perceptivo se recuperan frente a
los estrechos manejos del lenguaje. (LUHMANN, 2005a, p. 235)
Explorando o ganho de sensibilidade que traz a mobilização da arte
cinematográfica como modalidade de explicação e observação de um evento do
mundo, as teorias do direito (nossa hipótese) podem obter ganhos fundamentais.
Através do acoplamento estrutural direito e arte, por meio do cinema, acrescenta-se
muita complexidade à observação que pode ser operada quando das autodescrições
do direito.
1.5 A Sensibilização das auto-observações do Direito
Pretende-se, com a argumentação aqui acionada, realizar uma justificativa
teórica sustentável para a viabilidade de uma pesquisa no âmbito da teoria jurídica
44
sobre a relação direito-e-arte, acreditando, ainda, que o marco teórico da pesquisa
pode levar a reflexões marcadas pelo conhecimento de caráter mais universalista.
Através da irritação que a arte, através do meio cinema, pode suscitar no
direito, novas descrições sobre o funcionamento do direito podem surgir.
A passagem pelo caminho da descrição de algumas distinções utilizadas por
Luhmann em seu projeto de observar as observações da sociedade através da
teoria dos sistemas, uma forma de observação inserida na sociedade que observa,
faz-se importante e relevante para todo o desenrolar da pesquisa. Essa caminhada,
contudo, será constante, e as visões que a teoria dos sistemas pode oferecer serão
trazidas a reboque em toda a vereda.
Apenas com fim utilitário e metodológico foi usada a semiótica de Deleuze, ou
seja, apropriei-me de alguns de seus conceitos (altos, não há como deixar de referir)
para poder, posteriormente, trabalhar com rastros de imagens como sinais
importantes para uma compreensão do que deixa de ser comunicado.
No trabalho que se inicia, o foco de observação se volta para o problema
sociojurídico dos “adolescentes em conflito com a lei”. O sistema jurídico será
observado no discurso dos “direitos da criança e do adolescente”, que visa proteger
e garantir direitos humanos a este grupo vulnerável. Por meio da relação direito e
cinema, a problematização da tensão entre os sentidos generalizados na sociedade
sobre o “adolescente em conflito com a lei” e os sentidos que uma lei pode oferecer
será iluminada, importando em aquisições de complexidade na análise de tal
assunto.
45
Capítulo 2
O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: mudança?
“La percepción está formada para buscar una
información dentro de un mundo conocido, sin
que tenga que decidirse expresa y
excepcionalmente sobre ello.” (LUHMANN,
2005 – El arte... - p. 31)
No primeiro capítulo, apresentou-se o marco teórico que permite a
articulação direito e arte. Agora, faz-se importante apresentar com mais clareza
e concisão o campo do direito que se pretende observar: o direito da criança e
do adolescente.
Como se deve lembrar, um sistema está sempre observando no
momento mesmo em que opera. Mas há momentos em que além de observar
ele é observado em sua observação. A partir da observação do repertório de
textos normativos acerca do direito da criança e do adolescente a que
chamamos observação de segunda ordem no capítulo anterior é que este
capítulo se desenvolve.
Relembro, apenas, que a teoria dos sistemas, lugar de onde se busca
ver o fenômeno que descrevo, está sempre comprometida com a observação
de segunda ordem. Isto porque a teoria busca reentrar na teoria para poder ter
ganhos reflexivos impressionantes. Nesse passo trilharei o caminho aqui
escolhido.
Inicialmente, leis e outros textos, algumas autodescrições, veiculados ao
tempo do Código de Menores – como era chamada a Lei Federal n. 6.679/1979
(período de 1979 a 1990) serão utilizados. Da mesma forma, aciono
instrumental teórico para mobilizar o Estatuto da Criança e do Adolescente, de
agora em diante tratado por ECA, e a constelação de textos legais que
constituem seu sentido normativo hoje34.
34
Doutrina jurídica é como é chamado o tipo de texto que pretende ser forma de justificação
para a atuação operativa do direito. Esses textos são usados como apoio para as decisões das
organizações insertas no sistema jurídico.
46
Pois uma diferença, não muito costumeira, pode ser bastante útil no
escopo da pesquisa, a distinção texto e norma. O texto, realidade estanque,
está posto em signos, sinais gráficos cujas representações, em conjunto,
geram um borrão num papel, por exemplo. Quando estamos diante de uma
comunicação escrita, a “leitura” desse borrão, uma distância surge. O texto
passa, então, a ser um valor dinâmico, uma comunicação. Seu sentido,
estabelecido de acordo com uma complexa rede e uma imbricada relação
neurocognitiva e social, pode assumir maneiras diferentes, seja no âmbito de
uma ordem imperativa a ser seguida, ou num modalidade relativa de
interpretação.
Dos textos em geral, diferenciam-se muitos “valores” que são livros de
romance, aventura, documentários. Também se distingue a legislação - lei,
texto – da norma, texto legal atualizado e mobilizado para operar distinções e,
então, acarretar decisões. Pois em ambos os espaços buscaremos nos mover.
Durante o período inicial de vigência do ECA (1990), e até o presente
momento, serão apontados recortes da própria lei, textos diretamente voltados
para a produção de decisões no âmbito do sistema (ou de alguma organização
interna), e textos de constatação de realidades ou de críticas a elas, ou seja,
aqueles onde o direito tal qual demonstrado é problematizado por outros
sistemas ou formas de conhecer.
Já que o próprio texto legal do ECA traz a categoria dos direitos
humanos, por vezes, como base para legitimar um tipo de descrição que
segue, esta distinção será bastante utilizada. O foco de pesquisa será o
registro do ECA, mas algumas informações anteriores a esse marco normativo
serão de extrema importância para a observação empreendida.
A observação de segunda ordem permite observar o que mais adiante
chamarei de paradoxos do direito da criança e do adolescente. Estes
paradoxos são particularmente evidentes quando o campo normativo do direito
da criança e do adolescente busca apoio na noção de direitos humanos,
porque, conforme veremos, os paradoxos aqui tratados são apenas uma
especificação dos paradoxos dos direitos humanos.
A proposta do presente momento é uma apresentação mais detalhada
de como os significados de “menor infrator” e “adolescente em conflito com a
lei” se aproximam e se distanciam. Encontraremos no cinema suporte empírico
47
da pesquisa, na forma da visualidade que este meio permite e que faz permear
em toda a comunicação.
Mas nossa pretensão vai, também, no sentido de examinar algumas das
descrições do sistema que permanecem inseridas no sistema e daquelas que
são construídas fora dele (semânticas). Para tanto, serão recortados trechos de
observações desde a sociologia do direito, por exemplo, para apontar alguns
dos paradoxos específicos do direito da criança e do adolescente.
2.1. No início, o “menor”
O Brasil, desde 1926, quando se deu ao trabalho de construir um
programa normativo35 específico para as pessoas com menos de 21 anos
(quando, na época, atingiam a plena capacidade civil), fundou suas legislações
nas ideias correntes à época pela Europa e outros centros irradiadores de
costumes, como de praxe.
Naquele contexto, vale lembrar que diversas convulsões políticas e
econômicas recentes marcavam uma forma de fazer políticas e leis. O fim da
primeira Grande Guerra e as recessões que estouravam pela Europa,
ajudavam a conformar um desejo geral de que uma “mão-forte” conduzisse o
povo ao seu Eldorado (BLAINEY, 2009, pp. 36-92). Nesse espaço, ganhou
força o que veio a se chamar doutrina da situação irregular, um ideário que
discriminava crianças e adolescentes a partir de determinados critérios,
bastante fundamentados na moralidade de quem sobre eles decidia.
O que se considera o primeiro diploma legal organizado do Brasil
designado, especificamente, para o público juvenil, o Código de Mello Mattos,
como foi chamada a legislação de 1927 (Decreto nº. 17.943-A), abraçava a
doutrina da situação irregular e tentava trabalhar sob a dualidade “assistência e
proteção” por meio do Estado (SANTOS in GONÇALVES, 2005).
35
Segundo CORSI (1996, pp. 73-74), os programas podem ser identificados a descrições que
assimetrizam os códigos binários dos sistemas oferecendo uma direção correta a ser
perseguida. Nesse sentido, o próprio Corsi traz como sinônimo, no que refere ao sistema do
direito, a legislação como um programa.
48
Neste modelo, sempre que o menor estivesse em perigo ou em situação
de vulnerabilidade ou conflito com a lei, a irregularidade se confirmaria,
merecendo “reparos” da mão forte do Estado.
Ao tempo desta legislação, um problema, que perdura, era ainda mais
candente: a falta de instituições que pudessem acolher e “tratar” esses
menores em situação irregular. O que se tinha, até então, eram as “Rodas dos
Expostos”, normalmente vinculadas a orfanatos religiosos, onde as crianças,
em sua maioria filhos bastardos de pais bem nascidos, eram deixados para
serem “regados” como se fossem plantas numa estufa. A promiscuidade entre
religião e entidades de assistência e proteção se delineava (SANTOS in
GONÇALVES, 2005, pp. 212-3).
Os problemas de faltas de instituições estatais para dar conta da
demanda,
sempre
crescente,
de
segregação
(exclusão
baseada
em
fundamentos supostamente legítimos) iam se resolvendo com a ajuda da
filantropia. Ademais, havia uma promiscuidade entre os acolhimentos e
recolhimentos, misturando-se adolescentes/crianças vítimas e praticantes de
atos ilegais, todos colocados em Casas de Detenção e Correção, amontoados
(SANTOS in GONÇALVES, 2005, pp. 218-9).
Logo em seguida da promulgação do Código de Mello Mattos, o Brasil
assistiu à subida ao governo de Getúlio Vargas, em uma ditadura populista.
Neste contexto, marcado pelo assistencialismo e paternalismo, veio a criação
do Serviço de Atendimento ao Menor (SAM) e da Legião Brasileira de
Assistência (LBA), instituições fortemente representativas do eixo de
tratamento ao grupo das crianças e adolescentes: filantropia (LBA) e repressão
(SAM). Qualquer atuação diferente destas eram frutos de esforços individuais
(e que muitas vezes não tinham a repercussão social devida), estando sujeitas
aos dissabores da vida de uma pessoa.
Estes dois institutos, apesar de sofrerem com graves escândalos de
desvios de verbas etc., foram as bases do que se tornou, futuramente, a
Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor - FUNABEM – 1964 (SANTOS
in GONÇALVES, 2005).
Criado, então, o sistema de atendimento ao menor sob os pilares da
punição e assistência, sendo que em grande medida essas atuações estatais
tinham público bem marcado. Apesar de muitos escândalos que rondaram as
49
instituições correcionais e de abrigamento de adolescentes, reformulavam-se
nomes, tentava-se dar novos ares com algum perfume discursivo, mas a noção
básica do “menor” delinquente que se deve segregar da sociedade sadia
permanecia na base das decisões daquelas organizações (SANTOS in
GONÇALVES, 2005). Não se conseguia mudar o atendimento dispensado aos
adolescentes, se é que esse desejo ultrapassava esforços de algumas poucas
pessoas dentro daquelas organizações.
Na base da exclusão criada/legitimada pelo direito, através da imposição
de medidas punitivo-assistenciais, o recolhimento compulsório que acontecia
com os menores de rua e outras formas de exclusão, o Código de Mello Mattos
atualizava uma distinção: os menores “em perigo” e aqueles “perigosos”. Neste
passo, a tese higienista ganhava força.
O higienismo, movimento cujo princípio estava ligado diretamente às
condições ambientais, em razão do crescimento das realidades urbanas, logo
foi se espraiando por outros campos sociais, e se encontrou com a política de
tratamento de encarcerados.
O chamado ‘movimento higienista’ decorre deste fantástico
desdobramento da medicina [as noções de saúde pública e
saneamento] e seu impacto decisivo nos séculos XVIII e XIX,
sobretudo a partir do rápido avanço científico alcançado com
as descobertas de Pasteur. O desenvolvimento da medicina
social, tão afinada com a mentalidade do século XIX,
possibilitou a irradiação da noção de higiene, impondo-a na
vida de todas as pessoas. (RIZZINI, 2008, p. 108)
Realizando uma pesquisa em fontes primárias de pesquisa do que se
costumava dizer à época da vigência do Código de Mello Mattos, no ambiente
acadêmico, pude constatar, numa dissertação de mestrado pesquisada,
localizada junto da Biblioteca Carvalho de Mendonça36, a constante
reatualização dos preconceitos marcaram (e marcam) a exclusão dos
adolescentes pode ser vista:
36
A Biblioteca Carvalho de Mendonça da Faculdade Nacional de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro possui um acervo riquíssimo em obras antigas e recentes, sendo
certo que na divisão de obras raras, verdadeiros tesouros são localizados. Confesso que por
vezes me senti atraído a fazer um trabalho de “garimpo” no acervo da BCM-FND, mas como
fugia ao escopo da pesquisa de mestrado, deixei para ambições posteriores. O fato é que o
acervo de teses e dissertações dos antigos doutorados e mestrados que funcionaram na
FND/UFRJ também possuem verdadeiras raridades.
50
Os fatores que contribuem para a cessação da vida familiar,
“ocasião em que sempre começa o desajustamento do menor”,
residem de um lado, e na maior parte das vezes, na miséria
econômica, no desemprego, na mancebia, n segregação dos
pais do convívio social, de outro lado, na irresponsabilidade e
incapacidade de certos pais para manter e dirigir o lar com
dignidade e autoridade ou ainda na orfandade. Para os
primeiros a solução é o fortalecimento e amparo à família; para
estes últimos e, somente para estes, é que será necessário
organizar todo um sistema que venha, em parte, substituir a
família inexistente ou comprovadamente incapaz (DELAMARE,
1979, p.14).
A
tese
científica
do
higienismo
era
tão
impressionantemente
discriminatória que num recorte do I Congresso Brasileiro de Proteção à
Infância (1922), ficou marcada a preocupação daquele seleto grupo
participante do evento com a tensão altas virtudes da elite x reprodução do
vício pelo populacho (citação referida em RIZZINI, 2008, pp. 106-7).
Uma cifra muito expressiva é pode ser vista quando se aponta o critério
de moradia para os adolescentes internados pela Vara de Menores do Rio de
Janeiro: 52,3% moram em favelas; 28,4% em apartamentos (cuja qualidade se
desconhece); 15,2% em casas de conjuntos habitacionais; 4,1% não tem
moradia (DELAMARE, 1979, P. 19).
Era sobre a criança, filha da pobreza, reprodutora do vício e da
imoralidade, que a ação pública concentraria seus esforços.
Por isso se dizia ser saneadora e civilizadora a reforma que o
Brasil necessitava. Era acima de tudo moral a reforma que o
país entendia ter que empreender (RIZZINI, 2008, p. 107).
Mesmo com toda essa atmosfera discriminatória tendo amplo campo
para florir, ainda sob a vigência do Código Mello Mattos (1927-1979), nos idos
da década de 1970, algumas vozes dissonantes puderam começar a se
expressar sem ir de encontro a uma repressão fortíssima do Estado37,
manifestaram as insatisfações frente à legislação menorista vigente à época, e
sinalizaram para as mudanças que deveriam ocorrer.
37
Lembre-se que o Estado Brasileiro vivia uma ditadura militar desde 1964, durando até 1985.
Nos idos de 1979-1980, quando emerge a nova lei menorista, Geisel era o presidente do Brasil
e vivia-se uma forte recessão, o que ajudou a impulsionar a transição para um governo
nomeadamente democrático e civil. Algumas vezes, no entanto, autores ousavam se expressar
sem maiores restrições, mas corriam o risco de sofrer represálias.
51
Pois bem, passados anos desde a promulgação do Código de Mello
Mattos, após alguns movimentos de rebelião nas instituições existentes à
época, e outros eventos políticos, como a troca de governantes e a posterior
entrada de uma ditadura militar, após a Declaração de 1959 dos Direitos da
Criança e do Adolescente na Organização das Nações Unidas (ONU)
38
, o
Brasil teve novo momento de debate sobre legislação específica para os
menores (SARAIVA, 2002).
Para apresentar um pouco dos preâmbulos da nova legislação, pude
destacar Francisco Pereira Bulhões de Carvalho, professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro-UFRJ na década de setenta, onde ministrava, dentre
outros, um curso de Direito do Menor na Faculdade Nacional de Direito-FND.
Dele, pude observar que as críticas já vinham contra o Código de Mello Mattos.
Para sinalizar com formas alternativas, o autor passa a discorrer sobre
programas normativos estrangeiros, como da Bélgica e outros. Este livro,
interessantíssimo, publicado em 1970, garimpado também no acervo da
Biblioteca Carvalho de Mendonça, era utilizado em suas aulas e ajudava a
construir formas de observação distintas dos eventos que ocorriam no Brasil e
na atualização da legislação menorista.
Todavia, como toda obra humana, o Código de Menores
apresenta graves defeitos, que têm sido revelados pelo tempo
e pelo aperfeiçoamento do direito: a) conservação da categoria
de “menor delinquente”, quando a infração nada mais é do que
um sintoma de inadaptação; b) a imposição de medidas de
segurança aos menores infratores, muito semelhantes a penas;
c) a falta de caracterização dos menores sob a jurisdição do
Juiz de Menores, que o Código denomina com impropriedade
de “abandonados” e, na realidade, abrange a todos os menores
cuja saúde, segurança, moralidade ou educação estejam
ameaçadas; d) um critério restrito de assistência ao próprio
menor, hoje estendido como assistência educativa à família do
menor; e) a falta de uma legislação complementar pondo à
disposição do Juiz de Menores um complexo sistema de
instituições que lhe permitam a aplicação de medidas
educativas a todos os menores em perigo e suas famílias. Melo
Matos, com sua visão agudíssima do problema, procurou criar,
pelo seu esforço pessoal, numerosas dessas instituições e
associações, e procurou congregar o esforço de toda a
população através do Conselho de Assistência e Proteção aos
38
Esta declaração foi editada através da Resolução n. 1.386 de 20 de novembro de 1959, texto
que influenciou diretamente a construção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível
em: <http://www.direitoshumanos.gov.br/spdca/eca3/convenio/>. Acesso em 14/11/2011.
52
Menores. Hoje se reconhece que, se não se puzer (sic) sob a
jurisdição e à disposição do Juiz de Menores esses órgãos
executivos e complementares à ação social do juiz, o Código
de Menores será letra morta. (BULHÕES CARVALHO, 1970,
pp. 8-9)
Este autor, ousado catedrático para a época, tecia duras críticas ao
programa menorista em vigor, chegou a elaborar um livro com pretensiosas
ideias para abordar/otimizar a prática da assistência aos menores.
Visando
responder
às
críticas
ao
tratamento
dispensado
aos
adolescentes, o governo ditatorial promulgou, então, uma nova legislação.
Mesmo com a Declaração de 1959, que mudava em boa medida as diretrizes
de tratamento/exclusão da juventude em situação irregular, o governo brasileiro
que vigorava quando uma nova legislação pôde ser desenhada ainda era
autoritário demais para deixar que mudanças significativas ocorressem. Veio,
então, o Código de Menores (Lei n. 6.679/79).
Igualmente fundado na doutrina da situação irregular, esta lei tentava se
equilibrar sobre as diretrizes de assistência, proteção e vigilância aos menores,
o que acabava por atualizar, constantemente, a exclusão dos jovens de baixa
renda e sem acesso a oportunidades de serem ouvidos como tais.
O novo Código de Menores (1979) tentava, então, trazer mais
“segurança jurídica”, diminuir os riscos de um decisionismo que se funda
exclusivamente no arbítrio, descrevendo extensamente a possibilidade da
situação irregular. Contudo, ainda assim, não havia qualquer luminosidade nas
situações descritas. As descrições eram permeadas de referências morais,
flexíveis. Essa construção, contudo, não foi inovação do Código de Menores.
Isso pode até mesmo ser visto em relação ao Código de Mello Mattos (1927)
(BULHÕES CARVALHO, 1970, pp. 8-19).
Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação
irregular o menor:
I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde
e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para
provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos
pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
53
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário
aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta
eventual dos pais ou responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave
inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
Parágrafo único. Entende-se por responsável aquele que, não
sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção
ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu
poder ou companhia, independentemente de ato judicial
(BRASIL, Código de Menores) (grifo nosso).
O programa traçado pela legislação acima reproduzida marca a maneira
como o Estado se colocava frente à questão do adolescente ou da criança que
praticavam atos contrários à lei, bem como daqueles que eram vitimados por
atos ilegais.
Conforme aponta o artigo segundo do Código de Menores, a situação
irregular serve tanto para os adolescentes/crianças vítimas como aqueles que
possuem desvio de conduta ou estão em perigo moral.
Escolho, arbitrariamente, dois tipos de conduta que levariam à
irregularidade do menor para tentar indicar um pouco do preconceito que vigia
à época. A categoria do desvio de conduta, por exemplo, lançada na legislação
como autoevidente, quando interpretada, gerava uma normatividade canhestra:
o menor de práticas homoafetivas e aquele que estaria em risco social, ou seja,
o pobre (DELAMARE, 1979 e ASSOCIAÇÃO..., 1980). Apesar de retirar a
descrição do exemplo de um texto ainda não totalmente sobre a vigência do
Código de Menores, justifica-se a manutenção exemplar vez que o Código de
1979
apenas
trouxe
pequenas
atualizações,
mas
não
modificações
significativas nas posturas discriminatórias e decisórias. É impressionante
perceber a pobreza ou orientação sexual como fator criminógeno.
A ligação entre moral e perigo desponta, na medida em que o
homossexualismo, relação jamais tolerada pelos “homens de bem” da
sociedade, sinalizava para indícios de periculosidade, o que era suficiente para
o descarte, ou melhor, a segregação daquele elemento em depósitos humanos,
as instituições de internação.
54
O art. 2º define o que seja situação irregular, para o fim de
saber-se se o Código é a Lei aplicável ao caso concreto sob
exame. (...) O Código versa matéria extremamente maleável e
técnica, exposta às inúmeras contingências da realidade de um
dado contexto sócio-econômico-cultural, o qual, a seu turno é,
por natureza, cambiante. Em conseqüência, há categorias de
situação irregular que se explicam por si mesmas, como é o
caso daquelas estabelecidas pelos incisos I, “a”, II, IV e VI. Mas
há categorias de situação irregular que demandarão do Juiz e
de seus auxiliares exame que leve em consideração
circunstâncias de ordem subjetiva, presentes no contexto em
que o fato ocorra, como são aquelas situações previstas nos
incisos I, “b”, III e V (ASSOCIAÇÃO..., 1980, pp. 6-7)
A partir do julgamento, moral, que o Juiz de Menores realizava, o
adolescente
podia
ser
levado
de
modo
definitivo
a
instituições
de
abrigamento/internação estatais. Isso sem contar no exercício cotidiano da
discriminação que os policiais da época já faziam (e até hoje é o meio operativo
de qualquer polícia).
Ademais, a noção de perigo moral é interessante para apontar para o
imbricamento que ora se põe no foco. A simples moradia em favelas, em
cômodos com pouca condição de habitabilidade, mas sendo o único possível,
gerava esse tipo de enquadramento. Mulher, homem, crianças, todos
compartilhando um mesmo ambiente, pequeno, insalubre, geravam indícios de
promiscuidade e vícios latentes, que, a qualquer momento, irromperiam na
criança ou no adolescente fazendo-os delinquir (MACHADO, 1987).
Paulo Lúcio Nogueira, que durante muitos anos exerceu o
cargo de juiz de menores das comarcas de Tupã e Marília,
Estado de São Paulo, assinala: “A situação irregular do menor
é, em regra, conseqüência da situação irregular da família,
principalmente com sua desagregação. É comum o marido
abandonar a mulher com filhos, obrigada a trabalhar fora,
deixando-os ao abandono material e moral, perambulando
pelas ruas. E os filhos começam a viver soltos, passando fome,
esmolando nas casas, em contato com outros marginalizados,
aprendendo toda sorte de malandragem, acabando pelos
caminhos da criminalidade”. E prossegue o ilustre magistrado:
“O problema todo se resume na estruturação da própria família,
que é o fundamento primeiro da formação humana. A situação
irregular da família gera a situação irregular do menor”.
Liborni Siqueira, juiz de menores da comarca de Duque de
Caxias, Rio de Janeiro, após sustentar impossibilidade de darse solução a médio prazo ao problema do menor infrator, do
menor carente, situando na família a origem do mal, adverte:
55
“O problema é evitarmos que o menor chegue à Funabem,
atendendo à gestante, à nutriz e às crianças de zero a seis
anos. O que não fizermos no período de zero a três anos com
a criança – quando elas formam todo seu complexo emocional
– e de zero a seis anos, quando constrói oitenta por cento de
sua personalidade adulta, não é a Funabem e nem a
psiquiatria, nem a neurologia, nem a psicopedagogia que vão
resolver. Miséria e fome são as grandes causas. Em princípio,
é a família que está abandonada, desassistida e carente.”
(MACHADO, 1987, pp. 5-6)
A longa citação acima serve de exemplo categórico para demonstrar a
medida da exclusão, reforçada por este tipo de atualização, a que eram
submetidos os adolescentes pobres da época.
Mostrando, no passo seguinte à explicitação do programa, uma forma da
descrição do direito do menor dentro do próprio sistema do direito, a doutrina
jurídica, tem-se o excerto acima. Interessante perceber como é apresentado
que a demarcação do “desvio de conduta” ou o “perigo moral” são deixados ao
juiz e seus auxiliares. Mas isso, naquele contexto, não é levantado como um
problema em si, apenas como um evento que merece descrição e cujos
poderes e saberes do julgador serão capazes de dar conta.
Como se pode antever, a dicotomia bem/mal está subjacente na
marcação dos espaços morais que a sociedade apresenta aos adolescentes.
Será considerado em situação irregular aquele que atentar contra os bons
costumes, contudo, tais marcações são deixadas de lado, como exemplo da
demarcação moral providenciada pelo programa normativo do Código de
Menores.
Para viabilizar que os mecanismos de exclusão funcionem de maneira
“azeitada”, a inclusão no direito (através do cumprimento de medidas
socioeducativas ou de outras medidas protetivas) irrompe como uma maneira
de marcar aqueles que possuem a “semente do mal”.
Incluir este grupo no sistema do direito, porém, não se limita apenas a
imposição de medidas socioeducativas e nada mais. A assimilação desta
juventude em conflito com a lei pelo direito gera uma série de outras inclusões,
e exclusões também são geradas. A inclusão no direito gera uma inclusão
temporária no sistema educacional (vez que pela legislação pertinente ao
grupo, a internação impõe a frequência à escola presente no mesmo ambiente
do internato). Mas a inclusão ali, marca as exclusões que virão. Isso, contudo,
56
não é de todo mal para o sistema do direito, em exame. Suas redes de inclusão
geram previsibilidade, segurança, permitem que as expectativas envolvidas nos
sistemas que observam sejam razoavelmente estruturadas.
As redes da inclusão dão segurança, porque geram uma
legalidade própria, estruturam expectativas, canalizam-nas,
estas se expandem, se fixam como parasitas na exclusão da
inclusão universalizada, normalizam-na (sic) transformam-se
em expressões da sua hipertrofia, do seu não controle (DE
GIORGI, 1998, p. 145)
A adolescência, vista sob a dualidade em perigo versus perigosa, tornase o foco de observação do Brasil do fim do século XIX. Da noção jurídica que
abraça a ideia higienista, surge com força a categoria do “menor”.
A atualização desta noção era feita a todo momento nas salas das Varas
de Menores, uma vez que essa construção alcançou grande importância:
dividia a infância e adolescência entre aquela perigosa ou em perigo de se
degenerar, e os adolescentes que, por não estarem reduzidos às exclusões
múltiplas que a baixa renda propicia, eram vistos como adolescentes, e não
como “dimenor” (RIZZINI, 2008).
Salientava-se que a criança deveria ser educada visando-se o
futuro da nação; no entanto, tais palavras, transformadas em
ação, revelavam que, em se tratando da infância pobre, educar
tinha por meta moldá-la para a submissão. [...] Tal opção
implicou na dicotomização da infância: de um lado, a criança
mantida sob os cuidados da família, para a qual estava
reservada a cidadania; e do outro, o menor, mantido sob a
tutela vigilante do Estado, objeto de leis, medidas filantrópicas,
educativas/repressivas e programas assistenciais, e para o
qual, poder-se-ia dizer com José Murilo de Carvalho, estava
reservada a “estadania”. (RIZZINI, 2008, p. 29)
Após diversos problemas nas unidades de internação, como a sabida
violência sofrida pelos internos, os massacres que se justificavam na medida
em que se incutia a “vontade de fazer rebeliões”, mais e mais questionamentos
surgiam ante a rede institucional para atendimento aos menores.
O discurso oficial começava a mudar, tentava-se pensar na manutenção,
sempre que possível, do menor em sua base familiar, mas a própria noção de
57
família que o Estado abrigava (ou ainda abriga) impunha muitas vezes atitudes
drásticas de perda do pátrio poder39, por exemplo, levando os adolescentes a
abrigos ou à adoção (SANTOS in GONÇALVES, 2005).
Vale mencionar que a noção de família e de pátrio poder que traziam a
possibilidade da não internação ainda eram vistas dentro de limites muito
estreitos. Apesar das mudanças sociais visíveis, a tradição brasileira ainda era
por demais autoritária e moralista (e para isso convergiu fortemente a forma de
governo despótica militar). A situação ainda estranha das múltiplas formas
familiares que não eram abrigadas no âmbito do Estado pode ser indicadas
pelo recorte do comentário ao art. 2º do Código de Menores, onde se vê que o
marco moral sobre o qual se fundamenta a distinção da irregularidade do
menor é ocultada, apesar de ser muito produtiva:
Já no inciso I, “b”, defronta-se o intérprete com a necessidade
de estabelecer a extensão da “manifesta impossibilidade” dos
pais ou responsável para suprir as condições essenciais de
subsistência, saúde e instrução do menor.
Haverá “manifesta impossibilidade” quando ocorrer o colapso
do pátrio poder, ainda que eventualmente, em razão de fatores
tais como extrema pobreza ou doença grave, de modo a
impedir-lhe absolutamente o exercício. É preciso, na tipificação
dessa hipótese de situação irregular, evitar-se a transformação
da intervenção judicial em ação de assistência social, afeta a
outros órgãos da administração pública ou da iniciativa privada
(v. art. 159 e seu parágrafo). (ASSOCIAÇÃO..., 1980, pp. 6-7)
As críticas ao atendimento dispensado aos menores, inspiradas nas
diretivas internacionais, vão ganhando corpo e a manifestação teórica começa
a se adensar em sentido contrário ao higienismo, até então praticado
abertamente.
Nesse momento, quando vozes diferentes começam a ser ouvidas (há
que se lembrar de que o fim da ditadura começa nos idos da década de 1980),
formas de comunicar a temática da adolescência em conflito com a lei
39
Isso é uma possibilidade que o Código Civil de 1916 (artigo 395) abria para que os pais
pudessem perder seus deveres/poderes de guarda e cuidado em relação a seus filhos. O
Estado, na figura do Ministério Público, promovia ações judiciais visando a perda do pátrio
poder para que, então, se pudesse encaminhar, à força, o adolescente para casas de
abrigamento ou lares adotivos. Vale a reprodução do artigo:
“Art. 395 – Perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou mãe: I – que castigar
imoderadamente o filho; II – que o deixar em abandono; III – que praticar atos contrários à
moral e aos bons costumes.”
58
começam a ganhar força e repercussão. Um filme como “Pixote – a lei do mais
fraco” (1981) é produzido e alcança enorme repercussão nacional e
internacional. Um momento de transição desponta no horizonte.
A arte traduziu, e possivelmente sensibilizou em suas percepções, ao
direito e à política certa mudança nas expectativas sociais em face do
tratamento da questão das crianças e adolescentes. Movimentos para a
formação da Assembleia Constituinte se formam, e em 1988, é dada ao povo
brasileiro uma nova Constituição. No campo do direito, sempre visto como
conservador, começam a ecoar vozes denuncistas que buscam construir novos
espaços para as comunicações fundadas em direito40.
Nesse novo texto que organiza as relações de um Estado Democrático
de Direito e conecta informações jurídicas e políticas, uma vitória é
comemorada: passa a ser dever do Estado em corresponsabilidade com a
família e a sociedade a defesa intransigente dos direitos da criança e do
adolescente41. Um número razoável de movimentos sociais, organizados
através do até hoje existente Fórum de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Fórum DCA), envolveu-se diretamente na construção dos novos
sentidos que organizariam o Estado.42
Com a nova Constituição e os movimentos sociais participando da
comunicação para tornar conhecidos os programas normativos internacionais
40
Pode-se mencionar Roberto Lyra, por exemplo, com sua doutrina do Direito Achado na Rua.
Através desta formulação, o jurista busca construir uma forma de atendimento da Universidade
à comunidade circundante, sem pensar, necessariamente, na forma de escritório modelo. Uma
aproximação de escritório da cidadania, baseado na observação de que várias eram as
pessoas carentes de direitos no entorno da Universidade de Brasília – DF – UnB, por exemplo,
permitia repensar o modelo de educação dos juristas e a forma preconceituosa com a que
eram tratados os pobres.
41
Referimo-nos, aqui, especificamente ao artigo 227 da Constituição Federal, cujo texto literal
diz: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.”
42
Consideremos que o Brasil vinha de uma recente discussão ampla com a Assembléia
Constituinte. Ademais, o governo estava transitando de uma ditadura militar para uma
democracia, ainda tímida, mas que alardeava suas benesses e possibilidades de exposição de
idéias. Nesse contexto, a aprovação da Lei n. 8.069/1990 foi celebrada junto de uma grande
participação de movimentos associativos. Além disso, somou-se a comemoração por ter,
finalmente, o Brasil realizado uma mudança significativa de tratamento dos direitos
fundamentais, acercando-se da normativa internacional de proteção a direitos humanos.
Notícias como essa encontram-se disponíveis em: <www.promenino.org.br>.
59
sobre direito da criança e do adolescente, abriu-se um caminho para a
reformulação da política de atendimento ao menor, e até para a reforma da
semântica oficial deste tratamento. Em 1990, com atores envolvidos no
movimento de luta política pela realização da Assembleia Constituinte, é
intensamente discutido o modelo de uma nova lei de atendimento aos
adolescentes em conflito com lei. Agora, a semântica foi reformulada para
garantir que os “menores” pudessem ser vistos e ouvidos como crianças e
adolescentes. A dicotomia da adolescência em situação irregular e dos bemnascidos começava a perder corpo na semântica estatal.
Nesse passo, desde o ponto de vista dos juristas, os estatutos43 se
fortalecem e a tradição do “menor” é rechaçada para tentar incutir na sociedade
a noção do “adolescente em conflito com a lei”. O advento do Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei n. 8.079/1990) busca reformular o programa de
atendimento aos adolescentes em conflito com a lei (e das crianças), visando
constituir a “doutrina da proteção integral”, uma tentativa de efetivar a
semântica dos direitos humanos garantida na Constituição Federal, diferente
de tudo o que até então era atualizado na forma de legislações e
normatividades.
2.2. O paradigma dos Direitos Humanos e o Estatuto da Criança e do
Adolescente: do “menor infrator” ao “adolescente em conflito com a lei”
Os
operadores
que
atuavam
diretamente
com
as
dinâmicas
proporcionadas pela legislação menorista foram se inflamando, aproveitavamse os Juízes de Menores de sua posição de prestígio e de voz autorizada para
criticarem, arduamente, a semântica que o Código de Menores atualizava.
Eram eles a voz da experiência, meio revoltada, talvez, em
face da própria impotência ante o gigantismo do problema, cuja
solução lhes fugia, pois dependia mais de decisão política que
assegurasse o envolvimento de vários outros órgãos do poder
43
Formas legislativas que, em seu bojo, deveriam enunciar direitos humanos já chancelados
mundialmente e regular situações e comportamentos visando sua realização.
60
público, em todos os níveis da administração. (ROLLEMBERG,
1990, p. 7)
Veiculava-se o ranço autoritário e estatalista, que vinha subjacente à
doutrina da situação irregular, já por duas vezes teve a chance de se atualizar
em legislação e não se mostrou benéfica (ROLLEMBERG, 1990, p. 9). Vale
perceber que desde o começo dos debates sobre nova legislação para tratar
do assunto do “menor” o Projeto de Lei n. 193/89, que daria origem ao Estatuto
da Criança e do Adolescente após a aprovação nas Casas Legislativas,
recebeu a preferência pelos debates e reverberações. Inovadora, a legislação
vinha embebida na doutrina da proteção integral, internacionalmente
chancelada, mas com poucos países que se dispunham a atualizá-la em seus
programas legislativos. Não havia como ignorar a inoperância das instituições
de atendimento e tratamento de menores no Brasil, situação que já se
arrastava desde o Código de Mello Matos (1927) (ROLLEMBERG, 1990, p. 10).
Atualizada, então, a descrição inovadora e potencial produtora de novas
decisões, restou aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente na forma da
lei federal n. 8.069/1990. Essa legislação, celebrada até hoje como marca de
imensa modernidade do país, vai nos permitir observar a construção do
adolescente em conflito com a lei, buscando ver a atualização da semântica do
“menor infrator” para o “adolescente em conflito com a lei”, e os paradoxos que
daí poderão advir.
A sinalização do programa legislativo é bem distinta, também, uma vez
que o Código de Menores já começava demarcando as irregularidades que
seriam objetos de combate pela mão forte do Estado. A legislação atual se
inicia apresentando como disposta para a proteção integral da criança (pessoa
de até 12 anos incompletos) e do adolescente (entre 12 e 18 anos)44.
No campo, por exemplo, da dinâmica de regulamentação desse público,
o texto normativo remete a deveres em corresponsabilidade entre familiares e
sociedade em geral, incluindo, aí, o Estado para assegurar ao público juvenil
seus direitos humanos, garantias de dignidade e primazias em situação de
perigo.
44
Refiro-me aos artigos 1º e 2º da Lei n. 8.079/90.
61
A tentativa de desconstruir a tradição menorista e tornar a proteção
como norte, cujo êxito pode até se discutir, mas não é o mérito do presente
trabalho, volta a trazer um problema: o paradoxo de fundar uma atuação estatal
sob um olhar potencialmente benévolo.
Por exemplo, pode-se pensar no art. 5º da Lei n. 8.079/90, cuja
transcrição me eximo de efetivar, mas reporto. Este artigo informa que
nenhuma criança ou adolescente será negligenciado, discriminado ou
explorado sem que o “algoz” seja punido na forma da lei, por seus atos
contrários aos direitos humanos. Interessante, mas se resvala ao mesmo
paradoxo que há quando se trata o direito penal: como falar em resguardo de
direitos humanos se não se sabe o que são eles? É só contra o Estado que se
erguem os direitos humanos?45
O esforço que se fez foi para tentar deslocar o adolescente de objeto de
legislação a sujeito de direitos. Esse movimento é muito interessante, muito
significativo, mas a legislação da década de 1990 que tematiza os
adolescentes em conflito com a lei conserva algumas reverberações que ainda
a aproximam de opções “tratamentistas” do positivismo dos idos do século XIX,
da força higienista algo permaneceu hereditário46.
Apesar de não falar diretamente do Estatuto, a observação proveniente
de uma socióloga que busca reconstruir historicamente a política pública de
atendimento a crianças e adolescentes, ainda é atual.
A arena política, dominada por uma elite letrada, de formação
predominantemente jurídica, tinha diante de si uma opção
paradoxal a fazer: educar o povo, porém garantindo seus
privilégios de elite. Instruir e capacitar para o trabalho,
mantendo-o sob vigilância e controle.
Estas contradições parecem indicar que o espaço aberto à
organização e atuação da Justiça-Assistência no país
45
O art. 94 do ECA traz as obrigações de observação que uma entidade de internação, ou
seja, um educandário, precisa desenvolver para não se encontrar, a instituição, em conflito com
a lei. Ocorre que o nível de abertura de sentidos a que se chega não difere, em muito, daquele
apresentado anteriormente no Código de Menores de 1979, contra o qual se pretende erguer
uma nova tradição judiciária e jurídica.
46
Refiro-me ao art. 123, parágrafo único da Lei n. 8.079/90, que, não sem algum acerto, em
minha opinião, textualiza a obrigatoriedade da educação em situação de internação. Não quero
crer que não há o que se fazer, mas é certo que apoiar tudo na educação parece remeter à
própria ideologia do Código de Menores que queria salvar o menor tornando-o um cidadão útil
através da educação e profissionalização.
62
contribuiu para o desenvolvimento de uma política que primava
pela exclusão social. (RIZZINI, 2008, p. 143)
Nesse sentido, a adolescência foi cindida: um grupo deveria se tornar
cidadãos úteis à nação na medida em que poderiam fazer uso de suas forças
para trabalhar em locais indesejáveis para a sociedade sadia; outro, aqueles
que receberiam a segurança legal para ver seus direitos fundamentais
respeitados por virem de famílias organizadas dentro das expectativas estatais
(adolescência não-pobre), esses veriam seu tratamento mudar (RIZZINI, 2008,
p. 143-145).
Se pensarmos no presente como aquele futuro idealizado pelos
reformadores da passagem do século, veremos que apesar da
ingenuidade e da boa fé de muitos de nossos filantropos, as
estratégias selecionadas para a reforma do Brasil não visavam
outra coisa senão promover uma reordenação do poder
vigente, mantendo-o restrito a um determinado segmento,
como um dote ou um privilégio de poucos. Nesse sentido, a
criança foi de fato instrumento valioso – uma espécie de “chave
para o futuro” – que precisava ser salva para salvar o país.
Porém, na perspectiva daqueles que se viam ameaçados de
perdê-lo. (RIZZINI, 2008, p. 152)
Assim, no rastro da autora Irene Rizzini (2008), pensa-se sobre a noção
da menoridade, alusão maior ao pensamento pré-Estatuto da Criança e do
Adolescente. No entanto, a cisão do “adolescente infrator” ou “em perigo de o
ser” ainda é produtiva na atualidade. Isso porque a atualização das
organizações do texto do Estatuto ainda vem marcada pela diferença que já
era reconstruída, no âmbito de um reforço moralizador e saneador, pelo Código
de Menores: os pobres e aqueles cuja moralidade é diferente da desejada pelo
Estado, ainda são clientes preferenciais das instituições de internação de
adolescentes.
É interessante pensar numa questão: como se realizaria uma mudança
de um paradigma cuja fundamentação de ideias está calcada na irregularidade
do menor para outro onde o adolescente deve ser visto e protegido, em seus
vários aspectos biopsicossociais? Pois nesse sentido, (re)toma força a noção
de direitos humanos, assim, sem muita reflexão, mas com um forte caráter
moralizador e operativo. Para, então, fazer com que uma observação de
segunda ordem se opere, traçam-se algumas linhas sobre a questão.
63
2.2.1. Na transição, operações são feitas...
Mesmo apresentando as distinções que se produziram a partir das
legislações e de semânticas que se fizeram públicas sobre a temática do
adolescente
em
conflito
com
a
lei,
algumas
formações
conceituais
permaneceram úteis e práticas. O público alvo da legislação, biologicamente,
não sofreu grandes mudanças (as idades visadas pelas duas legislações são
próximas), o perfil socioeconômico também sofreu poucas mutações, o ideário
que fundamenta a atuação operacional das organizações que lidam com o
público do jovem transgressor também permaneceu.
Não importa se na favela, numa “poblacione”, num “gueto” ou em
qualquer outra zona de desintegração social, ali é onde as instituições públicas
produzem mais e mais marginalidade. Da atuação seletiva das polícias à
decisão produzida pelas organizações de assistência, há várias formas para
demarcar essa diferença e extrair dela maior eficiência nos processos de
exclusão (WACQUANT, 2005, pp. 7-10).
Apenas com a diferença de raça ou etnia não se dá conta da
complexidade que a noção de guetos obscurece: a comunicação, na produção
de suas seleções, pode até receber um rótulo simples desde um ponto de vista,
mas sua análise não é fácil.
Cada seleção agrega complexidade num instante, para recortá-la noutro.
Por
isso,
a
análise
dos
processos
de
criminalização
deve
eleger
criteriosamente os conceitos com os quais opera, para que não seja leviana
com o evento que pretende descrever. Um dos cuidados para os quais
queremos chamar a atenção é a articulação entre a criminalização da pobreza
e a concepção moralista das “classes perigosas”, articulação tratada por vezes
como problema urbano. Sob este ponto cego, as políticas públicas acabam por
demarcar a diferença estigmatizadora dos pobres, tal qual no século XIX. Outra
questão a ser cuidada é a reprodução mecânica de conceitos analíticos quando
se trata da sua importação. A chamada “guetificação da favela” no caso do
64
Brasil é uma importação um tanto apressada, uma vez que há diferenças
significativas entre gueto e favela (espaço urbano ocupado, por exemplo).
Uma favela brasileira pode ser muito semelhante a um gueto
negro norte-americano quando comparamos as suas
respectivas condições sociodemográficas, pois ambos são
territórios de concentração de camadas pobres com forte
presença de segmentos não-brancos, jovens e velhos, de altas
taxas de desemprego, especialmente entre os jovens, de
famílias chefiadas por mulheres etc. Quando comparamos,
porém, os lugares ocupados por uma e outro em seus
respectivos espaços sociais, verificamos a existência de fortes
diferenças. (RIBEIRO in WACQUANT, 2005, pp. 15-16).
Ressalvadas essas diferenças, podemos admitir que a produção do
criminoso no Rio de Janeiro apresenta similaridades no que tange ao “lócus” de
pertencimento daqueles que serão marcados como “bandidos”.
Nos espaços marcados pela ausência de laços políticos, onde a
população marginalizada se constrói em torno de um estigma que realoca,
inclusive, moralidades através da dicotomia “trabalhador” x “bandido”, não é de
estranhar que as relações entre tais pessoas e a polícia, uma das instituições
mais acionadas em tais contextos, seja bastante belicosa e detonadora de
convulsões sociais relevantes.
A criminalização (processo em que há a leitura transposta do tipo ideal
lançado no Código Penal, aplicado por analogia aos adolescentes em conflito
com a lei), é bastante seletiva e possui na raiz de sua seletividade, outro
processo social, a incriminação, quando se marca o autor e lhe atribui a
inclusão no direito como seu transgressor (MISSE in PAIVA & SENTO-SÉ,
2007, pp. 191-192). Esses processos pertencem a uma série de outros eventos
sociais que, muitas vezes, acabam por habitar sujeitos específicos, marcados
pela “sujeição criminal”, quando o banditismo já está tão apegado à
personalidade do ator que já não há mais possibilidade de mudança (MISSE in
PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, pp. 192-193).
São poucos os criminosos que iniciam sua carreira criminal após os 25
anos, também poucos os que continuam trabalhando após os 40 anos. Nessa
carreira, como em tantas outras, a opção pelo ingresso acontece na
adolescência (MISSE in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007).
65
Uma parte dessas escolhas, como dizia David Matza, resulta
de pura “deriva” juvenil que terminou em processo de
incriminação e sujeição criminal. Se o jovem não foi, então,
acusado, tenderá a retornar à sociedade abrangente ou mesmo
a jamais entrar para o “mundo do crime”. Mas aqueles entre os
que “derivam” e que passam ou passaram pela experiência do
internamento dificilmente escaparão de uma carreira criminal
(MISSE in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, p. 197).
A sujeição criminal, conceito cunhado recentemente, é interessante para
pensar uma desconstrução do adolescente em conflito com a lei. À luz desse
conceito, parece- nos que as ideias do tratamento e da socioeducação,
abertamente assinaladas no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente,
não implicaram em maiores modificações nas práticas sócio-educativas.
O desenvolvimento da tese higienista, que campeava os Códigos de
Menores (desde 1927 a 1979), parece forte demais para ser mudada pela
reformulação semântica que empreende o Estatuto, uma vez que os
indesejáveis da sociedade, os “menores”, ainda recebem a marca dos
bandidos imodificáveis e têm suas singularidades reduzidas ao papel do
criminoso.
Uma questão ressalta: o tratamento que impunha o Código de Menores
foi só atualizado para o adolescente no contexto do Estatuto da Criança e do
Adolescente? Essa questão ficará em aberto até que se possa tentar construir
uma resposta a ela junto do campo, o que ainda não foi possível.
Se algum pesquisador tiver a paciência que eu tive em
consultar os documentos que acompanham o “menor” quando
de sua internação, verificará que tudo está lá, tudo se
esclarece, tudo é bem feito nas entrevistas das assistentes
sociais: sabe-se bem da trajetória daquele jovem, conhecem-se
seus traumas e problemas, seus dramas. Está tudo lá, nos
papéis. Mas não há nada que se possa fazer, aparentemente,
para tirar proveito dessas informações em benefício do
adolescente. Ele, como os papéis, é misturado aos outros, sua
individualidade se desfaz na homogeneidade da sujeição
criminal. Já é bandido, nada mais. Nada se aproveita da
reconstrução de sua trajetória pelas assistentes sociais. Posto
de lado, ele próprio é uma facção de si mesmo e uma facção
frente a todos os demais jovens. Não admira que venha a se
juntar com outros si mesmos fracionados para formarem uma
facção social, com um ethos guerreiro capaz de conduzir seu
conflito especial com outras facções ou com a polícia (MISSE
in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, p. 199).
66
No clima do desabafo científico-metodológico, é interessante perceber
que, apesar de tentarmos trabalhar sob um registro semântico diferente, o do
Estatuto da Criança e do Adolescente, que traz a aquisição do sujeito de
direitos (e não mais objeto da lei), a todo tempo somos confrontados com a
situação oposta.
Ainda há, atualmente, questões levantadas pelos especialistas em
direito, que visam questionar a potência de um Estatuto fundado na chamada
doutrina da proteção integral. Há os que, das comunicações jurídicas, relevam
importância ao chamado “direito penal do menor”, ou direito penal juvenil.
Nesses casos, legislações e operadores enxergam as crianças e os
adolescentes como sujeitos ao direito penal, não sujeitos de direitos (SARAIVA,
2002, pp. 14-15).
2.3. Mirando um Estatuto futuro, acertando uma legislação passada: o
paradoxo do Estatuto da Criança e do Adolescente
No passo da observação que se veio trazendo até agora, pode-se
constatar algumas questões muito interessantes. Os direitos da criança e do
adolescente, cuja construção, com esta nomenclatura, deu-se após o Estatuto
(1990), vêm todos fundamentados na noção de direitos humanos. Arriscaria
dizer, dado o caminhar da pesquisa, que ali se trata de direitos fundamentais,
mas isso, ao final, diz pouco.
Contudo, a maneira como se permanece a tratar os adolescentes em
conflito com a lei continua, também, a dizer muito sobre os preconceitos e as
tradições com que se maneja tais situações. Quando buscamos ler,
integralmente, o Estatuto, ou mesmo seu reforço operativo, o SINASE47,
percebemos a dificuldade que é de se desvincular da noção tratamentista que
47
SINASE (2006) é uma abreviação de Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, um
programa normativo-executivo que serve para dar diretrizes ao tratamento/atendimento aos
adolescentes em conflito com a lei. É uma espécie de reforço semântico-operativo do ECA. No
entanto, quando se debruça sobre tal texto, percebe-se, novamente, diretrizes genéricas,
formas de se simbolizar direitos fundamentais que não deixam rastros de como se poderão
efetivá-los.
67
vinha desde o tempo do Código de Menores, conforme já restou exemplificado
noutros momentos acima e ficará mais claro ainda pouco adiante.
Vale notar que o direito, como sistema social, possui estruturas,
adensamentos de sentidos - expectativas que podem se repetir - que permitem
que as operações ocorram sem que uma rede extremamente complexa de
eventos seja posta em inflexão. As estruturas permitem maior rapidez,
agilidade na observação de primeira ordem, por exemplo, facilitando o
processo comunicativo, e mantendo a autopoiese do sistema (CORSI, 1996, p.
73-74).
A relevância de tal ponto teórico se mostra grande na medida em que,
posteriormente,
serão
mobilizadas
questões
atinentes
a
expectativas
envolvidas no sistema observado, que tratarão de permitir maior visualização
de alguns paradoxos.
Até agora, traçaram-se linhas sobre programas legislativos e normativos
sobre adolescentes e crianças. Alguns dos paradoxos que envolvem esta
realidade normativa vieram à transparência. Mas, nossa opção, aqui, é
apoiarmo-nos na visualidade que o suporte empírico do meio cinema nos
permitirá para tornarmos ainda mais expostos os paradoxos a que aqui nos
referimos. Pois com os sinais que se podem alcançar com a arte imagética do
cinema, algumas exemplificações poderão se tornar mais claras.
[…] El arte sería capaz de ofrecer formas que pongan de
manifiesto que el orden es posible aun en condiciones reales
de clausura operativa tanto de los sistemas neurofisiológicos,
como de conciencia y de comunicación, y que muestren que la
arbitrariedad es imposible por más imprevista que sea la
información (LUHMANN, 2005a, p. 20).
É com a expectativa de que a arte possa trazer contribuições
importantes para observar paradoxos e estruturas latentes, como a de direitos
humanos, por exemplo, que se tenta realizar essa pesquisa.
É traço característico da arte a imbricação de significante e significado,
sendo processados simultaneamente pela percepção (consciência) para então
se completar o acoplamento arte-sistema psíquico (LUHMANN, 2005a, p. 22).
Portanto, a semântica dessa comunicação é veiculada junto de sua
68
complexidade. Tal potencialidade deixa perceber a viabilidade da observação
arte-direito.
Nesse
momento,
pudemos
observar
alguns
dos
paradoxos
e
dificuldades, a seco, do que se trata nesta pesquisa, algumas dificuldades e
construções dos programas normativos que abordam os adolescentes, fosse o
programa antigo, o Código de Menores (1979), fosse o programa atual,
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
O próximo passo vai em direção à conexão direito-arte, através da
observação dos sinais que a arte deixa, para depois, então, tentar aproveitá-los
para esclarecer e iluminar detalhes que o direito obscurece.
69
Capítulo 3
O DIREITO VISTO NO CINEMA
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
(HOLANDA, Chico Buarque de. Até o fim)
Passado o momento sobre o qual se definiram as balizas teóricas em que
se movimentará o argumento desenvolvido na pesquisa, além de explicitados
dados e distinções sobre direitos da criança e do adolescente, um novo olhar é
lançado sobre este campo.
Tal olhar, no entanto, inova em razão do instrumento para sua realização: o
cinema. Seguindo traços que as imagens podem nos indicar (conforme se pôde
ver da descrição feita da semiótica deleuziana) tentaremos observar alguns
paradoxos dos direitos humanos, mais especificamente, dos direitos da criança e
do adolescente.
Através da mobilização do filme Pixote – a lei do mais fraco (1981) serão
construídas questões que aparecem naquela realidade reproduzida de modo
iconográfico, referentes aos recortes de realidade e à própria normatividade
vigente à época, bem como dali serão levantados problemas em confronte com a
atualidade da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei de 1990.
Expectativas sociais que são ajudadas pelas imagens e formas de sensibilização
e percepção que o cinema proporciona, aí presente o filão do qual se aproveita
esta pesquisa. Caleidoscopicamente, observaremos o filme Falcão: meninos do
tráfico (2006). Acreditamos que poderemos atualizar a observação realizada a
partir de Pixote e iniciar novas problematizações e reflexões.
Feita essa digressão, demonstra-se a forma de organização deste capítulo.
Inicialmente, haverá uma introdução que busca justificar a utilização dos filmes
escolhidos, Pixote – a lei do mais fraco (1981) e Falcão: meninos do tráfico
(2006), como instrumento para colocar o rigor da produção de conhecimento à
prova. Ainda aí, serão informados parâmetros de observação.
70
Na elaboração deste capítulo, estamos atentos para os riscos do uso da
perspectiva direito-arte para uma observação do direito, sobretudo no que diz
respeito às chances de estetização deste. De fato, a razão do uso da ferramenta
estética é outra.48 A arte pode, é a hipótese com a qual pretendo operar, ofertar
novos sentidos, novas cores às observações. Pode-se, através do sensível, tentar
alcançar o não-dito, sensibilizar operadores e mesmo sistemas que operam. Com
tal acréscimo de complexidade que se pretende lidar para realocar as discussões
acerca dos adolescentes em conflito com a lei. Realizada breve justificativa,
passa-se a análises dos filmes e dos questionamentos através deles suscitados.
3.1 Apontamentos para observar
Dado o fato de que o escopo desta proposta é assumir como suporte
empírico o cinema para observar as operações que ocorrem no sistema do direito,
algumas perguntas se levantam para desafiar a pesquisa: como pensar e operar
as distinções de “práticas reais” e o imaginário que a arte propicia? O quê se pode
aprender de novo através do cinema que os manuais não proporcionam? A
escolha dos filmes, no grupo do “cinema-documentário”, alcunhado, por vezes, de
“arte do real” (LINS in BENTES, 2007, pp. 225-235) pode dar alguma pista, mas
não é definitiva.
Para responder a tais questionamentos, há que se pensar junto, para
escapar do abismo da tensão “real” x “fictício”, ponto sobre o qual diversos
filósofos já se debateram e pouco avançaram. Apesar das complexas tramas
semânticas sobre as quais se debruça este trabalho, bem como da importante
sombra filosófica que pesa sobre o texto, nossa discussão não se pretende tão
abstrata quanto uma boa filosofia. Com o uso da empiria, ainda que de maneira
um tanto quanto diferente do comum, escapamos deste abismo para poder nele
lançar uma ponte.
48
Acredito relevante colocar aparte indicador de que o trabalho da justificação direito-cinema
encontra-se em outro artigo, ainda inédito, sob o título Direito e arte: observando um acoplamento,
2011.
71
A realidade ou a ficção não são distinções tão relevantes para a
observação proposta nesta pesquisa49. Não se nega aqui a importância de tal
diferença, mas se lhe obscurece o resplendor para que possamos ultrapassar tal
distinção e prosseguir com a análise que pretendemos.
Para Luhmann (2005a), ou mesmo Deleuze (2007), não importa em qual
dos lados da distinção entre o real e o imaginário (ou fictício) se esteja
trabalhando, uma vez que para ambos a interpretação daquela realidade a cria,
constrói uma realidade sempre distinta e recriada, que entra em contato de novo
com o texto original, confronta-o, nega-lhe veracidade, mas, ainda assim, é só
uma interpretação diversa daquela que poderia ter ocorrido. Por esta razão,
deixa-se de lado a discussão entre o real e o fictício para fins da observação que
pretendemos realizar.
Mas escapando a uma distinção tensa entre realidades não driblamos a
objeção acerca do tipo de arte que será mobilizada. Documentário, arte do real,
ou ficção, arte do imaginário? Pois então, que nos exercitemos um pouco mais.
Caso a tensão ficção-realidade fosse significativa, a opção quase natural
de escolha das produções artísticas seria pelos documentários (no caso dos
filmes) ou pela produção literária que se aproxima de etnografias, descrições de
acontecimentos passados. Não é o caso. No entanto, é o caso! A opção tomada
por este pesquisador em se utilizar das imagens e diálogos advindos de filmesdocumentários como Falcão... (2006) poderia nos levar à mesma visão abismal,
mas a escolha de um drama muito real, Pixote... (1981) ajuda a escapar desta
dificuldade.
A escolha, contudo, fez-se através de um critério diferente daquele da
proximidade com o real, optei pelo critério da visibilidade. A diferença entre
realidade e ficção não faz muito sentido na medida em que uma realidade
ficcional é possível a partir de diferenças que se constroem entre o real e o
fictício. Não é tão relevante para construir um raciocínio teórico tal como é
proposto aqui. A visualidade alcançada por certos parâmetros, contudo, é mais
interessante, considerando que vivemos sob a égide de uma sociedade que tem
49
Caso queiram consultar uma leitura interessante e pertinente com as discussões aqui travadas,
remeto a CARNEIRO, Ana Beatriz Menezes de Lucena. Juventude criminalizada em “cena”:
uma análise iconográfica dos discursos que justificam a violência urbana, 2008. Monografia da
ESS-UFRJ orientada por: Miriam Guindani, professora do PPGD/UFRJ.
72
no visível um dos seus maiores a priori. Refiro-me à capacidade que cada uma
dessas obras teve de repercutir no cenário mundial. Pixote... (1981) foi ganhador
de diversos prêmios mundialmente reconhecidos50, tratando do assunto dos
adolescentes em conflito com a lei, temática que normalmente não é muito
explorada. Falcão... (2006), documentário oriundo de diversas entrevistas com
adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, segue um roteiro bastante
diferente, mas suas premiações também nos auxiliaram na escolha51. Entre as
escolhas, um largo espaço de tempo, com diversos tipos de acontecimentos
socialmente relevantes. Dentre os acontecimentos, o evento legislativo da
atualização da legislação que alcança os adolescentes e crianças é um campo
rico de observações. Ali nos deteremos.
Até agora, busquei explicar as razões do uso de tais obras artísticas. Mas
outro problema me surge: a dilatação temporal entre os dois filmes escolhidos.
Como deixar escapar uma complexa teia de comunicações que envolvem desde a
ditadura militar com seu início em 1964 e sua decadência progressiva, a anistia
política e a abertura democrática do início dos anos 80, culminando na
Constituição de 1988?
Diluídas no trabalho, há menções a tais eventos de grande importância
sócio-histórica, mas por uma objeção simples, a complexidade deste processo e
de sua temática correlata, não se pôde explorar melhor tais eventos. Contudo,
não há perdas significativas de sentido, na medida em que a visibilidade que
atingiu as obras cinematográficas escolhidas permite que haja um deslocamento
temporal a partir das próprias imagens. A desconstrução do contexto observado
pelas películas permite a realização de uma desconstrução da atualidade. Por
esta razão, não se crê numa perda gritante pela opção de diminuir as
observações historicizantes para trabalhar uma observação atual e mais pontual.
50
Foi indicado ao Globo de Ouro 1982 (EUA) na categoria de melhor filme estrangeiro. No Festival
de Locarno 1981 (Suíça), o diretor Babenco recebeu o Leopardo de Prata, no Festival de San
Sebastian 1981 (Espanha), recebeu o Prêmio OCIC. Onde primeiro foi exibido, recebeu o Prêmio
NYFCC 1981 (New York Film Critics Circle Awards, EUA), quando venceu na categoria de melhor
filme estrangeiro.
51
Ganhador do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha na categoria Televisão, além
de prêmios por outros 26 países do mundo, conforme notícia disponível em:
<http://www.cufa.org.br/in.php?id=2010/mat10_079>. Acesso em 10/08/2011.
73
3.1.1 Agora, a lente com a qual se observa
Aponto algumas das categorias que devem ser mencionadas ou
relembradas para tornar claro o parâmetro de observação que o texto pretende
fixar. Primeiro, a sociedade, em Luhmann, identificada à comunicação. Por esse
motivo, resta importante relembrar seus termos. A comunicação, operação própria
dos sistemas de sentido, é o resultado de três seleções: a) ato de comunicar; b)
informar; c) ato de compreender a diferença entre emissão e informação (CORSI,
2006, pp. 45-6). A compreensão é o evento mais improvável e mais importante,
uma vez que atualiza a distinção que fundamenta a comunicação, exclui tamanho
número de possibilidades e marca uma (ou poucas) e, ainda, pode permitir que o
evento comunicativo prossiga recursivamente.
No capítulo 1 pretendi esclarecer isso com mais minúcias, mas aqui, além
de me remeter a ele, relembro que em cada seleção, uma distinção é marcada.
Uma operação se realiza, uma contingência é criada, deixando à margem um
horizonte de possibilidades de significação e, no outro lado da forma, a distinção
tal como marcada.
Apesar de a comunicação emergir de relações entre seres vivos, a
comunicação pratica uma sequência de transformação de signos (atribuindo-lhes
sentidos já repetidos no âmbito do repertório de significados mobilizados pelo
medium escolhido, no caso a linguagem iconográfica), o que permite à
consciência, partícipe na comunicação, tempo para autorreflexão (uma vez que o
tempo envolvido no processo comunicativo é muito superior ao tempo da
percepção/consciência), sem, contudo, ser a única responsável para que a
comunicação se faça (LUHMANN, 2005a, p. 24).
A ligação que o tempo aponta também faz lembrar de outra ligação sempre
importante para a observação que buscamos efetivar: o acoplamento estrutural,
uma operação muito importante, utilizada para a própria manutenção e cognição
sistêmicas. O acoplamento se dá quando um sistema oferece parte de sua
complexidade e de seus sentidos a outro, e este aproveita as estruturas
74
(adensamentos de expectativas) do sistema ofertante para, então, sobre estas,
produzir novas informações e aprimorar suas próprias operações (LUHMANN,
2009).
A complexidade, que envolve toda a sociedade, poderia impor que um
evento jamais tornasse a ocorrer. No entanto, através da fixação (num dado
tempo) de estruturas móveis, pode-se vislumbrar uma recursividade dos eventos
comunicativos, fazendo ocorrer o engate de um fluxo (LUHMANN, 1998, pp. 255324).
Por meio do mecanismo do acoplamento estrutural, autodescrições do
sistema (teorias), maneiras de explicação de seu funcionamento, são possíveis e
acrescentam mais e mais complexidade ao sistema mesmo. E através da
observação do medium cinema, acredita-se que pode ocorrer um acoplamento
interessante entre direito e arte, possibilitando aquele se irritar e observar mais
reflexivamente suas operações (observação de segunda ordem).
Através de observações de segunda ordem, ou seja, observações de
observações realizadas por sistemas, podemos acreditar que a complexidade vai
se somando a cada evento. Mas para este nível de complexidade poder ser
depurado e compreendido, podemos nos utilizar de facilitadores, como a
visualidade, para auxiliar nesta tarefa. A percepção e o sensível ganham força na
construção das expectativas sociais que vão construindo desejos de mudança e
potências para tanto.
Mas não só a visualidade é auxiliadora, há também as semânticas,
fixações de sentido (obtidos na comunicação) que buscam a repetição em
eventos similares, otimizando as operações sistêmicas. Isso traz ao operar do
sistema maior autorreferência, uma vez que suas próprias demandas de
estabilização atualizam uma maneira de operar simplificada, e, por consequência,
reforça a heterorreferência, já que os sentidos são estabilizados e condensados a
partir de constantes influxos comunicacionais advindos do ambiente do sistema,
que demandam a reflexão para a operação. E através de conjuntos adensados e
recursivos de sentidos ocorre uma importante facilitação do acoplamento
estrutural.
Utilizando, como é nossa proposta, a visualidade contida nas artes
cinematográficas, podemos marcar, no mínimo, uma especificidade: a operação
75
realizada pelo sistema da arte busca comunicar diretamente à percepção, por
vezes, também, à imaginação (LUHMANN, 2005a). O objetivo da comunicação da
arte é observar o mundo no mundo, ofertando ao mundo uma forma (obra de arte)
que lhe permita (em algum aspecto) um acréscimo de reflexividade.
A interpenetração que há entre consciência e comunicação já foi melhor
explorada anteriormente, mas, aqui, deixa-se apenas a menção desta relação e
lança-se a comunicação de que a irritação que poderá advir desta tensão poderá
produzir alguma aquisição adaptativa52, o que é de nosso interesse sempre
próximo.
Com toda essa digressão, retoma-se o fio de argumento do trabalho: a
iluminação de paradoxos dos direitos humanos, especificadamente dos direitos da
criança e do adolescente, com o apoio dos filmes escolhidos. A imagem oferece
grandes marcos de compreensão, fixando sentidos e os veiculando. A longa
explicação conceitual da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann fez-se relevante
na medida em que explicita o caminho trilhado pela pesquisa para tentar lançar
luz aos paradoxos. Desta forma, vale, então, observar uma produção imagética
como maneira de autodescrição da sociedade.
3.2 OBSERVANDO PIXOTE... E UM POUCO MAIS
Visando uma breve contextualização, podemos apontar o ano de
lançamento do filme Pixote – A lei do mais fraco, 1981, levantando com isso
diversos recortes de apresentação deste conjunto de condições históricoculturais. Optarei por uma observação jurídico-cultural. Não será feita uma
narração extensa sobre o filme, mas aparecerá, pontualmente, referência no que
couber.
O filme, concebido na modalidade de romance-documentário, apresenta
um recorte sobre a realidade dos “menores infratores” internados em instituições
de cárcere, sendo certo que a história se passa em São Paulo e a instituição em
52
Algum ganho que poderá obter o sistema, tornando-o mais adaptado à contingência de seu
ambiente, garantindo, então, a permanência de sua diferenciação (mesmo que essa garantia seja
temporária).
76
foco é a FEBEM53, Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor. É
interessante notar que à época, vigorava no Brasil o chamado Código de
Menores, instituído através da Lei Federal n. 6.697, datada de 10 de outubro de
1979. Essa ordem normativa possuía um forte caráter assistencialista, que visava
ocultar a mais forte tendência segregacionista. Ainda havia grande influência
higienista54, inserindo-se tal proteção legal no âmbito do que foi chamado pela
dogmática da criança e do adolescente de doutrina da situação irregular. Todos
os menores que estivessem em situação irregular, poderiam ser alvo da proteção
estatal exercida através das FEBEM’s.
A proximidade da promulgação legislativa com o feriado nacional que
celebra a padroeira do Brasil (e também o dia das crianças) é, no mínimo,
intrigante. A permanência dos moldes autoritários e primitivos de investigação, a
quase inexistência de garantias processuais, como defesa técnica e ampla, ainda
eram barreiras não vencidas pela legislação atualizada da época.
Defensores da Doutrina da Situação Irregular argumentavam que
a intervenção do Poder Tutelar, por ser em essência protetivo,
garantiria por si mesmo a preservação dos interesses de seus
tutelados, não sendo necessário que as garantias elementares do
Direito fossem anunciadas para essa parcela da população.
(SANTOS in GONÇALVES, 2005, p. 211)
Entre 1927 e 1979, tendo como ponto de observação a legislação
menorista, as atualizações ocorridas através do Código de Menores demandaram
poucas mudanças efetivas. Crianças, “menores em perigo moral” – esse era o
53
As FEBEM’s eram organizações de atendimento, assistência e encarceramento de menores
infratores, derivadas da FUNABEM – Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor, que lançava
diretrizes de atendimento e assistência, além de fazer inspeções. Como se pôde constatar pela
vivência desta época, esse sistema não funcionava bem, sendo alvo de vários escândalos de
corrupções e de rebeliões dos internos.
54
A tensão naturalizante do normal versus anormal, do desvio, era respondida, no início do século
XIX e virada do século XX através do que se convencionou chamar por higienismo. Corresponde a
um condensado de idéias que buscava limpar a sociedade através da extirpação do desviante,
recolhimento ou ostracismo. Baseava-se em pressupostos de saneamento social para manter e
recrudescer a ordem (Cf. SANTOS, Erika in GONÇALVES, H., 2005, pp. 205-248). Isso já deve ter
ficado bem claro a esta altura, uma vez que no capítulo 2 buscou-se trabalhar com mais minúcias
o tema.
77
termo utilizado pela legislação da época55 –, poderiam ser recolhidas a
instituições sem maiores justificativas.
Agora, podemos nos dedicar a observar e descrever um pouco mais o filme
objeto da observação de agora.
Pixote... (1981) é um filme baseado num romance chamado A infância dos
mortos de José Louzeiro. A história se desenvolve no cenário de misérias, as
proximidades das favelas de São Paulo, na virada da década de 70 para 80,
quando uma forte crise econômica assolava o país. Neste contexto, o pequeno
João Henrique, Pixote, é recolhido junto de outros tantos meninos nas ruas e
levado à Instância Policial para “averiguações” e dali são encaminhados
diretamente para uma casa de custódia, a FEBEM de São Paulo, quando começa
a trama.
Selecionarei eventos que entendo significativos para o recorte e a
iluminação dos paradoxos que pretendo observar, tomando como dados os
conceitos da Teoria dos Sistemas de Luhmann, que nos apoiarão no elaboração
da observação do direito da criança e do adolescente através do(s) filme(s).
Aproveito, também como dado, a possibilidade de análise imagética oferecida por
Deleuze (2007), que permite que a seleção arbitrária de um quadro imagéticosemântico seja ofertada como uma forma legítima de estudo.
Uma das cenas iniciais da trama merece ser lembrada. Quando do
recolhimento
compulsório
de
vários
adolescentes
das
ruas
e
o
seu
encaminhamento para a delegacia, alguns adolescentes são destacados pelas
suas vestimentas. Travestidos, adolescentes que faziam parte da rede de
prostituição gay infanto-juvenil foram levados ao cárcere. Relembro aqui uma
categoria legal bastante utilizada: o desvio de conduta. Motivo bastante para,
muitas vezes, realizar o olhar seletivo do policial sobre uma pessoa e fazer com
que se construísse uma trajetória criminal, a homossexualidade, vista como
desvio, era sinal de incoerência social, o que poderia levar o adolescente à
instituição correcional, como no filme. Agora, interessante é lembrar que a
legislação que referendava esta atitude era protetiva e assistencialista.
55
Remeto ao capítulo 2 onde reproduzo e teço alguns comentários sobre o art. 2º da Lei n.
6.679/79.
78
Há algum tempo já se ouvem falas sobre a seletividade do sistema
penitenciário, e também do sistema de internato de jovens infratores. Mesmo no
filme observado, lançado nos idos de 1981, o diretor da película se refere a tal
seleção que é levada a cabo todos os dias.56 Discursos moralistas, como o
realizado pelo Juiz de Menores no filme, parecem tentar obscurecer as falhas da
organização judiciária trazendo a responsabilidade única e exclusivamente aos
próprios internos, por seu desvio, sua anormalidade, são os únicos que devem
responder, não importando se a precariedade do atendimento impõe severas
restrições a eles.
Pois noutro salto do caleidoscópio que se pretende observar, lanço-me a
uma descrição mais pormenorizada para atinarmos para o futuro dos jovens
infratores.
Contextualizando a trama, percebemos que o grupo em torno do qual tudo
se desenrola é composto por Pixote, Lilica (personagem de um adolescente
homossexual que está saindo da faixa etária da adolescência), Chico e Dito.
Todos aproveitaram um momento de rebelião ocorrido na FEBEM anteriormente e
de lá fugiram. Vieram a ter contato com um traficante de drogas local, já
conhecido de Lilica, que os colocou em contato com uma possibilidade de
atravessar substâncias entorpecentes de São Paulo para o Rio de Janeiro.
Feita a viagem, os adolescentes entram em contato com a pessoa
interessada nas drogas que traziam, e iniciam suas tratativas. Dito, o segundo
mais velho do grupo (só perdendo para Lilica, que por ser homossexual, não
imporia o respeito necessário, na visão do grupo), realiza as negociações. Após
uma breve discussão com a compradora, Débora (personagem feminina que,
posteriormente, na trama se tomará conhecimento de que é prostituta), Dito aceita
entregar as drogas para ela e diz que aguardará o retorno de Débora com o
restante do dinheiro, equivalente ao total da mercadoria.
Enquanto isso, os outros integrantes do grupo vão à praia para aguardar o
retorno da prostituta com o restante do dinheiro. Neste plano-sequência que se
inicia com a conversa de Lilica, Pixote e Chico, uma interessante e perspicaz
56
Aproveito esta menção para afirmar que um filme como Pixote... (1981) só foi possível, e atingiu
o nível de repercussão que teve, por se inserir num contexto político de transição. Esta
informação, contudo, não será exaustivamente explorada, por enquanto.
79
reflexão ocorre. Começa uma conversa sobre o que será feito do dinheiro
apurado com a venda das drogas à prostituta Débora, tendo por imagem de fundo
a Pedra do Arpoador e a praia. Deste momento em diante, as cenas que seguem
são de extrema singularidade e delicadeza, além de retornarem uma carga
semântica muito importante.
Do grupo, o primeiro personagem a manifestar seus desejos (e
expectativas de futuro) com relação ao dinheiro que virá é Lilica, que sinaliza para
um desejo de consumo (“uma calça incrível, toda bordadinha”). Em seguida,
Pixote demonstra um pouco de sua raiva com a informação: “quando eu tiver com
a grana no bolso, quero ver quem é o filho da puta que vai me bater”. Dentro do
contexto apresentado pelo filme, o dinheiro é um importante seletor de trajetórias
de vida, como também pudemos observar no capítulo 2, quando abordei a
seletividade do sistema de internação. Depois, a epifania é de Chico, que afirma
“com o tutu na mão, compro um três oitão e... É um assalto, filho da puta... Assim
todo mundo vai me respeitar... Mas o primeiro que vou matar sei bem quem é...
Aquele tira filho da puta, que me bateu na delegacia”. Entremeando as conversas
de Pixote e Chico, Lilica solta uma frase interessante: “Para de contar vantagem,
Pixote, você nunca sabe o que vai acontecer!”. O plano-sequência estático, fixado
no quadro dos meninos e alternando com a visão da Praia do Arpoador, um
símbolo de extrema delicadeza da temporalidade, que é tema da conversa.
Horizonte aberto do mar, horizonte fechado no semblante juvenil, um tanto
desvalido, dos personagens.
Lilica revela que no mês seguinte fará 18 anos, e aí “não pode mais marcar
bobeira, porque se os tiras pegam, vai ser porrada e xadrez pra sempre!”. A
conversa se desenrola com o tema das expectativas de futuro. Lilica, se vê em
constante problema, dado o fato de sua homossexualidade. Pixote ainda diz que
aos 18 largará “essa vida”, e vai buscar entrar no conjunto musical de um dos
adolescentes que conhecera na FEBEM. “O que pode esperar uma bicha da
vida?” Ao que Pixote responde, “nada, né, Lilica!?”.
Entoa-se, então, um canto, uma música57 triste, melancólica. A canção é
importante componente do quadro de cena, mas o silêncio que sobrevém, com a
57
Trata-se da canção Força Estranha de Caetano Veloso cuja composição é da mais bela lavra e
sutil sensibilidade. Reproduzo apenas o trecho cantado pela personagem do filme: “Eu vi um
80
dominação do plano pelo mar e o pôr do sol, o Morro Dois Irmãos, paisagem
conhecida dos cariocas, as ondas e o vento a soar, este silêncio coloca a
pesquisa em movimento. Futuro? Silêncio. Ausência? Irrompe o som.
3.3 NO CALEIDOSCÓPIO, FALCÃO: MENINOS DO TRÁFICO (2006)
Pois uma pausa na descrição de Pixote... (1981) e o lançamento do leitor
para outro tempo e lugar, outra história, outra vida, faz-se interessante. Trago à
apresentação Falcão: meninos do tráfico (2006), um documentário produzido pelo
rapper MV Bill, seu empresário, Celso Athayde, e pelo centro de audiovisual da
Central Única das Favelas, uma organização não governamental que busca
impulsionar a cultura produzida pelos seguimentos favelizados do Rio de Janeiro,
com foco de atuação na Zona Oeste da cidade. Neste filme-documentário, retratase a vida da juventude das favelas brasileiras que trabalham no tráfico de drogas.
A produção independente se tornou popular principalmente por sua transmissão
no programa semanal da TV Globo, Fantástico, um dos mais famosos no Brasil.
Desde ali, iniciou-se, então, uma parceria que permitiu o “lançamento oficial” do
filme em 2006, através da Globo Records.
Nesta produção artística, bastante distinta da anteriormente selecionada,
temos vários pontos a ressaltar. Inicio a informação pela contextualização. O
filme, que teve início em 1998, tem como argumento uma sequência de
entrevistas, sem necessariamente um roteiro preestabelecido. A pretensão dos
produtores é apresentar o problema dos adolescentes em conflito com a lei
envolvidos com o tráfico de drogas, e não seu glamour.
A observação realizada pela arte do filme-documentário é no sentido de
uma descrição mais pormenorizada da rotina dos olheiros do tráfico, em sua
maioria adolescentes. Seus cenários, praticamente todos iguais, são os becos e
menino correndo/eu vi o tempo brincando ao redor/do caminho daquele menino,/eu pus os meus
pés no riacho./E acho que nunca os tirei./O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei./Eu vi
a mulher preparando outra pessoa/O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga [...]”.
81
vielas de favelas pelo Brasil, e, ao fim do documentário, os cemitérios se
intercalam, por incrível que pareça, conferindo mais vida ao plano.
Uma vez que nesse filme as imagens oferecem menos riqueza, por opção
de seus produtores, as falas ganham importância. Apesar do argumento principal
do filme ser uma espécie de denúncia de mazelas sociais, não apenas uma
constatação, algumas frases ditas pelos falcões, meninos que ficam sobre as
lajes a vigiar a movimentação ao redor das bocas de fumo, são bastante
impactantes.
“O que você quer ser quando crescer? – Eu quero ser bandido”.58
“O que eu queria? Tipo, eu quero tirar um dia, ir prum baile, cair,
pegar maconha e mulé, mas tem que ser bonita, tá ligado?!” – “A
realidade da favela é que o bagulho é doido”.59
“Meu sonho é conhecer o circo. Antes de minha mãe morrer ela
prometeu que ia me levar pra conhecer o Circo do Beto Carreiro
[...]. - Quando você pensa no futuro, o que vem à sua cabeça? –
Quando eu sair da boca? O futuro... Quando eu sair da boca eu
queria ser palhaço”.60
“Meu futuro? Ah, meu futuro é igual todo mundo fala: três
caminhos, cadeira de roda, morte ou cadeia.”61
Cada trecho reproduz um personagem, falcões, de áreas diferentes do
país, mas todas elas favelizadas. A primeira parte da estrutura do diálogo é
comum em qualquer lugar, há sempre alguém, uma tia, um parente, ou vizinho,
que pergunta a uma criança o que será quando crescer. Pois daí são extraídas
algumas expectativas de futuro, algumas realizações já ocorridas, às vezes, no
círculo próximo de convivência. Constatações bastante senso comum. A segunda
parte do diálogo, contudo, tem uma interessante inversão. Agora, pode-se pensar
num lugar marcado para onde estas perguntas-e-respostas se deram.
O futuro, tempo de chegar, tempo de ausência, ausência do presente. Em
cada evento onde se pode observar uma projeção de comunicação para o futuro,
ali operações levam a esconder importantes distinções de temporalidade. Seja em
Pixote... (1981) ou em Falcão... (2006), a projeção do futuro nos traz remissões a
58
Falcão... (2006) aos 20’20” este diálogo é reproduzido no documentário. Cabe lembrar que
todos os diálogos são rápidos, mantidos sob a forma de perguntas-e-respostas.
59
Falcão... (2006), aos 25’.
60
Falcão... (2006), no intervalo de 34’ aos 35’.
61
Falcão... (2006), aos 50’.
82
uma tentativa de estabilizar o tempo presente e lançar amarras para o futuro. Mas
essas situações nem sempre conseguem se realizar, ou melhor, jamais se
realizam, porque quando o futuro for se realizar, já deixou de ser futuro. O tempo
se esvai a cada instante, mas isso não impede a criação das amarras.
Mas um problema ainda maior ocorre quando, sensibilizados a partir das
imagens comunicadas nesses filmes, temos a percepção de que os horizontes, o
futuro, não estão ali. Não é presente um horizonte de expectativas de futuro!
Nesse caso, onde o direito poderia estar? Como estabilizar as expectativas a
partir de vínculos com algo que sequer existe em expectativas? Isso, pois, soa
como ausência de direito no grupo dos adolescentes em conflito com a lei, mas
uma afirmação mais peremptória de tal situação eu me furto a fazer, assumindo
que isso poderia ser por demais assertivo e não encontrar resposta suficiente
neste modesto trabalho dissertativo.
Pois bem, com estas breves menções aos trechos que nos interessam,
dadas as pistas que pretendemos seguir e construir, uma questão que é feita aos
meninos e que sempre paira no ar é: o que se espera do futuro? Alinhava-se esta
expectativa a um direito?
3.4 Observando Paradoxos e o que o Direito pode aprender com o Cinema:
ativando percepções e auto-observações
É de constatação pelo senso comum que os infratores da lei menores de
18 anos, os dimenor, sempre foram considerados de maneira discriminatória,
passou-se pelas construções de pivete, trombadinha, dimenor, para citar alguns
exemplos. Mas isso tudo passou?
Uma forma importante de conectar o tempo, os apelidos conferidos aos
grupos que estudamos, e mesmo a maneira de fazer sobressaltar alguns
paradoxos pontuados nas observações das imagens-falas acima, é trazendo à
descrição um pouco sobre a categoria dos direitos humanos.
83
Através do conjunto de significações que os direitos humanos emprestam a
categorias muito subjetivas, à moral, por exemplo, praticamente, percebe-se um
influxo, ou uma tentativa neste sentido, para ceifar uma tradição representada
pelos pré-conceitos, bastantes vigentes, para construir um novo arcabouço de
sentido.
Trilhando
um
caminho
arqueológico
sobre
o
tema,
Juliana
Neuenschwander Magalhães (2004) indica que a cartilha dos direitos humanos
expressa uma natureza universal e atemporal através de uma artificialidade que
identifica os direitos humanos à natureza humana. Identificações rasteiras como
“dignidade humana” (noção vinda somente no século XVIII) serviram para
distinguir os homens e criar uma noção hierárquica tolerável no novo modelo
socioeconômico que se vivia (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 2004). Mas
tais observações levam a uma constatação problemática: não há como naturalizar
os direitos humanos atrelando isso aos indivíduos.
Para tentar uma desconstrução da noção de direitos humanos, várias
teorias foram forjadas, mas muitas acabaram por cair em armadilhas. Algumas
vieram propagando o fim dos direitos humanos, como se em algum momento eles
tivessem existido em essência e verdade. Talvez fosse possível falar em
exaurimento da força criativa desse conceito, mas isso pode não condizer com a
constatação da semântica construída em torno de tal categoria (tão fluida e aberta
que sua significação e força podem variar em grande medida, podendo servir a
usos diversos na comunicação).
Noutros momentos, no debate entre universalismo62 e relativismo63 teorias
se fazem, mas ao observar atentamente as estruturas e discursos que dali
62
Referência àqueles filósofos que tratam os direitos humanos como aplicáveis a qualquer
sociedade, como, por exemplo, podemos citar John Rawls, que no texto “The Law of Peoples”
(SHUTE & HURLEY, On Human Rights, 1993), trouxe uma longa argumentação para tentar
justificar a autoaplicabilidade da semântica dos direitos humanos a qualquer sociedade “bem
ordenada”, sendo certo que, onde não houvesse uma forma de governo democrática, a semântica
até agora abordada sofria golpes mortais.
63
Para tal rótulo, costuma-se apontar autores como Richard Rorty e Giacomo Marramao, para os
quais sentimentos e racionalidades devem ser levados em conta na medida em que auxiliam na
incorporação da semântica dos direitos humanos. Nos dois rótulos, neste ou no da referência
acima, pouco de observação de segunda ordem, de revisão, há.
84
provêm, percebe-se baixa relevância para fins de teoria: eles são universais ou
contextuais? A questão parece jazer sob a essência dos direitos humanos64.
Tentando observar uma descrição pautada na tradição da teoria crítica,
podemos redescrever a comunicação trazida por Costas Douzinas (2009), onde
ele demonstra que os direitos humanos sinalizam para a emancipação humana.
“Se o mito olha para os inícios, a narrativa da razão e dos direitos humanos olha
para os teloi e os fins” (DOUZINAS, 2009, p. 24). Fazendo uma brevíssima
história dos direitos humanos, o autor indica a solução que se teve para a
desnaturalização deles:
A história condensada do Direito Natural termina com a introdução
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que
transformou o “contrassenso” naturalista em direitos positivos
contundentes. Pela primeira vez na história, essas ficções não
escritas, inalteráveis, eternas, dadas por Deus ou racionais podem
deixar de ser desconcertantes. (DOUZINAS, 2009, p. 27)
Com este toque, a contingência, típica da modernidade da idade moderna,
pode gracejar sem ser estranha. Assim, podemos dizer que os direitos humanos
contêm as expectativas em relação ao futuro. Desta forma, a sociedade mobiliza
um horizonte de expectativas atribuindo a elas um conteúdo normativo,
transformando-as em direitos fundamentais, por exemplo. Entretanto, essas
expectativas se dirigem a outros sistemas sociais que continuam se produzindo a
partir de seus próprios códigos e funções, sem se deixar guiar pelo direito. Nesse
passo, a tentativa sempre e cada vez mais vã de reger o mundo através do direito
vai assumindo uma função na sociedade: obscurecer complexidades.
A positivação impõe ao sagrado a profanação com a potência de mudança.
O imutável agora está nas mãos do homem. Mas que homem?
Quando a natureza não é mais o padrão do que é correto, todos
os desejos dos indivíduos podem ser transformados em direitos.
De uma perspectiva subjetiva, os direitos na pós-modernidade se
tornaram afirmações ou extensões do Eu, uma coletânea
elaborada de máscaras que o sujeito coloca sobre a face sob o
64
Tais apontamentos foram extraídos de notas de classe da disciplina Direitos Humanos e
Sociedade, ministrada pela professora Juliana Neuenschwander Magalhães, no segundo semestre
de 2011, no PPGD/UFRJ, dia 08/08/2011.
85
imperativo de ser autêntico, “ser ele mesmo”, seguir sua versão
preferida de identidade (DOUZINAS, 2009, p. 29).
Através da constatação da positividade dos direitos humanos, Douzinas
chega à noção de que a função exercida por eles é muito relevante e se ergue
contra o Estado. De acordo com sua observação, uma teoria dos direitos
humanos que esteja extremamente vinculada a instituições estatais, poder
público, frustra sua própria razão de ser (DOUZINAS, 2009, pp. 29-30).
É interessante perceber que os direitos humanos ganham existência
institucional com a sua declaração, que os cria e também constrói a base sobre a
qual eles se mantêm (DOUZINAS, 2009, p. 347). Esse modo organizativo aponta
para o paradoxo da positivação, muito rico para sinalizar a contemporaneidade do
conceito que se mobiliza.
Levando em conta as situações imagéticas e normativas envolvidas nos
filmes caleidoscopicamente descritos, temos símbolos da mesma ocultação de
paradoxos de positividade: a proteção e assistência que recaem em violência.
Através de diversas contribuições dadas pelo autor grego, muitas delas
marcadas por um grave semblante crítico, um quê de pessimista é revelado, às
vezes. Aproveita-se das contribuições da psicologia freudiana e lacaniana para
tentar explicitar um pouco a alteridade como foco dos direitos humanos. Nesse
passo, o reconhecimento dessa entidade, o “Outro”, faz-se muito relevante. Essa
observação, no entanto, reabre uma velha gaveta: a discussão moralidadedireito65. Mergulhando na fonte da “ética da alteridade”, argumentação filosóficonormativa de Emmanuel Levinas, indica-se que os direitos humanos são o
instrumento da ética.
A moralidade, portanto, não é sinônimo de direitos humanos e não
deriva deles. A responsabilidade ética precede os direitos,
confere-lhes sua força e legitimidade e se torna o juiz de sua ação
bem como da ação do Estado. Os direitos humanos são o
instrumento da ética. [...] Isto ajuda a explicar parcialmente o
recente interesse ético pelo Outro distante, [...] os direitos
humanos se tornam a versão pós-moderna da ideia de justiça, ou
65
Esta referência não passou despercebida durante a pesquisa, sendo certo que foi alvo de um
artigo, ainda inédito, de minha autoria, onde se reflete sobre a noção de justiça e moralidade (Os
críticos que me perdoem, mas o paradoxo é fundamental: uma observação sobre a comunicação
jurídica e moral). A revisão e publicação daquele texto deverá ocorrer durante o ano de 2012.
86
melhor, a expressão do sentido de injustiça (DOUZINAS, 2009, p.
359).
Tal sociedade, onde a alteridade é incorporada no discurso dos direitos
humanos, sempre vislumbra reconsiderações, redefinições de suas próprias
categorias-base; ali, a redescrição dos direitos humanos também é sempre atual.
O princípio dessas sociedades está sempre no porvir, a ser declarado ou
alcançado (DOUZINAS, 2009).
Então, retorna à luz o horizonte e o silêncio. Se do futuro, apenas
expectativas são viáveis - a comunicação ali é impossível, vez que sempre no
presente –, mesmo com a projeção de comunicação para o futuro sendo uma
maneira de lidar com a ausência do presente, com o silêncio dele, e o porvir, pois,
não existe senão enquanto expectativa, vale a pergunta: para quê tudo isso? Mas
seria reacionário demais pensar isso, quanto mais colocar no jogo comunicativo.
O mar, o vento, o pôr do sol. Silêncio. Porvir. Um paradoxo se obscurece. O
direito é direito sempre hoje, no presente, mesmo tendo por função criar vínculos
com o futuro.
Questionar-se da possibilidade de os direitos humanos regerem as
operações do direito, então, parece ser o próximo passo. Isso porque, se os
direitos humanos são vistos como categorias de base para a sociedade
contemporânea, e a modernidade da sociedade moderna está naquilo que virá,
nos vínculos que podem se produzir com o futuro, e o direito tem como
desdobramento criar vínculos com o futuro, então, podemos fazer a rápida
passagem para que aponto: a relação entre direito e moral. Mas como lidar com
esses eventos, se a crença de que a moral foi incorporada ao direito for
disseminada em sociedade e, desta maneira, o sistema do direito estaria
trabalhando sob um código corrompido?
Buscando refletir um pouco mais sobre a noção de direitos humanos,
normalmente tão operativa, aproveito as colocações de Niklas Luhmann. Como já
se explicitou noutro momento, a operação do sistema do direito é colocada em
movimento, devendo-se livrar do paradoxo imobilizador, através da colaboração
do programa, um suplemento da codificação que direciona a semântica
condicionada por um só código (LUHMANN, 2005b, 251).
87
La paradoja que se produce con el problema de la aplicación del
código a sí mismo, no se suprime únicamente por medio de la
programación. La programación iniciada mediante la codificación
complementa la distinción principal del sistema a través de una
segunda distinción: la de la aplicación correcta (o bien
equivocada) de criterios para la adjudicación de lo que es
conforme (o no conforme) con el derecho. (LUHMANN, 2005b, p.
266)
Do que se pôde rastrear até o momento, durante a pesquisa, também o
que Luhmann chama de fórmula de contingência é importante para usar de modo
criativo o paradoxo fundacional do sistema. Refiro-me a uma categoria que,
apesar de ser externa ao direito, como, por exemplo, a categoria da justiça66,
incorpora-se ao direito para que sua operação siga uma “certeza”. Mas essa
incorporação é eventual, passageira. Assim que a operação se beneficia da
existência e manejo da fórmula de contingência, ela é expurgada do sistema
retornando-se o código sobre o código (direito/não-direito independemente da
noção de justiça).
Deste ponto de vista, lanço uma possibilidade: a semântica dos direitos
humanos pode ser vista, igualmente, como uma fórmula de contingência. Sua
função é refundar em si mesma o limite determinabilidade/indeterminabilidade e,
para tanto, recorrem à historicidade de dados, o que gera maior plausibilidade
(LUHMANN, 2005b, pp. 281-283). Mas se o cumprimento desta função, desta
“teleologia” que se pode observar das fórmulas de contingência, for cumprida à
clara luz, teremos um problema: o reconhecimento da não autonomia do sistema
que se vale da fórmula.
La función tiene que cumplirse, en otras palabras, de manera
latente. Su develamiento sacaría a la luz la paradoja inicial y
también la paradoja de que la indeterminabilidad y la
determinabilidad están comprendidas en la misma fórmula, es
decir, que están tratadas como si fueran lo mismo. La función de
invisibilización de tales paradojas fundamentales tiene que
permanecer a su vez invisibilizada: y eso es precisamente lo que
sucede cuando las fórmulas de contingencia se instituyen a sí
mismas y se evidencian por su capacidad de adecuación en el
sistema (LUHMANN, 2005b, p. 281-3).
66
Este assunto foi tratado de modo mais amplo e detido em artigo, ainda inédito, apresentado
como trabalho de conclusão de curso para a disciplina de Pensamento Jurídico Contemporâneo
do PPGD/UFRJ, cujo título foi Os críticos que me perdoem, mas o paradoxo é fundamental: uma
observação sobre a comunicação jurídica e moral (2010).
88
Pois bem, a fórmula de contingência é um esquema de validação que não
pode ser resolvido no âmbito exclusivamente jurídico. Desta forma, programas
normativos são necessários, mas também influxos de outra sorte, como
potencialidades morais que estão na base dos direitos humanos, por exemplo.
Mas, em se tratando de direitos humanos, trouxemos a contribuição da
teoria crítica, e em que medida toda essa argumentação da teoria dos sistemas
pode auxiliar na compreensão desta importante categoria da modernidade? A
utilização, pois, do meio de comunicação da linguagem, que geralmente envolve a
ideia do direito, serve à generalização de sentidos. Neste passo, Luhmann (2010)
utilizou a terminologia dos “direitos fundamentais como instituição”, para
simbolizar esta generalização e estudá-la desde o ponto de vista sociojurídico67. E
nós, aqui, a aproveitamos para construir uma articulação com o cinema para
tentar construir uma hipótese de que a sensibilização e a percepção que a arte
nos coloca contribuem para a construção de um direito diferente daquele que é
proporcionado pelos manuais.
En lo esencial tendremos que ver con dos ideas que – como los
derechos fundamentales mismos – surgieron en el proceso de
disolución de la doctrina medieval de la jerarquía de las fuentes
del derecho – debiéndole su particular problemática a esta
circunstancia de transición. La primera constituye la teoría de la
separación entre Estado y sociedad, que ofrece una formulación
transitoria y todavía inadecuada del problema de la diferenciación
de las esferas de comunicación. La segunda la constituyen los
intentos de fundamentar los derechos fundamentales de manera
no-onto-teológica, entre los cuales descuella en la actualidad
(después del derrumbe del derecho racional de la Ilustración) el
intento de la dogmática de la teoría del valor o de las ciencias
filosófico-humanistas, que ofrece una formulación provisional y
todavía insuficiente del problema de la generalización de las
comunicaciones (LUHMANN, 2010, p. 101).
67
Tanto a ideia de que a generalização é um êxito que vai além da linguagem, como aquela em
que a distinção temporal, objetual e social das dimensões se mantém na teoria, ambas servem ao
propósito de justificar a distinção que Luhmann trabalha como direitos fundamentais. Dentro do
modo de operação do positivismo, os direitos fundamentais são os direitos humanos que já foram
positivados, textualizados. Nesse passo, a noção de instituição, trabalhada pelo sociólogo alemão,
expressa além da generalização, também o mecanismo social especial que dá respaldo ao direito
(LUHMANN, 2010, p. 27).
89
Como apresentado anteriormente pelos críticos, durante o diagnóstico
delineado pelo sociólogo alemão, os órgãos do Estado se aproveitarão da noção
de direitos fundamentais (lembra-se a distinção entre direitos humanos, categoria
mais ampla) como contrapeso da relação de poder. Mas ainda fica no ar se os
direitos humanos são servis apenas na relação Estado-pessoa.
E ressoa o eco do silêncio no horizonte dos paradoxos que o direito opera:
o direito humano que funda a expectativa de dias melhores para o grupo de
Pixote...? O direito humano que traz o mesmo desejo aos produtores de Falcão...
(2006)...? Pois só o horizonte é capaz de silenciar este silêncio tão violento e
eloquente. E todo o silêncio e horizonte (perdidos?) são capazes de denotar uma
dificuldade que algumas vezes já foi levantada, por outros caminhos, há direito
onde não há futuro?
Nesse sentido, vale perceber que os direitos fundamentais não garantem a
liberdade e a dignidade, isso não é poder do Estado. Mas esse Estado pode
pressupor que a pessoa possui entendimento e capacidade de manejar sua
personalidade corretamente. Uma espécie de patrimônio pré-estatal. Isto remete
ao simbolismo do direito natural, que possui uma função muito clara:
interpretar/ilustrar problemas advindos da diferenciação social a que chegamos
(LUHMANN, 2010, pp. 161-2).
Parece, pois, uma contradição o que se acaba de expor. No momento em
que se valorizam a positividade e a secularização dos direitos humanos através
dos direitos fundamentais, os direitos humanos surgem como uma resposta para
estes problemas provenientes da diferenciação funcional da sociedade moderna,
o que justamente permitiu que eles irrompessem como solução. Mas, segundo
Luhmann (2010), toda ordem social deve satisfazer uma grande quantidade de
exigências contraditórias. Isso se pode notar da formação clara de subsistemas,
cujos códigos se especificam, para tentar dar conta da complexidade social que
se simboliza pela diferenciação.
E para isso, ressalta-se a função dos direitos fundamentais que salta aos
olhos, ou melhor, as duas funções: uma dirigida à individualização de si mesmo;
outra, direcionada para a civilização das expectativas de comportamento (sua
generalização). A humanização a que remete um direito humano pode se dar num
aspecto mais intimista, onde o reconhecimento daquela semântica pode ser
90
incorporar na forma de construção da pessoa envolvida neste raciocínio. Mas
também um aspecto expansionista é geralmente acoplado a este movimento,
levando a crer que os direitos humanos devem ser aspergidos a todos os
viventes, independentemente da (im)possibilidade de atualização desta semântica
pelos subsistemas sociais (LUHMANN, 2010, p. 203).
Nisso, surgem importantes questionamentos: a distinção dos direitos
humanos pode ser aplicada a ela mesma? Há um limite para essa reflexividade?
Qual o direito do direito dizer o direito? Questões deste nível interessam
particularmente à lógica da observação, que, se por sua vez for objeto de nosso
interesse, permite observar como se observam os sistemas, ou seja, atualizam a
nossa busca pela observação de segunda ordem (DE GIORGI, 1998, pp.135-6).
Com esses apontamentos, é possível notar que transições de semânticas, como
direitos restritos a um grupo e direitos humanos universalizáveis, extremamente
presente na argumentação justificadora da renovação da legislação menorista,
são bastante produtivas e, também, bastante complexas. E, também é viável
notar que diversos paradoxos, como o que é ocultado pela fórmula da inclusão
global, que normalmente é preconizada pelos direitos humanos, ainda são
bastante operativos.
3.4.1 A operação e os paradoxos: acionando o Estatuto
Vistas algumas operações e dificuldades que são ocultadas (ao serem
reveladas) pelos direitos humanos, semântica há tempos presente para a
justificação de várias decisões, retomo a apresentação de novos paradoxos
presentes na tradição jurídico-legal que se pretendeu ter por marco simbólico: o
Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Por paradoxo não aponto apenas
para aquela figura de linguagem que contrapõe ideias, mas também para o fato
de que durante operações sistêmicas, diversos pontos devem ser pressupostos,
obscurecidos, para que a operação prossiga e seja produtiva. Desta maneira, os
direitos humanos obscurecem situações de ausência de futuro vinculando
expectativas numa âncora vazia e de papelão, ou mesmo impõem um respeito a
91
determinados institutos sem, sequer, refletir se eles são operativos/existentes
naquele dado tempo e lugar.
Tendo em vista o objeto sobre o qual se debruça esta proposta, parece
interessante mencionar uma distinção, que em geral é vista em disciplinas de
propedêutica jurídica, como Introdução ao Estudo do Direito, ou outras: código
versus estatuto. Nos códigos, cria-se um encadeamento normativo que acredita
ser perfeito e funcional; “é um complexo sistemático de normas de conduta
integrantes do direito positivo e que dizem respeito a dada matéria”
(MAGALHÃES & MALTA, s/d, p. 192). Num estatuto, o que há é a reprodução de
direitos e deveres que devem ser observados para a realização da cidadania, sem
a pretensão de ser perfeito.
Estatuto - é um regulamento ou conjunto de regas de
organização e funcionamento de uma coletividade, instituição,
órgão, estabelecimento, empresa pública ou privada; lei ou
conjunto de leis que disciplinam as relações jurídicas que possam
incidir sobre as pessoas ou coisas (HOUAISS, Antônio et alli.
2001, p. 1248).
Essa diferenciação parece interessante uma vez que sinaliza a mudança
de abordagem e tratamento do assunto do “adolescente em conflito com a lei”.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a doutrina da
situação irregular é tirada da cena político-legislativa, contracena, agora, a
doutrina da proteção integral, representação que consta do artigo primeiro do
ECA: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.”
(BRASIL, 1990). Na sequência, a legislação define que criança é a pessoa de até
12 anos incompletos; e adolescente aquela que está na faixa de 12 a 18 anos.
Pois no contexto de uma dissertação que pretende ter as imagens e falas
inseridas em obras cinematográficas como suporte empírico, faz-se uma
concessão para tentar construir um melhor èlan ao argumento: traz-se à
discussão trechos de algumas etnografias68 e outros estudos sobre o grupo dos
adolescentes infratores. Isso se faz não apenas como concessão, mas por
68
A noção de etnografia é algo fluida, mas pode ter por significado uma narrativa densa, uma
descrição vívida e carregada de simbolismos e categorias de teoria social. Normalmente está
conectada a uma forma de produção de saber muito adequada à disciplina da Antropologia.
92
entender que este movimento também aponta para uma justificação do uso do
filme-documentário (de argumentos protoetnográficos) Falcão... (2006).
- Os cana bateu lá na treta onde que eu tava, pô. Eu rodei com
uma carga de pó e uma carga de maconha. Os cana me
esculacharam, quase me levaram de dura, me bateram pra
caralho... Os cana pegam os cana machuca. Tava dormindo. [...]
Fiquei devendo eles R$ 500,00... Desenrolei com eles pra ficar
devendo pro próximo plantão dar R$ 500,00 pra eles.
- Então os cana não são tão ruim assim, né?!
- Quem? Os polícia? Não, os polícia são safados! Se eles vê de
69
arma na mão eles mata, dá tiro pra acertar. Os cana é safado.
Com alguns exemplos apontados pelos filmes, e tomando por précompreendidos os movimentos teóricos expostos no capítulo 1, passo a trazer
contribuições concretas advindas de boas observações de segunda ordem
realizadas por estudiosos, sob o pálio da recente legislação cujo alvo é o público
juvenil.
Num texto preocupado em explorar as narrativas dos adolescentes
internados para cumprimento de medidas socioeducativas sobre seu dia-a-dia,
desde o ponto de vista sociológico, apresenta-se a chave da desconfiança como
verdadeira moeda de troca entre os internos e a instituição (vista sob seus
agentes). Essa desconfiança acontece, em grande medida, como deixa supor a
dissertação, em razão do tratamento bastante duro (NERI, 2009, p. 31).
Os “agentes de disciplina”70, como são chamados os prepostos das
instituições de internação, também tratam a todos os que tentam observar aquela
organização com muita desconfiança. E acreditam que aqueles jovens não tinham
mais jeito. Estavam ali em razão dos seus crimes e crueldade, não havendo mais
nada que pudesse ser feito por eles, senão, esperar que eles fossem mortos na
rua ou retornassem ao sistema penal para lá ficarem (NERI, 2009, p. 33).
69
Falcão: meninos do tráfico (2006), dos 7’50” a 8’37”. Apenas para esclarecer, menciono o
significado de algumas gírias usadas no trecho recortado (são de amplo conhecimento, mas
reproduzo): a) “cana” = policiais; b) “rodar” = ser pego pelos policiais; c) “dura” = ser preso; d)
“desenrolar” = negociar.
70
No Rio de Janeiro, de acordo com a nomenclatura adotada pelo Novo DEGASE – Departamento
Geral de Ações Socioeducativas, o cargo público que exerce a vigilância sobre os adolescentes
em regime de internação é o de agente socioeducativo.
93
- Como é que as mães começam a perceber que os filhos estão
indo para um caminho estranho?
- Ah, só assim... No começo, quando o Thiago começar a mexer
com droga... No começo, foi assim: ele começou só vendendo.
Quando ele tava só vendendo eu sabia, porque só de olhar na
pessoa você sabe, né? Ele era muito carinhoso comigo, precisava
de ver o tanto que ele era carinhoso. [...] Ele num terminou nem a
71
quinta série... Quando pende pra esse lado aí, acabou!
No entanto, uma distinção importante há que ser marcada: o desvio, do
qual tanto falavam os agentes, demonstrando naturalização da “anormalidade” e
do tratamento duro conferido aos internos, é visto como plenamente encaixável
na imagem dos meninos72. Um trabalho árduo e interessante, então, passa a ser
efetivado por Natasha Neri (2009), quando passa a perceber no campo de
observação a divisão entre os adolescentes com categorias próprias, muito
fundadas na tradição “menorista” e na tradição “bandida”. Refiro-me, aqui, por
exemplo, ao “menor mente”, jovem visto como justo e que auxilia, de maneira a
mobilizar uma racionalidade desviante clara, sua facção e aos outros internos
(NERI, 2009, pp. 121-130).73
Essas colocações parecem importantes para demonstrar o quanto
arraigada é a tradição “menorista” produzida pela doutrina da situação irregular,
reproduzida não só no âmbito institucional, com a organização judiciária e suas
truculências, como também pelos próprios adolescentes, que se vêem em outra
categoria de vida marcada pela dicotomia “trabalhador” x “bandido” (NERI, 2009).
Percebe-se, então, a representação de uma semântica de violências (de
gênero, torturas, violações corporais, como se pode ver nos filmes observados) às
quais se vinculam a presença institucional na vida de um “adolescente em conflito
71
Falcão: meninos do tráfico (2006), aos 25’45” até 26’30”.
72
Um autor chamado Michel Misse trabalha com a hipótese de que há a construção da “sujeição
criminal”, uma forma de produção de subjetividade gravada com a cicatriz do crime, imputada
tanto externamente como autoproduzida, quando o adolescente se coloca no lugar de sujeito
perigoso, de “bandido” (MISSE in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, pp. 191-200). No entanto, tal não é
uma hipótese deste trabalho, uma vez que para a observação desta pesquisa, este tipo de
problematização é encarado lateralmente.
73
Natasha Neri faz um trabalho de catalogação linguística precioso, uma vez que está preocupada
com os usos e discursos dos adolescentes em conflito com a lei. Seu trabalho de mestrado (citado
nesta dissertação) possui grande riqueza e é bastante instrutivo, trazendo, inclusive, um glossário
das gírias usadas pelos internos da Escola João Luiz Alves (internato de meninos em conflito com
a lei do Rio de Janeiro que fica na Ilha do Governador). Atualmente, a autora é doutoranda pelo
Programa de Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ.
94
com a lei”. Por vezes, a própria violência institucionalizada é especular à violência
vista em outros âmbitos sociais, como quando um dos adolescentes é “infiel” ao
“coletivo” (age em confronto com as regras do grupo de internos). Neste tipo de
evento, o adolescente desviante é tratado, oferecendo-se a “melhor forma”
(advertência) ou a “pior forma” (espancamento ou morte) (NERI, 2009, pp. 116148). No entanto, o relato dessa experiência indica, em certa medida, um modo
de distinção dos próprios meninos. Parece haver um acordo velado para que a
mediatização das comunicações internas ao grupo se dê através do medium
violência.
Intercalando neste observar da violência, retomo o argumento do futuro,
pois que interpenetrados. Se com a visão dos direitos humanos como
expectativas de futuro generalizadas, ou que deveriam se generalizar, temos um
problema (a exclusão marcada e repisada daqueles em favor dos quais a
semântica dos direitos humanos atinge maior nível de virulência), no mesmo
passo temos um problema interno da sociedade que pode ser iluminado: “a
sociedade constrói o seu próprio futuro; mas, não porque queira realizar um futuro
melhor, senão porque não pode fazê-lo de outro modo e não pode saber qual
futuro se realizará” (DE GIORGI, 1998, p.137).
A sociedade operando sem poder ver seu próprio futuro, apesar de cada
operação produzir um futuro, poderíamos nos ver diante de um impasse insolúvel.
Mas digo melhor, nos vemos diante de mais um paradoxo! Para tentar utilizar
esse paradoxo de modo criativo, para que dele possam vir novidades, aquisições
adaptativas, artificialidades surgem para instrumentalizar isso.
A artificialidade da sociedade moderna não se manifesta a
respeito de naturalidades externas pressupostas ou a
pressupostas materialidades externas; trata-se do direito ou da
política, da família ou da educação, da arte ou da economia, do
amor ou da verdade, aquelas artificialidades manifestam-se pelo
fato de que as mesmas naturalidades são o resultado de
construções sociais, precisamente como as artificialidades, nas
quais condensa-se e sedimenta-se o operar desta sociedade (DE
GIORGI, 1998, p. 140).
A artificialidade mais interessante que podemos destacar é a da própria
inclusão universal que a sociedade (comunicação) efetiva a cada instante. Não há
95
como referenciar nada externo à sociedade, pois se é comunicado, nela se cai.
Desta maneira, a sociedade é universal, e universal a forma de sua inclusão. Mas
como forma, o lado da exclusão está sempre ali, latente. E nada mais clarificado
quando pensamos: inclusão universal gera exclusão universal. “O acesso às
potencialidades daquilo que é social o é para todos e não existe alternativa” (DE
GIORGI, 1998, p. 141).
Num exercício bastante interessante e próximo ao que se pratica nesta
pesquisa, a noção das redes de inclusão foi também trabalhada por Nádia Pires e
Cristiane Igreja, hoje mestras pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
UFRJ, em texto publicado nos anais do Congresso Nacional de Pós-Graduação
em Direito – CONPEDI. Naquela oportunidade, as autoras se debruçaram sobre o
filme Dancing with the devil (Blair, Britain, 2008) e, desde ali, colocam-se a
analisar as comunicações que tem por alvo a favela do Brasil, centrando suas
análises no Rio de Janeiro, num exemplo.
Então, seguindo com a analítica da violência como meio simbolicamente
generalizado de comunicação num dado espaço, as autoras acertam em cheio
numa observação que merece ser transcrita.
Mas, se a violência é código de comunicação corrente na favela,
também o é no âmbito das práticas policiais. Ficou evidenciado,
na fala de alguns policias, que todos aqueles que estão
envolvidos com o tráfico e imersos no mundo do crime são
desumanos, ou seja, são vistos como essencialmente maus,
cruéis e, por consequência, passíveis de aniquilação. “Eu quero
que o mal se foda e eu vou sempre foder o mal e quem tiver ao
lado dele (...)”. A violência policial é entendida como incontornável,
uma vez que é reposta a uma violência anterior, praticada pelos
“bandidos”. Desde essa forma de observar a realidade social, a
violência é tida como um instrumento de defesa de direitos –
“Esse tipo de operação é uma operação para garantir o direito
constitucional de todos os cidadãos que residem nessa
comunidade” –, de realização de justiça – “(...) meu sentimento é
que eu vou ajudá-los a viver numa democracia real, porque eles
têm uma ditadura dos traficantes”. Em outros termos, o sentido de
direito e de justiça é dado pela violência, cuja prática é legitimada
enquanto decorrente de um aparato estatal (PIRES & IGREJA,
2010) (grifos do original).
Isso permite uma responsabilização individualizada, o mal é o traficante, e
assim reduz a complexidade da realidade social e das redes de inclusão que
96
estão ali, parasitariamente se beneficiando destes movimentos. Esse tipo de
iluminação do paradoxo dos direitos humanos, que normalmente são acionados
nestes contextos comunicativos, não são percebidos, por exemplo, por autores
como DOUZINAS (2009), como pudemos ver anteriormente. Por esta razão (e
outras mais que não cabe agora resumir) a crença na mobilização de Luhmann e
cinema parece ser bastante inovadora.
E aí, entra novamente em cena o preconceito generalizado de família e
relações intersubjetivas que crê ser o medium do amor (afetividade) a moeda
corrente para a realização de relações interpessoais74.
O senso comum sobre os adolescentes em conflito com a lei se
deixa dominar por estigmas, preconceitos ou estereótipos. A este
respeito Njaine e Minayo (2002:1) analisam o discurso da
imprensa do Rio de Janeiro sobre rebeliões de jovens infratores
em regime de privação de liberdade e apontam para o papel da
mídia no fortalecimento da visão negativa e incriminadora dos
jovens, atitude que pode contribuir com ações mais violentas
contra esse grupo. (SOARES & CALHEIROS in PAIVA & SENTOSÉ, 2007, p. 108).
A distinção inclusão/exclusão ganha enorme relevância, atravessa os
códigos dos sistemas particulares, torna-se a nova barbárie da sociedade
moderna, e está diretamente ligada à semântica dos direitos humanos,
anteriormente trabalhada. “Se o reconhecimento é a inclusão, somente a prática
da inclusão gera as diferenças” (DE GIORGI, 1998, p. 141-2).
Mas estamos nos debruçando sobre a sociedade moderna, onde a
especificação funcional dos sistemas gera uma espécie de zona de excessos.
Neste espaço, alta complexidade e alta dependência e integração de todos os
sistemas especificados se cria. Potências de resistência igualmente se fundam ali.
Então, redes de inclusão são construídas na determinação da exclusão, para
buscar certezas (DE GIORGI, 1998, pp. 144-5). Os direitos humanos retomam o
cenário de comunicação e sua força, que poderia ser julgada por desvalida,
74
É o que podemos depreender, por exemplo, de textos gentilmente cedidos por Nádia Pires,
como Reconhecimento como tema da comunicação jurídica na contemporaneidade. Amplitude e
limite (inédito) e O direito no centro da tormenta: comunidade, sujeitos morais e sentidos de
justiça, anais do CONPEDI 2010.
97
recebe enorme influxo de vitaminas e se desdobra numa remodelagem
comunicativa.
O tratamento legislativo mudou desde 1979 para cá. A chamada doutrina
jurídica mudou. Apresentam-se razões que buscam garantir maior número de
direitos aos adolescentes do que apenas a menção de direitos que eles não têm,
senão por concessão de um juiz benevolente. No entanto, uma constatação meio
óbvia pode ser feita: o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser
lido como se Código de Menores fosse, sem haver um estremecimento da
semântica tratada no primeiro.75
Quando se observam as políticas de remoção/internação compulsória
ainda hoje atualizadas, por exemplo, no caso de adolescentes e crianças que
vivem pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, a política pública é de
encarceramento e afastamento da sociedade sadia dos maus elementos. Afinal
de contas, sobre a égide de qual legislação estamos? Código de Menores (1979)
ou Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)? Faz diferença?
E quanto ao direito, qual tem sido sua função nesse processo de
exclusão sistemática? A função do direito tem sido criar essa
exclusão. Quanto mais inclusão, mais exclusão. Na exclusão, diz
Raffaele De Giorgi, “reforçam-se as ilegalidades, as diferenças,
produz-se a marginalidade, gera-se não-conformidade do agir com
base na conformidade do agir. Assim a modernidade produz a sua
barbárie, que é a violência da exclusão” (1998, p. 161), a exclusão
violenta (PIRES & IGREJA, 2010).
Não é necessário pesquisar muito longamente sobre isso para lançar mais
uma pulga na orelha do leitor. Uma rápida pesquisa no noticiário de mídia de
massa publicado na internet aponta para a reatualização da lógica do
encarceramento, a despeito do discurso de direitos humanos e proteção integral
que funda a nova legislação dedicada ao público adolescente.
O advogado da família de João Hélio, Gilberto Fonseca, aprovou a
decisão do Tribunal de Justiça do Rio que anulou a inclusão de
Ezequiel Toledo da Silva, 19 anos, no Programa de Proteção a
Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte.
75
No texto de LIMA, Paula Gabriela Mendes. Dissertação de Mestrado (UFMG), 2010, temos uma
boa dose da observação de como o direito da criança e do adolescente por vezes, mesmo após a
vigência do Estatuto, ainda sofre grandemente as influências do Código de Menores.
98
Ezequiel, condenado pelo assassinato do menino em fevereiro de
2007, se apresentou à Justiça no final da noite de terça-feira (23).
Em audiência nesta quarta-feira (24), na Vara da Infância e
Juventude do Rio, será decidido que medida deve ser aplicada
sobre o futuro do jovem.
“Queremos o melhor para a sociedade, ou seja, temos que
combater o mal. Está havendo uma inversão de valores. Eu,
particularmente, estou satisfeito com a medida do Tribunal de
Justiça. Ele deveria ter um comportamento exemplar, e não teve”,
disse o advogado, antes de entrar no prédio para participar da
audiência.
Gilberto ainda fez críticas ao Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). “Esse estatuto é brincadeira. Deve ser
mudado urgentemente. É uma lei carinhosa.sociedade. Os
bandidos sabem que os menores são protegidos por essa lei e
são usados pelos adultos” [...] (O GLOBO, Disponível em
<http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL13472-5606,00DECEPCIONADO+COM+SENTENCA+DO+MENOR+PAI+DE+JOAO+H
ELIO+CRITICA+LEI.html>. Acesso 15/02/2011)
Essa naturalização do discurso repressivo, bem como a própria
naturalização do ato infracional, possui maneiras distintas de ser abordada, seja
através da banalização do crime, bem como a banalização da própria relação de
incriminação que é imputada pelos preconceitos daqueles que querem higienizar
a sociedade, expurgando os “adolescentes em conflito com a lei” para locais de
internação (MISSE in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, pp. 191-200).
Buscando abordagem similar para o mesmo problema, a banalização da
violência e a conformação da naturalização do ato infracional, Hebe Signorini
Gonçalves76 (in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, pp. 201-209), procura demonstrar
como a sociabilidade violenta que se criou, haja vista a crescente desenvoltura
para falar de mortes e outras violências, ajuda a construir um ambiente de
reprodução da violência, seja no âmbito institucional - nas organizações
76
Aqui faço uma breve referência ao Projeto Parcerias, projeto de extensão encabeçado pela
professora Hebe Signorini Gonçalves (UFRJ) que trabalha junto às instituições de internação do
NOVO DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducativas,cuja função é ordenar o
cumprimento das medidas socioeducativas –, atualmente na Escola João Luiz Alves (internato de
meninos) e Educandário Santos Dumont (internato de meninas). Nesse espaço conseguido após
uma longa negociação interinstitucional, a professora busca construir um lugar para a expressão
das afetividades e subjetividades dos internos, tentando quebrar o círculo de “sujeição criminal”
que muitos meninos se autoimpõem, como “bandido não ri” (notas de aula da Professora Hebe
Signorini Gonçalves, dia 18/05/2011). Ela acredita que a intervenção pontual é um passo
necessário (até porque é o possível) para conseguir romper com o círculo vicioso da sujeição
criminal, facilmente detectável através das visitas aos internatos juvenis.
99
judiciárias de internação - seja no âmbito familiar - através dos discursos de
excessiva normalização.
Para ficar com as instituições encarregadas da aplicação das
medidas sócio-educativas, parece urgente reconhecer que não há
educação possível onde convivem 400 ou 500 jovens autores de
delitos de gravidade muito diversa. Não há educação possível
onde a agressividade e a violência são invocadas como expressão
e como máxima. Lá onde a agressão e a violência foram
escolhidas porque “nada mais vale a pena”, será preciso lembrar
que a medida sócio-educativa coloca o jovem sob tutela do
Estado, tutela que só ganha sentido quando trabalha com a
hipótese da possibilidade da ruptura da “sociabilidade violenta”
(GONÇALVES in PAIVA & SENTO-SÉ, 2007, pp. 208-209).
Através de breve apresentação que tornasse razoável a análise de filmes
como produções de sentidos generalizados de determinada época e sociedade,
procurou-se apresentar algumas reflexões no intuito de sinalizar para alguns
paradoxos vistos de um lugar diferente, desde uma observação de segunda
ordem.
Tomou-se, para tal reflexão, como mote para comunicação o filme Pixote –
a lei do mais fraco (1981) e Falcão: meninos do tráfico (2006). Utilizando-se de
eventos reproduzidos naquele recorte artístico, lançou-se luz sobre algumas das
maneiras de operar do sistema do direito, às vezes, fazendo uma abordagem da
própria operação da organização judiciária de internação dos meninos para
buscar a desnaturalização proposta nesta pesquisa.
Muitas maneiras de violência e de generalização dela como instrumento da
comunicação já estão no filme Pixote... (1981), e ainda são reencontradas,
infelizmente, nos dias atuais77. Isso permite levantar outra questão: ainda é
produtiva a análise focalizando na seletividade do sistema e no descumprimento
ou ineficácia da disposição legislativa?
Há perguntas para as quais não tenho resposta. Muitas são elas. Mas
busco sinalizar para uma perspectiva diferenciada que deverá surgir. Acredito,
contudo, de grande importância mencionar, parafraseando o autor que serviu de
77
Além da notícia jornalística apresentada no corpo do texto, este pesquisador, numa breve
incursão (10/11/2010, registro de diário de campo) num dos educandários de internação para
adolescentes da capital do Rio de Janeiro, pôde constatar que o imaginário de que a delinqüência
mais severa, para os internos, era só uma questão de tempo, sendo eles irremediáveis, ainda
continua muito vivo.
100
base para este estudo: sempre que se buscar refletir e desnaturalizar algo, ali
serão produzidos novos paradoxos e pontos-cegos.
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sob as asas do cinema e da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann
percorreu-se o caminho desta pesquisa. Um caminho. O caminho que foi se
delineando ao caminhar, parafraseando um grande literato.
Apropriando-me da hipótese do Grupo de Pesquisa Direito e Cinema da
UFRJ, de que a arte pode irritar a comunicação jurídica e deste evento,
acoplamento estrutural, podem advir importantes (ou, no mínimo, interessantes)
aquisições adaptativas ou, também, um novo foco de observação. Ressoando
novo ponto de vista em novas descrições, construções anteriormente ocultas,
paradoxos, podem ser sobressaltados e lançados nus ao luar, para apreciação do
sistema que observa. Este foi um dos olhares que se puderam olhar como o
exercício proposto nesta pesquisa.
Durante a caminhada, algumas pedras puderam ser recolhidas (como as
dificuldades metodológicas), não necessariamente apresentadas como troféus,
mas como migalhas coletadas para seguir a trilha. Pedregulhos, também houve.
Desses se desviou, pela consciência das limitações temporal e argumentativa
deste trabalho. Mas Drummond, com sua imobilizante pedra no caminho, se
sentiria orgulhoso. No caminho, segui.
Iniciei com a argumentação teórica de Luhmann e Deleuze para buscar
uma forma sustentável de oferecer viabilidade à pesquisa no âmbito da teoria
jurídica sobre a relação direito-e-arte, acreditando, ainda, que o marco teórico da
pesquisa pode levar a reflexões marcadas pelo conhecimento de caráter mais
universalista. Com as irritações da arte sobre o direito, novas descrições surgiram
(e surgirão).
Pelo caminho, cruzamos com Luhmann, Deleuze, e outros notáveis, para
defender a ideia de que imagens podem ser vistas como importante fator de
promoção da continuidade da comunicação hoje. Alguns buracos nesta trilha
eram grandes demais para que deles pudesse se desviar; então, caí, correndo o
risco de quebrar a máquina, quando a semiótica se mencionou. Mas daí, uma
novidade: o uso do argumento de semiótica para embasar a escolha, que pela
sua força metodológica poderia ruir, dos suportes empíricos da pesquisa.
102
Pois bem, como abordar o tema da adolescência em conflito com a lei,
tentando iluminar os paradoxos que ali rondam latentes? Pois para se ver o que
não se pode ver, o escuro pode ser a solução. Ao cinema, com as poucas
ferramentas que se tinha, foi-se. No escuro e no silêncio, ou por vezes, entre
vozes, veio ao foco o direito da criança e do adolescente. Algumas observações
da atenção dispensada ao grupo, por meio de remissões a outros observadores,
autores que compartilham da preocupação com o tema, foram trazidas à tela. A
maneira como se continua a tratar este grupo, e também, o modo de partícipes da
rotina jurídico-judiciária se referem aos adolescentes sinalizou uma resistência, a
dificuldade de vencer a tradição higienista e preconceituosa. Mesmo com reforços
de significação, como o SINASE78 é para o Estatuto, a quebra deste vínculo
menorista vai sendo repisada, às vezes enverga, mas o alicerce permanece,
latente. Tudo isso, sinais, pistas, piscadelas.
E os sistemas de comunicação apresentados – direito, arte – oferecem em
fila, mas não de maneira simplória e de ordenação unidirecional, seus
adensamentos de sentidos, suas estruturas, suas formas de otimização do
recrudescimento comunicacional.
Traçaram-se linhas sobre programas legislativos e normativos sobre
adolescentes e crianças. Alguns dos paradoxos que envolvem esta realidade
normativa vieram à transparência. Mas acreditamos numa forma de deixar ainda
mais expostos esses paradoxos: com uma observação baseada na visualidade
que o suporte empírico do cinema nos permitiu. Sensibilização, percepção de tal
sensibilidade transmitida pelas imagens. Aí o ganho de lidar com o acoplamento
direito-e-arte. Pois com os sinais que se podem alcançar com a arte imagética do
cinema, algumas exemplificações poderão se tornar mais claras.
[…] El arte sería capaz de ofrecer formas que pongan de
manifiesto que el orden es posible aun en condiciones reales de
clausura operativa tanto de los sistemas neurofisiológicos, como
de conciencia y de comunicación, y que muestren que la
78
SINASE (2006) é uma abreviação de Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, um
programa normativo-executivo que serve para dar diretrizes ao tratamento/atendimento aos
adolescentes em conflito com a lei. É uma espécie de reforço semântico-operativo do ECA. No
entanto, quando se debruça sobre tal texto, percebe-se, novamente, diretrizes genéricas, formas
de se simbolizar direitos fundamentais que não deixam rastros de como se poderão efetivá-los.
103
arbitrariedad es imposible por más imprevista que sea la
información (LUHMANN, 2005a, p. 20).
É com a expectativa de que a arte trouxe contribuições importantes para
observar paradoxos e estruturas latentes, como a de direitos humanos, por
exemplo, que se realizou essa pesquisa. Por essa razão, o primeiro momento da
pesquisa foi para esclarecer pontos de semiótica, estudos dos sinais que as
comunicações imagéticas (ou não) deixam.
É traço característico da arte a imbricação de significante e significado,
sendo processados simultaneamente pela percepção (consciência) para então se
completar o acoplamento arte-sistema psíquico (LUHMANN, 2005a, p. 22).
Portanto,
a
semântica
dessa
comunicação
é
veiculada
junto
de
sua
complexidade. Tal potencialidade deixa perceber a viabilidade da observação
arte-direito.
Pudemos observar alguns dos paradoxos e dificuldades, a seco, do que se
trata nesta pesquisa, algumas dificuldades e construções dos programas
normativos que abordam os adolescentes, fosse o programa antigo, o Código de
Menores (1979), fosse o programa atual, Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990).
Através da observação dos sinais que a arte deixa para tentar aproveitá-los
para esclarecer e iluminar detalhes que o direito obscurece, fomos na trilha desta
observação, impregnados da sensação que a arte imagética pôde nos apontar.
Foi necessária breve apresentação que tornasse razoável a análise de filmes
como produções de sentidos generalizados de determinada época e sociedade,
procurou-se apresentar algumas reflexões no intuito de sinalizar para alguns
paradoxos vistos de um lugar diferente, desde uma observação de segunda
ordem.
Tomou-se, para tal reflexão, como mote para comunicação o filme Pixote –
a lei do mais fraco (1981) e Falcão: meninos do tráfico (2006). Utilizando-se de
eventos reproduzidos naquele recorte artístico, lançou-se luz sobre algumas das
maneiras de operar do sistema do direito, às vezes, fazendo uma abordagem da
própria operação da organização judiciária de internação dos meninos para
buscar a desnaturalização proposta nesta pesquisa.
104
Muitas maneiras de violência e de generalização dela como instrumento da
comunicação já estão no filme Pixote... (1981), e ainda são reencontradas,
infelizmente, nos dias atuais. Isso permite levantar outra questão: será que o
direito da criança e do adolescente não se atualiza bem porque a semântica
inovadora está estruturada sobre uma “estrutura fóssil” (empresada do Código de
Menores – FEBEMs e DEGASE)?
Talvez uma resposta a esse questionamento possa vir através da
observação do acoplamento direito-política-educação, mas tal observação terá
outro campo e tempo79.
Há perguntas para as quais não tenho resposta. Muitas são elas. Mas
busco sinalizar para uma perspectiva diferenciada que deverá surgir. Acredito,
contudo, de grande importância mencionar, parafraseando o autor que serviu de
base para este estudo: sempre que se buscar refletir e desnaturalizar algo, ali
serão produzidos novos paradoxos e pontos-cegos.
79
Aqui faço uma breve remissão a um texto que me foi apresentado pela minha orientadora, de
uma mestra em direito pela UFMG, que explorou os acoplamentos e algumas observações acerca
dos rendimentos deles na ligação de sistema político e jurídico, LIMA, Paula Gabriela Mendes.
Dissertação de Mestrado (UFMG), 2010.
105
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interpretativas ao Código de Menores – Lei n. 6.697, de 10.10.1979. Rio de
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