Tutelas de urgência na recusa de transfusão de sangue Wilson Ricardo Ligiera RESUMO: A recusa de transfusões de sangue por motivos religiosos há muito tempo desperta grande celeuma nos meios médico e jurídico. Em geral, as pessoas não entendem por que alguém estaria disposto a arriscar a sua própria vida ou a de seus filhos em virtude de uma crença religiosa. Por meio de exaustiva pesquisa em todo o país, verificou-se que, na maioria dos casos em que os pacientes eram transfundidos contra sua vontade, o resultado era desastroso. Diversamente, ao terem seu direito de escolha respeitado pela equipe médica, normalmente alcançava-se êxito. O texto deste artigo corresponde a um dos estudos preliminares realizados para a elaboração da pesquisa de mestrado, que posteriormente converteu-se no livro Responsabilidade médica diante da recusa de transfusão de sangue.* Palavras-chave: transfusão de sangue; direito de recusa; tratamento médico sem sangue. SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Análise de casos ocorridos no Brasil. 3. Jurisprudência internacional. 4. Riscos transfusionais. 5. Alternativas médicas às transfusões de sangue. 6. Aspectos processuais. 7. A questão sob o prisma dos direitos fundamentais. 8. Conclusão. 1. INTRODUÇÃO Estabelece a Constituição Federal, no caput de seu art. 5.º, a “inviolabilidade do direito à vida”. No mesmo sentido, determina que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (CF, art. 196). Outrossim, objetivando assegurar o tratamento médico necessário para preservar a vida e a saúde dos cidadãos, observa-se hodiernamente uma ampla utilização de medidas que visam à obtenção célere do provimento jurisdicional, tais como a cautelar inominada e a antecipação da tutela. Situações peculiares que têm despertado o interesse dos doutrinadores são aquelas em que a ação judicial é utilizada não pelo paciente que busca assistência médica, mas, em vez disso, pelo próprio hospital ou Poder Público, a fim de impor ao paciente um tratamento por ele não desejado. Mencione-se a hipótese na qual, a pretexto de salvar a vida de um paciente, seja requerida uma autorização judicial para amputar-lhe uma perna contra a sua vontade. Ou, como trazido à baila por Carreira Alvim, as transfusões de sangue não autorizadas por motivos religiosos. Sobre esse tema, salienta o eminente autor: “Sempre que houver uma carga de probabilidade suficiente para convencer o julgador da verossimilhança da alegação, tem cabimento a concessão da liminar; não, se o Juiz se convence do contrário”. 1 Indubitavelmente, questão de extrema delicadeza é suscitada quando a prestação jurisdicional é direcionada à proteção da vida humana. A concessão de liminares inaudita altera pars tem ocorrido nesse campo, sob a justificativa de que, se da liminar depende a própria sobrevivência do direito material — in casu a vida humana — tornar-se-ia inviável um juízo de probabilidade muito rígido, sob pena de se tornar imprestável ao fim a que se destina. 2 A solução, porém, não é tão simples como possa parecer. No caso da hemoterapia não desejada pelo paciente, os próprios riscos a ela associados, bem como o contínuo desenvolvimento de substitutos eficazes do sangue, devem levarnos a reflexões mais profundas. O tema tem sido freqüentemente abordado pela doutrina, mas raramente como objeto de análise mais cuidadosa. Por sua singularidade e relevância, considerando-se não só o crescente número de ocorrências, mas também o fato de que a escolha de tratamento médico está inserida no contexto mais amplo dos direitos fundamentais do ser humano, entendemos que o assunto merece um exame mais atento, sendo escolhido como objeto de estudo no presente trabalho. 2. ANÁLISE DE CASOS OCORRIDOS NO BRASIL Para melhor entendimento dos diversos aspectos envolvidos na utilização das tutelas de urgência que visam impor ao paciente um tratamento hemoterápico não consentido, fomos buscar na jurisprudência brasileira exemplos dessa ocorrência. Saliente-se, desde logo, que os casos verificados no Brasil raramente chegam aos Tribunais, sendo normalmente encerrados em primeira instância. Trata-se de situações em que, embora sendo concedida a medida para transfundir o paciente contra sua vontade expressa, as transfusões acabam não sendo realizadas, quer por absoluta desnecessidade para a recuperação do enfermo, que tem sua saúde restabelecida por outros meios com igual ou maior eficácia, quer pela constatação da impropriedade do meio transfusional para a salvaguarda de sua vida. 3 O primeiro caso encontrado refere-se a uma ação cautelar inominada (Processo n.º 523/024.000.063.164, 7.ª Vara Criminal da Comarca de Vitória, ES)4 envolvendo uma paciente vítima de acidente automobilístico, com indicação de intervenção cirúrgica. M. L. N., com 39 anos de idade, deu entrada no nosocômio consciente e subscreveu um termo de isenção de responsabilidade para a equipe médica, declarando não aceitar “nenhuma transfusão de sangue ou de constituintes do sangue (total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma sangüíneo)”, embora concordasse com a cirurgia e aceitasse tratamentos médicos sem o uso de sangue. Contrariando sua vontade expressa, o diretor clínico do hospital peticionou ao Judiciário, curiosamente sem se fazer representar por advogado habilitado, e requereu autorização para transfundi-la. Consta como principal fundamento do pedido: “[M. L. N.] necessita de intervenção cirúrgica (Craniotomia para drenagem de hematoma cerebral traumático extra-dural) podendo ser necessário transfusão de sangue, face ao risco de complicações per operatórias, tipo choque hipovolêmico e infecções” (sic). Em que pese à falta de precisão na indicação da terapia transfusional, foi concedida liminarmente uma autorização judicial para realizá-la. Não obstante, a cirurgia foi concretizada sem a necessidade de utilização de sangue, tendo a paciente se recuperado e recebido alta hospitalar. O segundo caso de que tomamos conhecimento retrata a situação do paciente R. E. A. D. S., com 27 anos de idade, advogado. O paciente internou-se para ser submetido a uma cirurgia visando ao tratamento de um problema intestinal chamado “Doença de Crohn”. A cirurgia foi feita com êxito sem o uso de sangue. No pós-operatório, porém, surgiu uma fístula no local da incisão que, segundo a equipe médica, precisaria ser removida por meio de novo procedimento cirúrgico, desta feita, segundo os facultativos, com a realização de transfusões. O chefe da equipe médica ingressou então com um requerimento em juízo, no qual se autorizou o procedimento por meio da antecipação da tutela, concedida inaudita altera pars. (Processo n.º 1.092/99, 4.ª Vara Cível da Comarca de Marília, SP). Inconformado com a decisão judicial, o paciente transferiu-se para outro nosocômio, onde recebeu tratamento sem a necessidade de transfusões sangüíneas, tendo boa convalescença. Outra ocorrência, com resultado semelhante, diz respeito ao paciente R. C. G., com 50 anos de idade, internado em um hospital com o diagnóstico de varizes esofágicas e quadro de hemorragia digestiva alta, com hipotensão ortostática e taquicardia reflexa. Por motivos de convicções religiosas, o paciente solicitou tratamento médico isento de sangue. Discordando do posicionamento do paciente, o nosocômio ajuizou uma ação cautelar inominada, obtendo liminar inaudita altera pars autorizadora da hemotransfusão. Ao tomar conhecimento da decisão, o paciente abandonou o hospital, mesmo sem alta médica, partindo em busca de tratamento médico compatível com seus mais profundos ideais. Foi tratado em outra instituição hospitalar, sem a necessidade de transfusões de sangue, com recuperação plena. No mérito, a ação foi julgada improcedente, porquanto restou evidenciado que o paciente não recusava tratamento médico necessário, mas tão-somente desejava ser tratado em harmonia com seus valores pessoais. Eis alguns trechos da sentença: “Inconforma-se que um médico, quer por preconceito religioso, quer por limitação profissional, venha a juízo requerer autorização judicial para violar direitos individuais consagrados, com base em um atestado incompleto, com o claro objetivo de justificar o iminente risco de vida, tão iminente que o paciente ainda está vivo, a par de não ter sido procedida a transfusão sangüínea [...]. O direito ao tratamento há de abranger a integridade da pessoa do doente, observando-se os aspectos religiosos, jurídicos, intelectuais e físicos.” (Processo n.º 01193306956, 16.ª Vara Cível de Porto Alegre, RS).5 Desfecho diverso ocorreu com J. L. T., de 39 anos, acometida de “Lúpus Eritematoso Sistêmico”. A paciente informou ao seu médico assistente, verbalmente e por escrito, que aceitava qualquer tratamento médico, exceto hemotransfusões, invocando suas convicções religiosas. O facultativo ingressou com uma ação cautelar requerendo a concessão de liminar que autorizasse o uso da terapia objetada pela paciente, supostamente necessária para salvar-lhe a vida (Processo n.º 00100014613-8, 2.ª Vara Cível da Comarca de Natal, RN). A liminar foi concedida em 12 de outubro de 2000 pela juíza plantonista sob o fundamento de que “o Estado tem obrigação de preservar a vida das pessoas, bem supremo.” Alicerçou seu entendimento no art. 5.º, caput, da Constituição Federal, que garante “a inviolabilidade do direito à vida”. Cumprida a liminar, a paciente evoluiu a óbito na manhã do dia 16 de outubro de 2000. Fato semelhante ocorreu com a paciente S. M. A., de 23 anos de idade, que após ser submetida a tratamento para trombose com um medicamento anticoagulante, começou a apresentar hemorragias diversas, com conseqüente anemia. Hospitalizada, solicitou terapia sem o uso de transfusões de sangue. Um dos membros de sua família, porém, ingressou em juízo, na data de 15 de agosto de 1999, requerendo alvará judicial determinando fosse procedida a transfusão (Processo n.º 1.579/99, 3.ª Vara Cível da Comarca de Presidente Prudente, SP). Deferido imediatamente o pedido e cumprida a ordem judicial, a paciente veio a falecer poucas horas depois de receber a transfusão. Encontra-se também registrado um caso envolvendo o paciente J. R. B., de 74 anos, com insuficiência renal crônica. Submetendo-se a sessões de hemodiálise, o paciente teve queda nos seus níveis de hemoglobina. Foi internado às pressas, solicitando a utilização de quaisquer procedimentos médicos que não envolvessem o uso de sangue. A equipe médica estava decidida a agir em harmonia com a vontade do paciente, não lhe aplicando hemoderivados, quando um de seus filhos conseguiu uma liminar, determinando a transfusão. (Processo n.º 331/99, 3.ª Vara de Família da Comarca de Feira de Santana, BA). O paciente morreu logo após a realização do procedimento transfusional. Outra situação envolveu a paciente adulta A. R. H. A., internada para a realização de um parto cesariano. Após a cesárea sofreu hemorragia, motivando a equipe médica a prescrever a realização de transfusões sangüíneas, visando tratar o quadro anêmico no qual se encontrava. Consciente, requereu que lhe fossem aplicados substitutivos do sangue, pedido que não foi atendido pelo hospital. Este, ao contrário, interpôs ação cautelar inominada (Processo n.º 1.327/00, 2.ª Vara Cível da Comarca de Caçapava, SP), obtendo liminar que autorizou a hemoterapia. Cumprida a decisão judicial, com a administração de oito transfusões de sangue, a paciente faleceu. Situação concreta similar foi relatada pelo Juiz de Direito Artur Arnildo Ludwig, em artigo publicado na revista Direito em Debate6. Estando de plantão em 10 de maio de 1992, foi consultado por um médico atendente do Hospital Conceição, em Porto Alegre, RS, que indagava como proceder diante da recusa de uma paciente em receber transfusão de sangue. Tratava-se de M. C. L. F., de 19 anos de idade, casada, que fora transferida para a UTI daquele nosocômio, com diagnóstico de septicemia causada por complicações decorrentes de uma operação cesariana. O magistrado pronunciou-se favoravelmente à realização da transfusão mesmo contra a vontade da paciente, na premissa de salvarlhe a vida. Procedeu-se à transfusão de quatro unidades de concentrado de hemácias. Ainda assim, o quadro geral da paciente continuou a piorar, apresentando ela a primeira parada cárdio-respiratória em 17 de maio de 1992, e falecendo em 26 de junho de 1992.7 Caso com igual desfecho encontra-se relatado por D. J. Kipper e W. S. Hossne, na revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina, da seguinte forma: “M. P. F., 38 anos, casado, [...] Ao exame físico apresentava-se lúcido, orientado, hipocorado, taquicardíaco, porém hemodinamicamente estável, levemente dispnéico e ansioso. Os exames laboratoriais foram compatíveis com o diagnóstico de leucemia aguda. [...] Logo à admissão ao hospital, o paciente comunicou à equipe médica que era Testemunha de Jeová e, por isso, recusava-se terminantemente a receber tratamento com sangue ou derivados, [...], apresentando, inclusive, documento de identificação como pertencente à referida religião. Sua posição foi apoiada por sua esposa, que também pertencia à mesma religião. Os demais familiares (sua mãe e irmãos), ao indagarem sobre a situação, posicionaram-se contrariamente ao paciente e sua esposa quanto à realização da hemotransfusão, tentando exaustivamente convencer o mesmo a submeter-se ao tratamento indicado, sem sucesso. [...] Os familiares resolveram recorrer à Justiça e conseguiram um despacho judicial autorizando o hospital a realizar a hemotransfusão [...] Por sua vez, o hospital também solicitou liminar judicial autorizando a realização dos procedimentos, após consulta ao CRM-DF. Cerca de 24 horas após a admissão, o paciente foi submetido à transfusão de plaquetas e sangue, sob efeito de sedativos. [...] A despeito das hemotransfusões realizadas, houve piora do quadro e o paciente evoluiu para óbito [...]”.8 Os casos encontrados realmente nos induzem a sérias reflexões. Em sua totalidade, os pacientes envolvidos não desejavam dispor da própria vida. Queriam viver, tanto que de forma geral buscaram socorro médico por sua própria iniciativa. Sobre o assunto, comenta o emérito professor Léo Meyer Coutinho, in verbis: “Pode ser alegado que a recusa à transfusão significa suicídio. Não é assim. A morte desejada é suicídio, a admissível sem desejá-la, não. A Testemunha de Jeová não deseja a morte, mas sim que sejam utilizados todos os meios para impedi-la, excluída a transfusão de sangue.”9 Diante disso, concordamos com Maria Celina Bodin de Moraes, quando cita o último caso relatado como exemplo de uma “situação em que a liberdade de crença deveria ser integralmente garantida”. Comentando acerca desta e de outras questões correlatas, a autora conclui: “O respeito à pessoa humana, única em sua individualidade, mas necessariamente solidária da comunidade em que se encontra inserida, resta talvez como único princípio de coerência possível em uma democracia humanista, e que, confia-se, um dia venha a ter alcance universal.” 10 Do mesmo modo, analisando o caso relatado na revista Bioética, Maria T. M. Pacheco observou: “As decisões de tratamento de saúde envolvem muito mais do que preocupações meramente médicas. Quanto a decisões sobre o que deve ser feito com referência ao corpo de uma pessoa, é o paciente, e não a opinião pública, a classe médica, ou algum juiz, que deve tomar a decisão altamente subjetiva, baseada em valores morais, sobre qual a forma de tratamento ‘melhor’ ou ‘certa’. Ao tomar decisões sobre tratamentos de saúde, não deve haver dúvida de que são os valores do paciente que devem determinar quais os riscos e benefícios que valem a pena ser tomados.”11 3. JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL Após analisar uma série de casos ocorridos na Argentina, nos quais os juízes autorizaram os médicos a imporem a transfusão contra a vontade do paciente, Oscar Ernesto Garay conclui dizendo: “Só me resta destacar a futilidade destas decisões na prática. Cayetano, que podia ter sido tratado com terapias alternativas, foi transfundido à força, e ficou afetado psicologicamente. Natalia, apesar de que o juiz ordenou transfundi-la para salvar a sua vida, foi tratada com terapias alternativas, e sarou. Beatriz opôs tanta resistência que, não obstante a decisão, não conseguiram transfundi-la, e foi salva com alternativas. Olga não teve essa sorte: foi transfundida à força, e faleceu. Victor Hugo, transfundido à força, quase morre por causa do edema pulmonar resultante. Rosa, apesar da decisão, foi operada com êxito em outro hospital, sem transfusões. Em suma, ou as decisões não serviram para nada, ou só trouxeram mais problemas.” 12 Semelhante caso, conhecido como “Bahamondez”, foi levado à Suprema Corte de Justiça da Argentina. Salienta Rabinovich-Berkman13 que, embora ao tempo do julgamento o paciente já tivesse se recuperado sem a necessidade de receber sangue, sua importância como precedente tornou-se enorme, não só pela claridade de seus conceitos, como por provir do Supremo Tribunal daquele país. Analisando o art. 19 da Lei argentina n.º 17.132, a qual impõe aos médicos o dever de respeitar a vontade do paciente quanto à sua negativa de tratar-se ou internar-se, decidiu aquele sodalício que “a estrita interpretação da mencionada disposição legal afasta toda possibilidade de submeter uma pessoa maior e capaz a qualquer intervenção em seu próprio corpo sem o seu consentimento”. Assentou adicionalmente que sob o ângulo constitucional não seria justificada uma decisão judicial que autorizasse submeter uma pessoa adulta a um tratamento de saúde contra sua vontade, quando a decisão do indivíduo tivesse sido feita com pleno discernimento e não afetasse diretamente os direitos de terceiros, concluindo que “o alicerce da norma constitucional ‘... é a própria base da liberdade moderna, ou seja, a autonomia da consciência e a vontade pessoal, a convicção segundo a qual é exigência elementar da ética que os atos dignos de méritos se realizem fundamentados na livre e incoercível crença da pessoa nos valores que o determinam...’.”14 Conforme bem observado pela ilustre magistrada Christine Santini Muriel, “é preciso que se diga que, no caso específico dos seguidores [...] Testemunhas de Jeová, a jurisprudência internacional tem evoluído no sentido de que se respeite a vontade do paciente independentemente dos riscos dela decorrentes. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, alguns hospitais e Cortes adotam a teoria de que qualquer paciente adulto que não seja declarado incapaz tem o direito de recusar um tratamento, não importa quão prejudicial tal recusa possa ser para sua saúde. Adota-se em regra geral naquele país a teoria da necessidade do consentimento esclarecido do paciente para a prática de intervenção médica”. 15 Nesse diapasão, encontramos famosa decisão proferida pela Suprema Corte do Mississipi: “A norma do consentimento informado repousa sobre o firme alicerce do respeito deste Estado pelo direito da pessoa de estar livre de invasões corporais indesejadas, não importa quão bem-intencionadas. O consentimento informado sugere também um corolário: o paciente deve ser informado da natureza, dos meios e das prováveis conseqüências do tratamento proposto, a fim de que ele possa ‘conscientemente’ decidir o que deve fazer — uma de suas opções sendo a rejeição.” 16 Similarmente, no Canadá deparamo-nos com a seguinte decisão proferida pela Corte de Apelações: “Um adulto capaz tem de modo geral o direito de recusar um tratamento específico ou todo tratamento, ou selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que a decisão possa envolver riscos tão sérios quanto a morte e possa parecer equivocada aos olhos da profissão médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o paciente que tem a palavra final quanto a submeter-se ao tratamento. Embora numa emergência o conceito de iminente perigo de vida possa proteger o médico que age sem consentimento, ele não está livre para desconsiderar as instruções antecipadas de um paciente.”17 No mesmo sentido, há decisão oriunda do Japão, prolatada pelo Tribunal Superior de Justiça de Tóquio: “No caso em tela, o propósito dos recorrentes de realizar uma cirurgia adequada, condizente com o padrão de serviço médico, para retirar o tumor do fígado de Misae, pode ser considerado um comportamento natural de um médico que se dedica ao trabalho de cuidar da vida e da saúde das pessoas. Porém, quando o paciente manifesta claramente a vontade de rejeitar as práticas médicas que envolvem a transfusão de sangue, pelo fato de a transfusão ir contra a sua convicção religiosa, o direito de tomar tal decisão deverá ser respeitado como um componente do direito pessoal.” 18 4. OS RISCOS TRANSFUSIONAIS Tratados de medicina em geral indicam que as hemotransfusõesenvolvem riscos sérios, às vezes letais, para os pacientes submetidos a tal forma de tratamento médico. A pesquisa na moderna literatura médica expõe o erro de presumir que a transfusão de sangue seja sempre uma terapia que “salva a vida”. Ela também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo.19 Em recente e conceituado trabalho científico, Hébert et al. comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva.20 Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas categorias: primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou por hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de natureza imunológica, imediatas ou tardias, e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas. Alguns exemplos de doenças infecciosas, transmitidas por transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais, são: a AIDS (sigla, em inglês, para “síndrome da imunodeficiência adquirida”, causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (sigla, em inglês, para “vírus da leucemia e linfoma de células T”) e por bactérias ou protozoários. 21. Mollison, Engelfriet e Contreras, na consagrada obra Blood Transfusion in Clinical Medicine, declaram que “a maioria das mortes causadas por transfusão de sangue são devidas à transmissão de vírus, bactérias ou protozoários.” 22 E acrescentam: “Testes apropriados para exames sistemáticos das unidades de sangue doado estão disponíveis para a maioria dos agentes infecciosos capazes de causar significativa morbidade nos receptores; porém, a maioria dos testes não detectam todos os doadores infectados.”23 Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a hemoterapia, tais como, erros humanos operacionais (e.g., transfusão de tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a supressão do sistema imunológico do paciente, provocando aumento das chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores. Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: “Atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as transfusões.”24 5. ALTERNATIVAS MÉDICAS ÀS TRANSFUSÕES DE SANGUE Dentre os poucos autores da área jurídica que se propuseram a enfrentar o tema acerca dos riscos transfusionais de modo mais abrangente, encontramos Artur Marques da Silva. Em brilhante artigo no qual trata da responsabilidade civil dos médicos nas transfusões de sangue, o insigne autor, após alistar uma série de perigos e complicações associadas ao uso da hemoterapia, conclui dizendo: “É incontornável que todo o esforço médico deve ser empreendido para que se evite o procedimento inseguro de uma transfusão.” 25 O grande óbice para atingir-se essa meta plenamente, até algum tempo atrás, era a escassez de alternativas médicas às transfusões. Como salienta Rabinovich-Berkman: “Se a transfusão era perigosa, mas insubstituível, não havia outro remédio senão submeter-se a ela. A dicotomia apresentava-se assim: transfusão ou morte, numa situação de estado de necessidade”.26 No entanto, explica o mesmo autor: “[...] nas últimas décadas a ciência médica desenvolveu técnicas e tratamentos destinados a tornar possível a cirurgia e o cuidado sem sangue alogênico (de outra pessoa).” 27 Em consonância com as palavras do renomado autor, no fim do século 20 e início do século 21 tem-se presenciado significativo avanço científico na busca por seguras alternativas médicas às transfusões de sangue. Em 1997, líamos em mundialmente conhecida revista de notícias que “cada vez mais pacientes estão clamando por opções mais seguras e mais eficazes do que as transfusões, seja por motivos religiosos, seja pelo medo de contrair doenças” 28. Estratégias e programas que empregam alternativas às transfusões de sangue têm tornado possível que pacientes recebam o necessário tratamento médico e cirúrgico, ao passo que se conservam intactos os valores intelectuais, morais e religiosos destes pacientes. É o que a Medicina chama de “tratar o paciente como um todo”, e não apenas o aspecto físico da sua doença29. Não nos cabe, neste trabalho, por sua própria natureza diversa, relacionar exaustivamente as alternativas hoje empregadas para se evitar transfusões de sangue. Registre-se apenas que num simpósio médico, realizado no Canadá, em fins da década de 1990, tratou-se extensamente do assunto, relacionando-se em pormenores as alternativas às transfusões. Entre elas figuram os medicamentos que estimulam o corpo do próprio paciente a produzir os diversos tipos de células sangüíneas (eritropoetina humana recombinante, fatores recombinantes de estimulação do crescimento de colônias de granulócitos e macrófagos, interleucina-11 etc.); agentes hemostáticos (ácidos aminocapróico e tranexâmico, aprotinina, agentes hemostáticos tópicos, adesivos de tecidos, vitamina K1 etc.); expansores do volume do plasma que não contêm sangue (colóides e cristalóides) e os chamados substitutos do sangue (perfluoroquímicos, hemoglobina recombinante e polimerizada etc.). Acrescente-se aos medicamentos os equipamentos e aparelhos que reduzem o sangramento ou querecuperam o sangue do próprio paciente durante a cirurgia, tais como bisturis hemostáticos, dispositivos de recuperação intra-operatória de sangue autólogo (comumente chamados “cellsavers”) e aparelhos de monitoração não invasiva de oxigênio que reduzem as perdas ocasionadas por freqüentes coletas para exames laboratoriais, entre outros.30 É significativo que muitas de tais técnicas que visam substituir a utilização da terapia transfusional não têm sido usadas apenas nos chamados países desenvolvidos, mas em todo o mundo, inclusive no nosso país. À guisa de exemplificação, relembre-se matéria pertinente escrita no jornal O Estado de São Paulo, sob o título “Crescem no País as cirurgias sem transfusão”, em que se afirma que o método pelo qual os facultativos empregam estratégias e medicamentos para evitar a transfusão de sangue estocado “está sendo adotado por um número crescente de médicos e de hospitais no Brasil. E deve tornar-se cada vez mais comum aqui no Brasil.”31 Isso corrobora o que já fora escrito no jornal Gazeta Mercantil, sob a manchete “Técnicas simples podem descartar transfusões de sangue em cirurgias”. O artigo, de 1991, propalava que “três técnicas simples, bem articuladas num programa integrado, podem transformar em prática do passado a clássica transfusão de sangue com todos os seus riscos – e mesmo altos custos, quando se pensa em termos de saúde pública.”32 Na virada do século, constatamos na literatura médica relatos sobre grandes cirurgias cardíacas33, neurológicas34, ortopédicas35, ginecológicas36 e mesmo transplantes de fígado37, de pulmão38 e de coração39 feitas sem a utilização de sangue alogênico (de bancos de sangue). Antes, o progresso científico tem patrocinado a utilização de alternativas médicas às transfusões e, desse modo, permitido tais façanhas, sem prejuízos para os pacientes. 6. ASPECTOS PROCESSUAIS Diante de todos os fatores apresentados, percebe-se que a complexa e intrincada problemática sub examine não pode ser considerada de modo por demais simplista. Além disso, a análise honesta, coerente e imparcial requer sejam primeiramente afastadas algumas das falsas premissas que com freqüência têm sido inadvertidamente prestigiadas na abordagem do tema. A pesquisa revelou que, no esforço de obter um autorização judicial, não raro, certos médicos têm exagerado a gravidade do quadro clínico do paciente. Em alguns dos casos investigados, muito embora fosse afirmado na petição inicial que transfundir o paciente era imprescindível para a manutenção de sua vida, tal procedimento acabou não sendo realizado, mostrando-se por fim desnecessário. O enfermo teve sua saúde restabelecida com a utilização de alternativas médicas sem sangue. Por outro lado, nas hipóteses em que os pacientes realmente corriam risco de vida, o procedimento transfusional não foi capaz de salvá-los. Destarte, já não se pode aceitar o raciocínio simplório de que transfusão é sinônimo de vida. Perante esse quadro fático que se nos apresenta, não vemos como deixar de perscrutar sob a lupa de critérios mais rigorosos as argumentações daqueles que recorrem ao Judiciário sustentando que a transfusão de sangue é a única terapia que pode salvar a vida do paciente. Ademais, há que se ter cautela diante de declarações singelas de que o paciente encontra-se em situação de risco iminente a exigir com urgência o amparo da tutela jurisdicional. Como advertiu a ilustre magistrada Christine Santini Muriel, “no caso de recusa do paciente a respeito de recebimento de transfusão de sangue, deve em primeiro lugar ser analisada a efetiva existência da necessidade do ato.” 40 Observa-se, com freqüência, por parte de alguns profissionais da área da saúde, uma tentativa de transferir para o Judiciário o risco de uma decisão eminentemente médica. Na incerteza sobre a real necessidade e eficácia da terapia transfusional, imaginam erroneamente estarem eximidos de responsabilidade pela obtenção de uma liminar judicial. Concordamos, nesse particular, com a decisão do TJRS: “Não pode o Judiciário estar fornecendo alvarás para realização de tratamentos médico-hospitalares ou cirúrgicos. Médicos e hospitais devem assumir os riscos óbvios inerentes à atividade que exercem, como o assumem todos os profissionais.” (RJTJRS 171/384) Ocorre que nosso ordenamento jurídico positivo não considera constrangimento ilegal: “I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir suicídio.” (CP, art. 146, § 3.º, I e II) Em consonância, determina o Código de Ética Médica: “É vedado ao médico: Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.” (CEM, Resolução CFM 1.246/88, art. 46) Deste modo, a própria busca de autorização judicial, sob o argumento de que o paciente recusa o único tratamento eficaz para retirá-lo da alegada situação de iminente perigo de vida, já revela, por si mesma, a desnecessidade do provimento jurisdicional. Afinal, estivesse o paciente sob morte iminente, imediata, e recusasse a realização do único tratamento médico apto a salvá-lo, não haveria necessidade — e nem tempo hábil — para se buscar uma autorização de quem quer que fosse. Na hipótese em apreço, porém, explicita Rabinovich-Berkman: “As Testemunhas de Jeová não buscam sua morte, nem a de seus filhos. Atualmente, a transfusão de sangue é apenas uma das muitas alternativas que estão disponíveis. As outras terapias são com freqüência muito menos perigosas, e sua aplicação é de praxe em todo o mundo desenvolvido. As Testemunhas de Jeová somente solicitam ser submetidos a algumas dessas outras opções.”41 Sob esse ângulo, não se está debaixo de uma questão de vida ou morte, de tratamento ou não, mas sim de escolha de tratamento. Diante desses fatores indagamos se deve o julgador admitir pedidos de autorização para transfundir um paciente contra sua vontade. Ademais, há que se questionar especialmente se tais requerimentos devem ser recebidos em sede de cautelar, vez que se tornam indiscutivelmente satisfativos. Nesse sentido, há que se perscrutar se não seria mais apropriada a utilização do instituto da antecipação da tutela; afinal, como bem expressou Luiz Guilherme Marinoni, “não é mais admissível — após a reforma do Código — que alguém pretenda propor ação (de cognição) sumária ‘satisfativa’ com base no artigo 798.”42 Verificando o juiz que a sua decisão terá cunho nitidamente satisfativo, e mais do que isso, que antecipará uma decisão de mérito, que em regra somente deveria ocorrer depois de exaurida a apreciação de toda a controvérsia, deve receber o pleito como um processo de conhecimento e avaliar o pedido liminar à luz dos requisitos estabelecidos expressamente no artigo 273, caput e inciso I, do CPC: a) existência de prova inequívoca; b) verossimilhança da alegação; e c) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Quanto ao requisito da reversibilidade do provimento antecipado (CPC, art. 273, §2.º), concordamos, em parte, com Costa Machado, quando defende que “não faz nenhum sentido admitir que em situações de tamanha gravidade a interpretação literal de um dispositivo do CPC possa ser sobreposto à vida”. 43 Por outro lado, entendemos que, exatamente por se tratar de proteção a bem de tamanha magnitude, não se pode também deixar de lado a segurança jurídica (no sentido do acerto da decisão firmada em bases probatórias sólidas), especialmente quando a experiência demonstra que tais autorizações baseadas em meras afirmações unilaterais e subjetivas têm-se revelado, no mínimo, temerárias, vez que não raro produzem mais malefícios do que benefícios. Nesse sentido, convém lembrar que “o que se entende por justiça efetiva não é necessariamente justiça mais rápida, mas sim melhor. Por isso, os procedimentos diferenciados que busquem uma maior efetividade para o processo devem respeitar os princípios do devido processo legal, sob pena de criarem maiores injustiças do que benefícios, e também sob pena de violação constitucional.” 44 Fosse a transfusão sangüínea um procedimento absolutamente inócuo, talvez a questão se apresentasse como menos controvertida. O insofismável dilema, contudo, consiste em que a transfusão não é um procedimento isento de riscos. Além disso, a hemoterapia, qual ramo da medicina, não faz parte de uma ciência exata. O que constitui iminente risco de vida sob o ponto de vista de um médico, pode não passar de erro de diagnóstico para outro mais experiente. E no entanto, pela concessão de liminares inaudita altera pars, subtrai-se do paciente o direito de obter uma segunda opinião médica, e de optar por uma forma mais segura de tratamento.45 Nos casos analisados constata-se que a maioria das liminares foram concedidas sem a análise mais acurada dos fatos, e sem a verificação mais atenta de suspeitosos e inexatos documentos anexados no afã de justificar a obtenção de uma tutela de urgência. Só posteriormente percebeu-se que a falta de transfusão não constituía real e iminente perigo de vida para o paciente, o qual realmente poderia ser tratado de outra forma mais segura. Evidentemente, há situações de real emergência, em que não é possível a oitiva prévia do paciente, nem a análise mais acurada dos fatos. Nestas hipóteses, entendemos que ao julgador caberá agir com redobrada cautela. Em se tratando de deferir a medida pleiteada, deverá determinar que antes sejam esgotados todos os outros meios disponíveis de tratamentos médicos sem sangue, e caso seja procedida a transfusão, que os médicos certifiquem-se da absoluta necessidade e segurança do procedimento. 7. A QUESTÃO PELO PRISMA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS As decisões judiciais autorizadoras de procedimentos hemoterápicos contra a vontade do paciente têm sido freqüentemente concedidas sob a fundamentação de que, diante da colisão entre dois direitos fundamentais, de um lado a liberdade, de outro a vida, esta há que prevalecer, porquanto se trata do bem maior, indisponível. O cerne do problema, no entanto, reside no fato de que, na hipótese sub examine, tais pacientes não estão recusando tratamento médico, nem pretendem dispor da própria vida, como explicita Carmen Juanatey Dorado: “não se pode qualificar de ‘suicida’ a conduta da testemunha de Jeová que, ao mesmo tempo em que se nega a que lhe pratiquem uma transfusão de sangre, está disposta a submeter-se a qualquer tratamento alternativo para continuar vivendo. Em tal hipótese, efetivamente, não se pode falar de ‘vontade de morrer’.” 46 Com efeito, não há propriedade em se falar em colisão entre direitos fundamentais, até porque tratam-se de direitos de um mesmo titular, que não pretende dispor de nenhum deles. Estamos, na realidade, diante daquilo que Canotilho chama de “concorrência de direitos fundamentais”, que se dá “quando um comportamento do mesmo titular preenche os ‘pressupostos de facto’ (‘Tatbestände’) de vários direitos fundamentais”47. Sendo o direito à vida e o direito à liberdade protegidos e considerados igualmente invioláveis pela Constituição Federal (CF, art. 5.º, caput), há que se buscar, sempre que possível, a conciliação de ambos. Ademais, há que se lembrar que “no direito, como na vida, a suma sabedoria reside em conciliar, tanto quanto possível, solicitações contraditórias, inspiradas em interesses opostos e igualmente valiosos, de forma que a satisfação de um deles não implique o sacrifício total do outro”.48 Utilizando-nos dos ensinamentos de Robert Alexy49 sobre o princípio da necessidade e sua relação com o princípio da proporcionalidade, conforme trazidos por Suzana de Toledo Barros, podemos propor a seguinte forma de conciliação dos direitos fundamentais. Suponhamos, v.g., que um paciente portador de insuficiência renal crônica, submetido à hemodiálise, apresente-se com anemia significativa. Para a consecução do fim F (elevar o nível de hemoglobina do paciente), exigido por um direito D1 (direito à vida), existem, pelo menos, dois meios, M1 (transfusão de concentrado de hemácias) e M2 (aplicação de eritropoetina humana recombinante — hormônio sintético que estimula a medula óssea do próprio paciente a produzir mais hemácias — associada a ferro e ácido fólico), que são igualmente adequados para a consecução do fim F. O meio M2 (eritropoetina, ferro e ácido fólico) afeta menos intensamente o titular de D1, já que M1 (transfusão de sangue) restringe um outro direito seu, D2 (liberdade de consciência e de crença). Para atingir F e realizar D1 seria indiferente se eleja M1 ou M2, mas para o titular dos direitos D1 e D2 só M2 (tratamento com eritropoetina, ferro e ácido fólico) é exigível. 8. CONCLUSÃO A presente pesquisa chamou-nos atenção, por um lado, quanto à recuperação de pacientes tratados com terapias sem o uso de sangue; por outro, a morte de vários pacientes transfundidos à força, contra sua própria vontade consciente. A situação apresenta-se tão mais delicada na medida em que, supostamente, a transfusão teria sido autorizada por via judicial sob o argumento de que era preciso salvar-lhes a vida, embora tais pacientes tivessem objeções unicamente ao emprego de tal procedimento terapêutico, aceitando quaisquer outros. No entanto, não obstante a realização das transfusões, tais pacientes morreram, quer em decorrência da evolução de sua enfermidade, quer como resultado das próprias reações transfusionais adversas. Tais fatos remetem-nos certamente a uma série de reflexões éticas e jurídicas acerca da validade das transfusões arbitrárias, diante da proteção constitucional não só à inviolabilidade do direito à vida, mas, igualmente, à liberdade, inclusive na projeção de liberdade religiosa, bem como da dignidade da pessoa humana, qual fundamento da República Federativa do Brasil, previsto no art. 1.º da Constituição Federal, inciso III, que deve permear a interpretação de toda a Carta Magna. O respeitado professor de Medicina Legal, Genival Veloso França, preconizava em seu livro Direito Médico que, em situações de iminente risco de vida, o médico deveria realizar a transfusão mesmo contra a vontade do paciente. 50 Mais recentemente, porém, advertiu com a seguinte ressalva: “Deve o médico entender, nos casos das Testemunhas de Jeová, que em muitas ocasiões o sangue pode ser substituído por outros fluidos ou até não ser usado e, por isso, poderá desenvolver uma forma de tratamento que não sacrifique sua vida nem avilte sua dignidade. Não esquecer ainda que esses adeptos não abriram mão da vida e não desacreditam na medicina, mas tão-só, em face de sua crença religiosa, solicitam abster-se de sangue ”.51 Nesse sentido, indagamos se já não é chegada a hora do Judiciário brasileiro, bem como da classe médica como um todo, reverem igualmente seu posicionamento. Afinal, como bem observado pelo ilustre professor de bioética Elio Sgreccia, “é preciso ter sempre presente que a vida e a saúde são confiadas prioritariamente à responsabilidade do paciente e que o médico não tem sobre o paciente outros direitos superiores ao que o próprio paciente tem a respeito de si mesmo.” 52