uma educação para a paz - Revista Filosofia Capital

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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982 6613
Vol. 9, Edição 16, Ano 2014.
UMA
EDUCAÇÃO
PARA
A
PAZ:
TRANSDISCIPLINARIDADE E AMPLIAÇÃO DA
CONSCIÊNCIA HUMANA1
A
EDUCATION
FOR
PEACE:
TRANSDISCIPLINARITY AND EXTENSION OF
HUMAN CONSCIOUSNESS
ARNT, Rosamaria de Medeiros2
HOLANDA, M. Júlia B. de3
RESUMO
Neste artigo buscamos o entendimento do que é a paz e enfatizamos a paz interior ligando-a
aos processos de conscientização tendo como fio condutor a atenção plena, a consciência
espiritual. Buscamos na transdisciplinaridade a ampliação da nossa visão humana de mundo,
da vida e do conhecer para o aperfeiçoamento do saber, do fazer e do sentir. Também a
necessidade do contato com o sagrado, por onde alcançamos a compreensão da realidade
utilizando a razão, mas também, o amor. Propomos algumas sugestões concernentes a uma
educação para a paz, no campo do ‘cuidar do ser’, como forma de iniciarmos, nas formações
de professores, momentos de cultivo da paz para que possam ser levadas, como atividade às
salas de aula.
Palavras-Chave: Consciência; Transdisciplinaridade; Educação para a paz.
ABSTRACT
This article tries to understand what is to emphasize the peace and inner peace by connecting
it to the consciousness of processes having as thread mindfulness, the spiritual consciousness.
Nicer in transdisciplinarity to expand our human world view, life and meet for the
improvement of knowledge, of doing and feeling. Also the need for contact with the sacred,
where we reach the understanding of reality using reason, but also love. We propose some
suggestions concerning a peace education in the field of 'care of the self' as a way to begin, in
the training of teachers, moments of culture of peace so that they can be taken as an activity to
classrooms.
Keywords: Consciousness; Transdisciplinarity, Education for peace.
1
Artigo apresentado no XVII ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 2014.
Doutora em Educação pela PUC/SP. Membro do Grupo de Pesquisa Ecotransd: Ecologia dos saberes,
transdisciplinaridade e educação, com pesquisas na área da docência e didática transdisciplinar e educação para a
paz. E-mail: [email protected]. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6161577718275362.
3
Mestra em Educação da UCB/DF. Membro do Grupo de Pesquisa ECOTRANSD - Ecologia dos saberes,
Transdisciplinaridade e Educação - UCB/DF. E-mail: [email protected], CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4298961141386037.
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Introdução
Iniciar uma abertura para os conceitos
que consideramos fundamentos científicos
do paradigma tradicional, além de
apresentar um contexto cronológico
histórico nos traz também o sentido de
entender e, por conseguinte, transpor
rupturas para se compreender o paradigma
emergente a ser descrito posteriormente
neste trabalho
Em 20 de novembro de 1997, as
Nações Unidas proclamaram o ano 2000
como o Ano Internacional da Cultura de
Paz, iniciando mobilização mundial para
transformar os princípios norteadores da
cultura de paz em ações concretas. A
década 2001-2010 foi marcada como a
Década Internacional da Promoção da
Cultura de Paz e Não Violência.
Estamos em 2014. Pouco sentimos de
diferença, em nosso cotidiano, passados
quase 20 anos das resoluções da ONU. As
notícias de jornais, revistas, rádio e
televisão continuam alarmantes em relação
ao número de mortes por dia, às ações de
violência contra a mulher, crianças,
comunidades, entre outras. Os gestos de
preconceito, discriminação, indiferença,
intolerância pelos motivos mais variados
seguem… As escolas, como outras
instituições sociais, também abrigam o
medo, o desrespeito, o desânimo, a apatia
frente a uma educação afastada das
necessidades e realidade dos alunos e
alunas e um modo de viver insustentável
que não conseguimos transformar.
A educação para a paz nos parece
uma urgência. Há iniciativas em muitos
setores, em escolas, em instituições
educativas não formais, em instituições de
ensino superior. Mas ainda não temos
diretrizes que nos apontem caminhos a
serem trilhados e adotados como políticas
públicas, capazes de orientar as práticas
pedagógicas para uma civilização planetária
e para a ética do gênero humano, como
aponta Edgar Morin (2000).
Vol. 9, Edição 16, Ano 2014.
Estamos em 2014. A pergunta ainda
permanece: como educar para a paz?
Sem termos respostas prontas, ou um
manual elucidativo, vamos investigando
este tema iniciando pelo entendimento do
que é a paz. Destacamos a paz interior e
fazemos a ligação com os processos de
conscientização,
especialmente
da
consciência
atenta,
da
consciência
espiritual. A transdisciplinaridade nos
amplia a visão
de mundo,
de
homem/mulher, da vida e do conhecer. E
nos aponta também a necessidade do
contato com o sagrado, por onde
alcançamos a compreensão da realidade
utilizando a razão, mas também, o amor. E
concluímos com algumas sugestões, no
campo do ‘cuidar do ser’, como forma de
iniciarmos, nas formações de professores,
momentos de cultivo da paz para que
possam ser levadas às salas de aula.
Paz
Ubiratan D’Ambrósio (2014) nos
apresenta a paz como um conceito
pluridimensional. E afirma que nosso
objetivo deve ser alcançar um estado de paz
total, sem o quê o futuro da humanidade
estará comprometido. Define paz total
como a integração das dimensões: paz
interior - estar em paz consigo; paz social estar em paz com os outros; paz ambiental estar em paz com as demais espécies e com
a natureza em geral; paz militar - a ausência
de confronto armado.
O conceito de paz associa-se não só à
ausência de conflito bélico, mas também à
ausência de violência de qualquer tipo. Para
Paulo Freire (1997), a paz se cria e se
constrói com a superação das realidades
sociais perversas, com a edificação
incessante da justiça social.
Xesus Jares (2007) utiliza a noção de
‘paz positiva’. Em contraste com a ausência
de luta declarada, uma relação pacífica
deveria significar – em escala individual –
amizade e compreensão suficientemente
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amplas para superar quaisquer diferenças
que pudessem surgir. Em escala maior, as
relações pacíficas deveriam implicar uma
associação
ativa,
uma
cooperação
planejada, um esforço inteligente para
prever ou resolver conflitos em potencial.
Podemos pensar a paz como a situação
caracterizada por um nível reduzido de
violência e um nível elevado de justiça.
A cultura de paz é uma iniciativa de
longo prazo, um processo constante,
cotidiano que leva em conta os contextos,
histórico, político, econômico, social e
cultural de cada ser humano e sociedade.
De acordo com o Relatório Delors
(UNESCO, 2010), pela educação espera-se
que todo ser humano seja preparado para a
autonomia intelectual e para uma visão
crítica da vida, de modo a poder formular
seus próprios juízos de valor, desenvolver a
capacidade de discernimento e de como
agir em diferentes circunstâncias da vida.
Espera-se, também, que possibilite a todos,
capacidades e referências intelectuais que
lhes permitam conhecer o mundo que os
rodeia e agir como atores responsáveis e
justos. Para tanto, é imprescindível uma
concepção de desenvolvimento humano que
tenha por objetivo a realização plena das
pessoas, em processo dialógico, no
fortalecimento dos vínculos do ser consigo,
com o outro/sociedade e com a natureza.
O economista chileno Manfred MaxNeef (1998), ganhador em 1983 do prêmio
Nobel Alternativo, indicado a pessoas que
trabalham na busca e aplicação de soluções
para as mudanças mais urgentes e
necessárias no mundo atual, escreveu a obra
Desenvolvimento na Escala Humana, com
pesquisas de mais de 20 anos mapeando as
necessidades humanas e diferenciando
necessidades – que considera como
universais -, dos fatores de satisfação - que
variam de acordo com o tempo, com a
cultura, com a sociedade. Destaca nove
necessidades, interdependentes e não
hierarquizadas: subsistência, proteção,
afeto, entendimento, participação, ócio,
criação, identidade e liberdade. A educação
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está, em sua matriz, mais especificamente
na necessidade de entendimento. Olhandose por este viés, os fatores de satisfação, em
relação ao ser e à atitude são: a consciência
crítica, abertura, curiosidade, capacidade de
espantar-se, de disciplinar-se, a intuição e
racionalidade. Na perspectiva do ‘fazer’, a
necessidade de entendimento pressupõe
como fatores de satisfação a habilidade de
investigar, estudar, experimentar, atuar,
analisar, meditar, interpretar.
Destacamos, por inovadores, os
fatores intuição e racionalidade colocados
lado a lado e juntamente com a valorização
da habilidade de pesquisar e estudar, a
meditação e a experiência, como
fundamentais ao entendimento ou à
compreensão de nós mesmos, da realidade
em que vivemos e das relações nas quais
estamos imersos.
Sabemos que a quantidade de
conhecimento
adquirido
por
nossa
civilização no último século é assombrosa.
Mas, quando pensamos em paz, em
educação para a paz, sentimos que ainda
falta algo. Edgar Morin (2000), quando
aborda os sete saberes para a educação do
século XXI, destaca que a informação, se
for bem transmitida e compreendida, traz
inteligibilidade,
condição
primeira
necessária, mas não suficiente, para a
compreensão. Segundo este autor, existem
duas compreensões que devem ser cuidadas
na educação: a intelectual ou objetiva e a
humana intersubjetiva. A compreensão
intelectual passa pela inteligibilidade e pela
explicação. “Explicar é considerar o que é
preciso como objeto e aplicar-lhe todos os
meios objetivos de conhecimento. A
explicação é, bem entendido, necessária
para a compreensão intelectual.” (MORIN,
2000:92) A compreensão humana vai além,
pois vincula-se ao conhecimento de sujeito
a sujeito. Exemplifica Morin (idem):
[...] se vejo uma criança chorando, vou
compreendê-la, não por medir o grau de
salinidade de suas lágrimas, mas por
buscar em mim minhas aflições infantis,
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identificando-a comigo e identificandome com ela. [...] Compreender inclui,
necessariamente, um processo de
empatia, de identificação e de projeção.
Sempre intersubjetiva, a compreensão
pede abertura, simpatia, generosidade.
Relacionamos a necessidade de
entendimento, apontada por Max-Neef, à
compreensão objetiva e intersubjetiva de
Edgar Morin. Lembramos, neste contexto,
da definição de Jorge Larrosa (2002),
professor e escritor espanhol, para o saber
da experiência. Faz-nos pensar a educação a
partir do par experiência/sentido. Para ele, a
experiência é o que nos acontece, não o que
acontece simplesmente. Pensar não é
somente “raciocinar” ou “calcular” ou
“argumentar”, mas é, sobretudo, dar sentido
ao que somos e ao que nos acontece.
Assim, o sujeito da experiência se define
não por sua atividade, mas por sua
passividade, receptividade, disponibilidade,
abertura. “Trata-se, porém, de uma
passividade anterior à oposição entre ativo
e passivo [...] como uma receptividade
primeira.” (LARROSA, 2002:24).
Se a experiência não é o que
acontece, mas o que nos acontece, duas
pessoas, ainda que estejam juntas num
mesmo acontecimento, não passam pela
mesma experiência. O acontecimento é
comum, mas a experiência é singular. O
saber da experiência é um saber que não
pode separar-se do indivíduo concreto em
quem encarna. A aprendizagem da
experiência não pode ser transmitida por
outra pessoa, deve ser vivida ela mesma.
Se a aprendizagem da experiência não
pode ser transmitida a outra pessoa, como
podemos fazer para ensinar a paz? Como se
aprende a viver em paz? Que educação dá
conta da compreensão, ou da necessidade
de entendimento, como vimos?
De acordo com Batalloso (2012),
precisamos de uma educação concebida sob
a égide da responsabilidade social, capaz de
responder e corresponder eficazmente às
emergências e necessidades existenciais em
todas as dimensões da pessoa humana. Esta
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educação deve ser dotada de fundamentos
ontológicos,
epistemológicos,
metodológicos e axiológicos. Apta a
‘prever e afrontar’ a incerteza, a
imprevisibilidade, a não-linearidade, o
indeterminismo. Uma educação capaz de
“[...] Criar condições para que emerjam
teorias mais explicativas e compreensivas
da realidade [...] dotada de recursos e
tecnologias [...] de harmonia e bem estar a
todos os seres humanos, sem exceção”
(BATALLOSO, 2012:149-184).
Transdisciplinaridade
atenta
e
consciência
Numa perspectiva transdisciplinar, há
uma relação direta e incontornável entre
paz
e
transdisciplinaridade.
O
pensamento fragmentado é incompatível
com a busca da paz nesta Terra. O
surgimento de uma cultura e de uma
educação para a paz pede uma evolução
transdisciplinar da educação e, muito
particularmente,
da
Universidade
(NICOLESCU, 2008:140).
A transdisciplinaridade, ao se
constituir como uma nova postura perante o
conhecimento e a realidade, segundo
Nicolescu (2008:76), nos leva a uma “[...]
transgressão generalizada que abre um
espaço ilimitado de liberdade, de
conhecimento, de tolerância e de amor”.
Esta atitude transgressora exige: rigor,
abertura e tolerância. Nos torna capazes,
tanto no plano individual, quanto social de
manter uma “[...] orientação constante,
imutável, qualquer que seja a complexidade
de uma situação e dos acasos da vida”
(NICOLESCU, 2008:86). Entendemos esta
‘orientação constante’ como uma outra
maneira de pensarmos a paz individual, nos
propiciando serenidade, no encontro de um
espaço interior, no qual valores, história de
vida, experiências, propósitos, intenções se
integrem para que nossas ações reflitam
coerência entre o que somos, pensamos,
sentimos.
Como afirmado no Artigo 7 da Carta
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da Transdisciplinaridade (1994:97), “a
transdisciplinaridade não constitui nem uma
nova religião, nem uma nova filosofia, nem
uma nova metafísica, nem uma ciência das
ciências.” Em relação a este artigo,
D’Ambrósio (2001) elucida que esta não é
uma nova filosofia, nem uma nova
metafísica, nem uma nova ciência das
ciências, nem uma nova postura religiosa.
Nem mesmo um modismo, mas “[...]
repousa sobre uma atitude aberta de
respeito mútuo e mesmo de humildade com
relação a mitos, religiões e sistemas de
explicações e conhecimentos [...]. A
transdisciplinaridade
é
transcultural”
(D’AMBROSIO, 2001: 47).
Este olhar da transdisciplinaridade se
apoia nos três elementos: a complexidade,
os níveis de realidade e a lógica do terceiro
incluído.
Nicolescu (2006:7) aborda a lógica do
terceiro incluído como uma ferramenta para
um processo integrativo que “[...] nos
permite atravessar dois diferentes níveis de
Realidade ou de percepção”. Desta forma,
nos é permitido efetivamente “[...] integrar,
não apenas no pensamento, mas também
em nosso próprio ser, a coerência do
Universo”. Com isso, a descoberta e a
utilização do terceiro escondido/incluído
“[...] é um processo transformativo”, onde o
terceiro incluído deixa de ser uma
ferramenta abstrata, para ser uma
ferramenta lógica, que “[...] se torna uma
realidade viva tocando todas as dimensões
do ser”. Para este autor, tal fato é
imprescindível na educação e no
aprendizado. Para nós, proporciona uma
abertura ao que podemos chamar de
educação para ampliação da consciência, ou
educação espiritual, como veremos adiante.
Contudo, não haverá progressão se
esta coerência estiver limitada apenas aos
níveis de realidade, seja no nível mais alto
ou no mais baixo. Portanto, para que a
coerência continue para além destes dois
níveis limitados, constituindo um terceiro
nível, ou terceiro incluído para assim, se
transformar em uma unidade aberta, “[...] é
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preciso considerar que o conjunto dos
níveis de realidade prolongue-se para a
zona de não-resistência às nossas
experiências, representações, descrições,
imagens ou formalizações matemáticas”
(NICOLESCU, 2008: 55).
Para Nicolescu (2008:56), a zona de
não-resistência corresponde à região do
sagrado, àquilo que não se submete a
nenhum tipo de racionalização. Estes
diferentes níveis de realidade são acessíveis
ao conhecimento humano devido à
existência de diferentes níveis de percepção
que permitem uma visão geral, unificante e
englobante da realidade, sem que jamais se
esgote completamente. Assim, a zona
complementar de não-resistência constitui o
Objeto transdisciplinar e o conjunto de
níveis de percepção, como também o
Sujeito
transdisciplinar.
O
objeto
transdisciplinar é formado pelos níveis de
realidade e a zona de não-resistência e o
sujeito transdisciplinar, pelos níveis de
percepção e a zona de não resistência.
Ambos formam uma unidade aberta que se
traduz pela orientação coerente do fluxo de
energia e de informação que “[...] atravessa
os níveis de realidade e pelo fluxo de
consciência que atravessa os níveis de
percepção. [...] Este todo se abre para a
zona de não-resistência, ou o sagrado, que é
comum ao sujeito e ao objeto” por meio de
uma experiência vivida que integra o saber.
A zona de não-resistência é o “[...]terceiro
secretamente incluído que une ciência e
consciência [...]. Surge um novo tipo de
evolução, ligada à cultura, à ciência, à
consciência, à relação com o outro”
(NICOLESCU, 2008:76).
Assim, Nicolescu (2006:9) ressalta
que “[...] precisamos encontrar uma
dimensão
espiritual”,
onde
a
transdisciplinaridade pode contribuir para
melhorias nos aspectos: “[...] transcultural,
transreligioso e trans-espiritual”. Segundo o
autor, é através da trans-espiritualidade, que
a pobreza espiritual pode ser erradicada,
tornando obsoleta a guerra das civilizações.
“[...] A atitude trans-espiritual não é
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simplesmente um projeto utópico – ela está
gravada nas profundezas de nosso ser”.
A presença do sagrado não implica
crenças, dogmas, doutrinas. “O sagrado é
aquilo que liga. [...] É a experiência de uma
realidade e a origem da consciência de
existir no mundo”. A humanidade é uma
pluralidade complexa e uma unidade aberta.
Porém, é preciso despertar o terceiro
secretamente incluído que existe em cada
um de nós. (NICOLESCU, 2008:126).
Para tratar do sagrado apresentamos
uma reflexão que nos alerta para um educar
no caminho do amor: um “[...] educar não
somente para o desenvolvimento das
inteligências e do pensamento, mas,
sobretudo, para a evolução da consciência e
do espírito”, valorizando a experiência da
comunhão, do coração, do espírito e do
sagrado, reprimidos durante séculos
(MORAES, 2003:121).
Vivenciar esses valores e aprender a
viver/conviver, traz-nos o sentido da
necessidade
em
começarmos
a
compreender
o
significado
do
transcendente. E nestes termos, “[...] vê-lo
vivo na própria pessoa, na própria vida, no
trabalho, nos amigos e no meio ambiente
[...] começar a abrir-se para um mundo
expansivo da ausência de limites” (Moraes,
2003:158). Quando esse processo transcorre
corretamente, a identidade, o próprio eu,
tende a expandir-se também em qualidade,
até atingir dimensões mais ou menos
globais, momento em que o espírito fica
saturado de profundidade (MORAES,
2003).
Portanto, se compreendermos o
significado da verdadeira atitude espiritual,
da interiorização, ao mesmo tempo ética e
moral e, sobretudo, do profundo respeito e
responsabilidade social para conosco, o
outro e o planeta, perceberemos então que,
em todas as nossas ações poderá haver esta
prática, que é a absoluta expressão de
consciência espiritual. Todavia, “[...] todo
ato surge da eternidade, da ausência de
limites e, desse modo, é uma expressão
perfeita e desobstruída do Todo”
Vol. 9, Edição 16, Ano 2014.
(WILBER, 2001:181). Interiorizar a prática
de uma consciência espiritual significa
modificar
e
vigiar
o
próprio
comportamento. Significa colocá-la em
tudo que fazemos. Significa torná-la nossa
prática, nossa prece, nossa vontade, enfim,
tudo, desde as tarefas mais simples e
incômodas até as mais elaboradas e
prazerosas (WILBER, 2001).
Mas, de que maneira isto é possível?
É necessário promover rupturas, que
por sua vez provocam diferentes conflitos e
duelos
que
nos
direcionam
ao
enfrentamento de padrões criados e
identificados para manter uma segurança e
valores construídos ao longo da história da
humanidade. Estas rupturas, destes modelos
de sociedade, tendem a provocar profundas
transformações e em decorrência disto,
somos levados a deixar que emerja um
novo ser (HOLANDA, 2014).
A ampliação da consciência humana,
entendida como consciência espiritual, que
se manifesta também no exercício da
atenção plena docente, dando forma a uma
aprendizagem consciente e atenta, deve
originar a abertura para melhorias no
campo da educação, algo que já reluz a
passos lentos há algumas décadas
(HOLANDA, 2014). Deve ser um processo
ao qual se possa conjugar a condição de
seres humanos que há em nós, seres que
pertencem a uma mesma ‘nave planetária’,
conjugar nosso caráter individual e singular
que nos conduza para uma educação
humana amorosa e não-sectária, onde “[...]
se condensam pensamentos, emoções,
motivações, vivências e experiências
presentes
em
nosso
caminhar”
(BATALLOSO, 2012:163).
Entendemos
como
consciência
espiritual (HOLANDA, 2014) a atenção
plena ao fluxo de energia e de informação
presentes na inteireza do ser humano. Nesta
perspectiva, o termo consciência espiritual
implica a aprendizagem fundamentada na
consciência plena, no cérebro consciente,
que encontra ressonância no mindfulness.
Este conceito, por sua vez, implica em uma
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forma especial de atenção capaz de
desenvolver uma maneira concreta de
compreender as experiências vividas da
própria natureza da mente em tempo real,
no aqui e no agora, trazendo, em
consequência, para o ato de ensinar, uma
aprendizagem consciente, implicada no
momento presente e nas diferentes nuances
que emergem no/do momento docente.
(HOLANDA, 2014)
A ampliação da consciência humana
fundamentada na consciência plena, no
pensar consciente, encontra ressonância na
atenção plena e nos liga à terminologia do
mindfulness - o estar atento -, utilizada para
identificar a atenção, tendo como base o
conceito de consciência. Prestar atenção
plena, segundo alguns estudiosos, como Jon
Kabat-Zinn e Daniel J. Siegel, Ellen
Langer, Robert J. Sternberg (2010; 2000;
2000), entre outros, significa atentar para a
riqueza das experiências no momento
presente, no aqui e no agora, e este
procedimento traz melhorias para a
fisiologia, para as funções cognitivas, para
as relações interpessoais e o bem estar. Este
procedimento, na continuidade, favorece a
integração do ser, constituindo-se em
desenvolvimento
da
paz
interior
(HOLANDA, 2014).
Segundo Siegel (2010), estar desperto
para a plenitude da experiência do dia a dia,
pode nos tornar mais conscientes do mundo
interior da mente e nos submerger por
completo em nossas vidas. E ainda, nos
permite estabelecer uma relação de sintonia
que pode ser definida a partir da perspectiva
cotidiana de focar em algo.
Para
tanto,
é
necessária
a
intencionalidade. Forçar a atenção de
maneira intencional pode transformar a vida
das pessoas. Esta intencionalidade aplicada
por meio do mindfulness desenvolve uma
habilidade atencional que permite focar a
mente no presente, abandonando hábitos de
desatenção,
como
se
fosse
um
desaprendizado e não um aprendizado. A
atenção rompe com a desatenção, abrindo a
possibilidade de diferentes formas de
Vol. 9, Edição 16, Ano 2014.
apreensão da realidade, de nós mesmos e
das relações entre nós e o mundo. A
conduta consciente (ARNT, 2007), nos
permite agir a cada instante, na
integralidade do ser, conservando as opções
das negociações que fazemos com o meio.
Maturana (1997) nos diz que agimos de
acordo com um domínio operacional criado
pelas emoções. Ou seja, somos racionais,
mas não somente racionais. Somos seres
emocionais e, na interação com o meio,
impactamo-nos,
experimentamos
sensações, percepções, que criam o domínio
operacional no qual agimos. Mesmo assim,
o fato de reconhecermos isto, não indica
que nossas reações sejam sempre
conscientes. Pelo contrário, é comum
atuarmos por impulsos de nossa
personalidade, e analisar depois, pelas
consequências, se a conduta foi adequada
ou não, se trouxe os resultados esperados
ou não.
É a essa forma automatizada de agir
que contrapomos o gesto de interrupção,
descrito por Larrosa (2002), que nos
convida a ouvir, falar, olhar, pensar mais
devagar, atendo-se aos detalhes, às
sutilezas, ampliando nosso contato com a
realidade por meio da delicadeza, da
paciência, do andar/fazer sem pressa, da
atenção plena.
Fazer do gesto de interrupção um
hábito leva-nos à consciência das
possibilidades da mente que, ao invés de ser
simplesmente reativa, torna-se criativa.
Através de instantes de quietude,
reconhecendo os próprios pensamentos à
medida que surgem, reconhecemos
sentimentos, buscando suas origens.
Pela transdisciplinaridade, podemos
dizer que a consciência espiritual permitenos o trânsito pela zona de não-resistência,
ampliando nossa compreensão, pela
percepção dos diferentes níveis de
realidade.
Docência transdisciplinar e educação
para a paz
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De acordo com Arnt (2007), entre os
princípios da docência transdisciplinar está
o ‘cultivo do tempo de ser’. Ou seja, a
necessidade do professor vivenciar a
atenção plena, ou reflexão atenta, ou buscar
a consciência espiritual para que possa
integrar, em suas práticas educativas, a
vivência do sagrado, como preconizado na
Carta da Transdisciplinaridade.
A docência transdisciplinar deve
incluir uma relação diferente do docente
consigo
mesmo.
Pressupõe
uma
racionalidade aberta, uma nova relação com
o meio, que somente pode consubstanciarse através de uma nova relação consigo.
Qualquer tentativa de descrevê-la pode sem
dúvida esclarecer, mas não é algo
compreensível afastado da prática. Por isso,
em nossas investigações em processos
formativos na perspectiva da docência
transdisciplinar, vamos gradativamente
incorporando práticas de contemplação e
quietude.
Nossas pesquisas na formação de
professores, seja na graduação, em São
Paulo, ou em projetos de formação
continuada, em São Paulo e no Ceará
(ARNT, 2010), apontam para a importância
das práticas visando a reflexão atenta, que
chamamos o ‘cuidado do ser’. Nas
avaliações dos professores são momentos
especiais, que impactam a vida pessoal,
familiar, profissional.
Reconhecendo a necessidade da paz
individual para a concepção de uma
educação para a paz; reconhecendo que não
podemos dar o que não temos;
reconhecendo que não ‘ensinamos a paz’ a
não ser que tenhamos hábitos que nos
possibilitem a paz interior, incluímos nas
formações o momento de ‘cuidar do ser’,
por meio de um espaço/tempo de
recolhimento, em direção ao nosso ‘centro’,
local único, individualmente falando, e
plural, nos grupos que formamos.
Buscando uma pauta que orientasse este
movimento, consideramos a importância
de trabalharmos a atenção e a
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concentração a partir dos cinco sentidos
e, posteriormente, da mente, tida por
algumas tradições como o sexto sentido.
Demos à sensibilização a força de um
ritual, tomando ritual por um conjunto de
gestos, de ações às quais atribuímos um
valor simbólico, tornando-se uma
tradição entre nós (ARNT, 2010:127).
Assim, a cada dia vamos trabalhando
um sentido, buscando a consciência de si, a
consciência do momento presente por meio
da ‘atenção auditiva’, quando por instantes
buscamos ouvir os sons sem, no entanto,
analisá-los, permanecendo na escuta atenta,
receptiva; ‘atenção ao paladar’, quando,
saboreando, buscamos a consciência
durante a alimentação; ‘atenção ao tato’,
quando escolhemos objetos, conhecendo-os
pelo tato, antes que pela visão, sendo
capazes de reconhecê-los posteriormente ao
vê-los; ‘atenção à mente’, por meio da
respiração consciente, buscando asserenar a
mente, aquietando-a, ‘pensando mais
devagar’.
Os relatos dos professores nos
afirmam
serem
estes
momentos
diferenciados, em que conseguem relaxar e
sentirem-se em paz. Nos desdobramentos, a
partir das vivências, animam-se a recriar a
experiência em sala de aula, levando aos
alunos de diferentes faixas etárias, também
os momentos de atenção.
Considerações... voltando à pergunta
inicial
Como educar para a paz?
Sem dúvida há um imenso trajeto a
ser percorrido, sem rotas pré-definidas, sem
receitas, sem certezas. Na missão da
UNESCO encontramos o ato constitutivo:
“Uma vez que as guerras começam na
mente dos homens, é na mente dos homens
que as defesas da paz devem ser
construídas.” É por onde iniciamos a
sistematizar nossas pesquisas, nossas
experiências. Os resultados ainda são
provisórios. Vinculados ao ‘aprender a ser’,
encontramos um imenso campo de trabalho
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Revista Filosofia Capital
ISSN 1982 6613
para além dos conteúdos formais. Enquanto
continuamos
disciplinares,
ousamos
reconhecer-nos
como
sujeitos
transcendentes, entrando em contato com
nosso tempo de ser, descobrindo a quietude,
a contemplação, a consciência, a atenção
plena.
Como educar para a paz? Sem
respostas prontas, nas mentes de homens e
mulheres vamos construindo por meio da
troca e da partilha, defesas de paz, tornando
com isso, o diálogo o caminho mais certo
para a paz. Quiçá, estas defesas tornem-se a
via para o aperfeiçoamento do saber, do
fazer e do sentir. E que esta via irrompa
para além de uma educação para a paz, mas
sim, para uma cultura de paz! Onde todos
nós estejamos irreversivelmente imbricados
e impulsionados para o descobrimento, o
desvelamento do caminho que pode
conduzir ao cuidado, ao amor, à saúde, à
felicidade, à espiritualidade, e, por
conseguinte, à paz planetária. Estamos
todos
conectados,
influenciando
e
influenciados pelos sonhos, desejos,
expectativas e perspectivas nossas, do outro
e do mundo. Todos somos membros da
mesma família humana!
.
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