Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 19, no. 1, marco, 1997 125 Descric~ao qu^antica de espectros de Resson^ancia Paramagnetica Eletr^onica Jose Pedro Donoso Instituto de Fsica de S~ao Carlos, USP Caixa Postal 369, 13560-970 S~ao Carlos, SP Gaston E. Barberis Instituto de Fsica Gleb Wataghin, Unicamp Caixa Postal 6165, 13083 - 970 Campinas, SP Trabalho recebido em 10 de agosto de 1996 A Resson^ancia Paramagnetica Eletr^onica (EPR ou ESR, em ingl^es) e uma tecnica amplamente utilizada em fsica, qumica e biofsica. Ela se aplica em sistemas que possuem um spin eletr^onico efetivo, como s~ao os ons de metais de transic~ao e de terras raras; os radicais livres em lquidos ou solidos, os defeitos pontuais em solidos (centros de cor ou atomos intersticiais) e os sistemas que contenham eletrons desemparelhados[1;5] . Neste trabalho mostraremos que a espectroscopia de resson^ancia paramagnetica eletr^onica e adequada para ilustrar alguns topicos da teoria qu^antica, como por exemplo a algebra dos operadores de momento angular, as regras de transic~ao e a teoria das perturbac~oes. Muitos textos modernos de mec^anica qu^antica mencionam o fen^omeno de resson^ancia magnetica ao tratar o problema de um spin na presenca de um campo magnetico[6;12]. O fen^omeno de absorc~ao ressonante da radiac~ao, na presenca de um campo magnetico, por um sistema que possui spin eletr^onico, envolve transic~oes entre estados de spin, sendo, portanto, descrito com o formalismo da mec^anica qu^antica. Para este trabalho foram escolhidos dois estudos que ilustram, de uma forma didatica, como os metodos da mec^anica qu^antica se aplicam para resolver o problema espectroscopico. Em primeiro lugar trataremos o problema de um \centro de impureza" num solido cristalino[13]: o espectro de RPE do hidrog^enio at^omico ocupando sitios intersticiais no CaF2 [14] . Neste caso, a interac~ao a ser considerada como perturbac~ao da energia Zeeman, e a hiperna, entre o spin eletr^onico e o spin nuclear do proton. Alem disso ha tambem a interac~ao super- hiperna entre o spin eletronico e o spin nuclear do atomo de uor, do CaF2 . Veremos que o espectro de RPE fornece uma informac~ao microscopica muito detalhada sobre a estrutura e a simetria do hidr^ogenio intersticial. Em segundo lugar discutiremos o espectro de RPE de um on paramagnetico inmerso em um solido cristalino. Neste caso as interac~oes a serem consideradas s~ao duas: a spin - orbita e a do campo cristalino. Esta ultima se origina do potencial elestrostatico que descreve as interac~oes coulombiana entre um eletron e todas as cargas externas ao ion no cristal. Em particular nos referiremos ao espectro de RPE doon de terra rara Ce3+ em -alumina[15]. Veremos que a tecnica de RPE e de fundamental import^ancia para conhecer o estado fundamental do on num dado sistema cristalino. Cabe ressaltar que os sistemas cristalinos dopados com Ce3+ t^em despertado um grande interesse motivado nas potencialidades de utilizac~ao em lasers ultravioleta de estado solido[16;17], em bras opticas[18] , em dispositivos eletro-luminescentes[19] , e em cristais cintiladores para detetores de radiac~ao[20]. Estes dois estudos fazem parte da literatura especializada de RPE[1;4] e foram escolhidos porque oferecem ao estudante de mec^anica qu^antica uma oportunidade unica de interpretar um resultado espectroscopico utilizando metodos qu^anticos bem conhecidos. 126 J.P. Donoso e G.E. Barberis I. A experi^encia de R.P.E. A propriedade fundamental de um eletron e seu momento angular intrnseco S, denominado spin. O momento magnetico associado e e = ;gS (1) onde a grandeza g e uma constante adimensional denominada fator g eletr^onico, e e o magneton de Bohr. Se aplicamos um campo magnetico constante H sobre o sistema, havera uma interac~ao entre o campo e o momento magnetico e . Esta interac~ao e descrita por um hamiltoniano de spin: H = ; H = gHSz (2) onde, por convenc~ao, o eixo z se toma na direc~ao do campo magnetico aplicado. Como S = 1/2 para o eletron, teremos duas \orientac~oes" permitidas para o spin, chamadas de \paralela" ou de antiparalela" ao campo H. As duas func~oes de spin eletr^onico s~ao rotuladas je > e je > com numeros qu^anticos de spin Ms = +1=2 e MS = ;1=2. Esta notac~ao para as funco~es de onda e equivalente as utilizadas nos textos de mec^anica qu^antica para sistemas de dois nveis, como por exemplo j+ > e j; > [6;8;12]. Se S e o operador de spin, ent~ao Sz je >= +1=2je > Sz je >= ;1=2je > Aplicando o hamiltoniano de spin, (3) Hje >= Eje >= 12 gH je > Hje >= E je >= ; 21 gH je > Temos ent~ao dois valores possiveis de energia, E = 21 gH. Estas s~ao chamadas as vezes de energias Zeeman. A separac~ao, E = gH entre estes nveis aumenta linearmente com o campo magnetico. Para induzir transic~oes entre estes dois estados de spin deve-ser aplicado ao sistema um campo magnetico oscilante de frequ^encia . A absorc~ao de energia ocorre sempre que o vetor da componente magnetica do campo oscilante seja perpendicular com o campo magnetico estatico H. A energia do foton h deve corresponder exatamente a separac~ao de energia E, satisfazendo assim a condic~ao de resson^ancia: h = gH (4) Para um eletron livre o valor de g0 = 2:00232. Porem para um eletron num cristal, o valor medido de g mostrara um desvio em relac~ao a este valor, provocado pelo efeito do campo cristalino e a interac~ao spin-orbita. Muitas vezes o valor do fator g fornece um meio de identicac~ao da especie paramagnetica e permite, como veremos mais tarde, conhecer o estado fundamental do on no sistema. O fator g na relac~ao (4) e independente da direc~ao do campo magnetico apenas em sistemas isotropicos. Em sistemas anisotropicos, as propriedades de resson^ancia s~ao descritas em func~ao da orientaca~o do campo em relac~ao aos eixos cristalinos (ou moleculares). Se os eixos principais do sistema forem X, Y e Z, o fator g para o campo H orientado ao longo do eixo X sera gxx. Naturalmente que em um sistema isotropico, gxx = gyy = gzz . Em um sistema com simetria axial, onde X e Y s~ao equivalentes e Z dene o eixo axial, o valor de g para H // Z e rotulado gk = gzz . Para H no plano XY, isto e H ? Z, dene-se g? = gxx = gyy . Um espectr^ometro de RPE tipico opera a frequ^encia xa, variando-se o campo magnetico ate que a condica~o de resson^ancia (4) seja satisfeita, o que resulta numa absorc~ao de energia de microondas pelo sistema de spins. O metodo de detec~ao desta resson^ancia envolve a aplicac~ao de um campo de modulac~ao, que consiste em uma pequena variac~ao senoidal do campo magnetico externo. Desta forma se deteta apenas as mudancas na absorc~ao (e n~ao a absorc~ao mesma) e o espectro de RPE registrara a primeira derivada da absorc~ao. A resson^ancia e caraterizada apenas por dois par^ametros, seu valor de g, calculado com a relac~ao (4) e a forma da linha. Num espectr^ometro operando em banda X, onde a frequ^encia de microondas e de 9.5 GHz ( = c= = 3 cm), a resson^ancia de um eletron livre (g = 2.00232) sera observada, de acordo a relac~ao (4), num campo de aproximadamente 3400 Gauss. II. Espectro de RPE do hidrog^enio no CaF2 O espectro de RPE do hidrog^enio at^omico no cristal de estrutura ourita CaF2 consiste em dois grupos de Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 19, no. 1, marco, 1997 linhas separadas em aproximadamente 500 G e centradas em g 2:0 [14] (Fig. 1). Cada grupo, por sua vez, contem nove linhas nas. Alem disso, aparecem umas pequenas linhas entre as linhas maiores. Este espectro foi obtido num campo orientado ao longo da direc~ao [100] do cristal cubico, de modo que todos os eixos hidrog^enio - uor tinham o mesmo ^angulo com o campo magnetico. As amostras s~ao preparadas por irradiac~ao do CaF2 com raios-x, apos um tratamento termico em atmosfera de hidrog^enio. Como resultado, os atomos de H penetram no cristal, atingindo- se concentrac~oes acima de 1019 cm;3. Estes atomos ocupam os sitios intersticiais livres da sub-rede cubica formada pelos ons uor (Fig. 2). Desta forma, cada atomo de hidrog^enio tera oitopuors primeiros vizinhos, com a uma dist^ancia H-F de 3 a0 =2 = 2:36 Angstrom (2a0 e o par^ametro de rede do CaF2 ). Para explicar o espectro da Fig. 1 e necessario, em primeiro lugar, obter express~oes para as energias dos nveis de spin, na presenca de um campo magnetico. Como o atomo de hidrog^enio tem um eletron (spin S = 1/2) e um proton (spin I = 1/2), ha duas orientac~oes possveis para o spin eletr^onico (Ms = +1=2 e -1/2) e duas orientac~oes para o spin do proton (MI = +1/2 e -1/2), dando lugar a quatro combinac~oes possveis. As func~oes de onda que descrevem esses arranjos s~ao degeneradas na aus^encia de uma interac~ao magnetica. O campo magnetico desdobra estes nveis de spin ao aparecerem as interac~oes entre o campo H e o spin do eletron S, e entre o campo H e o spin nuclear I. A seguir, consideraremos, como termo perturbativo, o efeito da interac~ao tipo contato entre o spin eletr^onico e o spin nuclear do proton (\acoplamento hiperno"). E por ultimo, consideraremos a interac~ao chamada superhiperna, entre o spin eletr^onico do hidrog^enio e o spin nuclear do 19F. 127 Figura 1. Espectro de RPE de atomos de H em sitios intersticiais de CaF2 . O campo magnetico externo esta aplicado em direc~ao paralela ao eixo [100]. A linha central, perto de 3.35 KG e um marcador de g[14] . Figura 2. Estrutura ourita do CaF2 . ;Os atomos de uor forman uma rede2+cubica com os ons F nos cantos dos cubos. O on Ca ocupan posic~oes de corpo centrado em forma alternada. O problema do efeito Zeeman no atomo de hidrog^enio e bem conhecido, sendo tratado em numerosos textos de mec^anica qu^antica[6;7;11] e de fsica at^omica[21;22]. Vamos apenas rever os resultados principais. As duas func~oes de spin eletr^onico s~ao: je > e je >, com numeros qu^anticos de spin Ms = +1/2 e MS = ;1=2. De forma semelhante s~ao denidas as func~oes de spin nuclear, jn > e jn >. Ent~ao, Sz je >= +1=2je > Sz je >= ;1=2je > Iz je >= +1=2je > Iz je >= ;1=2je > As func~oes base apropriadas para os quatro arranjos possveis destes spins s~ao '1jen > '2 jen > '3 je n > '4je n > (5) 128 J.P. Donoso e G.E. Barberis i) Energias de ordem zero: termo Zeeman Tanto o momento magnetico nuclear como o momento magnetico eletr^onico interagem com o campo magnetico aplicado. Portanto o hamiltoniano Zeeman cont^em ambas as contribuic~oes: H0 = gHSz ; ~HIz (6) onde e o fator giromagnetico, que para o proton vale 4.2576 KHz/G (ou 2:675 108 1/Ts). As func~oes (5) s~ao todas autofunc~oes de H0 as energias de ordem zero se podem calcular facilmente. Por exemplo[2] : H0jen >= gHSz je > jn > ; ~H je > Iz jn >= 12 gH + 12 ~H jen > Estas s~ao as correc~oes de primeira ordem dos nveis de energia. A Fig. 3 mostra o diagrama de nveis de energia apos esta correc~ao. Assim, as energias de ordem zero s~ao: 1 = 21 gH ; 12 ~H 2 = 21 gH + 12 ~H 3 = ; 12 gH ; 12 ~H 4 = ; 12 gH + 12 ~H (7) ii) Interaca~o hiperna Agora consideraremos o efeito do acoplamento hiperno entre o spin eletr^onico e o spin nuclear do proton, no atomo de hidrog^enio, atuando como um termo perturbativo. Esta aproximac~ao sera justicada mais tarde. O hamiltoniano desta interac~ao e: H1 = A0S I = A0(Sz Iz + Sx Ix + Sy Iy ) (8) onde A0 e a constante de acoplamento hiperno. Notemos em primeiro lugar, que os operadores Sx , Sy , Ix e Iy n~ao afetam as energias dos estados '1 e '4 mas produzem efeitos de segunda ordem[2] . Para o tratamento em primeira ordem nos limitamos ao primeiro termo em H1 , que da uma matriz diagonal para A0 Iz Sz ; de elementos: < enjA0Sz Iz jen >= 14 A0 < e njA0Sz Iz je n >= ; 14 A0 < e n jA0Sz Iz jen >= ; 14 A0 < e n jA0Sz Iz je n >= 14 A0 (9) Figura 3. Nveis de energia do atomo de hidrog^enio e as transic~oes permitidas de RPE, nas frequ^encias hu = gH A0 =2; onde A0 e a constante de acoplamento hiperno. O desdobramento dos estados ocorre pelo efeito da interac~ao do spin eletr^onico com o campo magnetico (i), do spin nuclear com o campo magnetico (ii) e a interaca~o hiperna entre o spin eletr^onico e o spin nuclear do proton do atomo de hidrog^enio (iii). iii) o espectro de RPE Como ja dissemos, em uma experi^encia de RPE aplica-se um campo magnetico oscilante H1 (o campo de microondas) cuja frequ^encia w = 2 e exatamente a de resson^ancia, induzindo-se assim transic~oes entre os nveis de spin. Este campo rotante deve ser aplicado perpendicular ao campo magnetico principal H. Consideremos, por exemplo, um campo rotante de intensidade 2H1 cos wt aplicado na direc~ao x. O espectro de RPE observado sera resultante das transic~oes en ! e n . O termo da perturbac~ao (dependente do tempo) na amostra de hidrog^enio, pode ser escrito[2] : Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 19, no. 1, marco, 1997 V (t) = 2(gH1 Sx ; ~H1 Ix )coswt = 2V coswt (10) Como a transic~ao de RPE e causada apenas pelo efeito 129 do campo rotante H1 sobre o spin do eletron, podemos omitir o operador Ix do spin eletr^onico na express~ao (10). A probabilidade de transic~ao de um estado n para um estado m sera: 2(wnm ; w) = 2 < njSx jm > j2(gH1 )2(wnm ; w) j < n j V j m > j (11) Pnm = 2 2 ~ ~2 As unicas transic~oes envolvidas s~ao as que mudam o spin eletr^onico, ou seja e n ! e n e e n ! e n , cujos elementos de matriz s~ao: < enjSx je n >=< e j 12 (S + + S ; )je >< njn >= 12 < en jSx je n >=< e j 12 (S + + S ; )je >< n jn >= 12 Os outros elementos de matriz de Sx s~ao nulos, portanto as transic~oes correspondentes ser~ao proibidas em RPE. Assim, as regras de selec~ao que governam as transic~oes de RPE s~ao: MS = 1 MI = 0 (12) Vericamos que as transic~oes en ! e n e en ! e n (rotuladas 1 e 2 na Fig. 3) d~ao origem as linhas espectrais de RPE, de frequ^encias: ha = 21 gH ; 21 ~H + A40 ; ; 21 gH ; 12 ~H + A40 = gH + 12 A0 hb = 21 gH ; 12 ~H + A40 ; ; 12 gH + 12 ~H + A40 = gH ; 12 A0 (13) Assim, o espectro de RPE de primeira ordem consiste de duas linhas de praticamente a mesma intensidade, separadas por A0. Esta constante do acoplamento hiperno e proporcional ao quadrado da amplitude da func~ao de onda eletr^onica no nucleo[6;7;11;22]. Em unidades S.I.: 0 8 2 A0 = 4 3 g ~j (0)j (14) No atomo de hidrog^enio, o eletron ocupa o orbital 1s, portanto (r) = p1 3 exp(;r=a0 ) a0 onde a0 e o raio de Bohr. Substituindo esta func~ao de onda na express~ao da constante hiperna, temos (15) ~ A0 = 2g 3a0 ;7 10;24)(2:675 108)(1:05459 10;34) = 2(4 10 )(2:00229)(9:2741 3(0:529177 10;10)3 = 9:42697 10;25J Ou seja, A0=h = 1422:7 MHz. Este e o maior desdobramento hiperno para o proton observado em RPE, pois o eletron do atomo de hidrog^enio tem 100% de carater s[2;3]. O comprimento de onda correspondente a esta frequ^encia e = c= = 21:121 cm, ou seja tratase da bem conhecida \linha dos 21 cm" emitida pelo hidrog^enio inter-estelar[11;22] . 130 J.P. Donoso e G.E. Barberis Assim, a interac~ao hiperna entre o spin eletr^onico e o spin nuclear do atomo de hidrog^enio e responsavel pelo dubleto denido pelos dois grupos de linhas do espectro de RPE da Fig. 1. E importante notar que o desdobramento hiperno a (\splitting constant") medido em Gauss, a partir da separac~ao das linhas no espectro de RPE, esta relacionado com a constante de acoplamento hiperno, A0 (\hyperne coupling constant") expresso em MHz, atraves da relac~ao a = hA0 =g [3]. Na Fig. 1, a = 520 G, o que da uma constante de acoplamento hiperno de 1457 MHz [13] . rado para uma interac~ao com oito nucleos equivalentes, 1:8:28:56:70:56:28:8:1. Efetivamente na estrutura ourita do CaF2 , cada atomo de hidrog^enio colocado num stio de corpo centrado tera como primeiros vizinhos oito ons F ; geometricamente equivalentes. Numa aproximac~ao de \esferas duras", considerando o raio i^onico do F ; de 1.36 A, havera 1.0 A disponvel para o raio maximo do atomo de hidrog^enio acomodado no centro do cubo. Desta forma, o espectro de RPE do hidrog^enio em CaF2 permitiu estabelecer a equival^encia magnetica dos oitos ons F. iv) Interaca~o super - hiperna v) Transic~oes \proibidas" Muitas vezes o eletron esta rodeado de outros nucleos magneticos vizinhos. Se, por motivos de simetria ou outros, estes nucleos tiverem o mesmo valor de A0 , ent~ao eles s~ao considerados magneticamente equivalentes, e o espectro de RPE sera rico em linhas resultantes do desdobramento hiperno. Sabemos de (ii), que a interac~ao hiperna do eletron (S=1/2) com um proton (I=1/2) provoca um desdobramento nos nveis de energia eletr^onicos em dois estados. Em geral, para um spin nuclear I havera 2I+1 nveis de energia por cada valor de Ms . Estes conjuntos de nucleos equivalentes podem ser tratados como se a interac~ao fosse de apenas um nucleo de spin nuclear igual a soma de todos os spins nucleares do conjunto. Ou seja, se ha n nucleos equivalentes de spin I, o numero de nveis sera (2nI + 1) para cada valor de Ms , resultando num espectro de RPE com (n + 1) linhas. As intensidades relativas destas linhas s~ao proporcionais aos coecientes resultantes da expans~ao binomial de ordem n, ou seja (1 + x)n. O arranjo destes coeciente, para n crescente, da como resultado o conhecido tri^angulo de Pascal[3] . No espectro de RPE do hidrog^enio at^omico no CaF2 mostrado na Fig. 1, vericamos que cada grupo do dubleto contem nove linhas. Estes espectros s~ao resultantes da interac~ao hiperna entre o spin eletr^onico (S=1/2) e o spin nuclear do nucleo 19F (I=1/2). A forma deste espectro de nove linhas indica que o atomo de hidrog^enio esta colocado no centro de um cubo de ons de uor (Fig. 2). O padr~ao de intensidades destas nove linhas esta de acordo, dentro de um erro de 3%, com o padr~ao de intensidades espe- Como foi dito anteriormente, se as func~oes js > e js > s~ao autofunc~oes do hamiltoniano H (eq. 2), as transic~oes de RPE so se produzem para Ms = 1 e MI = 0: Porem, em geral as autofunc~oes n~ao s~ao totalmente puras. Isto signica que podemos ter misturas do tipo: cjs > +djs >, com jcj >> jdj. Desta forma, transic~oes estritamente proibidas ser~ao agora fracamente permitidas, anda que o campo magnetico oscilante H1 esteja polarizado paralelo ao campo magnetico aplicado. Podemos explicar estas transic~oes considerando que o campo magnetico efetivo (total) no nucleo e composto pelo campo aplicado H e uma contribuica~o efetiva criada pelo eletron na sua orbita. Isto faz que o campo magnetico no nucleo (19F neste caso) n~ao seja totalmente paralelo ao campo externo. Como na experi^encia de RPE o campo H1 e perpendicular ao campo magnetico externo, algumas transic~oes proibidas podem aparecer no espectro[3] . As pequenas linhas satelites observados entre as linhas maiores no espectro da Fig. 1, s~ao atribuidos a estas transic~oes, ditas \proibidas", nas quais a regra de selec~ao e Ms = 1 e MF = 1 [14] . III. Espectro de RPE do um on Ce3+ em alumina O estudo de ons de metais de transic~ao e de terras raras em solidos cristalinos constitui uma das areas de pesquisas mais tradicionais da R.P.E.[1;5]. Em geral estes espectros s~ao bastante complexos, com linhas resultantes de diferentes transic~oes eletr^onicas. Para interpreta-los precisamos calcular as propriedades Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 19, no. 1, marco, 1997 magneticas do estado fundamental do on no cristal, o que envolve considerar, entre outras, as interac~oes coulombianados eletrons com outras cargas, o acoplamento spin- orbita, e o efeito do campo magnetico externo. Este calculo e realizado fazendo uso de um \Hamiltoniano de spin", cuja forma pode ser deduzida a partir de considerac~oes da simetria do sitio do on no cristal. Os termos deste hamiltoniano de spin s~ao expressos em func~ao de operadores de spin, que atuam sobre as func~oes jMLMS > de acordo com regras bem conhecidas na mec^anica qu^antica. Este hamiltoniano tem a vantagem de fornecer uma descric~ao bastante completa dos dados experimentais. Vamos descrever a congurac~ao de eletron desemparelhado em termos dos numeros qu^anticos orbital e de spin, L e S, e consideraremos a seguir os efeitos do campo cristalino; do acoplamento spin-orbita e do campo magnetico aplicado. Formalmente, o problema consiste em encontrar os autovalores de energia do Hamiltoniano: H = Hso + Hcc + Hmag (16) Em princpio seria possvel calcular todos os elementos de matriz de H, solucionar o determinante secular e obter as energias. Porem, na pratica empregase um procedimento de perturbac~oes, considerando os varios termos de H em ordem decrescente, sendo cada termo considerado como uma perturbac~ao do precedente. No caso de ons de terras raras (4f n ) temos que Hso > Hcc > Hmag . Os efeitos de campo cristalino devem ser considerados como perturbac~oes nos multipletes determinados pelo acoplamento de spin-orbita. Ilustraremos este calculo, considerando o espectro de RPE do on de terra rara Ce3+ em "-alumina. A Fig. 4 mostra o espectro obtido a 20 K, com o campo magnetico paralelo e perpendicular ao eixo cristalograco c. Para H ? c, o espectro mostra uma linha intensa em g = 2.58 e uma linha fraca em g = 4.16. Da variaca~o angular do espectro (medida rodando o campo 131 magnetico) os autores obtiveram, para a linha mais intensa, os seguintes valores para g : gx = 2:58; gy = 2.15 e gz = 0.85[15]. Figura 4. Espectro de RPE (banda X) a 20 K, de Ce3+ em "- alumina (Ce0 31 Na0 75 Mg0 67 Al10 33 O17 ) com (a) Hk c e (b) H? c [15] . : : : : i) Estado fundamental do on livre O on de terra rara Ce3+ contem um eletron desemparelhado na camada 4f. Para este eletrom f; L = 3 e S = 1=2. No estado trivalente os ons de terras raras apresentam uma congurac~ao [Pd] 4f"5s2 5p6, onde a camada 4f e interna as camadas 5s e 5p. Os dois valores possveis do numero qu^antico de momento angular total, J, s~ao: (L + S) = 7=2 e (L ; S) = 5=2: O estado fundamendal do on livre, calculado de acordo a regra de Hund, e 2 F5=2. O fator-g de Lande para o multipleto J = 5=2, e gL = 6=7: ii) Acoplamento spin - orbita Trabalharemos com as func~oes base jMLMS >; onde ML = 3, 2, ...,-3 e MS = +1/2 e -1/2. O operador de spin-orbita e, Hso = L S, onde a constante de acoplamento vale 640 cm;1 para o Ce3+ . Este operador pode ser escrito: Hso = (Lz Sz + Lx Sx + Ly Sy ) = Lz Sz + 12 [L+ S ; + L;S + ] Este operador atua sobre as func~oes base jMLMS > da seguinte forma[4]: Hso jMLMS >= ML MS jMLMS > +(=2)[L(L + 1) ; ML (ML + 1)]1=2[S(S + 1) ; MS (MS ; 1)]1=2 (17) 132 J.P. Donoso e G.E. Barberis jML + 1; MS ; 1 > +(=2)[L(L + 1) ; ML (M1 ; 1)]1=2[S(S + 1) ; MS (MS + 1)]1=2jML ; 1; MS + 1 > Calculamos os elementos de matriz < ML MS jHso jML MS >. Para Jz = 7=2 : D 1 E D E 3; 2 jL S j3; 21 = ; 3; ; 12 jL S j ; 3; ; 12 = 32 Para Jz = 5=2: D E 3; ; 21 jL S j3; ; 12 = ; 23 r E 3; ; 21 jL S j2; ; 12 = ; 32 D 1 E 2; 2 jL S j2; 12 = Com estes resultados construimos a matriz: p ;3=2 3=2 p 3=2 1 D Os autovalores correspondentes s~ao: ;2 e 23 . Do mesmo modo contruimos as matrizes para Jz = 3=2 e 1=2. Podemos vericar que os autovalores correspondentes a estas matrizes s~ao tambem 32 e ;2. Temos ent~ao um desdobramento em dois nveis, J = 7=2 e J = 5=2, de energias 32 e ;2. Como o Ce3+ esta posicionado na primeira metade da serie 4f, e como > 0, o estado J = 5=2 e o fundamental (Fig. 5). A separac~ao entre estes dois estados e, aproximadamente E = 32 ; (;2) = 72 = 2240 cm;1 (0:28 eV) Diagonalizando as matrizes spin-orbita podemos encontrar as autofunc~oes para J = 5=2 em func~ao dos jML MS > : jJz = 5=2 >= aj3; ; 21 > +bj2; 12 >; com a2 + b2 = 1: Ent~ao: p 3 ;p2 ; 3=2 a b 3=2 1 ; p p de onde: a = 6=7 e b = ; 1=7: Da mesma forma obtemos as demais autofunc~oes. p p jJz = 5=2 >= 6=7j3; ; 12 > ; 1=7j2; 12 >; p p jJz = 3=2 >= 5=7j2; ; 12 > ; 2=7j1; 12 >; p p jJz = 1=2 >= 4=7j1; ; 21 > ; 3=7j0; 12 >; (18) Figura 5. Nveis de energia do on de terra rara 4f 1 , Ce3+ num campo cristalino de simetria trigonal. Os desdobramentos dos estados ocorre pela ac~ao do acoplamento spin - orbita (i), do campo cristalino (ii) e do campo magnetico externo (iii). iii) Campo Cristalino Como dizemos anteriormente, as interac~oes coulombianas entre um eletron e as cargas externas ao ion num cristal podem ser descritas por um potencial elestrostatico V (r), o qual reete a simetria cristalina. Como a distribuic~ao de carga associada com os ons vizinhos pode se sobrepor com as do eletron em quest~ao, o tratamento completo deste problema e muito complexo. Uma forma de tratar este problema elestrostatico e a teoria de Campo Cristalino, onde os ons s~ao representados por cargas puntuais. Neste caso, o pot^encial V (r) satifaz a equac~ao de Laplace e pode ser desenvolvido em harm^onicos esfericos[1;23] . Para calcular porem, as energias eletr^onicas, precisamos expressar este potencial em termos de operadores qu^anticos. Isto se faz utilizando o metodo dos operadores equivalentes desenvolvido por Stevens. Estes operadores s~ao formados substituindose, em V (r), as func~oes r2 , x; y; z, e seus produtos, por Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 19, no. 1, marco, 1997 133 operadores Lx , Ly , Lz , L+ e L; . Como ha necessidade de se levar em conta as regras de comutac~ao destes operadores, a construc~ao destes operadores equivalentes n~ao e nada trivial. Os detalhes podem ser encontrados em textos de RPE[1;3;4] ou de propriedades magneticas dos solidos[23]. Se o on paramagnetico estiver numa simetria trigonal, o hamiltoniano de campo cristalino tem a forma geral: (19), O20 = 3L2z ; L(L + 1), apropriado para um campo cristalino de simetria trigonal, atuando sobre as autofunc~oes (18). Podemos vericar que este operador atua sobre o estado J = 5/2 desdobrando-o em tr^es dubletes, Jz = 1=2; 3=2 e 5=2 (Fig. 5). Hcc = C20 O20 + C40O40 + C44O44 + C60O60 + C64O64 + C66 O66 Para obter o operador que descreve a interaca~o com o campo magnetico externo, consideramos separadamente as contribuic~oes orbitais e de spin. A primeira tem energia L H = L H, e a segunda S H = S cdotH. Assim, o hamiltoniano magnetico ca Hmag = H(L + 2S) (20) onde os Onm (19) s~ao os operadores equivalentes e os Cnm s~ao coecientes a serem determinados. As express~oes completas destes operadores Onm , assim como os valores dos elementos de matriz podem ser encontradas tabeladas na refer^encia [1]. O calculo dos elementos de matriz < ML MS jHccjML MS >, pode ser muito trabalhoso. Afortunadamente no caso que estamos tratando, a simetria do stio do Ce3+ parece ser C3h , a qual e a mais alta observada no plano de conduc~ao da -alumina. Portanto consideraremos apenas o primeiro termo em IV) Campo magnetico aplicado Calculamos os valores de g para o nvel mais baixo, Jz = 1=2 gk = 2f< +jLz + 2Sz j+ >= 6=7 onde j+ >= 4=7j1; ; 12 > ; 3=7j0; ; 12 > p p g? = 2f< +jLx + 2Sx j; >=< +j[L+ L; ] + [S + + S ; ]j; >= 18=7 onde j; >= 4=7j ; 1; ; 12 > ; 3=7j1; ; 12 > p p onde gk e o valor de g na direc~ao do eixo C3 e g? o valor perpendicular a esse eixo. Da mesma forma s~ao obtidos os valores de g dos outros dois dubletos. Os resultados s~ao: Jz = 1=2 gk = 6=7 g? = 18=7 = 2.57). Estes resultados indicam que oon Ce3+ ocupa uma posic~ao no plano de conduc~ao da beta-alumina, a qual e identicada na literatura como um stio m0 (\mid-oxygen site")[24]. Jz = 3=2 gk = 18=7 g? = 0 As linhas fracas do espectro de RPE (Fig. 4) s~ao consistentes com a esperada para um on Ce3+ num stio com simetria axial. Esta linha e atribuda aos ons nos stios identicados como BR (\Beevers Ross sites") do plano de conduc~ao da beta alumina[24]. Comparando as areas das linhas de RPE, encontra-se que apenas 1% dos ons observados ocupam esta segunda localizac~ao. O valor de g = 4.16 encontrado experi- Jz = 5=2 gk = 30=7 g? = 0 Comparando estes valores com aqueles observados para o Ce3+ em "-alumina[15] vericamos que ha acordo se tomamos gk = gz = 0:85 e g? = (gx +gy )=2 = 2:37. Estes valores se comparam bem com os esperados para um estado fundamental Jz = 1=2 (gk = 0:86 e g? 134 mentalmente sugere que o estado fundamental do on Ce3+ no sitio BR e Jz = 5/2, para o qual gk = 30/7 = 4.29. Desta forma este estudo de RPE de "-alumina dopada com Ce3+ permitiu determinar os stios onde se encontram estes ons assim como o seu estado fundamental. Vericamos que num campo cristalino de simetria C3h , o estado fundamental 2F5=2 e desdobrado em tr^es dubletes, descritos por Jz = 1=2, 3/2 e 5/2[3;4]. V. O Ce3+ em outros campos cristalinos A experi^encia de RPE fornece uma informac~ao muito detalhada sobre o estado fundamental do on paramagnetico numa dada matriz cristalina. Por exemplo, o estado fundamental do on Ce3+ em La(CF3SO3 )3 9H2O, onde gk = 3:813 e g? = 0.26[25] foi identicado como sendo o estado Jz = 5=2. Para o Ce3+ ocupando um stio de simetria trigonal em CaF2 se encontra que gk = 2.38 e g? < 0:1, indicando que neste caso o estado fundamental seria o dublete Jz = 3/2[26]. Em um campo cristalino de simetria tetragonal, como no CaWO4, os valores de g encontrados experimentalmente (gk = 2.91 e g? = 1.42) n~ao podem ser explicados com os valores calculados para os dubletes puros Jz = 1/2, 3/2 e 5/2. Neste caso e necessario levar em conta a mistura dos estados MJ = j 5=2 > com MJ = j 3=2 > provocada pelo operador de campo cristalino O44 = 12 (J+4 + J;4 )[1;4] . Por outro lado, quando o campo cristalino tem simetria octaedrica, o estado 2 F5=2 e desdobrado em um dublete (;7 na notac~ao de Bethe) e um quadruplete (;8 ). Nos cristais CaO, SrO e BaO se encontra que o estado fundamental do on Ce3+ no sitios de simetria cubica e o duplete ;7 misturado com um outro duplete ;7 originado do estado excitado 2F7=2 [27] . Finalmente, no cristal KMgF3 , o estado fundamental do Ce3+ foi identicado como sendo o quadruplete ;8 [28] . Para terminar, chamamos a atenc~ao para outros trabalhos de carater didatico sobre a interpretac~ao de espectros de RPE, citados nas refer^encias [29] a [32]. J.P. Donoso e G.E. Barberis Refer^encias 1. A. Abragam, B. Bleaney, Electron Paramagnetic Resonance of transition ions. (Oxford, 1970). 2. A. Carrington e A. McLachlan, Introduction to Magnetic Resonance, (Harper & Row, 1967). 3. J.A. Weil, J.R. Bolton, J.E. Wertz. Electron Paramagnetic Resonance (J. Wiley, 1994). 4. J.W. Orton, Electron Paramagnetic Resonance (Gordon & Breach, 1968). 5. C. P. Slichter, Principles of magnetic resonance. 3th edition, Chap. 11 (Springer Verlag, 1990). 6. C. Cohen - Tannoudji, B. Diu, F. Laloe, Quantum Mechanics, Vol. II, Complement B-XI and Chap. XII, Sec. B.2 (Wiley, Hermann, 1977). 7. A.S. Davidov, Quantum Mechanics, Chap. VIII. (Pergamon Press, 1965). 8. D. Park, Introduction to the quantum theory, Chap. 6 (McGraw - Hill, 1964). 9. A. Das, A.C. Melissinos, Quantum Mechanics, Chap. 3. 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