Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 18, no. 1, marco, 1996 56 Uma Nota Sobre a Magnetostatica e a Lei de Ampere Eduardo O. Resek Instituto de Ci^encias, Escola Federal de Engenharia de Itajub a Caixa Postal 50, 37500-000, Itajub a, MG, Brasil Trabalho recebido em 30 de outubro de 1995 Resumo Neste trabalho apresentamos uma deduc~ao alternativa da lei de Ampere do eletromagnetismo. Ha, certamente, muitas delas na literatura corrente, mas nenhuma, na nossa opini~ao, se adequa como a aqui apresentada a bagagem de conhecimentos dos nossos alunos a altura do primeiro contato com a disciplina. Abstract In this paper, we consider an alternative approach to derive Ampere's Law of electromagnetism. Though there are many derivations available in the specialized literature (see, for example, references [1,2]), they are, as far as my knowledge extents, either too elaborate or beyond the scope of usual rst college courses on the subject. The one shown bellow ts well to the student's prole in our schools. 1. Introduca~o No ciclo basico das escolas de fsica e engenharia a disciplina Eletricidade e Magnetismo e geralmente ministrada com base em textos tais como os das refer^encias [3,4]. Embora estes sejam de eci^encia devidamente comprovada, pecam, na minha opini~ao, por n~ao fazer uso pleno de uma preciosa ferramenta que, a esta altura do curso (geralmente terceiro ou quarto semestre) os estudantes ja dominam: o calculo vetorial diferencial e integral. Tal ferramenta propicia uma formulac~ao ao mesmo tempo mais concisa e poderosa das leis do Eletromagnetismo, conquanto exija tambem do estudante o desenvolvimento de uma destreza no manusear das equac~oes que lhe sera muito util futuramente. Historicamente, o estudo da magnetostatica tomou novo impulso quando, em 1820, Hans Christian Oersted descobriu que correntes eletricas tambem produzem campos magneticos. Surgiu ent~ao imediatamente a quest~ao de como expressar o campo produzido em func~ao da corrente. Foi Ampere quem, algumas sema1 2 nas depois do anuncio da descoberta de Oersted, apresentou uma serie de resultados experimentais sobre a forca com a qual dois circuitos conduzindo corrente se atraem. Expresso em linguagem moderna, estes resultados implicam (ver refer^encia [2]) uma express~ao para o campo magnetico que e a generalizac~ao da lei de Biotsavart. Se a distribuic~ao de correntes for descrita por uma densidade vetorial J(r0) e limitada a uma regi~ao V 0 , o campo magnetico1 criado num ponto r por uma tal distribuic~ao e dado por: 0 B(r) = 4 Z V0 J(~r0) (r ; r) dV 0 jr ; r0j3 (1) Nesta express~ao, 0 = 4 10;7H=m e a permeabilidade magnetica do vacuo. Nossa proposta e construir a eletrostatica 2 e a magnetostatica sobre duas leis experimentais basicas, a lei de Coulomb e a lei de Biot-Savart, respectivamente. Estas leis desempenham papeis semelhantes nas duas ci^encias, haja vista que ambas expressam os campos em func~ao de suas respectivas fontes (carga e cor- Nossa notac~ao segue de perto a da refer^encia [2]. Para um sumario dos resultados mais importantes da eletrostatica, veja o ap^endice. Eduardo O. Resek 57 rente eletricas, respectivamente). A partir delas podemos obter a lei de Gauss e a propriedade conservativa do campo eletrico, bem como a lei de Gauss para o campo magnetico. Esta ultima segue diretamente de (1), bastando tomar o divergente com respeito a r em ambos os membros da equac~ao, inverter a ordem das operac~oes de derivac~ao e integrac~ao no segundo membro e utilizar em seguida a identidade vetorial: r (V W) = W r bV ; V r W, escolhendo V = J(r)0 e W = (r ; r0 )=jr ; r0j3; nessas condic~oes, r W = 0 pode ser vericada por calculo direto, enquanto que cr V = 0 devido a ser J uma func~ao das variaveis contidas em r0 e nao em r. Assim, r B(r) = 0, que e a referida lei na forma diferencial. O maior obstaculo a esta abordagem da magnetostatica reside na lei de Ampere: deduzi-la diretamente a partir de (1) n~ao e tarefa das mais simples{ exige conhecimento e domnio da teoria das distribuic~oes (Dirac, Schwartz), com o que nem sempre se pode contar em se tratando de estudantes de segundo ano de um curso tecnico-cientco. Mostraremos entretanto que e possvel manter a abordagem e obter convincentemente a lei de Ampere, tomando (1) como princpio fundamental. Isto e factvel atraves do uso do potencial vetor magnetico, introduzido na sec~ao seguinte e de uma analogia com as equac~oes da eletrostatica. rE = 0 =) 9AB(r) = ;rA ; pois rrA = 0; 8A (4) Como B(r) e obtido essencialmente atraves de derivac~ao do vetor A, assim como E o e a partir de , A e uma func~ao potencial para o campo magnetico B(r), denominada potencial vetor magnetico, ou simplesmente potencial vetor. Desse modo, B(r) = r A(r) (5) e a relac~ao basica que dene A(r). A partir da, vemos que existe a liberdade de adicionarmos a A o gradiente de qualquer func~ao escalar diferenciavel, pois se (5) vale para um determinado campo vetorial A, ela vale tambem para A0 = A + r ; (6) pois r A0 = r A + r r = r A = B(r) ; | {z } =0 2. O Potencial Vetor Magnetico 2.1 Denic~ao No caso do campo eletrostatico, podemos denir o campo escalar que denominamos potencial eletrostatico gracas a propriedade conservativa do campo eletrico, isto e: r E = 0 =) 9jE = ;r; pois rr = 0; 8 (2) cujas segundas derivadas existam. Para o campo magnetico, em geral, n~ao e valida a propriedade conservativa, mas ainda assim algo semelhante acontece. Ja vimos que a lei de Gauss para o campo magnetico estabelece que r B(r) = 0 ; para qualquer campo vetorial B(r) real. Por outro lado, do calculo vetorial, sabemos que e nulo o divergente do rotacional de qualquer campo vetorial cujas segundas derivadas existam. Portanto podemos escrever, de modo analogo ao colocado na equac~ao (2), (3) haja vista que o rotacional do gradiente de qualquer func~ao escalar duplamente diferenciavel e nulo. No caso do campo eletrostatico somos livres para acrescentar a qualquer constante, pois 0 + cte. e representam o mesmo campo eletrico. Aqui, nossa liberdade e ainda maior. Em geral,e conveniente restring-la um pouco, impondo alguma condica~o adicional sobre A (do mesmo modo que, as vezes, escolhemos a refer^encia zero para o potencial eletrostatico em um ponto qualquer em particular, por exemplo, no innito). Fazemos isso escolhendo arbitrariamente qual deve ser o divergente de A. Esta escolha de modo algum afeta o campo B(r), pois embora A e A0 possuam o mesmo rotacional, eles n~ao possuem necessariamente o mesmo divergente: r A0 = r A + r r = r A + r2 ; (7) Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 18, no. 1, marco, 1996 58 de modo que, escolhendo adequadamente a func~ao , podemos fazer r A0 igual a qualquer coisa que desejemos. Como vamos ent~ao escolher r A ? Esta e, basicamente, uma quest~ao de pura conveni^encia matematica e depende fortemente do tipo de situac~ao que estivermos tratando. Para magnetostatica, onde lidamos com correntes estacionarias, escolhemos simplesmente rA= 0 : (8) Assim, nosso potencial vetor e caracterizado pelas relac~oes (5) e (8), que repetimos aqui: r A = B(r) rA= 0 ; Vamos agora tentar obter algumas expres~oes que nos possibilitem determinar o potencial vetor a partir da distribuic~ao de correntes que produz o campo magnetico. Como vimos, o campo gerado por uma distribuic~ao especicada pela densidade de corrente J(r0) e dado pela lei de Biot-Savart (9) (r ; r0 ) = ;r 1 ; jr ; r0j3 jr ; r0j 0 Escolhendo nesta express~ao 0 ;J(r0) r jr ;1 r0j = r jrJ;(r r)0j Substituindo essa express~ao na lei de Biot-Savart (10), camos ent~ao, sucessivamente, com: Z 0 B(r) = 4 r V Z 0 = r 4 V0 J(r0) dV 0 : jr ; r0 j J(r0) dV 0 ; jr ; r0 j (12) R onde a invers~ao na ordem das operac~oes V e r e lcita devido a se tratarem de operac~oes sobre variaveis distintas. Comparando (12) e (5), conclumos ent~ao que 0 Z J(r0) dV 0 ; (13) A(r) = 4 0 V jr ; r j onde em geral, de acordo com o exposto acima, podemos somar a esta express~ao o gradiente de qualquer funca~o escalar bem comportada . Esta equac~ao e importante na medida em que permite determinar o potencial vetor a partir do conhecimento da distribuic~ao de correntes numa certa regi~ao do espaco, apos o que se pode fazer uso da equac~ao (5) para calcular B(r), a grandeza fsica de maior interesse. Assim, cada uma das componentes cartesianas de A se escreve 0 0 Z J (r0 ) dV 0 ; A (r) = 4 (14) 0 V jr ; r j onde pode ser qualquer uma das variaveis x; y; z: Por outro lado, quando estudamos o potencial eletrostatico, vericamos ser (r) dado por uma integral semelhante: 0 de modo que (9) ca 0 Z J(r0) 1 dV 0 : B(r) = 4 (10) jr ; r0j V Do calculo vetorial conhecemos a seguinte identidade: r ( F) = r F + r F : que 0 2.2 Uma Equaca~o Diferencial para A 0 0 r jrJ;(r)r0 j = r J(r0) ; J(r0) r jr ;1 r0j : Como as derivadas presentes em r s~ao calculadas com relac~ao as variaveis x; y; z e, por outro lado, J(r0 ) n~ao depende dessas variaveis, temos r J(r0) = 0; de modo 0 para o caso estatico, isto e, quando as correntes n~ao variam no tempo. Alem de ser muito util na obtenc~ao de inumeros resultados teoricos, as maiores aplicac~oes do potencial vetor ocorrem no estudo de irradiac~ao e propagac~ao de ondas eletromagneticas. Z 0 0 B(r) = 4 J(r0) j(rr;;rr0j)3 dV 0 : V Entretanto, podemos escrever temos = jr ;1 r0j e F = J(r0) : (11) Z (r0 ) dV 0 ; 1 (15) (r) = 4 0 0 V jr ; r j que, por sua vez, era soluc~ao da equac~ao de Poisson, 0 r2(r) = ; (r) : 0 (16) Eduardo O. Resek 59 Ora, as express~oes (14) e (15) s~ao estruturalmente id^enticas, bastando fazer a correspond^encia r B(r) = r r A ; A $ ; 0 $ 1 ; J $ que pode ser expandida atraves da conhecida identidade vetorial, fornecendo: 0 (17) de modo que J (r) deve ser soluc~ao de uma equac~ao analoga a (16), respeitando a correspond^encia expressa em (17): r r A = rr A ; r2 A : (21) r2A (r) = ;0 J (r) : (18) Considerando a denic~ao do laplaciano de um vetor, Usando a escolha (8) (percebe agora o porqu^e dela?)3, camos com r B(r) = ;r2 A : Levando em conta (19), temos nalmente r2A = r2 Ax x^ + r2Ay y^ + r2Ax ^z ; r B(r) = ;0 J(r) ; conclumos ent~ao que o potencial vetor satisfaz a uma equac~ao vetorial de Poisson, (22) que e conhecida como lei de Ampere para o campo magnetico, apresentada aqui na forma diferencial. r2A(r) = ;0 J(r) : (19) Se uma determinada regi~ao do espaco for livre de correntes, A sera soluc~ao de uma equac~ao vetorial de Laplace, r2A(r) = 0 : 3. A Lei de Ampere De acordo com o teorema Helmholtz, todo campo vetorial ca completamente especicado numa determinada regi~ao do espaco, se conhecermos o seu rotacional e o seu divergente em todo o espaco, desde que ele seja n~ao nulo em apenas uma regi~ao nita. Para o campo eletrico, no caso estatico, temos r E = ; r E = 0 : 0 Para o campo magnetico, sabemos que deve ser nulo seu divergente, r B(r) = 0 ; (20) mas nada sabemos ainda sobre como se comporta o rotacional desta grandeza. Nesta sec~ao vamos utilizar o conhecimento que adquirimos a respeito do potencial vetor para determinarmos uma express~ao para r B(r), valida para o caso estatico (correntes estacionarias). Partimos de (5), tomando o rotacional em ambos os membros desta equac~ao: 3 Para obtermos a vers~ao integral da lei de Ampere, basta integrarmos ao longo de uma supercie S delimitada por um contorno l, Z S Z r B(r) n^ dS = 0 J n^ dS ; S e utilizarmos o teorema de Stokes no primeiro membro, de modo a obtermos I l Z B(r) dl = 0 J n^ dS ; S (23) que e a lei de Ampere na forma integral. Podemos ainda escrev^e-la de forma um pouco mais simplicada, notando que, como S e a superfcie delimitada por l, o segundo membro de (23) representa a corrente total envolvida pelo percurso l escolhido. Represent^emo-la por Ienv : I l B(r) dl = 0 Ienv ; Pode-se mostrar facilmente, entretanto, que o resultado a ser obtido e independente desta escolha particular. (24) Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 18, no. 1, marco, 1996 60 O percurso de integrac~ao e muitas vezes denominado espira amperiana, em analogia com a superfcie gaussiana utilizada na lei de Gauss. Note que Ienv e a corrente total envolvida por l, cujo sinal deve ser considerado positivo se concordar com o sentido apontado pelo polegar quando os dedos da m~ao direita abracam o contorno no sentido convencionado como positivo para este (regra da m~ao direita), e negativo em caso contrario. Apendice: Eletrostatica A lei basica da eletrostatica e a lei de Coulomb: a forca eletrica entre duas cargas q1 e q2 situadas respectivamente nos pontos r1 e r2 e dada por F12 = 41 q1jqr2(r;1 r; rj32) = ;F21 ; 0 1 2 sendo F12 a forca exercida pela partcula 2 sobre a carga q1. Com a denic~ao usual de campo eletrico, o campo produzido num ponto r por uma distribuic~ao contnua de cargas restrita a um volume V 0 no espaco e caracterizada por uma densidade volumetrica (r0 ) e Z (r0 )(r ; r0 ) dV 0 1 E(r) = 4 jr ; r0 j3 0 V A partir da pode-se mostrar facilmente, atraves de calculo direto, que o campo eletrico estatico e conservativo, isto e, possui rotacional nulo, 0 rE = 0 ; e que, portanto, admite um potencial escalar, ou seja, 9jE = ;r : (25) O potencial criado por uma distribuic~ao volumetrica de cargas tal como a citada anteriormente e, a menos de uma constante arbitraria, Z 1 (r) = 4 0 V0 (r0 ) dV 0 : jr ; r0 j Por outro lado, o campo eletrico de uma carga puntiforme, o conceito de ^angulo solido e o princpio da superposic~ao permitem tambem deduzir a lei de Gauss: I E n^ dS = Q i 0 S onde Qi e toda a carga interior a superfcie S. Na forma diferencial esta lei se escreve r E = : 0 Combinando com (25), resulta a equac~ao de Poisson para o potencial eletrostatico, r2 = ; : 0 Refer^encias 1. J. A. Ba^eta Segundo, W. J. S. Ursi, Eletricidade e Magnetismo{Notas Compiladas, EFEI, 1979. 2. J. R. Reitz, F. J. Milford, R. W. Christy, Foundations of Electromagnetic Theory, 3rd ed., AddisonWesley, Reading, Mass., 1979. 3. D. Halliday, R. Resnick, Fisca , 4a ed., LTC, Rio de Janeiro, 1984. 4. P. A. Tipler, Fisica, 2a ed., Guanabara Dois, Rio de Janeiro, 1985.