Interações Hiperfinas

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Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 22, no. 3, Setembro, 2000
353
Interac~oes Hipernas
I. S. Oliveira e A. P. Guimar~aes
Departamento de Materia Condensada e Fsica Estatstica
Centro Brasileiro de Pesquisas Fsicas - Rio de Janeiro, RJ
Rua Xavier Sigaud 150, 22290-180, Rio de Janeiro, RJ
Recebido em 30 de Dezembro, 1999. Aceito em 27 de Junho, 2000
E feita uma revis~ao sobre interac~oes hipernas, destacando-se as principais contribuic~oes ao campo
hiperno nos metais magneticos. A diagonalizac~ao numerica do hamiltoniano hiperno e discutida,
e um exemplo de aplicac~ao apresentado.
I Introduc~ao
Entende-se por interaco~es hipernas aquelas interac~oes
que envolvem multipolos magneticos e eletricos nucleares. Momentos de multipolo interagem com campos
eletricos e magneticos, quer gerados dentro da materia
condensada, quer por fontes externas, dando origem
ao espectro hiperno. Em ordem de import^ancia, as
interac~oes do tipo dipolar magnetica e quadrupolar
eletrica s~ao dominantes, e portanto as duas unicas normalmente evocadas na interpretac~ao do espectro hiperno.
Neste artigo sera feita uma revis~ao das interac~oes
hipernas, tendo como ponto de partida o on livre.
Subsequentemente ser~ao discutidas as principais peculiaridades destas interac~oes nos solidos, com particular
^enfase nos metais magneticos.
I.1 Spin e Momentos Nucleares
Estados nucleares s~ao caracterizados por um
numero qu^antico de spin I. Esta quantidade representa
o momento angular total do nucleo, isto e, a soma dos
momentos angulares orbital, lk, e de spin, sk , de cada
nucleon (protons e n^eutrons). O vetor I pode ser escrito
portanto como:
A
X
A
X
k=1
k=1
I = (lk + sk) =
jk
(1)
onde A e o numero de massa do nucleo. Verica-se que
I sera inteiro sempre que A for par (por exemplo, o 4 He
possui I = 0, o 6 Li possui I = 1, o 50V possui I = 6,
etc.), e que sera semi-inteiro sempre que A for mpar
(por exemplo, o 55Mn possui I = 5=2, o 89Y possui
I = 1=2, etc.).
Existem algumas regras que determinam o spin do
estado fundamental de um nucleo [1]:
(i) Todo nucleo com Z (numero de protons) par e N
(numero de n^eutrons) par possui spin I = 0. Esta propriedade decorre da tend^encia dos nucleons acoplaremse aos pares em um estado com spin zero;
(ii) O spin de nucleos com A mpar e quase sempre determinado pelo spin do nucleon desemparelhado,
pois os outros A ; 1 acoplam-se de acordo com a regra
acima;
(iii) Em nucleos com Z e N mpares o spin e determinado pela soma dos spins totais do proton e do
n^eutron desemparelhados: jp + jn.
Distribuic~oes de cargas e correntes nucleares s~ao caracterizadas por momentos de multipolos que, por sua
vez, interagem com campos eletromagneticos, quer gerados dentro da materia, quer aplicados externamente.
Esta interac~ao e o que chamamos interac~ao hiperna.
Do ponto de vista das principais tecnicas experimentais
aplicadas ao estudo das interac~oes hipernas, considerase o spin e os multipolos nucleares como par^ametros
xos [1].
Momentos nucleares podem ser obtidos
considerando-se os potenciais gerados pelas distribuic~oes de cargas e correntes em um dado nucleo.
Se a distribuic~ao de carga de um nucleo (isto e, a distribuic~ao de protons) for dada por (r0), o potencial
eletrostatico gerado em um ponto r do espaco sera [2]:
Z
0 3 0
1
V (r) = 4 (jrr;)dr0rj
0
(2)
De forma analoga, se a distribuic~ao de correntes for
J(r0), o potencial vetor correspondente em um ponto r
sera:
354
I. S. Oliveira e A. P. Guimar~aes
0 Z J(r0)d3 r0
(3)
A(r) = 4
jr ; r0j
Os integrandos de ambas as express~oes podem ser expandidos [2] para obtermos os termos dominantes. Para
o potencial eletrostatico tem-se:
eQ 1
V (r) (4)
= 4
3
0 r
onde eQ (e a carga fundamental) e o chamado momento
de quadrupolo eletrico do nucleo, dado por:
eQ Z
(r0)r02 21 (3cos2 ; 1)d3r0
(5)
sendo o a^ngulo entre r e r0 .
Para o vetor A obtem-se:
0 r
A(r) = 4
(6)
r3
onde e o momento de dipolo magnetico do nucleo:
12
Z
r0 J(r0)d r0
3
(7)
Estas duas quantidades caracterizam as distribuic~oes de cargas e correntes nucleares. Elas interagem com campos eletromagneticos e d~ao origem as interaco~es hipernas. Nucleos para os quais Q = 0 possuem distribuic~ao de cargas esferica. Se Q > 0 a distribuic~ao sera alongada sobre o eixo z (eixo de quantizac~ao), e se Q < 0 a distribuic~ao sera achatada em
relac~ao a z.
O momento magnetico e diretamente proporcional
ao spin do nucleo [1]:
= gn nI
(8)
onde gn e n s~ao, respectivamente, o fator-g nuclear
(associado aos estados orbitais e de spin de protons e
n^eutrons dentro do nucleo) e o magneton nuclear (igual
a 5; 05084 10;27 J/T, ou 3; 15245 10;8 eV/T).
A raz~ao giromagnetica de um nucleo, n , se relaciona com o fator-g e o magneton nuclear atraves de:
(9)
= gnn
n
~
Assim como gn, o fator giromagnetico n e uma \assinatura magnetica" de cada isotopo.
II
Interac~oes Hipernas em
Ions Livres
Considere um nucleo em um atomo ou on livre.
Os eletrons das camadas incompletas produzir~ao um
campo magnetico B no stio do nucleo que interagira
com o seu momento magnetico, , de acordo com [3, 4]:
Hm = ; B = ;gn nI B
(10)
O campo magnetico B, como sera discutido abaixo,
relaciona-se com os momentos orbital e de spin do
atomo.
Adicionalmente, ons com camadas incompletas geralmente apresentam uma deformac~ao espacial de cargas, que gera no stio nuclear um gradiente de campo
eletrico. Consequentemente, se o isotopo em quest~ao
possuir um momento de quadrupolo eletrico n~ao nulo,
havera uma interac~ao de natureza eletrica que podera
se tornar detectavel no espectro hiperno. Esta e chamada de interaca~o quadrupolar eletrica. Contudo, por
envolver coordenadas espaciais, esta contribuic~ao a interac~ao hiperna n~ao e facilmente traduzvel em termos
de operadores de spins, como na Eq. 10. No entanto,
tal representac~ao pode ser alcancada atraves de um poderoso teorema da Mec^anica Qu^antica, o teorema de
Wigner-Eckart [3].
Deve-se mencionar ainda, que nem todos os isotopos
estaveis possuem momento magnetico (ou spin) diferente de zero, como e o caso do 92Mo (14,8% abundante), do 84Sr (0,56% abundante), do 48 Ti (73,7%
abundante), entre outros. Estes isotopos s~ao portanto
\invisveis", do ponto de vista da interac~ao 1.
Finalmente, enfatizamos que mesmo as camadas fechadas dos atomos possuem uma contribuic~ao importante ao campo hiperno do on livre, chamada de polarizac~ao do caroco, que tem a sua origem na interaca~o
de troca entre os eletrons destas camadas e aqueles das
camadas incompletas.
II.1 Contribuic~oes ao Campo Magnetico
A principal contribuic~ao ao campo magnetico no on
livre provem do momento orbital dos eletrons das camadas incompletas. Obviamente, se a camada estiver
completa ou vazia, esta contribuic~ao sera zero. Esta
contribuic~ao pode ser escrita como [5]
L
BLhf = ;2 4
<r >
0
3
(11)
onde L e o momento angular orbital da camada, e
< r3 >=< jr3j > o valor esperado do cubo do raio
da camada. Esta contribuic~ao pode chegar a centenas
de tesla em algumas terras raras pesadas.
Existem varias contribuic~oes ao campo hiperno devidas ao spin dos eletrons das camadas i^onicas. A mais
simples delas e a dipolar, dada por [5]:
Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 22, no. 3, Setembro, 2000
2B L(L + 1)(S J) ; 3(L J)(L S) J
Bsdhf = 4
<r >
J(J + 1)
0
buic~ao e uma especie de diferenca dos termos de contato
para eletrons \up" e eletrons \down":
3
(12)
onde J = L + S e o momento total da camada, e
+ 1 ; 4S
= S(2l ; 2l
1)(2l + 3)(2L ; 1)
Nesta express~ao, l e o momento angular de um unico
eletron na camada, e L e S s~ao os momentos orbital e
de spin da camada. Esta contribuic~ao e normalmente
pequena em comparac~ao com as outras.
Outra contribuic~ao de spin e o campo de contato de
Fermi, que deriva da presenca de eletrons s no nucleo:
0 8 2 j (0)j2 s
(13)
Bschf = ; 4
3 B
onde s e o spin de um unico eletron, e j (0)j2 a amplitude da func~ao de onda no stio do nucleo.
Em camadas at^omicas do tipo s cheias, a interac~ao
de troca entre os eletrons destas camadas e aqueles das
camadas incompletas, leva a um desbalanco na densidade eletr^onica no stio do nucleo, criando a contribuic~ao chamada de polarizac~ao do caroco. Esta contri-
355
8 2 (j (0)j ; j (0)j )s
Bsphf = ; 4
#
3 B "
0
2
2
(14)
Estas s~ao as principais contribuic~oes ao campo hiperno nos ons livres. Todas essas contribuic~oes devem ser superpostas e, obviamente, aparecer~ao como
um unico campo:
Bhf = BLhf + Bsdhf + Bschf + Bsphf
(15)
O hamiltoniano dipolar magnetico do on livre sera
portanto dado pela Eq. 10, com B dado pela Eq. 15.
II.2 Interac~ao Quadrupolar Eletrica
Como mencionado anteriormente, camadas
eletr^onicas com momento angular diferente de zero
apresentam uma deformac~ao espacial que geram no
stio nuclear um gradiente de campo eletrico. Este,
por sua vez, interage com o momento de quadrupolo
eletrico do nucleo, Eq. 5, e contribui para o campo
hiperno. No on livre, o hamiltoniano quadrupolar
eletrico sera dado por [1, 5]:
c
3
2 ;4
2
(J I)~;2 ; J(J + 1)I(I + 1)
2
HQ = eQ @@zV2 3(J I) ~ +2J(2J
; 1)I(2I ; 1)
(16)
d
onde @ 2 V=@z 2 e a componente z do gradiente de campo
eletrico, tambem denotado por Vzz . No on livre,
F = J + I e um \bom numero qu^antico", e J I pode
ser substitudo por:
J I = 12 (F ; J ; I )
2
2
2
A interac~ao hiperna total no on livre sera dada
por:
Hhf = Hm + HQ
(17)
Assim como Hm pode ser visualizado como um torque do campo magnetico sobre o momento magnetico
do nucleo, HQ representa um \torque adicional" do gradiente de campo eletrico sobre a distribuic~ao de cargas
nucleares. Este torque adicional muda os nveis de energias hipernas, e pode se tornar visvel no espectro hiperno.
III Interac~oes Hipernas nos
Solidos
Em um solido, as contribuic~oes ao campo hiperno discutidas nas sec~oes anteriores s~ao modicadas pela presenca de outrosons. E precisamente este fato que torna
o estudo das interaco~es hipernas util a Ci^encia dos
Materiais, a Qumica e a Materia Condensada, de uma
forma geral.
Em um solido lidamos n~ao com um, mas com
um numero imenso de ons (tipicamente 1023 por
centmetro cubico), e quando nos referimos a grandezas
i^onicas, como por exemplo ao momento magnetico de
um on, estamos na verdade nos referindo ao seu valor
medio termico, obviamente uma quantidade estatstica.
Este e dado por [4]:
;Em =kB T
< >= gJ B m meZ
P
(18)
onde gJ e o fator de Lande, Z a func~ao de partic~ao
e Em representa as autoenergias magneticas do on no
356
solido. A magnetizac~ao do material sera proporcional
a < >.
A import^ancia da presente discuss~ao para as interaco~es hipernas nos solidos reside no seguinte fato: a
contribuic~ao ao campo magnetico hiperno em um dado
stio nuclear em um solido sera proporcional a < >,
e n~ao a . Esta e uma diferenca dramatica com relac~ao
ao on livre, pois neste ultimo a exist^encia de momento
magnetico depende somente da exist^encia de camadas
eletr^onicas incompletas, ao passo que no solido, pode
ser diferente de zero, mas < > ser nulo! Por exemplo, em um solido paramagnetico n~ao metalico (como,
por exemplo, o sal de gadolnio Gd(C2H5 SO4 )3 9H2O)
< > deriva da aplicac~ao de um campo magnetico externo, e segue uma func~ao de Brillouin [4]. O campo
hiperno magnetico, por sua vez, tera uma contribuic~ao
devida ao campo aplicado e outra devida a magnetizac~ao do material:
Bhf = Bap + A < >
(19)
onde A e uma constante.
Se, por outro lado, o material apresentar ordem magnetica espont^anea, torna-se desnecessaria a
aplicac~ao de um campo magnetico externo, e o campo
hiperno sera escrito como:
Bhf = A0 < >
(20)
O problema se complica no caso dos metais. Em
um metal como o cobre, os ons n~ao possuem momento
magnetico. Em contrapartida, existe um gas de eletrons
que forma a banda de conduc~ao do metal [6]. Esta por
sua vez, pode ser polarizada por um campo externo,
e portanto contribuira para o campo hiperno. Ainda
mais complexo e o caso em que o metal apresenta ordem magnetica, como o ferro e o cobalto metalicos, e
a maioria dos metais terras raras. Nestas situac~oes,
alem da polarizac~ao da banda de conduc~ao, existe um
momento magnetico diferente de zero nos ons, que geralmente domina o campo hiperno. Estes casos ser~ao
discutidos com algum detalhe nas sec~oes subsequentes.
III.1 Contribuic~oes ao Campo Magnetico
Hiperno em Metais n~ao Magneticos
Em metais simples como os metais alcalinos ou os
metais nobres (Cu, Ag, Au), os ons n~ao possuem momento magnetico. Deve-se dizer que varios isotopos
desses elementos podem ser utilizadas como sondas hipernas, como 7 Li (I = 3=2, 92,5% abundante), 23Na
(I = 3=2, 100% abundante), 63Cu (I = 3=2, 69,2%
abundante), 109Ag (I = 1=2, 48,17% abundante), 197Au
(I = 3=2, 100% abundante), etc. Nestes metais, a observac~ao do espectro hiperno demanda a aplicac~ao de
um campo magnetico externo, que por sua vez polariza
a banda de conduc~ao, gerando uma contribuic~ao adicional ao campo hiperno, que pode ser escrito como
[7, 8]
I. S. Oliveira e A. P. Guimar~aes
Bhf = Bap (1 + K)
(21)
onde K e chamado de deslocamento de Knight, dado
por [4]:
0 8 < j (0)j2 > B
K = 4
EF p ap
3
(22)
Aqui, < j (0)j2 >EF esta associada a densidade media
de eletrons de conduc~ao com energia EF no stio nuclear. p e a susceptibilidade paramagnetica de Pauli.
O campo hiperno total em um metal n~ao magnetico
sera ent~ao:
0 8 < j (0)j2 > Bhf = Bap 1 + 4
EF p
3
(23)
III.2 Contribuic~oes ao Campo Magnetico
Hiperno em Metais Magneticos
Em um metal magnetico, a presenca de ordem
magnetica espont^anea da origem a interessantes e, muitas vezes, excessivamente complexas situac~oes que se
reetem no campo hiperno. E util neste ponto diferenciarmos duas situac~oes de interesse: (i) o caso dos
metais puros, como Fe, Co, Gd; (ii) o caso das misturas metalicas, em que dois ou mais metais formam
ligas ou compostos intermetalicos. No primeiro caso,
mais simples do que o segundo, o campo hiperno pode
normalmente ser escrito como a contribuica~o de tr^es
termos:
Bhf = Bp + Bt + Bd
(24)
onde Bp e o campo produzido pelos eletrons do proprio
on, chamado de on pai, Bt e o campo transferido, devido aos ons magneticos que circundam o on pai, e
por m Bd , e o campo dipolar. Todos esses termos
s~ao proporcionais ao valor medio < >, o momento
magnetico do on, mas possuem origens fsicas e magnitudes distintas.
Se < >6= 0, Bp e sempre a contribuic~ao dominante. Nos metais de transic~ao esta contribuica~o pode
atingir algumas dezenas de tesla, e nas terras raras com
momento orbital n~ao nulo, pode chegar a varias centenas de tesla.
O ultimo termo, Bd e de origem classica e possui
magnitude da ordem de
0 < >
(25)
Bd z 4
r3
onde z e o numero de primeiros vizinhos do on pai, e
r da ordem do par^ametro de rede. Substituindo valores tpicos, z 5, < > 2B e r 10 A, obtemos
Bd 0; 1 tesla.
Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 22, no. 3, Setembro, 2000
Bt possui uma origem fsica mais sutil. Este termo
aparece devido a polarizac~ao da banda de conduc~ao pelos momentos localizados. Assim como o campo dipolar, ele dependera de < >, da simetria local e do
numero de vizinhos. Porem sua magnitude e normalmente 1 a 2 ordens acima de Bd .
Nas ligas metalicas, o campo hiperno dependera
das concentraco~es relativas dos metais constituintes.
Estes s~ao sistemas muito particulares, e dependendo
dos constituintes e concentrac~oes, uma grande variedade de situac~oes distintas pode aparecer. No entanto, qualquer que seja o caso, devemos primeiramente distinguir a situac~ao em que ambos os constituintes s~ao magneticos, daquela situac~ao em que um dos
constituintes e n~ao-magnetico. Obviamente a contribuica~o do on pai ao campo hiperno em um stio n~aomagnetico sera nula, restando apenas os dois ultimos
termos da equac~ao 25. Uma complicac~ao adicional no
caso das ligas, e o carater de aleatoriedade nas vizinhancas at^omicas, decorr^encia da ocupac~ao aleatoria
dos stios da rede [8]. Neste caso, tanto o campo transferido como o campo dipolar, depender~ao de um fator
estatstico relacionado a distribuic~ao dos ons nos stios
da rede.
Nos compostos intermetalicos esta aleatoriedade
n~ao existe, mas nem por isto a situac~ao se torna simples. Aqui tambem devemos distinguir o caso em que
todos os ons da rede s~ao magneticos, como e o caso
do GdFe2, da situac~ao em que um dos constituintes e
n~ao-magnetico, como e o caso do Al em GdAl2. Este
ultimo composto e particularmente ilustrativo, e foi no
passado intensamente investigado. O on do Gd possui
7 eletrons na camada 4f, e portanto sua contribuic~ao
orbital ao campo hiperno e nula. Alem disso, existem
dois isotopos importantes do Gd, para ns de interac~oes
hipernas: o 155Gd (I = 3=2, 14,73% abundante) e o
157
Gd (I = 3=2, 15,68% abundante). Todos os outros
isotopos estaveis do Gd possuem spin zero. Adicionalmente, o 27Al e 100% abundante e possui spin I = 5=2.
Isto quer dizer que no GdAl2 temos a oportunidade de
estudar as interac~oes hipernas em dois stios distintos,
utilizando tr^es isotopos! No stio do Gd o campo hiperno tera contribuic~ao dos tr^es termos descritos em
26, mas no stio do Al somente os dois ultimos estar~ao
presentes.
III.3 Contribuic~ao Quadrupolar Eletrica
nos Metais
A contribuic~ao quadrupolar eletrica para o campo
hiperno e modicada quando o on se encontra em
uma rede metalica. As cargas \extra i^onicas" da rede
d~ao a sua propria contribuic~ao para o gradiente de
campo eletrico no nucleo. Alem disso, elas causam
deformac~oes nas camadas eletr^onicas do on pai, mudando a contribuic~ao intrai^onica para o gradiente de
campo eletrico. Por m, eletrons de conduc~ao tambem
contribuem para a interac~ao eletrica do nucleo com a
357
rede. O calculo dessas contribuic~oes em um cristal real e
muito complicado e, do ponto de vista da analise pratica
de campos hipernos em metais, elas s~ao introduzidas
atraves de dois par^ametros, 1 , chamado de fator de
antiblindagem de Sternheimer, e R (sem um nome especco). Em func~ao desses par^ametros, a contribuic~ao
da rede para o gradiente de campo eletrico e escrita
como [4]:
Vzz = (1 ; 1 )Vzzions + (1 ; R)Vzzel
(26)
Em um metal magneticamente ordenado, normalmente a direc~ao de facil magnetizac~ao (direc~ao dos
momentos magneticos at^omicos) n~ao coincidira com
a direc~ao do eixo de simetria do gradiente de campo
eletrico. Isto signica que HQ e Hm ser~ao escritos em
relac~ao a diferentes eixos coordenados. Normalmente
escreve-se HQ em termos dos eixos cristalinos a, b e c,
sendo Ia , Ib e Ic as componentes do spin nuclear neste
sistema [4]:
eQVcc 3I 2 ; I 2 + (I 2 ; I 2 )
HQ = 4I(2I
a
b
; 1) c
(27)
onde o eixo c e considerado o eixo principal de simetria do gradiente de campo eletrico. e um par^ametro
que mede a assimetria do gradiente em torno do eixo
c. Este e o chamado par^ametro de assimetria, denido
por:
VaaV; Vbb
(28)
cc
Se houver simetria axial em torno de c, como por exemplo em um elipsoide de revoluc~ao, Vaa = Vbb e teremos
= 0.
IV Hamiltoniano Hiperno
Em um metal magnetico, o hamiltoniano hiperno sera
igual a soma da parte magnetica, Hm , e da eletrica,
HQ , incluindo as contribuic~oes internas e externas ao
on pai. N~ao necessariamente as direc~oes de simetria
magnetica (direc~ao de facil magnetizac~ao) e eletrica
(eixo de simetria do gradiente de campo eletrico) coincidir~ao. Em um sistema em que (x; y; z) s~ao coincidentes com (a; b; c), com (; ) as coordenadas esfericas do
campo hiperno magnetico, o hamiltoniano hiperno
total pode ser escrito como [4]:
Hhf = ;n ~Bhf [Iz cos + (Ix cos + Iy sin)sin] +
eQVzz 3I 2 ; I 2 + (I 2 ; I 2 )
+ 4I(2I
x y
; 1) z
(29)
onde Bhf e Vzz incluem todas as contribuico~es (internas e externas) ao campo hiperno. Este hamiltioniano
e a base para a analise do espectro hiperno. Contudo,
358
alcancar uma interpretac~ao sem ambiguidades pode se
tornar difcil, se as interac~oes magnetica e eletrica forem da mesma magnitude. Esta e outras situac~oes s~ao
exemplicadas nas proximas sec~oes.
IV.1 Diagonalizac~ao Numerica
Na forma geral, o hamiltoniano hiperno, Eq. 29,
n~ao e diagonal. Neste caso, as autoenergias e probabilidades de transic~ao entre os nveis Zeeman nucleares
devem ser obtidas numericamente. Dependendo das
magnitudes relativas dos termos magnetico e eletrico, o
espectro pode adquirir varias formas. E comum ainda
que nem todos os stios cristalogracos em um solido
sejam equivalentes, dando origem a diferentes valores
de campos hipernos e gradientes de campo eletrico, o
que complica ainda mais a interpretac~ao do espectro.
I. S. Oliveira e A. P. Guimar~aes
lizac~ao do hamiltoniano hiperno para um sistema contendo gadolnio. Como existem dois isotopos estaveis
deste elemento, com diferentes par^ametros nucleares,
havera dois conjuntos de distribuico~es de probabilidades de transic~oes. Estas est~ao representadas no eixo
vertical. O horizontal representa uma escala de energia
associada a transic~ao. Em todos os casos consideram-se
e nulos. Vemos que mesmo com essas simplicaco~es,
dependendo do ^angulo , e das magnitudes relativas entre as contribuico~es magnetica e eletrica (representadas
na gura por Em e EQ , respectivamente) os espectros
se tornar~ao mais complicados com o surgimento de linhas adicionais. Na pratica, espectros s~ao gerados para
varios valores de entrada de Vzz ; Bhf ; ; e , e comparados com o espectro obtido experimentalmente [9].
IV.2 Casos Especiais
O hamiltoniano dado pela Eq. 30 se diagonaliza
para valores de e nulos:
eQVzz [3I 2 ; I 2 ]
Hhf = ;n ~Bhf Iz + 4I(2I
; 1) z
(30)
Neste caso, as autoenergias nucleares s~ao dadas por:
eQVzz [3m2;I(I+1)]
Em =< mjHjm >= ;n ~Bhf m+ 4I(2I
; 1)
(31)
As energias associadas as transic~oes entre nveis Zeeman subjacentes ser~ao, por sua vez:
3eQVzz (2m + 1)
m = Em+1 ; Em = n ~Bhf + 4I(2I
; 1)
(32)
Note que este resultado e valido para quaisquer magnitudes relativos das interac~oes eletrica e magnetica.
Em muitos casos, a interac~ao magnetica e dominante, e a parte eletrica pode ser tratada como uma
perturbac~ao. Nesta situac~ao, utilizamos os autovetores de Iz como base, e obtemos para os autovalores do
hamiltoniano corrigidos em primeira ordem [3]:
Figura 1. Espectro hiperno obtido pela diagonalizaca~o
numerica do hamiltoniano dado pela Eq. 29. S~ao considerados dois isotopos do Gd, com par^ametros e nulos
[9]. Em (a) a interac~ao quadrupolar e considerada como
uma perturbac~ao sobre os estados Zeeman nucleares. Aparecem tr^es linhas para cada isotopo, duas simetricamente
dispostas em relac~ao a uma linha central. Na medida em
que a interac~ao quadrupolar cresce em relaca~o a magnetica,
esta simetria deixa de exisitir (parte b). Este e tambem o
caso em que o a^ngulo entre Vzz e Bhf e n~ao nulo (partes
c,d).
A Fig. 1 mostra o resultado numerico da diagona-
Em(1) = Em(0) + < mjHQ jm >
(33)
No caso em que = 0, pode-se mostrar que o segundo
termo desta express~ao torna-se [4]:
3eQVzz 3cos2 ; 1 [3m2;I(I+1)]
< mjHQ jm >= 4I(2I
; 1)
2
(34)
Note que o valor deste elemento de matriz depende
do ^angulo entre o eixo de simetria do gradiente de
campo eletrico e a direc~ao do campo hiperno. Ele
sera maximo para = 0, e nulo para = 54; 7 graus.
Revista Brasileira de Ensino de Fsica, vol. 22, no. 3, Setembro, 2000
V Exemplo: Determinac~ao das
Contribuic~oes ao Campo Hiperno no Composto Intermetalico GdNi2 via Resson^ancia Magnetica Nuclear
Nesta sec~ao apresentaremos de forma resumida um
estudo das interac~oes hipernas no composto intermetalico GdNi2 [9]. O estudo foi feito via espectroscopia de resson^ancia magnetica nuclear (RMN). Detalhes
desta tecnica podem ser obtidos nas refer^encias [3] e [4].
As propriedades magneticas de compostos intermetalicos t^em sido estudadas por muitas decadas por
varias tecnicas experimentais, bem como por modelos
teoricos. O GdNi2 e um composto que apresenta ordem ferromagnetica a baixas temperaturas (abaixo de
aproximadamente 30 K). Sua estrutura cristalograca
e cubica, pertencente ao grupo de simetria Fd3m. Os
atomos de Gd ocupam os stios 8(a) e os de Ni os stios
16(d) dentro da estrutura. O gadolnio apresenta dois
isotopos favoraveis a observac~ao da RMN, o 155Gd e o
157
Gd, ambos com abund^ancia isotopica em torno de
15%. Os fatores giromagneticos de cada um deles s~ao:
155
=2 = 1; 307 MHz/T, e 157=2 = 1; 713 MHz/T.
Figura 2. Espectro hiperno medido no composto intermetalico GdNi2 . Os pontos pretos s~ao dados experimentais,
a linha contnua um ajuste de mnimos quadrados com curvas lorentzianas. Na parte de baixo da gura s~ao mostradas
as probabilidades de transica~o calculadas a partir da diagonalizac~ao numerica do hamiltoniano hiperno (ver texto).
A Fig. 2 mostra o espectro de RMN obtido em
359
uma amostra de GdNi2. Sobreposta aos pontos experimentais esta uma curva de ajuste da qual se obtem as
posic~oes dos picos de absorc~ao, em numero de cinco:
14,7(1); 19,2(1); 26,5(4); 47,0(4) e 54,0(4) MHz. A
raz~ao entre as duas primeiras linhas, 14,7(1)/19,2(1)
= 0,766(1), e muito proxima da raz~ao entre os fatores
giromagneticos dos dois isotopos: 155=157 = 0; 7630.
Portanto sabemos que o espectro experimental apresenta superposic~ao das linhas de resson^ancia dos dois
isotopos de Gd no composto. Obtem-se a partir da o
valor 9,8(2) T para a contribuic~ao magnetica ao campo
hiperno no Gd.
O espectro calculado e mostrado sob a forma de
barras. Para o calculo foram utilizados os seguintes
par^ametros: = 0, = 18(1)o e = 0. Utilizandose os momentos de quadrupolo eletrico, 155Q = 1; 6 10;28 m2 e 157Q = 2 10;28 m2, obtem-se do
calculo numerico o valor do gradiente de campo eletrico
Vzz = 1; 90 1021 V/m2. Ficam assim determinados o campo magnetico hiperno (Bhf ), o gradiente
de campo eletrico (Vzz ), o par^ametro de assimetria (),
e os ^angulos e .
Refer^encias
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