U LINGUAGENS Alfredo José Mansur Conseqüências m dos aspectos dos fenômenos de modo geral é que eles podem ter conseqüências às vezes desejadas, às vezes não desejadas; podem ser ora aparentes ora nem tanto. Com a linguagem médica não seria diferente, principalmente tendo em vista os conteúdos dos quais trata. A observação certamente não surpreende aqueles que têm na linguagem médica o meio da sua prática. Um exemplo de conseqüência resultante de uma observação médica aconteceu com um famoso compositor. Foi-me contado pela primeira vez por um professor de Medicina já falecido. O fato deu-se assim: certa ocasião, depois da morte de uma filha aos quatro anos de idade, a esposa do compositor prostrou-se inconsciente. O médico foi chamado para consultá-la. Depois de examinar a esposa, o médico também examinou o marido da paciente. Para ele consta que o médico comentou: “O senhor não precisa ficar orgulhoso do seu coração”. Preocupado com a vaga menção, ele procurou nova avaliação médica para esclarecimento. Então ouviu de outro médico — “doença compensada na valva mitral com estreitamento da sua abertura; portanto, todo exercício físico deve ser abolido”. Foi um baque e tanto para alguém em boa condição funcional — nadador, ciclista e que caminhava longos percursos no campo. Transformou-se de atleta em paciente, e isto acarretou uma série de conseqüências que se estenderam no tempo.1 Um importante cientista salientou que a dinâmica de um mesmo fenômeno pode ao mesmo tempo ser invertível, reversível em relação ao tempo, determinista, recorrente e caótica.2 Foi estimulante a leitura desses conceitos, tomar da licença de leitor, cotejá-los com as conseqüências variadas da linguagem médica. A linguagem médica ou que trata de assuntos médicos pode ser terapêutica, esclarecedora e apaziguadora. Também pode enveredar por outras dinâmicas, levar a outras conseqüências, particularmente quando do uso de jargão. No caso acima descrito, a expressão doença compensada pode ser entendida como um jargão. Nos dicionários, o significado de jargão nas diferentes acepções se associa à idéia de linguagem viciada e disparatada, difícil de compreender, destinada a não ser entendida, obscura, deliberadamente artificializada ou restrita a um grupo profissional específico.3,4 O uso de jargão não é recomendado.5-8 Um desses manuais salienta que evitar jargões pode ser mais trabalhoso para pensar e exprimir uma idéia.6 Examinaremos em seguida aspectos do uso de jargão na dinâmica da Medicina e da sua prática e conseqüências. Necessidade — O avanço do conhecimento científico identifica novos fatos e mecanismos, que por sua vez podem requerer novo vocabulário, nova sintaxe, e conseqüentemente faz necessária nova linguagem e terminologia.9 A médica é uma das áreas de conhecimento e prática na qual esse processo também acontece. A saudável conseqüência de uma nova linguagem seria a melhor compreensão e expressão da realidade a substituir conceitos não mais aplicáveis ou não mais fundamentados. Entretanto, um novo conhecimento humano não propõe apenas soluções ou respostas, mas propõe também novos hiatos de conhecimento e novas perguntas. Resultados de estudos de prevenção, de mecanismos fisiopatológicos e de tratamentos medicamentosos continuamente propõe essa alternativa que não pode ser desconsiderada quando transmitida para pacientes ou pessoas interessadas. Não raro, hipóteses opostas às iniciais emergem no campo da investigação.10 Uma conseqüência interessante desse reparo é que conseqüências resultantes dos avanços de conhecimento (por exemplo, tratamentos) não são definitivos, e podem ser reformulados. Esse cuidado científico merece transparecer na linguagem. Poder — O uso do jargão técnico em contexto ou áreas diferentes das quais fazem parte do cotidiano daquele jargão permite a hipótese de maior conhecimento daquela área. O suposto conhecimento pode ser exercido como uma forma de poder. Por exemplo, um determinado jargão médico Diagn Tratamento. 2008;13(4):175-6. RDT v13n4.indb 175 25/2/2009 13:15:28 pode estar associado ao conceito de poder de interpretar, diagnosticar, tratar e obter bons resultados no tratamento da doença ou condição da qual se trata. Essa característica pode ser utilizada como força de argumento ou mesmo de marketing. O uso de jargão pode intimidar pacientes.8,11 Em outro país, foi sugerido que um estudo científico foi formulado como estratégia de marketing.12 Em outra publicação foi sugerido que dados de acompanhamento no longo prazo não fossem omitidos.13. Intimidade — Às vezes o uso do jargão permite o conceito de familiaridade e intimidade com o assunto tratado. Há uma cena no filme “O Carteiro e o Poeta”, no qual o carteiro, ao início de seu novo emprego, usa uma linguagem para o pai, que denotaria uma atitude de familiaridade com a nova profissão, e conclui, “isto é uma postura de nós, carteiros”. Assim, algumas intervenções médicas ficaram utilizadas pelo pacientes como uma referência próxima, às vezes até abreviadas, denotando familiaridade. Humor — Poucas ações humanas resistem ao humor. Jargões de outras áreas do conhecimento já se encontram dicionarizadas como acepção jocosa. Tal se verifica para o termo economês,3 mas ainda não se fez o registro de “mediquês”. Ansiedade — O uso de alguns termos ou denominações pode desencadear ansiedade nos pacientes.14 O jargão hospitalar, quando ouvido por pessoas não habituadas ao jargão hospitalar, pode gerar ansiedades desnecessárias.15 Eufemismo — O uso de jargão foi muitas vezes utilizado a bem da discrição, para que temas de abordagem mais difícil ou que demandem exame mais apurado em outra circunstância não precisassem ser discutidos de modo a atrapalhar os cuidados necessários para um paciente. Talvez esse tenha sido o grande movente do uso corriqueiro dos jargões que algumas vezes se atribui aos médicos. Empolação — A descrição de alguns aspectos de prática médica com jargão pode conferir pompa e circunstâncias desnecessários. Uso de termos estrangeiros — Foi-se a época do uso de latim na linguagem médica cotidiana. Atualmente, recorre-se freqüentemente a menção de termos em inglês com ou sem aportuguesamento. Permite-se a impressão de que, às vezes, o uso do termo em inglês confere maior clareza, importância ou facilidade de expressão, selando a competência ou internacionalidade do falante. Acesso a fontes de financiamento de pesquisa — Um importante pesquisador salientou que pesquisadores podem, consciente ou inconscientemente, preservar a identidade do grupo no qual se inserem e ter acesso a fontes de financiamento com o uso de um jargão próprio.9 Feitos esses comentários, concluímos considerando que certamente outras conseqüências da linguagem médica e seus jargões podem ser resgatadas na prática cotidiana e adicionada aos parágrafos acima esboçados. Alfredo José Mansur. Livre-docente em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Diretor da Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP. INFORMAÇÕES Local onde foi produzido o manuscrito: Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 São Paulo (SP) — CEP 05403-000 Tel. InCor (11) 3069-5237 Consultório: (11) 3289-7020/3289-6889 E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma declarada. Conflito de interesse: nenhum declarado. REFERÊNCIAS 1. Neumayr A. Music and medicine: Chopin, Smetana, Tchaikovsky, Mahler: Notes on their lives, works, and medical histories. Illinois: Medi-Ed Press; 1997. 2. Prigogine I. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Unesp; 1996. 3. Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001. 4. Merriam-Webster Dictionary. 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