1. A estranha natureza do Eichmann em Jerusalém — Uma reportagem sobre a banalidade do mal (1963). Choque e incompreensão. “Este livro não trata da história do maior desastre que alguma vez o povo judaico sofreu, nem é uma avaliação do totalitarismo, ou uma história do povo alemão na época do Terceiro Reich, nem sequer um tratado teórico sobre a natureza do mal. A natureza de todo o julgamento toma como objecto a pessoa de acusado, uma pessoa de carne e osso, com uma história individual…” Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, PostScript, p. 285 Precisamente por ser muito mais do que um simples relatório ou reportagem jornalística, a leitura, primeira ou repetida, do livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém — Uma re‑ portagem sobre a banalidade do mal (1963)3, confronta­‑nos de forma especial com o problema do mal, da consciência moral, da culpa, do castigo, da justiça e, especialmente, com os limites 3 O Eichmann foi pela primeira vez publicado em Maio de 1963 e corresponde com poucas alterações à cobertura que Hannah Arendt fez do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, que decorreu em 1961. A reportagem, dividida em fascículos, foi feita por Arendt para a revista The New Yorker. Em 1964 é publicada uma segunda edição com poucas alterações do texto, mas com um importante “PostScript”, o qual, nas suas palavras, “trata da controvérsia que se seguiu à publicação original” (Eichmann, “Note to the Reader”). É esta segunda edição que aqui utilizamos. A Filosofia e o Mal.indd 19 5/13/15 9:40 AM 20 António Marques do juízo, tanto moral como jurídico. Mas essa qualidade mais reflexiva e filosófica, qualidade que uma autora como Arendt naturalmente iria integrar na sua reportagem do julgamento, fa‑ zendo daquela um trabalho de filosofia, transformou­‑se num ob‑ jecto de difícil identificação, exterior às categorias morais que até então tinham prevalecido, por exemplo, nos processos de Nuremberga. Aquilo que seria apenas uma reportagem, ainda que porventura mais inteligente e mais atenta às circunstâncias, já que feita por uma intelectual reconhecida nos círculos académicos, acabou por se tornar numa contribuição filosófica singular e surpreendente para a discussão dos tópicos clássicos da filosofia moral acima mencionados. Em grande parte, o nosso texto procura contribuir para o esclarecimento dessa singularidade e dessa estranheza, onde se joga aliás toda a filosofia de Arendt. Por isso mesmo, a compreensão do Eichmann não é possível sem uma perspectiva ampla do seu pensamento, ainda que, como se irá verificando, o que pretendemos não tenha como fim uma discussão restrita a Arendt, já que dela parte em várias direcções, e convoca vozes muito diferentes, que desde sempre se cruzaram com a sua pró‑ pria voz. Desde logo, essa singularidade e estranheza do livro/ reportagem residem em retirar o tema do mal em Eichmann da interpretação do conceito de mal, com que se opera sempre que se avalia os crimes do nacional­‑socialismo. Estranhamente pa‑ ra os seus primeiros leitores e certamente ainda para os leitores actuais, como melhor se verificará, o livro de Arendt, nas suas próprias palavras, não se centra no julgamento daquele homem, em função da avaliação do Holocausto, mas sim no julgamento de alguém (Eichmann), de uma “pessoa com a sua história indi‑ vidual” que teve uma participação importante na catástrofe, mas que não deve ser julgado a partir daí ou em função daquela (o excerto em epígrafe, torna clara essa atitude). Tal perspectiva, à primeira vista estranha e, por assim dizer, rebuscada é uma dife‑ rença só à primeira vista inócua. É sabido como o ponto de vista e o juízo que o livro encerra causaram a maior das perplexidades, angústia e rejeição, sobretudo, como seria de esperar, na comuni‑ A Filosofia e o Mal.indd 20 5/13/15 9:40 AM A Filosofia e o Mal 21 dade intelectual judaica, mas também entre o círculo de amigos da própria Arendt4. Na verdade, desde a publicação original no New Yorker que o Ei‑ chmann de Arendt foi visto como um objecto estranho, completa‑ mente surpreendente e penalizador, não apenas para a autora, mas também para o povo judeu. Afinal Arendt era uma judia que, me‑ nos de duas décadas após o fim da guerra e do Holocausto, vinha pôr em causa o papel desempenhado pelos chefes de alguns Con‑ selhos Judaicos por causa do trabalho prestado na arregimentação em guetos e deportação das vítimas. Na verdade, se esse papel era já amplamente conhecido, o Eichmann veio dar­‑lhe muito maior visibilidade. Sobretudo é a monumental obra de Raoul Hilberg, The Destruction of the European Jews, publicada em 1961 (que a autora usa no seu Eichmann massivamente) que revela parte dos comportamentos “colaboracionistas” de chefes importantes das co‑ munidades judaicas. Mais à frente voltaremos a este tema. Porém essa estranheza ou, para alguns, escândalo inominável foi o facto de Arendt ter visto em Eichmann a expressão da banalidade do mal. Ora essa fórmula só suscita interesse se procurarmos identifi‑ car o que poderá ser o seu contrário, o mal radical, e o significado dessa radicalidade na sua relação com o monstruoso. Veremos co‑ mo o mal radical pode ser identificado de forma precisa e como o seu significado não se associa forçosamente ao monstruoso. Esse esclarecimento obriga a aprofundar o significado do mal radical, no autor que melhor o identificou, ou seja, Kant. Ė em grande me‑ dida essa estranheza que iremos decifrar ao longo deste livro, o que requer entrar decididamente no interior do pensamento da filósofa. De facto o processo de Eichmann e o seu desfecho pareceria logicamente um (pequeno) capítulo do processo do Holocausto como já acontecera com os julgamentos de Nuremberga. E desse 4 Uma descrição sintética e inteligente dos efeitos do livro na altura da sua publicação é feita por Mark Lilla, a propósito do filme de Margarethe von Trotta e encontra­‑se no New York Review of Books (N. 18, 2013) com o título “Arendt & Eichmann: The New Truth”. A recensão do filme, bastante crítica, junta a recensão do livro de Martin Wiebel, Hannah Arendt: Ihr Denken veränderte die Welt (Hannah Arendt: o seu pensamento mudou o mundo), Piper, 2013. A Filosofia e o Mal.indd 21 5/13/15 9:40 AM 22 António Marques ponto de vista, a missão de Arendt aparentava, à primeira vista, carecer de um espaço próprio, de um problema específico que o alimentasse. No entanto ela cria o seu próprio problema, ao des‑ locar a avaliação sobre o mal, do crime monstruoso, que exem‑ plificará a existência do mal essencial, para o plano do mal “ba‑ nal”, a famosa fórmula que maior impacto causou e continua a causar. O que é notável, para quem observa o renovado interesse que suscita o Eichmann de Arendt e as actuais discussões sobre a famosa fórmula “banalidade do mal”, é o facto de este decorrer numa época em que a atracção pública pelo fenómeno do nazis‑ mo e do Holocausto não tem esmorecido, antes pelo contrário. Mesmo comparando com o fascínio que o tema do Holocausto exerceu logo desde as décadas que se seguiram ao final da guerra e ao acontecimento decisivo que representam os julgamentos de Nuremberga, essa atracção e esse interesse não se esbateram e têm vindo sempre a actualizar­‑se. Nesse sentido, tanto a efeméride dos cinquenta anos do Eichmann, de Arendt, como o aclamado filme de Margarethe von Trotta, incluem­‑se num contexto de cada vez mais intensa investigação, divulgação e mesmo comercialização (sobretudo através do cinema e documentário) desta temática. Longe de ser um assunto fechado para a nossa experiência mo‑ ral e política, a Shoah ou o Holocausto dos judeus continua a asso‑ lar — agora sob a forma de um fascínio mais distante, mas sempre próximo da incredulidade — a nossa condição de pertencentes ao chamado mundo civilizado. Cinquenta anos após a primeira edição do Eichmann de Arendt são os mesmos fantasmas e a quase impos‑ sibilidade de uma compreensão racional do que aconteceu que rea‑ parecem. À primeira vista, a sua presença deveria ser mais esfumada e sublimada, já que sabemos como a memória é breve e conhecemos a sua força distorciva. As representações da memória, sujeitas como estão ao poder triturador do tempo, impõem regras que perturbam o conhecimento daquilo que verdadeiramente aconteceu. Não é dife‑ rente o que se passa com o Holocausto e as nossas actuais represen‑ tações dessa catástrofe, tão longe e tão perto. Mas, por outro lado, algo estranhamente diferente acontece com a sua memória. Não se consegue explicar em poucas linhas, ou é mesmo de todo incom‑ A Filosofia e o Mal.indd 22 5/13/15 9:40 AM A Filosofia e o Mal 23 preensível, esse permanente retorno, a que estamos ligados como uma sombra de nós próprios, sobre a qual não é possível saltar e que mesmo as mais novas gerações percebem como a sua sombra. De forma que uma boa parte daquilo a que podemos chamar, de ma‑ neira indefinida, “consciência europeia” é preenchida pela noção de catástrofe (significado literal do termo hebraico Shoah) desejada e planeada na Europa civilizada, numa das nações pertencentes ao seu núcleo civilizacional. Daí a incompreensão e também a força atracti‑ va do fenómeno, cuja memória não é possível, nem desejável apagar. É verdade que essa memória se transforma na matéria do tempo, sem que tal mudança signifique necessariamente uma diminuição do seu significado, uma menor compreensão do que aconteceu ou o seu menor valor como instrumento de interpretação do presente… Prova disso mesmo é, como já se referiu, a contínua e cada vez mais inten‑ sa edição literária e cinematográfica sobre o nacional­‑socialismo, o Holocausto, as suas vítimas e carrascos. Trata­‑se afinal de “represen‑ tações” que podem incidir seja na génese e causas, seja no encadea‑ mento dos acontecimentos, seja ainda na reconstituição biográfica de personagens decisivas, a começar por Hitler, seja mesmo na experi‑ ência (certamente ficcionada) infantil que nos permitiria uma expli‑ cação talvez mais “verdadeira” do que aconteceu. A título de exem‑ plo, refiram­‑se os admiráveis recentes filmes de Michael Haneke, O Laço Branco (2009) ou de Cate Shortland, Lore (2012). Enorme interesse, ainda que com características muito diferentes, despertou também o filme de Oliver Hirschbiegel que reconstitui os últimos dias de Hitler no seu Bunker berlinense, com uma memorável inter‑ pretação da figura de Hitler pelo actor Bruno Ganz, A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich (Der Untergang) de 2004. Esta última produção tem o especial interesse de utilizar novas fontes históricas oriundas, quer de testemunhas dos últimos dias da vida no Bunker, quer de historiadores da excelência de Joachim Fest, interlocutor de Arendt, a quem nos vamos referir mais à frente. Mesmo a ficção li‑ terária produziu recentemente best sellers directamente relacionados com temas, personagens da experiência nacional­‑socialista. Exem‑ plos marcantes foram o livro Les Bienvieillantes (2006) de Jonathan Littel e uma das derradeiras obras de Norman Mailer, o admirável A Filosofia e o Mal.indd 23 5/13/15 9:40 AM