[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REGIMES AUTORITÁRIOS E SOCIEDADES] Ano 3, n° 3 | 2013, verão ISSN [2236-4846] Apresentação Renata Torres Schittino Em Education and social mobility in the Soviet Union, Seila Fitzpatrick procura estudar os meandros de sustentação do poder na URSS e, diferentemente dos especialistas sovietologistas da década de 1970, concede destaque às pesquisas sobre as pessoas comuns. Sua proposta é compreender como diferentes grupos sociais se relacionavam com as políticas do governo1. O que a autora encontra é uma afinidade entre os diversos interesses pessoais e o esquema da polícia política. A satisfação individual, a possibilidade da mobilidade social, os medos e os ressentimentos privados revelam-se mantenedores da legitimidade do regime autoritário, de modo que parece não ser plausível falar de uma sociedade civil completamente extinta, nem mesmo sob o período stalinista. Mais recentemente, Robert Gellately divulga resultados semelhantes em seus estudos sobre a participação da população na sustentação do nazismo.2 Segundo ele, o regime buscava o tempo todo o consentimento da população, e não seria possível entender a história do Terceiro Reich sem vislumbrar que coerção e consenso eram elementos de um mesmo processo. Por um lado, o autor sugere que a máquina de repressão estava voltada para uma minoria, sendo o terror aplicado sobretudo em casos específicos. Por outro, demonstra os esforços da imprensa para desencadear o apoio da população através da divulgação contínua das medidas de violência e das práticas de detenção nos campos promovidas pelo regime. Assim como no caso soviético vislumbrado por Fitzpatrick, Gellately defende que as pessoas comuns usavam a polícia política em benefício próprio – denunciavam indivíduos à Gestapo por motivos pessoais e egoístas – e com isso apoiavam e encorajavam a violência nazista. “Que o sistema de terror não fosse apenas temido e Professora Adjunta do Departamento de História da UFF. Deve-se mencionar que este texto tem origem na minha pesquisa de pós-doutorado realizada na UFF com o apoio da Faperj. 1 FITZPATRICK, S. Education and social mobility in the Soviet Union, 1921-1934. Cambridge University Press, 1979. 2 GELLATELY, R. Apoiando Hitler. Consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: São Paulo: Record, 2011. 1 [APRESENTAÇÃO * RENATA SCHITTINO] evitado, mas usado e manipulado, era uma característica essencial do mundo da vida dos denunciantes e dos agentes na ditadura de Hitler. As denúncias aconteciam dentro das famílias, entre os amigos e colegas e também dentro do Exército, de forma que nenhum encrave social parecer ter ficado totalmente imune”.3 As obras como as de Seila Fitzpatrick e de Robert Gellately, que buscam analisar os regimes autoritários e ditatoriais, observando a importância do consenso social em vez de enfatizar o poderio do líder ou a legitimação pela força, têm ganhado terreno desde a década de 1970. Pode-se dizer, de maneira geral, que os estudos deixam de trabalhar com a oposição entre Estado e Sociedade para explicar a existência das ditaduras, e passam à tentativa de compreender como se arregimentam as relações sociais - relações de poder – que tornam possível a manutenção dos governos autoritários. A história da historiografia poderia nos dar uma série de elementos significativos no seio dos desenvolvimentos teóricos e metodológicos para avançar no entendimento das mudanças de abordagem no tratamento da temática dos regimes autoritários e sociedades. Mencionemos, como exemplos, a ênfase na experiência do homem comum, a noção de que o poder não é uma instância estanque e sim um emaranhado de relações sociais tensas, o reconhecimento dos estudos de memória, o desenvolvimento de uma nova história política, o declínio das grandes narrativas. Outra forma de introduzir a reflexão sobre essa temática é já mergulhando nela. Façamos isso com uma breve remissão aos conceitos de zona cinzenta e de banalidade do mal. Ao escrever Afogados e sobreviventes, Primo Levi concebe a importância da zona cinzenta no interior dos campos de concentração. Segundo ele, o prisioneiro deparavase com a experiência da zona cinzenta logo de início, quando recebia as primeiras ameaças e pancadas não dos algozes da SS, mas de outros prisioneiros, supostos “colegas” que tinham as mesmas vestimentas listradas. No universo concentracionário, o prisioneiro era forçado a perceber que estava sozinho, que se embrenhava numa região de todos contra todos. A indistinção entre vítimas e algozes não permitia que a solidariedade se espalhasse entre os oprimidos. Na verdade, como sugere Levi, o nazismo não santificava suas vítimas, mas lhes corrompia a dignidade ao exigir que tomassem parte no trabalho sujo da repressão e da matança. Assumir posição de algoz muitas vezes significava para o prisioneiro a única possibilidade de sobrevivência. 3 Idem, p.218. 2 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REGIMES AUTORITÁRIOS E SOCIEDADES] Ano 3, n° 3 | 2013, verão ISSN [2236-4846] Qualquer pequena vantagem obtida, qualquer privilégio - um prato a mais de comida, uma roupa seca – poderia lhe assegurar mais tempo de vida em meio ao espaço incerto e extremamente violento dos campos. A zona cinzenta se constitui assim, para Levi, como a proliferação do privilégio. A zona cinzenta é o próprio espaço do privilégio. Revela-se como uma região nebulosa, onde as fronteiras rígidas entre vítima e opressor são tênues.4 Levi mostra que, se a zona cinzenta era o arcabouço constitutivo dos campos, na verdade, apenas se reconfigurava aí a estrutura de privilégio e colaboração que se avultava em todo o sistema totalitário. Como demonstra o autor, a zona cinzenta se manifesta muito claramente nas instâncias colaboracionistas, como o governo de Vichy, a Republica de Saló ou o Judenrat de Varsóvia. Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz concede destaque à “descoberta que Levi fez em Auschwitz”, isto é, à tentativa de configurar a zona cinzenta. O filósofo italiano enfatiza principalmente o depoimento Miklos Nyiszli, reproduzido por Levi, no qual o sobrevivente relata ter assistido a uma partida de futebol entre sonderkommandos e SS. O jogo permitia entrever o contato entre vítimas e algozes. Dava a impressão de que não se estava num campo de concentração, mas que se tratava de uma partida comum. Agamben vê nessa partida de futebol o “emblema perfeito” da zona cinzenta. O que ele frisa não é o caráter excepcional desse momento de descontração, ao contrário, indica como é o aparecimento dessa zona de indistinção entre vítimas e algozes - esse aspecto de „normalidade‟ - que se constitui como “o verdadeiro horror do campo”. Deve-se notar que, tanto para Levi quanto para Agamben, a zona cinzenta está bastante carregada de um questionamento moral. Se não é possível distinguir entre opressores e oprimidos, quem seriam os responsáveis pela sustentação do regime nazista? Agamben chega a supor que o aspecto de „normalidade‟ da zona cinzenta deixa atrás de si o lastro de uma “infame zona de irresponsabilidade”.5 Hannah Arendt sublinha, desde os seus primeiros trabalhos sobre o totalitarismo, o caráter radicalmente novo do regime ditatorial alemão. A autora chama a atenção para a ruptura que está aí colocada com todos os padrões morais de julgamento vigentes até então.6 4 LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008, pp.31-35. 6 ARENDT, H. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. 5 3 [APRESENTAÇÃO * RENATA SCHITTINO] Ao cunhar a noção de banalidade do mal, por conta do trabalho que escreve como correspondente do New York Times no julgamento de Eichmann, em Jerusalém, Arendt acredita que o mal no totalitarismo não pode ser pensado nos moldes tradicionais. Eichmann, ela vislumbra, não é nenhum Iago ou Macbeth. Assim como não pode ser comparado a um grande vilão tomado por intenções malignas, também não pode ser acusado de ser um tipo de louco ou sádico. Eichmann não é sequer uma pessoa especial. O que mais chama a atenção de Arendt é a normalidade do líder nazista. Sublinhar o caráter da banalidade do mal significa enfatizar seu aspecto ordinário ou corriqueiro. O deixar-se levar por interesses pessoais, a comodidade e mesmo a apatia podem ser tão perigosos quanto qualquer intenção maligna. A normalidade de Eichmann está relacionada à própria normalidade do social. Os crimes cometidos durante o nazismo têm que ser repensados sob uma nova ótica exatamente porque escapam à limitação tradicional. O crime não é mais a situação excepcional.7 Em Responsabilidade e julgamento, Arendt também se pergunta por que tantos „bons‟ alemães, pessoas respeitáveis e cultas, acabaram apoiando Hitler ativamente ou passivamente. Aí mais uma vez está levantada a questão segundo a qual a ditadura nazista não provém de outro planeta, mas surge no próprio seio da sociedade, constituindo-se como escolha mais ou menos engajada de homens normais. O que devemos destacar é que a constatação da banalidade do mal, que revela a ausência de intenções malignas, não exime a pessoa do crime cometido. Se Arendt fala numa ausência de reflexão, e até mesmo numa incapacidade do pensamento de Eichmann, isso não significa que esteja isentando-o de responsabilidade por seus crimes. A noção de banalidade não vem certamente corroborar a hipótese, muito utilizada pela defesa de Eichmann e dos nazistas em Nuremberg, do dente na engrenagem. Através dessa proposição imaginava-se poder provar que os funcionários nazistas não faziam mais que cumprir o seu dever como subordinados do Estado, de modo que num estado totalitário toda a responsabilidade seria do líder. Se Agamben podia falar dessa zona cinzenta como esfera da irresponsabilidade, Arendt faz questão de vislumbrar a diferenciação entre culpa e reponsabilidade. Esse seria o modo de fugir do paradoxo segundo o qual “onde todos são culpados ninguém de fato o é”. Na concepção da autora, a responsabilidade está relacionada ao ato cometido e não à intenção de cometê-lo. Assim, a culpabilidade aparece como uma 7 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 4 [REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ REGIMES AUTORITÁRIOS E SOCIEDADES] Ano 3, n° 3 | 2013, verão ISSN [2236-4846] questão moral e está na alçada da consciência, mas não implica necessariamente responsabilidade legal, que, por sua vez, se refere ao âmbito da ação. Dessa ótica, Eichmann poderia estar correto quando se declara culpado diante de Deus, mas inocente diante do Estado. Ao que parece, Arendt não duvidaria da relação entre Deus e o plano da culpabilidade. Quem poderia realmente saber de nossas intenções? No que se refere à inocência perante o Estado, no entanto, a autora não poderia aceitar a ideia de que o réu estava correto por apenas cumprir ordens de estado. Notemos que concordar com a tese da defesa de Eichmann seria validar a noção de que, no totalitarismo, o único responsável era o próprio Hitler, e isso, certamente, significaria corroborar a teoria do Estado x sociedade. Na concepção arendtiana, ao contrário, a banalidade do mal não redime ninguém. Eichmann devia ser condenado, pois “política não é jardim-deinfância; em política, obediência e apoio são a mesma coisa.”8 Resta saber em que medida é possível rejeitar um sistema como o nazismo sem que isso signifique morte ou completo isolamento social. A questão que se coloca refere-se ainda à possibilidade de compreender os níveis de colaboração e de responsabilidade. No anseio de buscar os meandros das relações entre regimes autoritários e sociedades, os textos aqui reunidos se compõem como uma variedade de estudos de casos através dos quais podemos perceber uma diversidade de atitudes e comportamentos políticos sob ditaduras. Gabriel Trigueiro analisa o Cruelty and silence: war, tyranny, uprising and the arab world, do famoso autor de Republic of fear, Kanan Makiya. Observamos aí a tentativa de acompanhar criticamente como Makyia, a partir da análise da guerra do golfo na década de 1990, se insurge contra a concepção corrente de que a política e a situação do Oriente Médio devem ser entendidas apenas como imposição do Ocidente sobre o Oriente. Danilo José Dalio, também com o olhar no Oriente Médio, discute a temática da Primavera árabe, que, segundo sua hipótese, seria o resultado de um antagonismo latente na relação entre regimes autocráticos e as forças de mercado em expansão. Voltando-se para Nuestra América, Darío Dawyd e Paula Andrea Lenguita trabalham com a questão das bases sociais dos regimes autoritários, através da discussão sobre a posição do sindicalismo de base na Argentina das décadas de 1960 a 80; enquanto Julian Araújo Brito propõe a temática da manutenção do poder e legitimidade social da Revolução cubana pós- queda do muro de Berlim. Sobre as 8 Idem, p. 302. 5 [APRESENTAÇÃO * RENATA SCHITTINO] experiências autoritárias no Brasil, temos o artigo de Jonas Lana a respeito do caso de Rogério Duprat como arranjador da Tropicália; o texto de Carlos Eduardo P. de Pinto, acerca da relação entre Cinema novo e resistência à ditadura militar, onde encontramos um questionamento produtivo sobre a vinculação mecânica entre o Golpe e o “processo criativo dos cineastas”; e a pesquisa de Victor H. de Resende, que visa compreender o processo de “modernização autoritária” no Brasil mediante o exame da transição de um rock ligado ao transcultural na década de 1970 para um rock que enfatiza a desorientação do país na década de 1980. Na seção de artigos livres, contamos ainda com a contribuição de Carlos Vinicius Costa de Mendonça e Gabriela Santos Alves. Os autores propõem uma análise de Agosto, de Rubem Fonseca, onde encontram a representação política das relações de poder no Rio de Janeiro de 1950. Por fim, temos o trabalho de Ricardo Sorgon Pires, que nos apresenta as tensões e conflitos em torno da disputa de memória a respeito daquela que ficou conhecida como último grande combate da segunda guerra mundial, a Batalha de Okinawa. Boa leitura. 6