Direito Penal e pós-modernidade: bases humanistas e conteúdo ético

Propaganda
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Priscila de Castro Busnello
Direito Penal e pós-modernidade:
bases humanistas e conteúdo ético
MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL PENAL
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Priscila de Castro Busnello
Direito Penal e pós-modernidade:
bases humanistas e conteúdo ético
MESTRADO EM DIREITO PROCESSUAL PENAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Direito
Processual Penal sob a orientação do
Prof. Doutor Cláudio José Langroiva
Pereira
SÃO PAULO
2012
Banca examinadora
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
RESUMO: DIREITO PENAL E PÓS-MODERNIDADE: BASES
HUMANISTAS E CONTEÚDO ÉTICO
de autoria de Priscila de Castro Busnello
A sociedade global é uma realidade. Ao mesmo tempo em que a
humanidade
vivencia
a
dinamicidade
das
grandes
e
ininterruptas
(macro)transformações, ainda não foi possível compreender e fazer valer, de
maneira plena, os direitos fundamentais do ser humano, na qualidade de pessoa,
única e singular. Em função dessas constatações, este estudo tem como objetivo
apontar algumas formas de compreender a pós-modernidade, reconhecendo sua
importância, sem olvidar da necessidade de preservação dos direitos humanos e
da dignidade da pessoa humana para o estabelecimento das bases humanistas
mínimas do modelo para uma nova sociedade. Com a finalidade de atingir os
objetivos estabelecidos, é utilizado, inicialmente, o método da compilação, com
a associação de diferentes disciplinas, de modo a apresentar um panorama
sintético das várias perspectivas sobre as atuais mudanças nos rumos da
humanidade. Mas, com o desenvolvimento das ideias apresentadas, a
metodologia científica passa a direcionar o desenvolvimento da investigação na
busca de propostas coerentes para a conciliação entre a inevitável integração
global e a efetiva preservação da dignidade da pessoa humana. Os resultados, no
campo do Direito, apontam para a necessidade de superação dos ultrapassados
debates meramente formais e superficiais, com a atualização da compreensão
sobre o papel do direito penal na pós-modernidade. Ele deve, mais do que
nunca, corroborar o fortalecimento das condutas éticas e o comprometimento do
ser humano com seus semelhantes.
Palavras-chave: direito penal, pós-modernidade, globalização, dignidade da
pessoa humana, bases humanistas, ética
ABSTRACT: CRIMINAL LAW AND POST-MODERNITY:
HUMANISTIC BASES AND ETHICAL CONTENT
Written by Priscila de Castro Busnello
The global society is a reality. At the same time that the mankind
experiences the dynamism of the big and uninterrupted (macro)transformations,
it was not possible to comprehend and enforce, thoroughly, the fundamental
rights of the human being as a unique and singular person. Due to those
findings, this study has as main objective to understand post-modernity,
recognizing its importance, without forgetting to preserve human rights and
human dignity, to establish the minimal humanistic bases for the model of a new
society. Aim to reach the goals, a compiling method utilized, with the
association of different subjects in a way to presents a summarize panorama on
several perspectives on the update changing on the readings of humanity. But,
with the development of the presented ideas, the scientific methodology takes
the place in directing development of the investigation searching coherent
proposals to a conciliation between the inevitable global integration and the
effective preservation of the dignity of the human being. The results concerning
law indicate the need to overcome the old fashion debates with are just formal
and superficial, with un updating of the comprehension on the role of the
criminal law in post-modernity. It should, more than ever, helping strengthen the
ethical conduct and the commitment of the human being with their peers.
Keywords: criminal Law, post-modernity, globalization, human dignity,
humanistic foundations, ethics
DIREITO PENAL E PÓS-MODERNIDADE: BASES HUMANISTAS E
CONTEÚDO ÉTICO
SUMÁRIO
Introdução
07
1
Panorama jurídico
14
1.1
A crise da cultura jurídica
14
1.2
Conhecer o passado para construir o futuro
17
1.3
As mudanças de época
20
1.4
Teorias sobre a norma jurídica
22
1.5
A codificação no sistema jurídico
31
1.6
As acepções de Constituição
34
1.7
Constituição como limite
36
1.8
Constitucionalismo no século XXI: Constituição como dever
40
1.9
A Constituição Federal Brasileira de 1988
45
1.10 A Dignidade da Pessoa Humana
49
1.11 Os Direitos Fundamentais
57
1.12 A matéria penal no panorama Constitucional
63
1.13 Breves considerações sobre bem jurídico
67
2
Conjuntura Global
72
2.1
A concepção de Estado pós-moderno
72
2.2
A constante reinvenção do ser humano e o mundo fast
73
2.3
Retrato da conjuntura global atual: a crise
75
2.4
Consumo
78
2.4.1 O homem e o consumo
78
2.4.2 O sentido histórico da liberdade e da felicidade
80
2.4.3 O breve século XX: das guerras ao hiperconsumo
83
2.4.4 O paradoxo do consumo
85
2.4.5 Brasil: da luta contra a fome ao hiperconsumo
89
2.5
93
Informação
2.5.1 Informação e crise do conhecimento
93
2.5.2 A importância da comunicação
94
2.5.3
Breve histórico dos principais meios de comunicação no Brasil
96
(correios, telefone e telégrafo)
2.5.4 Sucintas notas sobre a importância do rádio
99
2.5.5 Imprensa e seu papel
100
2.5.6 Imprensa e liberdade de expressão
101
2.5.7 Os meios de comunicação são extensões do próprio homem
102
2.5.8 O direito à informação
104
2.5.9 O poder da informação
107
2.6
111
Informatização
2.6.1 Mudança do contexto sociocultural
111
2.6.2 Tempo e espaço nos mundos on-line e off-line
112
2.6.3 Informática e sigilo
115
2.7
118
Globalização
2.7.1 O processo de globalização
118
2.7.2 O sentido da globalização
119
2.7.3 Padronização e personalidade coletiva
122
2.7.4 A globalização negativa
124
2.7.5 Crise mundial
133
2.8
O mundo mudou
135
3
Conjuntura e Direito
139
3.1
As incertezas
139
3.1.1 A sociedade e o risco
139
3.1.2 O homem e o medo
143
3.2
A proteção dos interesses menos individuais
147
3.3
A noção de Constituição Penal
152
3.4
O critério do paralelismo entre a Constituição e a legislação Penal
154
3.5
O papel da política criminal
160
3.6
Revisita às questões éticas e aspirações da pós-modernidade
166
Conclusão
174
Bibliografia
189
7
Introdução
O grande desafio de viver o próprio tempo
A melhor forma de expressar o pensamento é a literatura. O escritor é um
artista que percebe, sente e absorve a realidade e tem o dom de traduzir suas
ideias em palavras.
A palavra solta nada transmite, pois é vazia e sem sentido, mas,
trabalhada por um artista, é elaborada, contextualizada e extrapola os limites da
significação, a ponto de invadir o pensamento do receptor da mensagem,
expandindo-se igualmente em múltiplas novas ideias, despertando sensações
inéditas e aguçando o imaginário.
Dessa forma são justificadas as citações reproduzidas ao longo do estudo.
Elas têm a finalidade de auxiliar na compreensão da mensagem contida no texto,
eminentemente científico.
Ao mesmo tempo, servem para amenizar a densidade do discurso jurídico,
pesado por natureza. Também, e acima de tudo, têm a função de facilitar a
transmissão e desenvolvimento de ideias e excitar a curiosidade.
Aliás, não apenas a literatura serviu como apoio para a transmissão das
ideias. Disciplinas auxiliares, como história, sociologia, psicologia, economia,
antropologia, filosofia e outras manifestações artísticas humanas, foram
recorrentes.
Isso porque os operadores do Direito enfrentam desafios que não se
encaixam em fórmulas matemáticas, e cujas consequências nem sempre são
precisas, ou melhor, quase nunca o são.
8
A abordagem científica deve se desenvolver a partir do pensamento
complexo,
com
a
finalidade
de
unificação
do
conhecimento,
e
a
multidisciplinaridade é o caminho adequado para a apreensão de ideias,
compreensão de mensagens, reflexão e desenvolvimento de soluções viáveis
para os problemas que surgem e se reinventam.
Mas abordagens multidisciplinares requerem adequada educação para a
informação. É necessário contextualizar as informações, globalizar as ideias e
construir gradativamente o conhecimento, de modo a superar a atrofia do
pensamento.
Minimizar as dificuldades para o desenvolvimento do homem e da
sociedade não é tarefa fácil, principalmente quando se atenta para o fato de que
diversos eventos estão em curso simultaneamente na Terra.
Decisões
políticas,
fenômenos
naturais
e
climáticos,
progressos
tecnológicos, enfim, inumeráveis eventos influem na maneira de viver do
homem, ora representando avanços em termos de desenvolvimento (individual e
social), ora ensejando a total desorientação.
A crença na possibilidade de se desenvolver estudos fragmentários e
isolados já perdeu definitivamente sua força.
Não obstante, no âmbito deste estudo, quatro fenômenos mereceram
destaque, pois contribuíram diretamente para uma verdadeira mudança de
perspectiva nos caminhos da humanidade: a informação, o consumo, a
informatização e a globalização.
9
A seleção e a divisão dos fenômenos citados são eminentemente
didáticas, pois é justamente da aderência e combinação de todos, e deles com
outros, que resulta o panorama da pós-modernidade.
Neste novel panorama, o remoto cenário de falta de acesso à informação
foi superado pela explosão informacional. Com isso, ficou evidente a
incapacidade humana de lidar com o excesso, pois informação farta, disponível
e acessível só é útil para a construção do conhecimento quando os sujeitos
dominam plenamente os instrumentos do conhecimento.
Além de farta, a informação foi transformada em produtos expostos,
verdadeiros bens de consumo oferecidos às diferentes classes culturais.
Essa hipertrofia do mercado de consumo, potencializada pelos avanços da
tecnologia, ensejou mudanças radicais nas representações e na maneira de
compreender o mundo.
A globalização, por sua vez, afetou não só a geopolítica internacional,
mas também os processos de apropriação do conhecimento e da construção das
significações.
Todos esses fenômenos insurgiram quase que concomitantemente,
revelando verdadeiras simbioses incompreensíveis, que se disseminaram no
espaço planetário nas últimas décadas.
Ao analisar a gama de processos simultâneos, muitas vezes, o foco do
estudo é direcionado ao fenômeno em si mesmo. Esse recurso pode ser válido,
por exemplo, em algumas investigações históricas, no entanto, constitui erro
insuperável sob o ponto de vista jurídico.
10
Isso porque, no Direito, as abordagens devem incluir sempre o ser
humano. Simplesmente porque ele é o centro e a razão de todo o sistema
jurídico.
Portanto, neste campo, o desenvolvimento dos estudos deve compreender,
pelo menos, a análise das consequências humanas dos acontecimentos.
O fundamento reside na evidente constatação de que o ser humano não
apenas sobrevive, também convive. Não apenas existe, mas evolui. Não só
absorve informações, mas trabalha mentalmente dados recebidos, elabora novas
ideias, cria conexões, reflete e produz conhecimento. Ainda sente, sofre, pensa e
ama. Em suma, é um ser complexo.
O estudo do Direito exige, ainda, prévio conhecimento sobre experiências
e comportamentos humanos do passado, que são influenciados por infinitos
aspectos e estudados pelas mais diversas áreas do conhecimento.
Imprescindível a contextualização, pois os acontecimentos devem ser
distribuídos por tempos e lugares, sem o que não têm significação, nem valor.
Cada fato, se não é imediatamente apresentado, é modificado pelos que o
precedem e pela natureza dos homens, costumes e clima.
É essencialmente a história que fornece o panorama do passado. O
historiador conhece tudo o que foi escrito sobre determinada época e tem acesso
ao que já foi construído e desenvolvido ao longo dos anos sobre seu objeto de
estudo.
Ele capta a informação de segunda ou terceira mão, por intermédio de
fontes da época ou obras de historiadores posteriores e é capaz de expressar
análises críticas, opiniões e preceitos.
11
Mas o certo é que ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de
vida, como pode e deve fazer em relação a uma época pretérita. Isso porque a
pessoa que vive está na posição de observador protagonista. É um viajante de
olhos abertos.
Os fatos de hoje não nos são transmitidos de maneira livre, já que as
pessoas que os expõem são as que podem ou querem se manifestar livremente,
sem o peso da responsabilidade por grandes questões.
Logo, durante a própria vida, o indivíduo tem condições de entender o que
se passa porque vê e ouve. Mas não está apto a analisar globalmente os
acontecimentos ou desenvolver conclusões absolutamente seguras e imutáveis
que exigem amadurecimento de ideias.
Um sistema jurídico perfeito e ideal seria possível, não fosse elaborado
pelos próprios protagonistas da história, ou seja, as gerações atuais teriam
condições de elaborar sistemas perfeitos para as do passado, e as do futuro para
as do presente, partindo de análises livres e responsáveis, seguidas de debates
conscientes e maduros.
Impossível a perfeição.
Dessa forma, considerando o grande desafio de compreender e viver o
próprio tempo, é preciso perceber o Direito não como um conjunto de regras
perfeito e ideal, mas como um ordenamento que está em permanente processo
de construção e desenvolvimento e cuja finalidade de preservar a existência
humana digna nunca pode ser perdida.
Logo, o ser humano é merecedor de proteção jurídica efetiva e adequada.
12
Esse é o ponto de partida do estudo.
Inicialmente foram abordados aspectos relativos ao panorama jurídico
atual, quais sejam: desenvolvimento das teorias do Direito; importância da
Constituição Federal no sistema jurídico Brasileiro; dignidade humana como
fundamento da República Federativa do Brasil e sua influência na interpretação
e aplicação dos direitos e garantias fundamentais.
Tudo com a finalidade de delinear as bases da proteção jurídico-penal e
apontar o caminho para a efetiva e precisa aplicação do Direito Penal e
Processual Penal.
Em seguida, o estudo do homem.
A partir de análises multidisciplinares, são abordados os fenômenos que
influenciam seu modo de ser e viver na pós-modernidade (consumo,
informação, informatização e globalização) e o grande desafio de compreender e
viver o próprio tempo.
É desafio, pois o homem de hoje corteja o passado sem conhecê-lo e
projeta o futuro com os olhos do capitalismo (um futuro próximo e consumista).
Falta tempo para viver o momento, já que, quando o futuro se torna
presente, a magia do desejo, agora realizado, é imediatamente substituída por
novos objetos de cobiça.
Nesse ponto, a multidisciplinaridade é o alicerce que fundamenta a
necessidade do Direito Penal e Processual Penal, recursos indispensáveis à
preservação do homem e da sociedade.
13
Na tentativa de superar dificuldades atuais relacionadas à efetividade e
adequação do sistema jurídico, emerge uma tendência de retomada das questões
éticas e morais no campo do Direito.
Em suma, este estudo tem por escopo delinear o panorama jurídico e
apresentar subsídios extrajurídicos sólidos e aptos a fundamentar a legitimidade
do Direito Penal e Processual Penal na pós-modernidade.
Sem olvidar, todavia, que a proteção jurídico-penal há que ser restrita e
exata, de modo a rechaçar tanto o descrédito da ineficácia do Direito quanto a
injustiça do excesso.
Esse é o eterno desafio do homem. Seguramente, o mais perturbador da
pós-modernidade.
14
1 Panorama jurídico
1.1 A crise da cultura jurídica
(...) só há Direito quando a cultura se sobrepõe à técnica, a arte à
ciência, a história à dogmática, a Justiça à lei, a pessoa à instituição e
a sensibilidade crítica à vantagem econômica1.
A pós-modernidade assinala uma grande mudança de época na qual
muitos dos valores que eram considerados intocáveis cedem diante da realidade.
Grandes questões do passado, já discutidas e resolvidas outrora,
despertam para ocupar novamente o centro dos debates, provando que, ou não
foram tocadas em seu âmago, ou merecem uma reapreciação para além da mera
retomada de práticas, institutos e superstições do passado.
Observam-se, na cultura jurídica, os reflexos dessa transformação como
uma espécie de desorientação generalizada e, em certos momentos, uma
verdadeira irracionalidade humana.
Os problemas exigem respostas imediatas, portanto, o indispensável
processo de construção das bases do saber jurídico é paulatinamente substituído
por análises superficiais que dispensam conhecimentos sobre seus próprios
fundamentos.
1
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p.41. 15
Conjuntos de informações desconectadas são analisados de maneira
uniforme. Os problemas, muitas vezes, são solucionados com a adoção de
teorias importadas de realidades completamente distintas ou até incompatíveis.
O positivismo legalista do Estado corroborou para o atual cenário, pois a
crença na uniformização exclusivamente por meio da lei aboliu a capacidade de
reflexão crítica e a aceitação da pluralidade de expressões.
Dessa forma, a experiência jurídica se distancia cada vez mais do sentido
de justiça e do bom senso para se submeter à economia de mercado e às escolhas
dos governantes.
Eduardo Vera-Cruz Pinto2 observa que:
O relativismo moral, o materialismo mercantilista, a recepção das
teses psicológicas que normalizam o excesso e aceitam a violência, a
legalização da supremacia dos fortes, o simplismo demagógico do
consenso político reconduziram o jurídico a uma expressão monista
totalitária formalizada através de leis que, ignorando o Direito, se
afastam da Justiça.
Portanto, para evitar a supressão do Direito e a consequente violência
social, situação de caos e barbárie, com uso privado da força e exercício
desmedido da autotutela, há que se resgatar o seu valor axiológico e pedagógico.
Reafirmar a centralidade da pessoa humana na construção do Direito e
compreender a imponência dessa condição são os pressupostos indispensáveis
para a retomada do processo formador de uma verdadeira cultura jurídica
consistente.
2
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p.43. 16
Então, chega-se ao desafio dos dias atuais: garantir a harmonia social
com o desenvolvimento de mecanismos adequados, justos, válidos e efetivos
para a proteção da pessoa humana, de acordo com a realidade factual concreta.
Realmente, não se trata de uma tarefa fácil, diante do atual ambiente
cultural de crise moral das sociedades.
Primeiro porque simplesmente aceitar as soluções legalistas, enunciadas
em infinidades de textos, elaborados e aprovados pelo poder político, é uma
maneira de maquiar a complexidade dos fatos.
Segundo, porque a experiência histórica passa por um processo de
desvalorização no qual a busca pelo novo fomenta uma espécie de inspiração
jurídica criativa que se multiplica entre os defensores de institutos virtuais.
Terceiro, porque sem referência histórica não há perspectiva para o futuro
e a constatação da necessidade de mudança não vem acompanhada de projetos
robustos e viáveis para a substituição dos padrões existentes.
A pessoa humana é a causa e o limite do Direito e a possibilidade de
justiça pelo Direito depende da expressão social da moral individual, por
remissão aos valores do modelo comum seguido.
Dessa forma, constata-se que a cultura jurídica de hoje é reflexo de uma
crise generalizada, tanto do modelo político de criação e aplicação do Direito
quanto do próprio senso moral da sociedade.
Então, o atual momento histórico é propício para a retomada de questões
fundamentais, relacionadas não só à compreensão da dimensão e do papel da
17
cultura jurídica, mas também à função primordial do Direito como forma de
garantir o pleno desenvolvimento humano.
A realização da justiça em cada caso requer preparo e compromisso com
os valores que instituem o jurídico.
Portanto, a retomada da experiência histórica e dos fundamentos da moral
e da ética no Direito demonstra ser um caminho possível e adequado para a
garantia da existência humana em um ambiente menos conflituoso, de justiça e
quiçá de solidariedade.
1.2 Conhecer o passado para construir o futuro
Numa época em que nenhuma fronteira territorial separa os que
procuram a Justiça pelo Direito e aqueles que o instrumentalizam para
criar e manter a injustiça; e em que se destruíram os critérios que
sustentavam esta diferença em relativizações sucessivas do bem e do
mal, o Direito Romano não pode continuar a ser mero ícone do
passado do Direito, mas a semente de um retorno ao caminho do
direito justo. No Direito Romano o futuro faz-se presente pela lição
do passado3.
Conforme já ressaltado, a experiência jurídica histórica é essencial para a
construção do Direito atual.
Conhecer a realidade passada permite analisar situações já vividas, de
modo a evitar ou minimizar as consequências dos erros cometidos.
3
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p. 12. 18
Enganam-se os que pregam que as transformações na sociedade de hoje
não encontram referência histórica. Certamente desconhecem a herança cultural
de tempos remotos, ou não foram educados adequadamente para a compreensão
e desenvolvimento dos saberes essenciais à vocação de jurista.
Isso não quer dizer que seja possível, simplesmente, fazer reviver as
instituições do passado. As leis da sociedade humana não são as mesmas leis da
antiguidade, a própria inteligência humana evolui e se modifica.
O conhecimento do passado revela o que pensavam os homens antes da
nossa existência. Nesse sentido, Fustel de Coulanges4 observa:
Felizmente, jamais o passado morre completamente para o homem. O
homem pode bem esquecê-lo, mas ele o guarda sempre consigo,
porque o seu estado, tal como se apresenta em cada época, é produto e
resumo de todas as épocas anteriores. Se o homem descer ao fundo de
sua alma, nela poderá encontrar e distinguir essas diferentes épocas,
segundo o que cada uma delas nele deixou.
O marco histórico mais importante em termos de desenvolvimento
humano na esfera do Direito remonta à experiência jurídica romana, baseada no
método jurisprudencial de criação jurídica.
Tamanha sua relevância, o Direito Romano conquistou pacificamente os
povos europeus, não carecendo de imposição por qualquer autoridade política5.
4
COULANGES, Numa Denis Fustel de. A Cidade Antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. 2. ed. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p. 17.
5
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p. 77. 19
A propósito, esse resgate histórico faz recordar uma das questões mais
relevantes da atualidade, qual seja, o estabelecimento das bases para uma
Europa sem fronteiras jurídicas.
Eduardo Vera-Cruz Pinto6 rechaça a ideia de unificação estrutural e
legislativa na Europa e propõe, com base na experiência romana, a necessidade
de um jurista comum pela partilha de valores, princípios, conceitos,
mentalidade, sensibilidade, linguagem e métodos:
No espaço político comum europeu tem de existir, para que ele
subsista, um jurista capaz de criar ius commune e de interpretar as
normas vigentes na pluralidade que caracteriza a Europa, numa
harmonização sem uniformização, para fazer jus à reductio ad unum
romana7.
O método jurisprudencial pleno do Direito Romano seria capaz de superar
a rigidez das soluções jurídicas que simplesmente reproduzem, com apuro
técnico, a textualidade de leis.
Compreender o espírito histórico do Direito (nesse caso, do Direito
Romano) pode ser um bom caminho para enfrentar a grave crise de
credibilidade na Justiça e na realização do justo8.
6
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p. 79. 7
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p. 79. 8
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009. 20
1.3 As mudanças de época
Tais são os preceitos do direito: viver honestamente (honeste vivere),
não ofender ninguém (neminem laedere), dar a cada um o que lhe
pertence (suum cuique tribuere)9.
Sabe-se que o Direito Romano exerceu e ainda exerce grande influência
na história dos povos civilizados. Eduardo Vera-Cruz Pinto10 assevera que
“nunca o passado de Roma esteve tão próximo do nosso presente”.
Para compreender a profundidade da afirmação, necessários alguns
comentários sobre as mudanças de época.
Arthur Kaufmann11 identifica três momentos históricos que, assim como
nosso tempo, se caracterizaram por mudanças causadoras de abandono,
renúncia, reação e angústia, diante da retomada dos fundamentos da própria
existência humana.
O primeiro momento foi a mudança da Idade Arcaica para a
Antiguidade, possivelmente com Heráclito. Em seguida, da Antiguidade para a
Idade Média, provavelmente com Santo Agostinho. Por fim, da Idade Média
para a Idade Moderna, com Pascal.
Agora, a mudança da Idade Moderna para uma quarta idade, ainda
inominada.
DIGESTO 1.1.10.1 Ulpiano. PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa. Método. História.
Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais: Princípia Editora, 2009, p. 165. 11
KAUFMANN, Arthur. La Filosofía del Derecho en la Posmodernidad. 3. ed. Trad. Luis Villar
Borda. Bogotá: Editorial Temis S.A., 2007, p. 3.
9
10
21
A estrutura Moderna passa por fase de redefinição, na qual lhe são
atribuídas características diferentes. Por isso, o atual momento é conhecido
como “pós-modernidade”. Mas ainda não foi possível definir os contornos desse
novo modelo.
A incerteza e a indeterminação se multiplicam no âmbito das grandes
questões ainda não resolvidas pela humanidade, como por exemplo, o sentido da
liberdade e a relação entre Direito e Justiça.
Conforme será abordado no próximo tópico, o fenômeno jurídico é, em
geral, analisado de maneira fragmentada ou parcial. Em certos momentos, a
teoria jurídica e a filosofia do direito são havidos como totalmente
inconciliáveis.
Historicamente, a partir do século XIX, no campo da Teoria Geral do
Direito, a órbita formal se sobrepõe ao aspecto material, de modo que o Direito
não se comunique com outras tendências, em especial com a hermenêutica. As
análises passaram a ser estritamente conceituais e estruturais.
Essa visão material não deve ser rechaçada de plano, por abarcar apenas
parcialmente o fenômeno analisado, pois prepara o fundamento conceitual do
conhecimento.
No entanto, ela não realiza a totalidade do conhecimento jurídico.
Uma compreensão pluralista exige a concorrência da ciência e da filosofia
para a formação de uma integralidade fundada na razão.
Esses aspectos serão mais bem definidos nos próximos tópicos.
22
1.4 Teorias sobre a norma jurídica
O conceito de Direito sempre foi um tanto quanto polêmico e
controvertido.
Não obstante, todo trabalho científico que tenha como finalidade analisar
o fenômeno jurídico, sob qualquer perspectiva, deve partir do seu embasamento
teórico, desenvolvido no âmbito da Teoria Geral do Direito.
Conforme já ressaltado, na tradição romana, o conceito de Direito é
diretamente relacionado à ideia de justiça material. O jurista atua em prol da
justiça. A dogmática e a metodologia são apenas meios a serviço de um fim: a
realização da justiça em cada caso.
Contudo, o teor semântico dessa correspondência não é unânime,
principalmente quando contextualizado historicamente, já que, sob outra
perspectiva, desenvolvida a partir do século XIX, dificultaria o desenvolvimento
de uma base concreta, apta a respaldar o trabalho jurídico, e deixa de atribuir
essência prática ao Direito.
Portanto, nessa perspectiva jurídica formal, o epicentro da ciência jurídica
é deslocado da ideia de realização da justiça, para a formulação concreta da
norma jurídica12.
Argumenta-se que, dessa forma, o trabalho se torna mais efetivo, já que a
vida humana se desenvolve sob uma infinidade de normas.
12
Neste ponto, é importante observar que o objetivo destas primeiras observações é de apresentar, de
forma resumida, algumas das concepções desenvolvidas sobre a norma jurídica.
23
Inumeráveis conjuntos ordenados de regras de condutas influenciam o
comportamento dos indivíduos e dos grupos (preceitos religiosos, regras
morais, costumeiras, éticas, de boa educação etc.).
As regras de conduta permeiam a existência individual e social, e a
experiência jurídica nada mais é do que uma parte da experiência humana.
Sem a pretensão de minudenciar excessivamente, é possível identificar,
grosso modo, duas orientações relacionadas à norma jurídica. A primeira
engloba as concepções positivistas do Direito, e a segunda refere-se às
concepções não positivistas.
O elemento comum mais evidente das teorias positivistas é a separação
entre Direito e moral13.
No entanto, isso não significa impossibilidade de encontro entre os dois
elementos, indica apenas que ambos devem ser separados e as definições do
conceito e validade do direito devem ser isentas de moral.
De acordo com a perspectiva positivista, os juristas não têm que julgar a
ordem jurídica de acordo com os grandes valores éticos, porque não é uma
tarefa científica, e sim política14.
Para melhor compreensão do ponto de vista positivista, é pertinente citar a
perspectiva de Norberto Bobbio15, que adota o ponto de vista normativo para o
estudo do Direito:
13
Para o positivismo jurídico, o direito, como sistema normativo, existe independentemente da moral,
da realidade econômica ou das formas de organização política.
14
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 353.
15
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed. rev. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariana
Bueno Sudatti. Bauru: Edipro, 2008, p. 23.
24
Com isto, entendo que o melhor modo para aproximar-se da
experiência jurídica e apreender seus traços característicos é
considerar o direito como um conjunto de normas, ou regras de
conduta. Comecemos então por uma afirmação geral do gênero: a
experiência jurídica é uma experiência normativa.
Observa Norberto Bobbio que uma relação só pode ser considerada
jurídica quando regulada por uma norma jurídica, ou seja, é a norma que
qualifica a relação e a transforma em relação jurídica16.
Em suma, relação jurídica é aquela que, qualquer que seja o seu conteúdo,
é tomada em consideração por uma norma jurídica, é subsumida por um
ordenamento jurídico, é qualificada por uma ou mais normas pertencentes a um
ordenamento jurídico17.
Portanto, de uma maneira singela, afirma-se que, para o positivismo, a lei
corresponde exclusivamente aos caracteres sobre o papel dos textos legais18.
Friedrich Müller19 ressalta que o positivismo que caracteriza o universo
jurídico dos países desenvolvidos desde meados do século XIX confunde a
norma jurídica com o texto da norma no Código legal.
Os representantes mais importantes do positivismo jurídico orientado para
a normatização no século XX foram Hans Kelsen e Herbert Hart20.
16
Norberto Bobbio sustenta que as normas jurídicas pertencem à categoria geral de proposições
prescritivas. A função da prescrição é de influir, modificar o comportamento alheio e a prova de sua
aceitação é a execução (um comportamento prático, ainda que se faça apenas uma primeira
aproximação).
17
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed. rev. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariana
Bueno Sudatti. Bauru: Edipro, 2008, p. 43.
18
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes.
2. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 10.
19
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes.
2. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 10.
25
Hans Kelsen21 desenvolve a Teoria Pura do Direito, uma teoria do Direito
positivo que teve como princípio metodológico fundamental a pretensão de
libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos.
Kelsen define o Direito como um ordenamento normativo coativo, cuja
validade baseia-se numa norma fundamental pressuposta.
Herbert Hart, por sua vez, compreende o Direito como um sistema de
regras que pode ser identificado por meio de uma regra de recognição, cuja
função corresponde à da norma fundamental de Kelsen, mas com status
diferente.
A essência da ideia positivista recebe incisivas críticas, pois a
relativização moral e axiológica causaria o esvaziamento do Direito.
Argumenta-se que o grande equívoco do positivismo é identificar o
Direito com a vontade do Estado, com o próprio Estado ou mesmo com as
normas por ele produzidas e integradas num todo ordenado e coerente, que é
designado “sistema jurídico”.
O excessivo apego à ideia de segurança baseada em leis feitas por poderes
políticos eleitos conduziria, portanto, à legitimação de situações de
arbitrariedade da lei, ofensas da pessoa humana pelo Estado e contradição entre
justiça e segurança.
20
ALEXI, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 22/23.
21
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
26
Concepções não positivistas surgem na tentativa de superar as teorias
positivistas. Em geral, seus partidários acreditam na existência de conexões
conceitualmente necessárias entre Direito e moral, e na existência de razões
normativas para que as definições de Direito e de validade do Direito incluam
elementos morais.
Adverte-se, contudo, que as orientações não positivistas alcançam desde
as teorias de antipositivismo extremado até teorias pós-positivistas do Direito.
Robert Alexy22 propõe uma definição do conceito de Direito que reúne, de
forma sistemática, os elementos da legalidade conforme o ordenamento, da
eficácia social e da correção material.
Na tripartição dos elementos, é possível identificar que o positivismo
também compartilha dos dois primeiros (com inúmeras variantes). Entretanto, a
correção quanto ao conteúdo, que se refere à inclusão de elementos morais no
conceito de Direito, é o componente diferenciador.
Robert Alexy23 salienta que o Direito possui uma dimensão ideal
necessária, que é a pretensão à correção. Apresenta a seguinte definição de
Direito:
O direito é um sistema normativo que formula uma pretensão à
correção, consiste na totalidade das normas que integram uma
constituição socialmente eficaz em termos globais e que não são
extremamente injustas, bem como na totalidade das normas
estabelecidas em conformidade com essa constituição e que
apresentam um mínimo de eficácia social ou de possibilidade de
22
ALEXI, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
23
ALEXI, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 151.
27
eficácia e não são extremamente injustas, e ao qual pertencem os
princípios e outros argumentos normativos, nos quais se apoia e/ou
deve se apoiar o procedimento de aplicação do direito para satisfazer a
pretensão à correção.
Nesse sentido, os sistemas normativos que não formulam a pretensão à
correção não seriam sistemas jurídicos. Aqueles que formulam, mas não a
satisfazem, seriam jurídicos, mas deficientes. Dessa forma, o elemento da
correção é o diferencial que sustenta a teoria da vinculação entre Direito e
moral.
Também no campo das teorias não positivistas do Direito, encontra-se a
teoria pós-positivista, que foi concebida desde meados dos anos 60. Ela não se
contrapõe diretamente ao positivismo, mas o desenvolve.
O texto da norma no Código legal seria apenas um dado de entrada do
processo de concretização.
Direito e Moral não são considerados idênticos, mas também não são
completamente distintos. Há um intenso intercâmbio na região de tangência,
embora se deva reconhecer a existência de áreas de repulsão.
A teoria estruturante de Friedrich Müller é a mais expressiva
representação do pós-positivismo.
Parte da perspectiva de que o trabalho jurídico é um processo no qual o
ponto de partida é representado pelos enunciados das codificações (textos de
normas), mas não se restringe a eles.
28
É com o caso concreto que nasce o processo, de modo que o caso da
decisão é coconstitutivo e o produto final desse processo é a produção da norma
jurídica, contida na decisão.
Friedrich Müller24 observa:
A norma jurídica criada no caso está estruturada segundo “programa
da norma” e “âmbito da norma”; ela é, portanto, um conceito
composto que torna o problema tradicionalmente irresolvido de “ser e
dever ser” operacional e trabalhável. Com isso os dualismos irrealistas
do passado do direito, tais como “norma/caso”, “direito/realidade”
podem ser aposentados, assim como a ilusão da “aplicação” do direito
como subsunção ou silogismo ou como a construção linguisticamente
não realizável de um “limite do teor literal” definível, coisificado na
linguagem.
Nesse sentido, o Direito e a realidade atuam como elementos da ação
jurídica, congregados no trabalho jurídico efetivo de caso para caso.
A teoria de Friedrich Müller faz parte do movimento pós-moderno e parte
da constatação de que a norma e a realidade não devem ser tratadas
separadamente. As normas jurídicas não existem simplesmente prontas, não
estão disponíveis para a aplicação técnica, pois a estrutura da matéria e do
problema faz parte dos elementos da sentença jurídica.
Portanto, para a teoria estruturante, a norma jurídica representa a ideiadiretriz materialmente caracterizada, normativamente estabilizadora. A norma
decisória judicial seria a concretização da norma jurídica.
24
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes.
2. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 11.
29
De fato, é possível verificar que a polêmica em relação à compreensão do
fenômeno jurídico permanece atual. As perspectivas teóricas da efetiva
dinâmica do Direito continuam a enriquecer o desenvolvimento da ciência.
E, mais do que simples teorias sobre a norma jurídica, cada estrutura
projeta consequências políticas, econômicas e também no âmbito da aplicação
prática do Direito.
A influência do positivismo jurídico, por exemplo, foi decisiva para o
avanço internacional do capitalismo.
Isso porque, com o exacerbado apego à certeza, segurança jurídica e
previsibilidade das decisões judiciais, a atividade empresarial se expandiu. Os
grandes princípios morais da ideologia liberal-capitalista sempre foram a ordem
e a segurança das relações privadas, sobretudo as de conteúdo econômico25.
Para tanto, necessário um sistema jurídico estável e com previsibilidade
de aplicação efetiva das normas.
O positivismo ajustou perfeitamente essa
configuração, já que a norma jurídica que existe e funciona é necessariamente
justa e dispensa, completamente, o juízo ético.
Mas a maior crítica dirigida ao positivismo jurídico não se relaciona à
expansão do capitalismo, mas sim à contribuição para o surgimento do Estado
totalitário, já que admitiu a existência e validade jurídica de Constituição com
qualquer conteúdo.
25
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 361/363.
30
Nesse sentido, a Constituição deixou de ser a proteção dos cidadãos
contra o abuso de poder, reduzindo-se à regulação do funcionamento dos órgãos
estatais.
Mesmo os defensores das teorias positivistas reconhecem que a
complexidade do mundo jurídico (e também das relações fáticas) afeta as
tentativas de identificação de características que possam distinguir as
prescrições jurídicas de outros tipos de prescrição (principalmente as morais).
Soluções puramente formais para distinguir as normas jurídicas das
morais são, em geral, fracas e insuficientes para estabelecer, com clareza, qual
seria o elemento diferencial.
Norberto Bobbio26 chega a afirmar que o mundo normativo é tão vasto
que não haveria um tipo de prescrição relevante em um ordenamento normativo
jurídico que não se encontre em algum outro sistema normativo.
Na prática, a atual mudança de época revela situações inéditas e
indiscutivelmente relevantes, a ponto de retomar com vigor as discussões sobre
teoria da norma jurídica.
Tanto os positivistas, com o excessivo apego ao legalismo estatal, quanto
os realistas, enquanto defensores do direito livre e do uso alternativo do Direito,
não apresentam soluções adequadas para a efetivação do Direito e realização da
justiça material.
26
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed. rev. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariana
Bueno Sudatti. Bauru: Edipro, 2008, p.147.
31
Portanto, as visões extremadas e unilaterais são reavaliadas com base na
constatação de que a produção jurídico-científica atual converge sobre a
indispensabilidade do pluralismo entre Direito e Justiça, ciência e filosofia.
1.5 A Codificação no sistema jurídico
A ideia de Codificação já não é uma novidade, desde a Lei das XII
Tábuas. No entanto, o marco histórico moderno data de 1804. Trata-se do
Código Civil de Napoleão.
Mas, no início do século XX, ganham força, no âmbito da teoria do
direito, as discussões relacionadas à codificação no sistema jurídico. Na essência
dos debates estavam não só a necessidade/utilidade da codificação, mas também
a relação que deveria ser estabelecida entre a norma legal e a concretização e
aplicação do Direito.
Os críticos da codificação argumentam, em suma, que um Código
significa o efeito da decadência das luzes e da ciência do Direito. Por outro lado,
seus defensores acreditam que implica uma ideia de adiantamento, de progresso
nos povos, ou seja, a ordem que sucede à confusão, a civilização à barbárie.
Candido Mendes de Almeida27, adepto da codificação, argumenta:
Acreditamos tambem, que um Codigo, em qualquer ramo de
Legislação, importa a fixação de uma epocha, em que se mostra a
alteração que tem havido nas ideias, nos costumes e no modo de viver
27
ALMEIDA, Candido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal:
Recompiladas por Mandado d’El-Rei D. Filipe I. 1o volume desta edição fac-similar. 14. ed. Brasília:
Edições do Senado Federal, 2004, p.V.
32
de qualquer Nação, de que a lei codificada he a melhor e a mais
assignalada expressão (sic).
É certo que a ação e o comportamento do juiz estão condicionados à
norma codificada, que ainda desempenha papel dominante em relação à
sentença28.
Contudo, as funções que as codificações apresentam variam de acordo
com seu grau de coação.
Inicialmente, foi propagada a ideologia da subsunção, baseada no ideal de
segurança e certeza do Direito e para a qual a ação do juiz se resumiria a
transportar o conteúdo da norma codificada, sem adição nem diminuição, para o
caso a ser decidido.
Essa ideia de mera subsunção, simplista, já foi há muito superada, diante
do reconhecimento de que o juiz atua como criador do Direito. Nesse sentido,
Arthur Kaufmann29 se manifesta:
(...) o processo de criação jurídica mostra uma estrutura essencial mais
complicada, que contém também momentos produtivos, dialéticos,
possivelmente intuitivos, em todo caso, não exclusivamente lógicoformais, o juiz nunca infere a decisão só da lei, mas chega ao caso
sempre com um determinado preconceito, estabelecido principalmente
pela tradição e pela situação (...) – tradução nossa.
28
HASSEMER, Winfried. O sistema do Direito e a codificação: a vinculação do juiz à lei. Revista
Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítico judiciária. Ano XXXIV - no
112. Porto Alegre: Revista Jurídica Ltda, mar/abr 1986, p. 9/34.
29
KAUFMANN, Arthur. La Filosofía del Derecho en la Posmodernidad. 3. ed. Trad. Luis Villar
Borda. Bogotá: Editorial Temis S.A., 2007, p. 28.
33
Contudo, há que se reconhecer que a codificação de grandes áreas do
Direito significou a possibilidade de uma jurisprudência “certa e segura”, apta a
proteger os direitos dos cidadãos. Além disso, foi possível sistematizar o
conhecimento jurídico, facilitando o acesso, a fixação e caracterização de seus
contornos.
Também favoreceu e, de certa forma, obrigou a demonstração da correção
da sentença. Há que se demonstrar a derivação da norma codificada, pois ela
concentra os princípios norteadores acatados pela sociedade em geral.
Com a formulação de princípios de Direito embutidos em codificações,
cria-se a condição fundamental para a positivação do Direito.
A vantagem apontada na codificação é a modificação da estrutura do
sistema jurídico fundada no direito natural estático e não variável. Houve uma
evolução para um direito legislado, em princípio variável, pois decorrente de
uma legislatura e de decisões.
A ideia de sistema jurídico codificado não foi superada, pois garante a
necessária vinculação do juiz à lei, de modo que a liberdade criadora é
restringida.
Portanto, as recentes tendências de desenvolvimento de novas formas de
compreender e aplicar o Direito pressupõem a codificação. Mas não se resumem
à lei formal.
Os contornos da vinculação no sistema jurídico e os limites da
interpretação ou criação, para além do texto da norma no Código legal, são os
aspectos que diferenciam as recentes teorias não positivistas.
34
1.6 As acepções de Constituição
É cediço que vocábulo constituição apresenta infinitas acepções na
linguagem.
Partindo da acepção mais comum, até intuitiva, Constituição tem o
sentido de composição, formação, organização para formar uma unidade.
Sob uma perspectiva sociológica, é possível desenvolver esse conceito, já
que todo povo tem uma constituição de fato, pois é formado por elementos de
várias espécies, e tais elementos se acham organizados de certa forma,
compondo uma unidade.
Cada povo estabelece um conjunto de princípios e normas que o
diferencia dos demais, na medida em que reflete seus valores, suas necessidades
fundamentais e suas possibilidades.
A Constituição dos Estados assumiu admirável importância na vida dos
povos a partir do final do século XVIII, quando os Estados Unidos da América
adotaram uma Constituição escrita, que foi a primeira do mundo a ser colocada
em prática30.
Seus criadores pretendiam consagrar num instrumento jurídico os
objetivos políticos.
A propósito, no decorrer da história, muitas vezes o sentido político da
Constituição prevaleceu sobre o jurídico. Nessas épocas, a Constituição
representou um manifesto político formal e solene, com a definição do regime
30
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 22/23.
35
político, organização do poder público e fixação das regras de participação do
povo no exercício do poder político.
Segundo Dalmo de Abreu Dallari31, Constituição em sentido jurídico
surge na Inglaterra, durante a segunda metade da Idade Média, quando, na
ocorrência de conflitos entre poderosos, se alega que os costumes antigos
deveriam ter força de lei, impedindo decisões em sentido contrário.
O conhecimento da origem histórica deixa claro que a constituição de fato
está nos fundamentos da Constituição em sentido jurídico.
E a Constituição em sentido jurídico se fortaleceu durante o século XX,
principalmente após a Segunda Guerra Mundial, deflagrada por governos
ditatoriais que propagavam o desenvolvimento de programas visando a correção
de graves desajustes sociais, sob o argumento de melhor eficiência dos governos
com o fim das barreiras constitucionais.
Contudo, depois de assumirem o poder, ampliaram a dominação e se
impuseram como ditaduras.
Essa triste passagem na história da humanidade impôs o desenvolvimento
de um novo constitucionalismo, inspirado na noção de Constituição como norma
jurídica superior, dotada de máxima eficácia jurídica e com o reconhecimento da
natureza jurídica de todos os princípios e normas nela contidas.
Vejamos, a seguir, alguns aspectos relacionados ao significado da
Constituição nas relações políticas e jurídicas.
31
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 29.
36
1.7 Constituição como limite
A norma jurídica, em geral, é pensada e elaborada dentro de um contexto
fático momentâneo e de acordo com o tempo e o espaço. Daí o seu caráter
histórico.
A Constituição de uma comunidade política concreta, seu conteúdo, a
singularidade de suas normas e seus problemas hão de ser compreendidos de
uma perspectiva histórica agregada a uma justificação e configuração teórica32.
Por ser produzida pelo homem e para o homem, inúmeros aspectos
extrajurídicos influenciam no processo de criação, de modo que as tensões do
momento, os fenômenos econômicos, as manifestações sociais e outros
acontecimentos relevantes determinam o movimento pendular de primazia de
permissões ou proibições33.
No entanto, atualmente não se pode perder de vista que tanto os que
elaboram as leis quanto aqueles que as interpretam e aplicam têm a Constituição
Federal como ponto de partida34, parâmetro e limite35.
Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior36 advertem que
a palavra Constituição apresenta sentido equívoco, mas a definem como:
32
HESSE, Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 2.
Sempre de acordo com a forma de Estado, forma de governo e outras regras referentes ao exercício do
poder.
34
Apenas para mencionar, adverte-se, contudo, que esta afirmação é válida no âmbito do
constitucionalismo inspirado na noção de Constituição como norma jurídica superior.
35
Dalmo de Abreu Dallari ressalta que a Constituição é a norma jurídica superior, obrigatória para todos
e de aplicação imediata (DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade
média ao século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 316).
36
ARAÚJO, Luiz Alberto David e JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional.
12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 3.
33
37
(...) a organização sistemática dos elementos constitutivos do Estado,
através da qual se definem as formas e a estrutura deste, o sistema de
governo, a divisão e o funcionamento dos poderes, o modelo
econômico e os direitos, deveres e garantias fundamentais, sendo que
qualquer outra matéria que for agregada a ela será considerada
formalmente constitucional.
Para José Afonso da Silva37, a Constituição do Estado, considerada sua lei
fundamental, seria a organização dos seus elementos essenciais:
Um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a
forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o
exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de
sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas
garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que
organiza os elementos constitutivos do Estado.
A Constituição “é a um só tempo o fundamento de validade de todas as
leis e a resultante jurídica do equilíbrio das forças políticas existentes na
sociedade”38.
Portanto, ainda que o caráter jurídico seja atualmente predominante, os
aspectos políticos também integram o conceito de Constituição.
É precária, nos dias de hoje, a crença segundo a qual a elaboração,
interpretação e aplicação da norma jurídica infraconstitucional possa ser
fundamentada apenas e exclusivamente em aspectos sociológicos ou filosóficos,
quando completamente desconectados da Lei Magna.
37
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 38.
38
GRINOVER, Ada Pellegrini in CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação
Constitucional do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 11.
38
Tais aspectos (sociológicos ou filosóficos) não são desprezados. Eles
determinam, pelo menos, o sentido, a orientação da interpretação. Também
atuam como elo entre a realidade da vida e a generalidade e abstração da norma,
conferindo harmonia e legitimidade ao sistema jurídico.
Essas considerações iniciais são fundamentais quando se coteja a ordem
Constitucional vigente no Brasil.
Isso porque a Constituição Federal de 1988 é vultosa e rica em
princípios39.
Sem a pretensão de trazer a lume a polêmica sobre a acepção de
princípios, é adequada, para as finalidades deste estudo, a definição apresentada
por Celso Antônio Bandeira de Mello40:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que irradia sobre
diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para
sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e
a racionalidade do sistema normativo no que lhe confere a tônica e lhe
dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por
nome sistema jurídico positivo41.
39
Luís Roberto Barroso, ao distinguir as funções dos princípios e regras, enfatiza que “Os princípios –
notadamente os princípios constitucionais – são a porta pela qual os valores passam do plano ético
para o mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e
subsidiária do Direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá irradiam-se por todo o
ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo a
leitura moral do Direito”. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2 ed. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 204/205).
40
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 948/949.
41
A definição de Celso Antônio Bandeira de Mello também é reproduzida por José Afonso da Silva in
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007,
p. 91.
39
É fato que a sociedade se tornou gradativamente mais complexa, as
angústias humanas foram globalizadas e são exigidas soluções imediatas para
problemas de grande magnitude, que em essência demandariam tempo e
reflexão.
A tarefa de solucionar casos concretos inéditos é cada vez mais
complicada, pois, como será demonstrado nos próximos capítulos, a própria
sociedade enfrenta dilemas de proporções planetárias, e cujas respostas não são
encontradas em um dos 35 volumes do Dictionnaire raisonné des sciences, des
arts et des métiers, elaborado pelos filósofos Iluministas do Século XVIII42.
Muitas vezes, as respostas também não são identificadas nas dezenas de
Códigos Jurídicos ou compilações de leis extravagantes do nosso tempo.
Nesses casos, é exigido do intérprete e aplicador da lei, ademais de
conhecimento técnico, extrema habilidade para identificar soluções possíveis e
viáveis no sistema jurídico positivo e, dentre as soluções identificadas e
possíveis, adotar a efetivamente adequada para o caso específico, de acordo com
os princípios jurídicos estabelecidos no sistema.
Portanto, a Constituição Federal é a fonte, mas também não deixa de ser o
limite da aplicação do Direito, ainda que por intermédio de princípios.
42
Referência aos filósofos D'Alembert e Diderot, que coordenaram a elaboração da "Encyclopédie",
em meados do século XVIII, pois pretendiam compilar todo o conhecimento e saber gerado pelas
ciências naturais e humanas da época, com a finalidade de substituir a fé pelo conhecimento, no
contexto das ideias Iluministas.
40
1.8 Constitucionalismo no século XXI: Constituição como
dever
Observa-se que, desde o final do século XX, a história da humanidade tem
se destacado pela revalorização do direito como instrumento de harmonização
da convivência, de realização da justiça e de garantia da paz43.
Conforme ressaltado, profundas inovações começaram a se definir com o
fim da II Guerra Mundial.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 marca o início da
nova fase na história da humanidade. Em seu preâmbulo44 é expressamente
afirmado o liame entre direitos fundamentais e dignidade humana:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos
resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem
de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo
do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração
do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos
pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como
último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações
amistosas entre as nações,
43
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 287.
44
Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
Declaração
Universal
dos
Direitos
Humanos.
Disponível
em
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 14 out. 2011.
41
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na
Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no
valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das
mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores
condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a
desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito
universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a
observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e
liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse
compromisso.
A aproximação das ideias de constitucionalismo e de democracia
produziu nova forma de organização política que atende por nomes diversos:
Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado
constitucional democrático45.
O Estado constitucional de direito aprofunda-se no último quarto do
século XX. Tem como característica central a subordinação da legalidade a uma
Constituição rígida.
A democracia, em sentido material, que dá alma ao Estado constitucional
de direito, ultrapassa a ideia de governo da maioria, pois se trata de governo
para todos (inclui minorias, grupos de menor expressão política, pobres etc.).
Nessa acepção, a democracia apresenta uma dimensão mais profunda,
pois impõe-se ao Estado, não apenas o respeito aos direitos individuais, mas
45
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil in THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do
Estado
do
Ceará.
Disponível
em:
<http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18540/Neoconstitucionalismo_e_Constitucionaliz
a%E7%E3o_do_Direito.pdf?sequence=2>. Acesso em: 08 ago. 2012.
42
também a promoção de outros direitos fundamentais, de conteúdo social,
necessários ao estabelecimento de patamares mínimos de igualdade material,
sem a qual não existe vida digna, nem é possível o desfrute efetivo da
liberdade46.
A propósito, como já visto, uma das grandes mudanças de paradigma
ocorridas no século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de
norma jurídica47.
Dessa forma, foi definitivamente superado o modelo adotado na Europa,
no qual a Constituição era considerada um documento essencialmente político,
um convite à atuação dos Poderes Públicos48.
Mudanças políticas direcionadas à proteção da dignidade humana e ao
reconhecimento e efetivação dos direitos fundamentais da pessoa, sem
discriminações, passaram a definir uma nova concepção do próprio direito.
O registro e a análise dessas inovações de excepcional importância para
cada povo em particular, e, em seu conjunto, para toda a humanidade, vêm
sendo feitos por teóricos do Direito de diversas partes do mundo, sob a epígrafe
de neoconstitucionalismo.
Luís Roberto Barroso define o neoconstitucionalismo49:
46
Luís Roberto Barroso faz distinção entre democracia em sentido material, conforme comentado, e
democracia, em dimensão formal, que inclui a ideia de governo da maioria e de respeito aos direitos
individuais, frequentemente referidos como liberdades públicas – como as liberdades de expressão, de
associação e de locomoção – realizáveis mediante abstenção ou cumprimento de deveres negativos
pelo Estado (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 41/42).
47
Para maior aprofundamento sobre o tema recomenda-se a leitura do artigo intitulado A força
normativa da Constituição in HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 121/146.
48
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 197/198.
43
O neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção
aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações
ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais
podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do
Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo
das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o póspositivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a
reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o
conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição,
a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma
nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de
fenômenos
resultou
um
processo
extenso
e
profundo
de
constitucionalização do Direito.
Para alguns teóricos, o que se tem é a Constituição tradicional dotada de
nova eficácia, especialmente para garantia dos direitos fundamentais da pessoa
humana, razão pela qual preferem a epígrafe garantismo50.
Especificamente em relação ao garantismo, não se pode olvidar os
ensinamentos de Luigi Ferrajoli51.
Ao discorrer sobre o sentido do atual Estado Constitucional de Direito,
baseado na rigidez constitucional52, que é uma verdadeira invenção do nosso
século, Ferrajoli53 estabelece o que entende por garantismo:
49
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil in THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do
Estado
do
Ceará.
Disponível
em:
<http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18540/Neoconstitucionalismo_e_Constitucionaliz
a%E7%E3o_do_Direito.pdf?sequence=2>. Acesso em: 08 ago. 2010.
50
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 289.
51
Luigi Ferrajoli é professor de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito da Università de
Camerino – Itália.
52
Luigi Ferrajoli explica que rigidez constitucional significa que as leis ordinárias aparecem situadas
em um nível subordinado em relação às normas Constitucionais, de modo que não podem derrogá-las
44
Em geral, se falará de garantismo para designar o conjunto de limites
e vínculos impostos a todos os poderes – públicos e privados, políticos
(ou de maioria) e econômicos (ou de mercado), no plano estatal e no
plano internacional – mediante o qual se tutelam, através de sua
submissão à lei e, em concreto aos direitos fundamentais nela
estabelecidos, tanto as esferas privadas frente aos poderes públicos
como as esferas públicas frente aos poderes privados - tradução nossa.
O novo humanismo, base da nova concepção do próprio Direito e do
constitucionalismo, afirma a supremacia da pessoa humana na escala de valores,
mas de todas as pessoas humanas, sem qualquer espécie de discriminação ou
privilégio, exigindo que a afirmação da pessoa como valor supremo tenha
sentido prático e se confirme no plano da realidade, não se restringindo a meras
afirmações teóricas ou formais.
Com o novo constitucionalismo, a Constituição, em seu todo, é
reconhecida como repositório fundamental e expressão dos valores jurídicos e
da ordem jurídica de um povo.
A Constituição não apenas impõe limites ao legislador e ao administrador,
mas lhes determina, também, deveres de atuação.
sob pena de sua invalidação como consequência do correspondente juízo de inconstitucionalidade
(FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Editorial
Trotta, 2008, p. 65).
53
FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Editorial
Trotta, 2008, p. 62.
45
1.9 A Constituição Federal Brasileira de 1988
Assim como a II Guerra Mundial representou o marco histórico do novo
Direito Constitucional na Europa continental, no Brasil, o processo de
redemocratização tem início com a Constituição Federal de 1988.
A Carta Magna, além de representar a transição do regime autoritário para
o Estado Democrático de Direito, simbolizou conquistas e mobilizou o
imaginário das pessoas para novos avanços54.
Flávia Piovesan55 ressalta que, a partir da Carta de 1988, os direitos
humanos ganham relevo extraordinário, pois se trata do documento mais
abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no
Brasil.
Alguns aspectos merecem menção, em relação às inovações decorrentes
da nova Constituição.
O primeiro aspecto que deve ser considerado é que a Carta Magna de
1988 representou verdadeiro marco jurídico da transição ao regime democrático,
pois alargou significativamente o campo dos direitos e garantias fundamentais,
colocando-se entre as Constituições mais avançadas do mundo no que diz
respeito à matéria56.
54
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil in THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do
Estado
do
Ceará.
Disponível
em:
<http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18540/Neoconstitucionalismo_e_Constitucionaliz
a%E7%E3o_do_Direito.pdf?sequence=2>. Acesso em: 08 ago. 2010.
55
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 76.
56
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 77.
46
O segundo ponto diz respeito à percepção e ao reconhecimento de
normatividade aos princípios. Em linhas gerais, isso significa que houve nítida
distinção entre princípios e regras.
Princípios consagram determinados valores ou indicam fins públicos a
serem realizados por diversos meios. As regras, por sua vez, são comandos
imediatamente descritivos de condutas específicas.
O terceiro aspecto, diretamente relacionado ao anterior, refere-se ao papel
do intérprete na definição concreta do sentido e alcance dos princípios.
Interpretação tem como objetivo chegar ao resultado constitucionalmente
“correto”, segundo Hesse. Isso se dá através de um procedimento racional e
controlável, fundamentando esse resultado de modo igualmente racional e
controlável, e criando, dessa forma, certeza e previsibilidade jurídicas, ao invés
de acaso, de simples decisão por decisão57.
Compete ao intérprete solucionar eventual colidência entre normas de
igual hierarquia ademais de, completando o trabalho do legislador, fazer
valoração de sentido para as cláusulas abertas e realizar escolhas entre soluções
possíveis58.
Observa-se que dois objetivos foram propostos em relação à interpretação.
O primeiro está focado na “correção do resultado” e o segundo no próprio
processo, com ênfase na “atividade de atribuir valor”.
57
HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009,
p.103.
58
Nesse aspecto, KONRAD HESSE adverte que a interpretação constitucional de caráter criativo só
ocorre em tese, pois a atividade interpretativa fica vinculada à norma in HESSE, Konrad. Temas
Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 109.
47
A ênfase da interpretação constitucional no Brasil está atualmente na
própria atividade do intérprete. A “busca de um resultado correto” ainda é um
tema incipiente, quando se trata de interpretação constitucional.
Logo no artigo 1°, a Constituição Federal de 1988 já declara que a
República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo
político59.
O aspecto que mais interessa neste momento é o reconhecimento da
dignidade humana como fundamento da República Federativa do Brasil, pois
representou verdadeira mudança de paradigma na forma de pensar, criar,
interpretar e concretizar o Direito.
Considerações sobre a dignidade humana serão retomadas no próximo
tópico.
Merece menção, também, o extenso rol de direitos e garantias
fundamentais explicitados na Carta Magna.
O artigo 5o da Constituição Federal abarca a grande maioria dos direitos e
garantias fundamentais. E, seja pela topografia, seja pela descrição minuciosa,
ou simplesmente pela amplitude60, não há como negar que o reconhecimento, o
59
Norberto Bobbio relaciona direitos do homem, democracia e paz como três momentos necessários
do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há
democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos
(BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 1).
60
Inclusive, a Constituição Federal resguarda como cláusulas pétreas os direitos e garantias
individuais (art. 60, par 4o, inciso IV da CF).
48
respeito e a preservação dos chamados direitos fundamentais de primeira
geração ou dimensão61 são o mote de todo o sistema jurídico constitucional62.
Esse aspecto é de fundamental importância quando se fala em
interpretação conforme a Constituição. Trata-se de um princípio interpretativo,
segundo o qual uma lei não deve ser declarada nula enquanto possa ser
interpretada em consonância com a Constituição. Também é aplicável quando
há ambiguidade ou indeterminação sobre o conteúdo da lei63.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet64, os direitos fundamentais da primeira
dimensão são produto do pensamento liberal burguês do século XVIII, de cunho
individualista, afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado. São
direitos de defesa que demarcam uma zona de não intervenção do Estado e uma
esfera de autonomia individual em face do seu poder.
Portanto, são, em geral, apresentados como direitos de cunho negativo,
pois dirigidos a uma abstenção por parte dos poderes públicos (direitos de
resistência ou de abstenção perante o Estado) e complementados por um leque
de liberdades.
O expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana e a previsão
no art. 5o de amplo rol de direitos e garantias são os primeiros passos para a
61
Os direitos de primeira geração (ou dimensão) são tão relevantes que é possível afirmar que estão
diretamente relacionados à própria democracia.
62
Apenas para citar e possibilitar a completa compreensão do assunto, já que esse não é objeto do
presente estudo, os direitos de segunda geração ou dimensão são os direitos econômicos, sociais e
culturais, os direitos de terceira geração ou dimensão são os direitos de solidariedade e fraternidade.
Fala-se ainda em quarta geração ou dimensão dos direitos fundamentais, mas não há consenso sobre
sua acepção, de modo que poderiam estar relacionados à globalização, democracia, internet etc.
63
HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009,
p.118/119.
64
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 55/56.
49
análise dos fundamentos e finalidades do direito penal e do processo penal no
mundo globalizado.
1.10 A Dignidade da Pessoa Humana
Sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas65.
Dificílimo reduzir em apertadas linhas a imponência do significado da
dignidade da pessoa humana.
Discussões intermináveis referentes à sua abrangência e acepção tornam a
compreensão do tema simultaneamente rica e complexa.
A dignidade da pessoa humana, na sua acepção contemporânea, tem
origem religiosa, bíblica: o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Com
o Iluminismo e a centralidade do homem, ela migra para a filosofia, tendo por
fundamento a razão, a capacidade de valoração moral e autodeterminação do
indivíduo66.
O filósofo Iluminista do século XVIII Immanuel Kant baseou-se em uma
ontologia substancial para expressar que a dignidade humana constitui uma
essência, uma qualidade inata e inalienável do homem, uma coisa em si,
incondicionada e imutável67.
65
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 40.
66
BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória
para
debate
público.
Mimeografado,
dezembro
de
2010.
Disponível
em:
http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_textobase_11dez2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2012.
67
ALEXANDRINO, José Melo. O discurso dos Direitos. 1. ed. Lisboa: Coimbra Editora, 2011, p.
27.
50
O indivíduo é compreendido como um ser moral. A dignidade, sob a
perspectiva kantiana, fundamenta-se na autonomia. Em um mundo no qual
todos pautem sua conduta pelo imperativo categórico, tudo tem um preço ou
uma dignidade. As coisas que têm preço podem ser substituídas por outras
equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e não pode ser
substituída por outra equivalente, ela tem dignidade68.
Hegel, filósofo Alemão do século XIX, autor do preceito acima
reproduzido, expressou a noção fundamental da “consciência de si” ou
autoconsciência.
Essa noção de personalidade relacionada à consciência de si do sujeito
implica o reconhecimento do outro em iguais condições.
Isso quer dizer que o homem deve ser visto como pessoa, inserido no
conjunto de relações em que se encontra com os outros homens e com as coisas.
Nesse sentido, pessoa é relação.
Para o sociólogo alemão Niklas Luhmann, o homem ganha a sua própria
dignidade à medida que determina autonomamente o seu comportamento,
conseguindo construir para si mesmo uma identidade69.
Arthur Kaufmann70 afirma que a Filosofia do Direito da época pósmoderna deve estar determinada pela preocupação com o Direito, e isso
68
BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória
para
debate
público.
Mimeografado,
dezembro
de
2010.
Disponível
em:
http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_textobase_11dez2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2012.
69
ALEXANDRINO, José Melo. O discurso dos Direitos. 1. ed. Lisboa: Coimbra Editora, 2011, p.
27.
70
KAUFMANN, Arthur. La Filosofía del Derecho en la Posmodernidad. 3. ed. Trad. Luis Villar
Borda. Bogotá: Editorial Temis S.A., 2007, p. 72.
51
significa: a preocupação com o homem, ou ainda mais que isso, a preocupação
pela vida em geral, em todas as suas formas.
Mas as dificuldades relacionadas ao tema superam o campo da filosofia,
pois a compreensão exige uma visão holística.
Também o aspecto relacionado à historicidade deve ser considerado, pois
o sentido varia no tempo e espaço.
Nas últimas décadas, a dignidade da pessoa humana passou a ocupar o
centro das grandes discussões travadas no mundo Ocidental.
Sua magnitude no Direito atual extrapola o âmbito dos Estados e até
mesmo o plano internacional, pois assume cada vez maior e mais acentuada
importância na esfera transnacional.
Conforme já abordado, essa expansão começou a se definir com o fim da
II Guerra Mundial, quando a dignidade da pessoa humana migra para a esfera
jurídica, em razão do surgimento da cultura pós-positivista e de sua expressa
inclusão
em
documentos
internacionais
e
Constituições
de
Estados
Democráticos.
Essa migração da esfera filosófica para o Direito agregou à dignidade
humana um status de princípio jurídico, sem retirar o aspecto axiológico, de
valor moral fundamental, ligado à ideia de bom, justo e virtuoso.
52
Luis Roberto Barroso71 ressalta que a dignidade humana é um valor
fundamental que se viu convertido em princípio jurídico de estatura
constitucional.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 menciona
expressamente que se trata de um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Flávia Piovesan72 refere-se ao valor da dignidade humana:
Considerando que toda a Constituição há de ser compreendida como
unidade e como sistema que privilegia determinados valores sociais,
pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade
humana como valor essencial, que lhe dá unidade e sentido. Isto é, o
valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988,
imprimindo-lhe uma feição particular.
Acrescenta ainda que o valor da dignidade humana e o valor dos direitos e
garantias fundamentais compõem os princípios constitucionais que incorporam
71
BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória
para
debate
público.
Mimeografado,
dezembro
de
2010.
Disponível
em:
http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_textobase_11dez2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2012.
72
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 80.
53
as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a
todo o sistema jurídico brasileiro.
Seguramente, a dignidade humana é o ponto de partida de qualquer
análise referente à Constituição Federal de 1988. Aliás, o próprio sistema de
direitos fundamentais repousa na Dignidade da Pessoa Humana73.
Esse aspecto é extremamente importante, pois embora a Dignidade da
Pessoa Humana seja universal, seu conteúdo valorativo será efetivamente
esclarecido pelas normas de Direitos Fundamentais ou mesmo pela configuração
dada às demais normas e instituições Constitucionais destinadas a assegurar
condições mínimas de realização do ser humano.
Marco Antonio Marques da Silva74 ressalta que, no Direito Brasileiro, a
dignidade da pessoa humana, erigida a princípio, é fundamento do regime
republicano, ao lado da soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa e do pluralismo político:
O princípio da dignidade da pessoa humana prescreve que todo ser
humano deve ser reconhecido como membro da humanidade e ser
tratado com respeito e consideração pelos demais indivíduos, grupos,
organizações sociais e pelo Estado.
73
Nesse aspecto, pertinente reproduzir o esclarecimento feito por Jorge Miranda, ao afirmar que não
existe historicamente uma conexão necessária entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa
humana. Aqueles sistemas que funcionalizam os direitos a outros interesses ou fins não assentam na
dignidade da pessoa humana. Assim como concepções doutrinais de dignidade da pessoa humana, de
matriz religiosa ou filosófica, podem não ser acompanhadas de catálogos de direitos fundamentais.
(MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos
fundamentais in MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco Antonio Marques da (coordenação). Tratado
Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.168).
74
SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e Democracia: Instrumentos para a efetivação da
dignidade humana in MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco Antonio Marques da (coordenação).
Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 228.
54
Dalmo de Abreu Dallari75 a compreende como atributo natural:
Direitos humanos são atributos naturais, essenciais e inalienáveis da
pessoa humana, que esta pode opor a qualquer ação ou omissão que
ofenda ou ameace sua integridade física e mental e sua dignidade, ou
que impeça a satisfação de suas necessidades essenciais, físicas,
intelectuais, afetivas e espirituais e o livre desenvolvimento de sua
personalidade.
Ingo Wolfgang Sarlet76 propõe a dignidade humana como uma qualidade
do ser humano:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e
distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato
de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que
integram a rede da vida.
José Melo Alexandrino77 define a Dignidade da Pessoa Humana como a
referência da representação do valor do ser humano.
75
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010, p. 306/307.
76
O autor adverte que se trata de uma proposta em processo de reconstrução, inclusive já realizou dois
ajustes desde a primeira edição da obra, com o intuito da máxima afinidade possível com uma
concepção multidimensional (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 9. ed., 2011, p.
73).
77
ALEXANDRINO, José Melo. O discurso dos Direitos. 1. ed. Lisboa: Coimbra Editora, 2011, p.
42.
55
Seja como fundamento, valor, princípio, atributo, qualidade ou
representação, a Dignidade da Pessoa Humana orienta todo o sistema jurídico,
desde a elaboração da norma jurídica até sua interpretação e aplicação.
Conforme já assinalado, a dignidade é um conceito histórico, pois seu
sentido e alcance sofrem influências históricas, religiosas, políticas etc.
No entanto, em função de sua amplitude, é necessário que seja
identificado um sentido mínimo universal, de conteúdo transnacional.
A magnitude do significado só se revela quando da análise dinâmica e
recíproca, em conjunto com os direitos fundamentais, pois, ainda que não exista
identificação absoluta entre ambas as noções, apresentam estreita ligação.
Dessa forma, chega-se à conclusão de que o homem finalmente é
reconhecido como o núcleo, origem do direito. A vida humana é digna de
reconhecimento e respeito por parte de todos (valor intrínseco da pessoa
humana). Inclusive, a razão de ser do próprio Direito está vinculada à
preservação do homem.
A partir dessa ideia, os direitos e garantias fundamentais estão
essencialmente relacionados à preservação do homem, como digno e merecedor
de direitos individuais (civis e políticos).
O conteúdo filosófico (moral) agregado ao aspecto deontológico
(expressão de um dever-ser normativo) afasta a dignidade humana da amplitude
exacerbada e vazia que se lhe pretendem atribuir.
Portanto, é possível estabelecer os conteúdos essenciais da dignidade. Em
primeiro lugar, o próprio valor intrínseco da pessoa humana, ou seja, a pessoa
56
deve estar acima de todo o preço, de modo que não possa ser substituída, ela
tem dignidade.
Mais do que isso, a dignidade do homem envolve um conjunto de
atributos que o diferenciam dos animais e das plantas e asseguram um lugar
singular no universo.
Nesse sentido, a completa ausência de dignidade humana é retratada por
Josué de Castro em sua célebre obra “Homens e caranguejos”, na qual o homem
pobre dos mangues do Recife é retratado tal qual um animal:
(...) Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos
caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os
caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este
leite de lama, de se terem lambuzado com o caldo grosso da lama dos
mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de
maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os
tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas
duras carapaças também enlambuzadas de lama78.
Em segundo lugar, o elemento ético, que é a capacidade de
autodeterminação, materializada na possibilidade de cumprir as próprias
escolhas.
Por fim, o elemento social, valor comunitário, o indivíduo em relação ao
grupo.
É necessário mencionar, neste específico ponto, o papel do Direito Penal
no atual Estado Democrático de Direito. Ele se fundamenta, em um princípio, na
necessidade de manutenção da paz e harmonia social.
78
CASTRO, Josué. Homens e caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 10.
57
Majoritariamente, a doutrina reconhece que a função primordial do
Direito Penal é de preservação de bens jurídicos. Mas tão somente aqueles
relevantes aos homens e apenas em relação a algumas formas de ataque.
Logo, a criminalização de condutas atentatórias a bens jurídicos é uma das
formas mais efetivas que o Estado dispõe para a concretização dos direitos
fundamentais nas suas diversas dimensões.
Lenio Luiz Streck79 salienta que é neste espaço que reside até mesmo uma
obrigação implícita de criminalização, ao lado dos deveres explícitos de
criminalizar constantes no texto constitucional.
O tema referente aos mandados constitucionais de criminalização será
abordado oportunamente.
Então, estabelecida a abrangência e perspectivas da dignidade humana,
passamos a relacionar os aspectos já tratados, com enfoque no Direito Penal e
no Direito Processual Penal.
1.11 Os direitos fundamentais
Tanto na doutrina como no direito positivo, não há consenso na esfera
conceitual e terminológica em relação ao significado e conteúdo da expressão
direitos fundamentais80.
79
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso
(ÜBERMASSVERBOT) à proibição de proteção deficiente (UNTERMASSVERBOT) ou de como
não
há
blindagem
contra
normas
penais
inconstitucionais.
Disponível
em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=66&Itemid=40.
Acesso em: 20 ago. 2011.
58
Relevante, no entanto, reproduzir a distinção de cunho didático feita por
Ingo Wolfgang Sarlet entre as expressões “direitos do homem” (no sentido de
direitos naturais não, ou ainda não, positivados), “direitos humanos”
(positivados na esfera do direito internacional) e “direitos fundamentais”
(direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional
interno de cada Estado)81.
Gregório Robles82 explica que os direitos humanos não são direitos no
sentido jurídico do termo, mas critérios ou princípios morais. Os direitos
fundamentais, por sua vez, seriam autênticos direitos subjetivos que o
ordenamento jurídico distingue dos direitos subjetivos ordinários, mediante um
tratamento normativo e processual privilegiado.
Os
direitos
fundamentais
devem
responder
aos
processos
de
desenvolvimento. Isso não implica diminuição, tampouco supressão desses
direitos. Significa apenas que novas formas de interpretação ensejarão sua
máxima efetividade, de acordo com o momento.
Isso porque o Constituinte de 1988 deixou lacunas no ordenamento.
Outras lacunas surgiram posteriormente mediante mudanças sociais e
tecnológicas decorrentes da mecanização atual da vida. As alterações basilares
das normas valorativas sociais, bem como os desafios ecológicos e
demográficos, atualmente fundamentais, sequer eram previsíveis83.
80
Ingo Wolfgang Sarlet adverte que outras expressões, tais como “direitos humanos”, “direitos do
homem”, “direitos subjetivos públicos”, “liberdades públicas”, “direitos individuais”, “liberdades
fundamentais” e “direitos humanos fundamentais” são largamente utilizadas, sem que exista um
consenso em relação a cada um dos termos (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 33).
81
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 36.
82
ROBLES, Gregório. Os direitos fundamentais e a ética na sociedade atual. Barueri: Manole,
2005, p. 8/9.
83
Trata-se de análise feita por MICHAEL KLOEPFER em relação ao ordenamento Alemão, no
entanto, perfeitamente adaptável ao Direito Brasileiro. KLOEPFER, Michael. Os direitos
fundamentais da lei fundamental: sucessos, fraquezas, tarefas para o futuro in LEITE, George
59
É tarefa da ciência do direito Constitucional indicar, ao lado dos grandes
sucessos dos direitos fundamentais, também as fraquezas existentes, bem como
seus desafios e tarefas futuras.
Logo, a interpretação evolutiva dos direitos fundamentais na era da
globalização pressupõe o reconhecimento da realidade social, além de
disposição
e
coragem
para
superar
as
ultrapassadas
compreensões,
estabelecendo novas interpretações seguras e aptas a propiciar o fortalecimento
da cidadania e a preservação da dignidade humana.
Nesse sentido, Winfried Hassemer84 adverte que:
É sempre necessário defender a esfera privada dos cidadãos, diante de
um Estado ainda faminto por informação. Essa interpretação dos
direitos fundamentais como garantia às intervenções estatais está
correta. Porém, não somente o Estado pode causar danos aos direitos
fundamentais, também os poderes particulares o podem.
Segue afirmando que está ultrapassada a compreensão da privacidade que
tenha em vista apenas o Estado, pois a periclitação das liberdades parte hoje
igualmente dos poderes sociais: de grandes processadores de dados,
empreendimentos econômicos, uniões etc.
Da mesma forma, conforme será demonstrado no próximo capítulo, o
hiperconsumo gerou o avanço descontrolado da mercantilização da própria
existência humana.
Salomão, SARLET, Ingo Wolfgang e CARBONELL, Miguel (organizadores). Direitos, deveres e
garantias fundamentais. Salvador: Editora Jus Podium, 2011, p. 246.
84
HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertátio. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 241.
60
O poder e a soberania do mercado atingem as liberdades, causando, em
diversos momentos, danos aos direitos fundamentais. Isto, independentemente
da atuação do Estado, que inclusive pode se tornar, na prática, um executor
dessa soberania de mercado.
A solução, sob a perspectiva da legitimidade da atuação do Estado de
acordo com a Constituição e em consonância com os ditames do Estado
Democrático de Direito, estaria ligada à retomada do conteúdo jurídico-objetivo
dos direitos fundamentais85.
Neste específico ponto, chama atenção a polêmica estabelecida em
relação aos chamados direitos de terceira geração (são os direitos menos
individuais ou difusos, como o meio ambiente, saúde etc.) e a possibilidade de
reconhecer o status de direitos fundamentais.
Gregório Robles86 ressalta que na Constituição Espanhola eles não gozam
de situação privilegiada, pois não têm status de direitos fundamentais.
No entanto, esse não é o direcionamento da Constituição Brasileira.
Ora, os direitos de terceira geração correspondem aos chamados direitos
de solidariedade e fraternidade. Sob o Título I da Carta Magna, denominado Dos
princípios fundamentais, encontra-se o artigo 3o, que estabelece:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
85
BALTAZAR JUNIOR, Jose Paulo. Crime Organizado e proibição da insuficiência. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010.
86
ROBLES, Gregório. Os direitos fundamentais e a ética na sociedade atual. Barueri: Manole,
2005, p.8.
61
Também no inciso LXXIII do artigo 5o da Constituição Federal:
LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular
que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de
que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente
e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo
comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da
sucumbência;
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se encaminha no sentido
de reconhecer o status de direitos fundamentais dos direitos de terceira geração
(meio ambiente, saúde etc.). Nesse sentido:
I – O Constituinte de 1988, em sintonia com o evolver dos direitos
fundamentais de terceira geração, conferiu, no art. 129, III, de sua
obra, legitimidade ao Ministério Público para a tutela judicial dos
interesses difusos e coletivos, entre os quais está o direito à saúde, o
qual pertence à coletividade como um todo (art. 196, caput). (RE
507559, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 14/03/2011,
publicado em DJe-060 DIVULG 29/03/2011 PUBLIC 30/03/2011)
Konrad Hesse87 explica que passou a ser admitido que os direitos
fundamentais são dotados de conteúdo jurídico-objetivo, correspondente à
compreensão dos direitos fundamentais como princípios objetivos que
influenciam o conjunto da ordem jurídica e obrigam o Estado a fazer tudo pela
sua concretização.
Portanto, compete ao Estado concentrar todas as suas forças para o
alargamento do conteúdo dos direitos fundamentais, atuando de maneira incisiva
e ativa, sendo-lhe vedada a atuação precária nessa esfera.
87
HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
35/40.
62
Destaca-se, neste ponto, a tendência de expansão dos direitos
fundamentais.
Desde meados do século XX, por meio da interpretação, os direitos
fundamentais passaram a integrar novas realidades, levando, inclusive, à
descoberta de novos direitos fundamentais (por exemplo, o direito fundamental
à autodeterminação informativa).
Michael Kloepfer88 relata que, na Alemanha, o Tribunal Constitucional
reconheceu o “direito Fundamental à garantia da confiança e integridade dos
sistemas técnico-informacionais” e o “direito fundamental à garantia de um
mínimo existencial digno”.
Também no Brasil, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se
encaminha no sentido de reconhecer a ampliação do conteúdo dos direitos
fundamentais. Diversas decisões reconhecem o direito fundamental à garantia de
um mínimo existencial.
Assim, ao menos o “mínimo existencial” de cada um dos direitos,
exigência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, não
poderia deixar de ser objeto de apreciação judicial. (SS 3741,
Relator(a):
Min.
PRESIDENTE,
Presidente
Min.
GILMAR
MENDES, julgado em 27/05/2009, publicado em DJe-102 DIVULG
02/06/2009 PUBLIC 03/06/2009)89
88
KLOEPFER, Michael. Os direitos fundamentais da lei fundamental: sucessos, fraquezas, tarefas
para o futuro in LEITE, George Salomão, SARLET, Ingo Wolfgang e CARBONELL, Miguel
(organizadores). Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: Editora Jus Podium, 2011, p.
246/247.
89
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28direito+fundamental+e+
m%EDnimo+existencial%29+E+S%2EPRES%2E&base=basePresidencia. Acesso em 28 jun. 2011.
63
Na tarefa relacionada aos deveres de proteção jurídico-fundamentais, não
basta a mera omissão do Estado ou o cumprimento dos deveres negativos, ele
deve atuar no sentido de assegurar a proteção dos bens jurídicos de direito
fundamental contra agressões de terceiros, pois lhe é proibida a insuficiência no
contexto do Estado Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa
humana.
Para cumprir seus deveres e efetivamente proteger os bens jurídicos, o
Estado conta com inúmeros recursos, dentre os quais, o Direito Penal.
1.12 A matéria penal no panorama Constitucional
Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou
acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o
meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o
solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a
testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está
comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca,
não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que
anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está
comido90.
O Sermão de Santo Antônio aos Peixes foi pregado em 13 de junho de
1654 em São Luís do Maranhão, três dias antes de o Padre Antônio Vieira
embarcar escondido para Portugal no auge da luta dos jesuítas contra a
escravização dos índios pelos colonizadores.
90
Trecho do Sermão de Santo Antônio aos Peixes apud BRAGA, Pedro. Crime e Sociedade. Brasília:
Subsecretaria de edições técnicas do Senado Federal, 2008, p. 121.
64
A reprodução da abordagem irônica que compara, por meio de alegorias,
os homens aos peixes, demonstra que a matéria penal sempre teve o condão de
mexer com os ânimos e demandar defesas apaixonadas e ataques incisivos.
A atual feição dos direitos e garantias inaugurada em 1988 é resultado do
secular processo de desenvolvimento humano.
Diante do breve panorama jurídico Constitucional delineado até o
presente momento, é possível constatar que a Constituição Federal de 1988
representa verdadeiro marco no processo de redemocratização do Brasil, pois
além de ampliar significativamente o campo dos direitos e garantias
fundamentais, erigiu explicitamente a cidadania e a dignidade humana, a
fundamentos da República Federativa do Brasil.
A Constituição traz em si uma ordem objetiva de valores e um sistema
aberto de princípios e regras.
O valor dignidade humana é o epicentro de todo o ordenamento jurídico,
ou seja, o homem é explicitamente reconhecido como pessoa de direito no atual
ordenamento Constitucional.
Mais do que isso, há uma verdadeira determinação constitucional
direcionada aos intérpretes, aplicadores e aos próprios legisladores, no sentido
de sempre atuar com o objetivo de garantir a existência humana digna.
A repercussão do Direito Constitucional sobre a disciplina legal dos
crimes e das penas é ampla, direta e imediata. A Constituição tem impacto sobre
a validade e a interpretação das normas de Direito Penal, bem como sobre a
produção legislativa na matéria.
65
Ela funciona como um verdadeiro filtro, através do qual se deve apreciar
o Direito Penal/Processual Penal, ou seja, é necessário engajá-los (o Direito
Penal/Processual Penal) no espírito, no objetivo, nos princípios, nos valores e
nos fundamentos da Constituição e do Estado Democrático de Direito por ela
constituído.
A própria Constituição Federal reconhece a importância quando impõe ao
legislador o dever de criminalizar certas condutas, isso porque a ameaça aos
valores jurídicos Constitucionais é que justifica a necessidade de repressão
penal.
Da mesma forma, a Carta Magna legitima o Direito Penal ao impedir a
criminalização de determinadas condutas.
A sanção penal será precedente e legítima quando absolutamente
necessária para a salvação das bases fundamentais em que se assenta a sociedade
justa e livre que a Constituição visa a construir91.
Logo, estabelecidos os aspectos referentes ao reconhecimento e
importância da tutela penal, devem ser analisadas as dificuldades relacionadas
aos parâmetros para sua exata aplicação no cenário atual (eficácia).
Isso porque o fenômeno da globalização transformou a humanidade e
criou ambientes inéditos e propícios para o desenvolvimento de novas formas de
criminalidade.
A chamada criminalidade transnacional é fluída, sem rosto e sem
fronteiras, mas a tutela penal há que ser segura e adequadamente aplicada.
91
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do direito penal. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 24.
66
Verifica-se que, com o anseio de conter os fenômenos criminógenos
modernos, o direito penal por vezes é utilizado de maneira completamente
desvirtuada, extrapolando o necessário e suficiente campo de atuação.
Nesses momentos, ele se afasta da referência Constitucional, se desliga de
sua finalidade de proteção de bens jurídicos e perde a referência da dignidade
humana.
Por outro lado, em certas oportunidades nas quais se faria necessária uma
efetiva e substancial proteção (diante do vilipêndio a determinado bem jurídico
relevante), a atuação do direito penal/processo penal se mostra pífia ou mesmo
inexistente, por razões econômicas, políticas etc.
Nos dois casos, tanto quando extrapola seu campo de atuação como
quando deixa de atuar se deveria, o direito penal representa verdadeira afronta
ao Estado Democrático de Direito.
Em suma, o Direito Penal enfrenta, desde o final do século XX, desafios
outrora inimagináveis, no sentido de preservar a dignidade humana e conjugar
as necessárias reformas materiais e processuais com as garantias individuais e os
direitos fundamentais constitucionais (conquistas históricas da humanidade).
Antes de dar continuidade ao estudo, algumas considerações sobre o
significado de bem jurídico.
67
1.13 Breves considerações sobre bem jurídico
O ordenamento jurídico está dirigido para a proteção de algo, e os objetos
dessa proteção são certos bens jurídicos.
Bem é tudo o que nos apresenta como digno, útil, necessário, valioso.
Dentre o imenso número de bens existentes, seleciona o direito aqueles que
reputa dignos de proteção e os erige a bens jurídicos.
Jorge de Figueiredo Dias92 sintetiza a dificuldade em conceituar bem
jurídico, nos seguintes termos:
A noção de bem jurídico (seja ela embora, como já se vê, uma noção fulcral
em toda a nossa disciplina) não pôde, até o momento presente, ser
determinada – e talvez jamais o venha a ser – com uma nitidez e segurança
que a permita converter em conceito fechado e apto à subsunção, capaz de
traçar, para além de toda a dúvida possível, a fronteira entre o que
legitimamente pode e não pode ser criminalizado. Há, todavia, hoje um
consenso, relativamente largo sobre o seu núcleo essencial. Antecipando
desde já a conclusão das considerações seguintes, creio poder definir bem
jurídico como a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na
manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo
socialmente relevante e por isso juridicamente conhecido como valioso. A
esta conclusão só se chegou, porém, depois de uma evolução longa, muitas
vezes plurissignificativa ou mesmo equívoca e quase sempre eivada de
dúvidas ou controvérsias.
Adverte que o primeiro significado dessa noção surgiu para subsidiar a
punibilidade dos comportamentos que os ofendessem, nesse sentido, a ideia de
bem jurídico estava relacionada com os interesses primordiais dos indivíduos na
sociedade, ou seja, a vida, o corpo, a liberdade e o patrimônio.
92
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 62.
68
Bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o
objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam
expostos a perigo de ataques ou a lesões efetivas93.
Ainda no século XIX, Franz Von Liszt94 apresentou uma acepção de bem
jurídico que merece ser reproduzida:
O bem jurídico, objecto da protecção do direito, em ultima analyse é sempre
a existencia humana nas suas diversas fórmas e manifestações. Ella é que é o
bem júridico, isto é, o centro de todos os interesses juridicamente protegidos.
Mas a existencia humana nos apparece como existencia do homem
considerado na sua individualidade ou como existencia dos membros da
comunhão na sua collectividade. Todos os interesses atacados pelo crime e
protegidos pelo direito penal se distinguem consequentemente em bens do
individuo e em bens da collectividade (sic).
Sob o ponto de vista penal, o bem jurídico exige proteção especial que
não deve ser abrangente a todos os tipos de lesão possível, senão a certas
espécies de lesão real ou potencial.
A propósito, é necessário ressaltar que a identificação social dos bens a
serem juridicamente protegidos precede a recepção normativa.
Para definir quais bens jurídicos demandam a proteção penal, necessário
retomar os clássicos princípios norteadores do sistema, mormente, o princípio da
lesividade, o princípio da necessidade e o princípio da fragmentariedade.
93
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 16.
94
LISZT, Frans Von. Tratado de direito penal alemão, vol. II. Brasília: Senado Federal, Conselho
editorial, 2009.
69
O princípio da lesividade limita a incidência penal a infrações que
atinjam diretamente bens fundamentais que não possuam proteção eficiente na
esfera jurídica extrapenal.
Nesse aspecto, recorde-se que uma característica importante do bem
jurídico é a sua inerente mutabilidade, ou seja, a função do direito penal é a de
tutelar bens jurídicos à realização mais livre possível do homem na comunidade,
então, tudo depende do que, em cada momento, se revela como fundamental.
Também a lesividade ao bem jurídico é a legitimação e o limite da
aplicação do direito penal, no caso concreto.
O princípio da necessidade, interpretado em conjunto com o princípio da
lesividade, indica que o direito penal, como ultima ratio, deve eleger como
conduta relevante, sob o ponto de vista penal, aquela necessária para a proteção
de bens jurídicos considerados como sendo do mais alto grau, individual ou
social, com o objetivo de garantir a coexistência pacífica dos cidadãos.
Nesse aspecto, há uma tendência atual em antecipar a tutela de bens
jurídicos, com a proliferação do direito penal do perigo ou do risco. Discute-se
se a antecipação é o meio suficiente para assegurar efetivamente o cumprimento
eficaz da função do direito penal na sociedade de nossos dias95.
O princípio da fragmentariedade, em complemento aos já citados, indica
que o Direito Penal deve proteger os bens de agressões e ataques tidos como
socialmente intoleráveis. Os fins da pena devem ser adequados aos princípios do
Estado Democrático de Direito, ou seja, a tutela penal deve ser imprescindível.
95
Jorge de Figueiredo Dias alerta que na chamada “sociedade de risco” não há razão bastante para o
crescimento exponencial de proteções antecipadas de bens jurídicos, pois a antecipação pode fazer
com que o bem jurídico perca os seus contornos e deixe de exercer sua função (DIAS, Jorge de
Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999).
70
Conforme já enfatizado, a dignidade humana orienta e complementa toda
e qualquer interpretação.
Em relação ao fundamento de validade das normas penais, a partir da
valoração do bem jurídico protegido, Jorge de Figueiredo Dias96 conclui que:
(...) Se, como espero ter demonstrado, a função do direito penal, de
tutela subsidiária de bens jurídico-penais, revela-se jurídicoconstitucionalmente credenciada em qualquer autêntico regime
democrático e pluralista, então tal deve ter como consequência
inafastável a de que toda a norma incriminatória na base da qual não
seja susceptível de se divisar um bem jurídico-penal claramente
definido é nula, por materialmente inconstitucional, e como tal deve
ser declarada pelos tribunais ordinários aos quais compita aferir da
constitucionalidade das leis ordinárias.
Verifica-se atualmente uma tendência, claramente dominante em todas as
legislações, no sentido da introdução de novos tipos penais, bem como um
agravamento dos já existentes, que se pode encaixar no marco geral da restrição,
ou a reinterpretação das garantias clássicas do Direito Penal substantivo e do
Direito Processual Penal.
Criação de novos bens jurídicos penais, ampliação dos espaços de risco
jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e
relativização dos princípios político-criminais de garantia não seriam mais do
que aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo expansão.
Isso porque há, de fato, demanda social por mais proteção.
96
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 77.
71
Ademais, nas últimas décadas houve uma mudança na expectativa que a
sociedade tem em relação ao papel que cabe ao Direito Penal.
No entanto, o foco do Direito Penal na atualidade é a efetiva proteção de
bens jurídicos especialmente importantes, de modo que sua expansão é reflexo
da aparição de novos bens jurídicos ou do aumento de valor experimentado por
alguns que já existiam.
São distintas as causas de existência de novos bens jurídico-penais: novas
realidades que antes não existiam, deterioração de realidades tradicionalmente
abundantes (escassez) ou mesmo incremento de valor a certas realidades em
consequência da evolução social e cultural.
Mas a sociedade atual é caracterizada por um âmbito econômico
rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos que trazem
consequências negativas, dentre as quais a configuração do risco de procedência
humana como fenômeno social estrutural, ou seja, riscos que se originam da
decisão de outros concidadãos, referentes a danos não delimitáveis, globais e
irreparáveis que afetam a todos os cidadãos.
O progresso técnico também propicia, no âmbito da delinquência dolosa
tradicional, a adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite
produzir resultados especialmente lesivos.
No próximo capítulo, são analisados alguns dos fatores que contribuíram
para a necessidade de uma releitura do direito penal e processual penal, de
acordo com a função de proteção de bens jurídicos.
72
2 Conjuntura Global
2.1 A concepção de Estado pós-moderno
Desde o início do século, as sociedades experimentam transformações
profundas em seus princípios de organização.
As modificações se manifestam de diferentes modos, de acordo com os
contextos locais, mas abrangem todos os níveis sociais, bem como diferentes
esferas institucionais (econômicas, culturais, políticas).
Nesse contexto, o pensamento tradicional é precário e não tem aptidão
para dimensionar as mudanças, de modo que é imprescindível a construção de
novas ferramentas, desenvolvimento de instrumentos de análise adequados e
reavaliação da concepção tradicional de Estado97.
Conjecturas sobre o futuro das sociedades englobam convicções
radicalmente opostas. Algumas pregam o fim do Estado como forma de
organização política, outras defendem a supremacia do modelo Estatal
Ocidental.
Uma
terceira
proposição,
fundada
na
historicidade,
defende
a
possibilidade de transformação da feição do modelo estatal, com a redefinição
da arquitetura social.
No entanto, embora os atributos do modelo clássico estejam em fase de
supressão, um novo modelo estatal está longe de ser definido.
97
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. 3. ed. Trad. Marçal Justen Filho. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, p. 11.
73
Por isso, Jacques Chevalier98 afirma que o Estado pós-moderno é um
Estado cujos traços permanecem, precisamente e enquanto tais, marcados pela
incerteza, pela complexidade, pela indeterminação.
Esses seriam os próprios elementos estruturais, característicos do Estado
contemporâneo.
Na realidade, um verdadeiro movimento de redefinição do próprio vínculo
político estaria por trás da nova conformação da estrutura estatal.
Paralelamente ao grande movimento de reestruturação estatal, despertam
percepções inéditas em relação aos atributos e valores do ser humano.
Verifica-se que o universal e o singular coexistem e conflitam na atual
realidade. O homem volta a ocupar o centro das atenções. É dele que passamos a
tratar.
2.2 A constante reinvenção do ser humano e o mundo fast99
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem
se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje
o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida
perdida. (Fernando Pessoa)
98
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. 3. ed. Trad. Marçal Justen Filho. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, p. 21.
99
A opção por inserir o vocábulo “rápido” na língua inglesa (fast) teve dupla finalidade. A primeira é
exatamente para demonstrar um dos efeitos da globalização, qual seja, o homem passa a adotar cada
vez mais em sua comunicação diária palavras em língua estrangeira em substituição às palavras do
próprio idioma. A segunda é para fazer alusão, de maneira sutil, ao chamado estilo “fast-food”
(comida rápida em inglês) que surge no final do século passado e é a representação da ideia de vida
estressante, na qual o indivíduo abre mão do prazer da refeição ou mesmo da alimentação para
subsistência e saúde em detrimento do tempo e do prazer momentâneo em devorar em minutos uma
refeição pronta.
74
De fato, viver é evoluir. Conviver é aprender, trocar e interagir.
O ser humano passa todos os dias por inéditas e infinitas experiências. O
indivíduo percebe e interpreta de maneira peculiar os acontecimentos da vida,
mas é certo que cada episódio captado pelos sentidos influi na sua maneira de
ser, pensar e agir.
Até aqui, nenhuma novidade.
O aspecto inovador da atualidade é revelado quando se agregam os
elementos “tempo” e “espaço”. Isto é, evolução humana sempre existiu e não é
uma invenção deste século, mas o que se tem constatado é que grandes
transformações acontecem no planeta em lapsos cada vez menores de tempo e
com extensas consequências.
Portanto, a capacidade de adaptação humana é desafiada e exigida
diuturnamente. O homem (em razão do instinto de preservação) se reinventa e se
adapta às exigências do momento, pois não existe opção entre integrar-se ou não
no mundo.
O mundo de hoje é fast. Significa que, em comparação com o passado,
tudo acontece mais rápido e muitas vezes o fato supera sua percepção.
Prazeres momentâneos direcionam a atividade humana, rica em
expectativas, mas pobre em projetos.
A emergência suplanta a reflexão, o debate e o amadurecimento de ideias.
É exigido do homem deste século aptidão para resolver problemas diversos e
muitas vezes inéditos. Nada mais e nada menos.
75
2.3 Retrato da conjuntura global atual: a crise
Antes de discorrer sobre conjuntura global, alguns esclarecimentos.
Os aspectos aqui abordados são reproduzidos por um viajante de olhos
abertos100, ou seja, a percepção e a compreensão da conjuntura atual são
descritas tal qual um retrato feito da janela do trem.
Além disso, não se pode falar de conjuntura global e crise sem recorrer às
disciplinas auxiliares, mormente à economia101.
A crise está na ordem do dia.
Parece irrefutável que vivenciamos uma época de crise. Não uma simples
crise financeira, mas uma crise econômica mundial102.
No entanto, isso não significa que seus resultados sejam apenas negativos
para o mundo todo.
Nesse aspecto, a colocação do filósofo Edgar Morin103 é pertinente, pois
esclarece que crise representa apenas um período de transição, de fronteiras que
se desfazem e que criam catástrofes e conflitos nos mais longínquos locais do
mundo globalizado, afetando todos os países direta e instantaneamente.
100
Fazendo referência à expressão utilizada por Eric Hobsbawm in HOBSBAWM, Eric. Era dos
extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 7/9.
101
Ressalta-se, por oportuno, que os recursos às disciplinas auxiliares têm a finalidade de apoiar e
complementar a análise jurídica do tema, pois, como já explicado, a completa compreensão demanda
abordagem multidisciplinar. As citações e construções contidas no texto são fruto de estudos e
pesquisas em acervo especializado sobre os respectivos tópicos.
102
Luc Ferri observa que o reconhecimento de que a crise é econômica e não financeira implica
reconhecer sua maior gravidade e profundidade, o que exige respostas mais fundamentais in FERRY,
Luc. Diante da crise: materiais para uma política de civilização. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
103
Informação verbal fornecida por Edgar Morin na palestra sobre o tema “A ambivalência da
globalização: rumo a novos caminhos”, Fronteiras do pensamento, Sala São Paulo, 9 de agosto de
2011.
76
Mas do sistema em colapso surge a possibilidade da metamorfose, de
uma mudança geral na democracia, na educação, na economia e, sobretudo, na
forma de pensar a própria crise.
É exatamente o que se verifica em termos de conjuntura global, ou seja, a
crise econômica mundial atraiu efeitos eminentemente negativos para diversos
países, outrora reconhecidos como potências econômicas mundiais.
Entretanto, ao mesmo tempo houve a migração do eixo da economia
mundial em direção à Ásia e a reemergência da China e da Índia como
economias de amplíssima envergadura continental104.
Inclusive, a China já se transformou no primeiro mercado e no principal
parceiro comercial de muitos países da América Latina, desbancando os Estados
Unidos e alterando radicalmente o panorama econômico mundial.
O Brasil, por sua vez, tem aproveitado os benefícios da crise, com a
promoção de reformas e iniciativas internas que objetivam ampliar a
participação no cenário econômico mundial105.
Dessa forma, é possível fixar que a crise causou impactos mundiais
(negativos e positivos), e sob a perspectiva da conjuntura global ensejou a
alteração do epicentro da economia mundial para a Ásia.
104
RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. 3. ed. São Paulo: Editora SENAC São
Paulo, 2010, p. 12.
105
O comentário foi parafraseado da obra de Rubens Ricupero (que já atuou como secretário-geral da
Conferencia das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ministro e
embaixador do Brasil) e se mostra cada vez mais verdadeira, já que o Brasil conquista gradativamente
maior espaço no cenário mundial in RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. 3. ed.
São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2010.
77
Também não se pode deixar de mencionar que fortaleceu o agrupamento
informal dos seguintes países: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Eles
passaram a ser conhecidos como Brics.
O potencial e a força desse agrupamento são mensurados pela análise do
impacto na economia mundial.
Consta do site do Ministério das Relações Exteriores106:
O peso econômico dos Brics é certamente considerável. Entre 2003 e
2007, o crescimento dos quatro países representou 65% da expansão
do PIB mundial. Em paridade de poder de compra, o PIB dos Brics já
supera hoje o dos EUA ou o da União Europeia. Para dar uma ideia do
ritmo de crescimento desses países, em 2003 os Brics respondiam por
9% do PIB mundial, e, em 2009, esse valor aumentou para 14%. Em
2010, o PIB conjunto dos cinco países (incluindo a África do Sul),
totalizou US$ 11 trilhões, ou 18% da economia mundial.
Considerando o PIB pela paridade de poder de compra, esse índice é
ainda maior: US$ 19 trilhões, ou 25%.
Especificamente no âmbito do Direito, é necessário avaliar com cautela o
impacto causado pelas mudanças na relação entre espaço e tempo.
Por um lado, emergem as consequências do redirecionamento dos atores
econômicos, sistemas legais e contextos jurídicos-políticos, por outro,
106
A ideia dos Brics foi formulada pelo economista-chefe da Goldman Sachs, Jim O´Neil, em estudo
de 2001, intitulado “Building Better Global Economic Brics”. Fixou-se como categoria da análise nos
meios econômico-financeiros, empresariais, acadêmicos e de comunicação. Em 2006, o conceito deu
origem a um agrupamento, propriamente dito, incorporado à política externa de Brasil, Rússia, Índia e
China. Em 2011, por ocasião da III Cúpula, a África do Sul passou a fazer parte do agrupamento, que
adotou
a
sigla
Brics
apud
http://www.itamaraty.gov.br/temas/mecanismos-interregionais/agrupamento-brics. Acesso em: 18 out. 2011.
78
multiplicam-se as transformações socioeconômicas advindas das alterações nos
paradigmas produtivos, na tecnologia e nas relações internacionais107.
Logo, necessários alguns comentários sobre os recentes fenômenos que
maior impacto causaram na vida do homem e o conduziram para o caminho da
grande mudança de época.
O consumo, a informação, a informatização e a globalização despertaram
o homem para a necessidade de confrontar a realidade com a retomada dos
valores fundamentais que justificam a própria existência.
2.4 Consumo
2.4.1 O homem e o consumo
Eu sou um puro produto da geração Think Pink, meu credo: seja bela e
consumista.108 (tradução nossa)
Logo nos primeiros parágrafos do romance que se tornou best-seller não
só na França, mas em diversas partes do mundo, Lolita Pille, uma jovem rica
que usa drogas, frequenta festas e gasta fortunas em roupas, expõe de maneira
chocante a realidade nua e crua da juventude parisiense do terceiro milênio.
Assim como a autora, sua personagem Hell é uma bela jovem francesa
que nasceu em berço de ouro. Depois de concluir o ensino médio
(baccalauréat), largou os estudos, pois já tinha tudo o que precisava.
107
FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito depois da crise. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 10.
“Je suis un pour produit de la Think Pink generation, mon credo: sois belle et consomme” in
PILLE, Lolita. Hell. Paris: Grasset, 2002, p.7.
108
79
Hell mora no melhor bairro de Paris, frequenta bares e baladas todas as
noites, não dorme antes das sete horas da manhã e sua vida se restringe às
boates, álcool, drogas, compras e dinheiro, mas no fundo esses são os pretextos
que encontra para encobrir o insuperável sentimento de tédio, ansiedade, solidão
e vazio.
Mais do que uma simples personagem capaz de causar ao leitor um misto
de ojeriza, ódio e piedade, Hell (que significa inferno em inglês) é a
personificação da nossa sociedade, ávida pelo “ter” para “ser”, insaciável pelo
consumo, ansiosa por viver intensamente “cada momento presente”, episódios
de vida fragmentados, carente de projetos de médio/longo prazo, “plugada” nas
infinitas tecnologias e incapaz de estabelecer relacionamentos humanos
duradouros.
(…) pertenço a uma única comunidade, a super cosmopolita e
controvertida tribo Gucci Prada; a grife é meu emblema109. (tradução
nossa)
A sociedade de hiperconsumo estreia por volta do fim dos anos 70, o que
significa, em termos históricos, que é muito recente. Portanto, o mundo está
conhecendo hoje seus primeiros resultados.
Ainda não se sabe bem como lidar com essa inovação. Nada e ninguém,
por ora, está apto a deter ou frear o avanço da mercantilização da experiência e
dos modos de vida.
É incontestável que a voracidade do mercado hiperconsumista gera uma
verdadeira desumanização, pois absorve os seres humanos para seu cerne,
109
“(...) je n’appartiens qu’à une seule communauté, la très cosmopolite et très controversée Gucci
Prada tribe; le monogramme est mon emblème” in PILLE, Lolita. Hell. Paris: Grasset, 2002, p.8.
80
fomentando a despersonalização e direcionando o homem no sentido da adoção
de padrões de conduta, na frenética busca da felicidade e do bem-estar.
A propósito, Zygmunt Bauman110, ao tratar do tema “os gastos dos
adolescentes”, observa que hoje, para sustentar o estilo de vida de um
adolescente médio na Grã-Bretanha, o custo chega a mais de doze vezes o que
um adolescente normal costumava gastar trinta anos atrás.
Houve o desaparecimento dos laços afetivos com os objetos adquiridos: o
que conta de fato é o momento da aquisição – não a amizade duradoura. Metade
de todos os telefones celulares de posse dos adolescentes acaba se perdendo ou é
colocada no lugar errado; os tênis que ninguém mais cobiça acabam na lixeira
logo depois de comprados. Os objetos saem de moda com tanta rapidez quanto
se popularizam.
Logo, em função das consequências humanas e sociais causadas e com a
finalidade de preservar, reafirmar e enaltecer a dignidade humana, parece nítido
que o direito deve tratar das relações de consumo.
Mais do que isso, cabe ao direito estabelecer um sistema de proteção
ampla e eficaz do consumidor.
2.4.2 O sentido histórico da liberdade e da felicidade
O maior problema e o único que nos deve preocupar é vivermos
felizes111.
110
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.
54/55.
111
VOLTAIRE – filósofo iluminista Francês do século XVIII.
81
Foi essencialmente no decorrer do século XVIII que o homem começou a
compreender seu papel na história.
As Revoluções Francesa (1789) e Americana (1776) representam apenas
o início do processo de conscientização humana, uma verdadeira revolução do
pensamento, cujas consequências se expandiram pelos séculos XIX, XX até os
dias de hoje.
Nesse contexto, pertinente recorrer a uma análise antropológica:
De fato, apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir
um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem
como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa
época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar
ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da
biologia112.
O século XVIII foi fundamentalmente marcado pela ideia de “liberdade”.
Toda a produção artística, literária e filosófica da época é dedicada a ela.
Essa liberdade do século XVIII está atrelada à ascensão da classe
burguesa, que passa a ter importância nas transformações políticas, sociais,
econômicas e culturais.
O movimento liberal teve como objetivo derrubar o “ancien régime”
Francês, o que ocorreu em 1789 com a Revolução Francesa. Durante o período
mais agressivo da Revolução Francesa foi criado, difundido e exaustivamente
utilizado o célebre lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.
112
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003, p.7.
82
Também nos Estados Unidos, a liberdade merece destaque inédito. Em
seu primeiro rascunho da Declaração de Independência dos Estados Unidos,
preparada em meados de junho de 1776, Thomas Jefferson escreveu:
Sustentamos como sagradas e inegáveis estas verdades: que todos os
homens são criados iguais e independentes, que dessa criação também
recebem direitos inerentes e inalienáveis, entre os quais estão a
preservação da vida, a liberdade e a busca da felicidade113 (tradução
nossa).
No entanto, graças às revisões feitas pelo próprio Thomas Jefferson, a
frase se tornou mais clara e vibrante:
Sustentamos como evidentes estas verdades: que todos os homens são
criados iguais; que são dotados por seu Criador de certos direitos
inalienáveis; dentre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da
felicidade114 (tradução nossa).
Nessa fase histórica, a ideia de busca da felicidade surge não como uma
conquista individual, mas como uma meta a ser alcançada pela coletividade.
A busca da felicidade volta a fazer parte dos debates nos dias de hoje. Em
matéria divulgada no site do Senado Federal em 26/05/2010, cujo título é
“Inclusão do direito à busca da felicidade na Constituição recebe apoio de
juristas115”, discute-se sugestão de Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
113
“Sostenemos como sagradas e innegables estas verdades: que todos los hombres son creados
iguales e independientes [sic], que de esa creación igual reciben derechos inherentes e inalienables,
entre los cuales están la preservación de la vida, la libertad y la búsqueda de la felicidad” apud HUNT,
Lynn. La invención de los derechos humanos. Trad. Jordi Beltrán Ferrer. Buenos Aires: Tusquets
Editores, 2010, p.13.
114
“Sostenemos como evidentes estas verdades: que todos los hombres son creados iguales; que son
dotados por su Creador de ciertos derechos inalienables; que entre éstos están la vida, la libertad y la
búsqueda de la felicidad” apud HUNT, Lynn. La invención de los derechos humanos. Trad. Jordi
Beltrán Ferrer. Buenos Aires: Tusquets Editores, 2010, p.13/14.
115
http://www.senado.gov.br/agencia/vernoticia.aspx?codNoticia=102395&codAplicativo=2
83
com a finalidade de alterar o artigo 6º, justamente para fazer constar ali o direito
à busca da felicidade.
Observa-se, entretanto, que a busca da felicidade nos dias de hoje está
desconectada da ideia de coletividade de outrora, embora socialmente
contextualizada sob a perspectiva do consumidor.
2.4.3 O breve século XX: das guerras ao hiperconsumo
Os historiadores não têm como responder a essa pergunta. Para mim,
o século XX é apenas o esforço sempre renovado de entendê-lo116.
O homem que nasce em princípios do século XX vivencia alguns dos
períodos mais marcantes e intensos da história da humanidade.
Eric Hobsbawn117 relata que este século já surge com uma era de
catástrofe que se estendeu de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial. Em
seguida, a reconstrução dos países devastados pela guerra propiciou um período
de extraordinário crescimento econômico e transformação social que durou
aproximadamente três décadas.
Por fim, o desfecho do século é visto pelos historiadores como uma nova
era de decomposição, incerteza e crise.
O mundo capitalista enfrenta os problemas do entreguerras: desemprego
em massa, depressões cíclicas severas, contraposição de mendigos a luxo
abundante, em meio a rendas limitadas do Estado e suas despesas ilimitadas. Os
116
FRANCO VENTURINI (historiador, Itália) apud HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve
século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 12.
117
ERIC HOBSBAWN é historiador, nascido em 1917 em Alexandria, no Egito, fez seus estudos em
Viena, Berlim, Londres e Cambridge.
84
países socialistas também caminharam para o colapso e presenciaram suas
economias desabarem.
O fim da União Soviética ligado à ideia de liberdade ensejou a ampliação
do número de países democráticos (de 69 a 118 no transcurso de 10 anos). No
entanto, o ingresso do antigo bloco soviético no capitalismo global significou o
desmantelamento de um sistema político, sem um plano claro para sua
substituição118.
As reformas econômicas se adiantaram às políticas, pois a liberalização da
economia não contou com a criação de instituições para controlar e guiar a
transição. O resultado foi desastroso para a maior parte da população desses
países, pois fomentou a miséria e a marginalização. Por outro lado, o vácuo
político permitiu que poucos pudessem se beneficiar da situação, com práticas e
manobras econômicas criminosas ou, no mínimo, desumanas119.
Justamente nesse período (fim do século XX) é revelado um modelo novo
de associativismo: a sociedade de consumo, caracterizada por um número
crescente de produtos e serviços, pelo domínio do crédito e do marketing, assim
como pelas dificuldades de acesso à Justiça120.
As discussões que gravitam em torno do tema “sociedade de consumo”
estão na ordem do dia.
118
NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 34.
É possível que o conjunto de manifestações contra os regimes ditatoriais e autoritários dos países
do norte da África e Oriente Médio, conhecido como “Primavera Árabe”, apresente resultados
semelhantes às populações dos países envolvidos, pois ainda não foi evidenciado um plano político
para a transição à democracia.
120
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos
autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.6.
119
85
Jornais relatam: abusos contra os consumidores, recordes de vendas,
consumo diretamente relacionado aos ciclos econômicos das nações etc. Enfim,
a relevância do assunto na sociedade hodierna é patente.
Nesse panorama, constata-se que mesmo a imprescindível intervenção do
Estado não é suficiente para conter o avanço descontrolado da mercantilização
da própria existência humana.
Ao contrário, em muitas oportunidades, o Estado, como um todo, é
leniente e torna-se um executor da soberania do mercado.
O mercado também não apresenta em si mesmo mecanismos eficientes
para superar ou mitigar a vulnerabilidade do homem-consumidor.
As despesas de consumo das famílias se tornaram o motor do
crescimento. A sociedade de hiperconsumo coincide com um estado da
economia marcado pela centralidade do consumidor.
O fenômeno relatado só é compreendido com o subsídio de ciências
auxiliares, como história, economia, sociologia e até filosofia. Adverte-se,
contudo, que ele não surgiu de súbito, mas a origem está umbilicalmente ligada
ao grande mito do desenvolvimento.
2.4.4 O paradoxo do consumo
O século XX abrange um período crítico da história, uma fase
revolucionária, marcada pela desorientação geral das novas gerações que
buscavam incessantemente soluções urgentes para os problemas mais agudos do
destino da humanidade.
86
A integração das regiões do mundo foi a maneira de expandir a economia
e superar a crise do século XX, mas a preocupação pela produção em massa
prevalecia sobre o consumo em massa.
Hoje, essa proporção está invertida, o consumo se expandiu a mercados
potenciais,
outrora
ignorados,
atingindo
milhares
de
seres
humanos.
Predominam reflexões sobre a felicidade e o bem-estar.
Constrói-se a civilização do desejo. O trabalho já não é um fim que se
confunde com a própria vida, mas um meio de ganhar a vida.
O consumo patológico é a forma encontrada para se tentar buscar a
felicidade (agora individual), uma realidade que poderia ser comparada ao vício.
É certo que o desenvolvimento progressivo da sociedade, necessário e
inevitável, revela efeitos maléficos, mormente, quando faz do homem
prisioneiro de certos tipos de coerção.
Nesse aspecto, Zygmunt Bauman121 chama a atenção para o fato de que
em muitos países, grande parte da vida social já é mediada eletronicamente, ou
seja, a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida e a maior
parte dela se passa na companhia de um computador, iPod ou celular e apenas
secundariamente ao lado de seres de carne e osso122.
Hoje, o ideal de liberdade pode ser resumido em dois atos, o primeiro de
antecipar o futuro, desfrutando agora de bens (adquiridos a crédito), o segundo
121
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia.
Lecionou nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Grã-Bretanha. Atualmente é professor emérito de
sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
122
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 8/9.
87
de desabilitar o passado, com a possibilidade de mudar de identidade, procurar
novos começos e lutar para renascer123.
Nota-se uma condição profundamente paradoxal124, pois o consumidor de
um lado é informado, livre, consulta, pesquisa e procura, mas de outro, está
dependente do sistema mercantil, pois o mercado compreende o significado
desse poder do consumidor e avança com agressividade para suprir essas novas
“necessidades”.
Então, o homem-consumidor é atraído ao maravilhoso mundo da compra
a crédito, onde um cartão plástico é o maior instrumento de poder (já que
propicia as melhores sensações ao usuário: liberdade para gastar além de suas
possibilidades econômicas momentâneas e felicidade por perder o senso do que
representa o dinheiro, já que as cédulas monetárias não são manuseadas, ou seja,
não é necessário calcular quantos dias de trabalho são necessários para adquirir
um único objeto).
O consumidor do crédito é classificado e passa a compor listas de maus
pagadores ou listas de bons compradores.
Torna-se hábito pegar dinheiro emprestado e viver a crédito, usufruindo
hoje de um bem que só poderia ser adquirido no futuro e cuja contraprestação
monetária não será mensurada em horas trabalhadas (ele não manuseia o
dinheiro, portanto não faz a conexão entre os gastos e sua remuneração laboral).
123
A cirurgia plástica estética, tão difundida nos dias de hoje, representa o melhor exemplo da ruptura
com o passado, pois o único objetivo é de ficar em dia com os padrões que mudam com rapidez,
mantendo o próprio valor de mercado e descartando uma imagem que já perdeu sua utilidade ou seu
charme, de modo que é substituída por uma nova imagem pública, com uma nova identidade, um novo
começo. (BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 130).
124
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
88
Ao mesmo tempo, descobre-se a rede, o mundo on-line. O internauta fica
feliz por poder comprar qualquer objeto a qualquer hora, integrar redes sociais e
ter a oportunidade de revelar despreocupadamente detalhes íntimos de sua vida,
fornecer e disponibilizar informações pessoais, receber e dar conselhos e trocar
fotografias.
Toda essa vibrante atividade oferece “le bonheur” imediato e fugaz,
propiciado pela descoberta da novidade e desprezo da rotina. Sentimento que
vicia e desperta anseio singular.
Outro aspecto que não pode deixar de ser mencionado é o da relação entre
os padrões de produção e o consumo sustentável.
A ideia de consumo sustentável envolve a consciência a respeito dos
limites que o planeta suporta, tendo em vista os impactos ambientais causados
pelos padrões de produção e consumo atuais125.
O primeiro texto de âmbito internacional que efetivamente tratou de
forma sistematizada do tema foi a Agenda 21, que estabelece em seu capítulo 4
(trata das mudanças nos padrões de consumo)126:
A pobreza e a degradação do meio ambiente estão estreitamente
relacionadas. Enquanto a pobreza tem como resultado determinados
tipos de pressão ambiental, as principais causas da deterioração
ininterrupta do meio ambiente mundial são os padrões insustentáveis
de consumo e produção, especialmente nos países industrializados.
Motivo de séria preocupação, tais padrões de consumo e produção
provocam o agravamento da pobreza e dos desequilíbrios.
125
SODRÉ, Marcelo Gomes. Dignidade Planetária: o direito e o consumo sustentável in MIRANDA,
Jorge e SILVA, Marco Antônio Marques da (coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade
Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 1166.
126
Disponível em: http://www.ecolnews.com.br/agenda21/. Acesso em: 12 out. 2011.
89
A fim de que se atinjam os objetivos de qualidade ambiental e
desenvolvimento sustentável será necessário eficiência na produção e
mudanças nos padrões de consumo para dar prioridade ao uso ótimo
dos recursos e à redução do desperdício ao mínimo. Em muitos casos,
isso irá exigir uma reorientação dos atuais padrões de produção e
consumo, desenvolvidos pelas sociedades industriais e por sua vez
imitados em boa parte do mundo.
A ideia de consumo sustentável trouxe para a ciência do direito a
necessidade de focalizar temas novos, sob a perspectiva de uma dignidade
planetária.
2.4.5 Brasil: da luta contra a fome ao hiperconsumo
A fome é, regra geral, o produto das estruturas econômicas
defeituosas e não de condições naturais insuperáveis127.
Em meados do século XX, o fenômeno da fome no Brasil ganhou o
cenário mundial. Isso se deve, principalmente, ao trabalho e aos estudos de
Josué de Castro128.
Com uma visão inovadora, ele teve coragem de mostrar ao mundo que a
sociedade não é dividida em burguesia e proletariado, mas entre os que não
127
CASTRO, Josué. Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 51.
128
Josué de Castro, médico brasileiro, nascido no Recife. Foi um cientista além de seu tempo, e
dedicou a vida à elaboração de um dos mais completos estudos sobre o fenômeno da fome. Em 1964,
aos 56 anos, Embaixador do Brasil junto aos órgãos das Nações Unidas, em Genebra, teve seus
direitos políticos cassados e se exilou na França, onde continuou a desenvolver trabalho intelectual
intenso. Suas obras são mundialmente conhecidas, mas deixaram de ser editadas no Brasil, de modo
que, infelizmente, a maior parte de seus escritos continua desconhecida do público brasileiro.
90
comem e não dormem porque têm fome e os que comem e não dormem com
medo dos que têm fome129.
Segundo o autor, o capitalismo, em seu bojo, gerava bolsões de miséria
cuja expressão máxima era a fome.
Afirmou que a fome, a miséria são criações de nossa sociedade, não são
fenômenos naturais, mas sim artificialmente criados pelos homens que
desenvolveram um tipo de economia que visa tão somente o atendimento do
capital, e não as necessidades do homem.
Além de discutir, apresentou propostas para superar a situação de penúria,
de fome de alimentos e de saber que vão caracterizar os integrantes do Terceiro
Mundo.
A
propósito,
os
países
emergentes
eram
outrora
chamados
subdesenvolvidos, por suas estruturas econômicas defeituosas.
O principal problema social ligado ao subdesenvolvimento (no Brasil) era
a fome. Josué de Castro denunciou a problemática da fome e seus reflexos
diretos e indiretos:
As populações cronicamente famintas, por sua fraca capacidade de
produção e por seu poder de compra quase nulo, constituem massas
parasitas que pesam bastante em um dos pratos da balança da
economia mundial. Além disso, constituem centros de agitação social
contínua e de explosões desordenadas de revoltas improdutivas, de
129
Parágrafo parafraseado da apresentação da quarta edição do livro Fome: um tema proibido, que traz
uma compilação dos últimos escritos de Josué de Castro, organizado por Anna Maria de Castro.
91
verdadeiras crises de nervos de populações neurastênicas e carentes
de vitaminas130.
É certo que, no Brasil de hoje, a fome ainda persiste em grande parte do
país, mas a conjuntura é diferente. A sociedade de consumidores promove,
encoraja e reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial
consumista.
Mesmo nas periferias mais distantes e empobrecidas, o pobre é forçado a
uma situação na qual tem de gastar o pouco dinheiro ou os parcos recursos de
que dispõe com objetos de consumo sem sentido, e não com suas necessidades
básicas, para evitar a total humilhação social e evitar a perspectiva de ser
provocado e ridicularizado131.
Nesse contexto, é pertinente reproduzir recente matéria jornalística
publicada em 27/09/2010 no Jornal O Estado de São Paulo e denominada “A
construção de um país além da bolsa”:
Quando os primeiros sinais começaram a aparecer, em 2001, mas
sobretudo quando o processo deslanchou, em 2004, os especialistas da
área social não demoraram a constatar: depois de duas décadas de
estagnação, os indicadores de pobreza e desigualdade, que retratam a
calamitosa injustiça social brasileira, começaram a melhorar.
(…)
A expansão do saneamento está estagnada: mais de 40% da população
continua excluída da rede coletora.
(…)
130
CASTRO, Josué. Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 83.
131
Citado de N.R. Shrestha por Russell W. Belk, “The human consequences of consomer culture”in
Karin M. Ekström e Helene Brembeck, Elusive Consumption, Berg, 2004, p. 69 apud BAUMAN,
Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008, p. 74.
92
De qualquer forma, a melhora de vida dos brasileiros mais pobres é
inegável, como atesta o grande aumento do consumo de bens de
consumo durável, de geladeiras a computadores.
(…)
No cenário global recente, o tema volta a ocupar posição de destaque.
Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, intitulado “O
desafio da fome no mundo”, o professor de economia da Unicamp Antônio M.
Buainain132 afirma:
Ao longo das últimas décadas, a Organização das Nações Unidas para
a Agricultura e Alimentação (FAO) tem perseguido a utopia de
erradicar a fome no mundo e ainda há cerca de 1 bilhão de pessoas
famintas.
Após a leitura dos trechos selecionados, conclui-se que os programas
sociais incluíram as classes mais pobres da população brasileira na sociedade de
consumo, pois hoje são capazes de adquirir bens de consumo durável.
No entanto, o mais surpreendente é que a ascensão financeira apenas
majorou a classe dos consumidores, mas pouco influiu na ascensão cultural e na
melhora das condições de vida da população menos abastada.
Resultado:
os
novos
consumidores
têm
em
suas
residências
computadores, geladeiras e TVs de plasma/LCD/LED, mas observam de suas
janelas o esgoto correndo a céu aberto.
132
BUAINAIN, Antônio M. O desafio da fome no mundo – artigo publicado no caderno Economia do
jornal “O Estado de São Paulo” em 12 jul. 2011.
93
2.5 Informação
2.5.1 Informação e crise do conhecimento
Segundo Jacques Attali133, informação é:
Bem gratuito por natureza, pois pode ser dado sem ser perdido.
Amanhã, tornado raro artificialmente, por patente ou encriptagem,
para adquirir um valor mercante, será o principal motor da economia.
A informação será a matéria-prima das indústrias da comunicação, da
distração, da informática, da genética, ou seja, de todos os setoreschave da economia. Seu valor de uso residirá em sua criação, sua
manifestação, sua formatação ou contextualização; seu valor de troca
residirá em sua escassez.
A abordagem enaltece o caráter eminentemente capitalista da informação,
ou seja, o conhecimento constitui o bem capital, a fonte principal da
legitimidade do poder, um meio de controlar o Capital, dominar uma estrutura,
impor uma norma.
No entanto, paralelamente ao problema relatado (capitalização da
informação), outro surge com maior força. Trata-se da deficiência da educação
para a informação.
Ivete Pieruccini134 relata de maneira clara suas percepções sobre este
fenômeno:
133
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 228.
PIERUCCINI, Ivete. A ordem informacional dialógica : estudo sobre a busca de informação em
Educação. São Paulo: Tese apresentada ao Curso de Pós Graduação em Ciências da Comunicação
como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em de Ciência da Informação e
Documentação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2004.
134
94
Nesse sentido, observando as dificuldades relatadas, vê-se claramente
estampado um sério problema educacional que afeta fortemente
grande parte de nossos escolares: apesar do esforço que possam
realizar indo até a biblioteca, não sabem como, onde, por quê, para
quê buscar informação; não têm noção clara do que selecionar, de
como tomar notas, registrar, extrair os dados selecionados, organizálos, comunicá-los; acham-se numa situação em que tudo lhes é
estranho, parecendo marinheiros sem bússola, lançados à deriva nos
oceanos do conhecimento.
Isso quer dizer que a maioria das crianças e jovens não tem condições de
desempenhar as tarefas necessárias à busca de informação. Portanto, estão
incapacitadas para se apropriar e construir conhecimentos e cultura, uma vez que
o domínio da memória armazenada e de seus instrumentos é condição de criação
do novo.
2.5.2 A importância da comunicação
Derivado do latim comunicatio, de communicare (tornar comum), o
vocábulo comunicação possui, segundo o próprio conceito de comum, várias
acepções135.
Comunicação tem o sentido de ciência ou conhecimento que se dá a
outrem de certo fato ocorrido ou de certo ato praticado. Tem também o sentido
de aviso ou transmissão de ordem, ou de qualquer outro fato que se precise
tornar de conhecimento comum136.
135
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: editora Forense, 2001.
De Plácido e Silva acrescenta que na linguagem forense, a comunicação toma diversas
denominações, consoante a espécie de ato ou fato, cujo conhecimento se transmite aos interessados.
136
95
O processo de comunicação é um dos fenômenos mais importantes para a
espécie humana.
Armand Mattelart137, professor de ciências da informação e da
comunicação na Universidade Paris-VIII, relata que a uniformização do mundo
começa com a padronização da língua que nos serve para designar. As palavras
são cortadas de sua memória, afastadas do seu sentido original.
Herbert Marshall McLuhan138, uma das maiores autoridades em
comunicação em massa, enfatiza a ansiedade do homem civilizado em relação à
palavra escrita.
Analisa, sobretudo, os aspectos negativos da prevalência da palavra
escrita em relação ao alfabeto fonético, ou seja, a palavra falada, inclusiva e
participacional (responsável pela criação de muitos dos padrões humanos
básicos de cultura) é suplantada pela palavra escrita especializada.
Em relação à importância do alfabeto, afirma:
O alfabeto significou o poder, a autoridade e o controle das estruturas
militares, a distância. Quando combinado com o papiro, o alfabeto
decretou o fim das burocracias templárias estacionárias e dos
monopólios sacerdotais de conhecimento e do poder. Diferentemente
da escrita pré-alfabética, com seus inumeráveis signos de difícil
assimilação, o alfabeto podia ser apreendido em poucas horas. Quando
aplicados a materiais grosseiros como o tijolo e a pedra, um
conhecimento tão extenso e uma habilitação tão complexa como a
escrita pré-alfabética asseguravam para a casta dos escribas um
monopólio do poder sacerdotal. O alfabeto acessível, juntamente com
137
MATTELART, Armand. História da sociedade de informação. São Paulo: edições Loyola, 2002.
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007, p. 100/102.
138
96
o papiro transportável, barato e leve, produziu a transferência do
poder da classe sacerdotal para a classe militar139.
2.5.3 Breve histórico dos principais meios de comunicação no
Brasil (correios, telefone e telégrafo)
O transcorrer da História Postal corresponde à crescente transformação
histórica do próprio País e acompanha o desenvolvimento brasileiro140.
Com a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil em 1500, surgiu a
primeira correspondência oficial ligada ao País, a qual, escrita por Pero Vaz de
Caminha e enviada ao Rei de Portugal, relatava com notório entusiasmo o
descortinar de uma nova terra. Com esse acontecimento, eternizado na história
brasileira, estava sendo escrita a primeira página do surgimento do correio no
Brasil.
Os primórdios dos serviços postais no Brasil Colônia reportam-se ao
correio de Portugal e à sua atuação neste novo território.
A dificuldade na comunicação entre Portugal e o Brasil Colônia fez com
que fossem instituídos, definitiva e oficialmente em 1798, os Correios
Marítimos.
Com a chegada da Família Real ao Novo Mundo, o Brasil passou da
condição de colônia à de sede do governo português, localizada no Rio de
Janeiro, fato que abriu caminhos para que o serviço postal melhor se
139
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007, p. 101/102. 140
Relato
histórico
extraído
do
site
dos
correios.
Disponível
em:
http://www.correios.com.br/institucional/conheca_correios/conheca.cfm. Acesso em 10 fev. 2009.
97
desenvolvesse com o progresso comercial advindo, a elaboração do primeiro
Regulamento Postal do Brasil, o funcionamento regular dos Correios Marítimos
e a emissão de novos decretos criando os Correios Interiores.
De 1917 a 1919, durante a Primeira Grande Guerra, foi instituída a
censura postal.
O telégrafo foi o primeiro aparelho moderno de telecomunicação141.
Como no século XIX já eram conhecidas as leis da eletricidade e do
eletromagnetismo, foi possível a Samuel Morse registrar, em 1840, a patente do
telégrafo.
Baseado em um código binário de pontos e traços (o chamado Código
Morse), mensagens eram enviadas rapidamente a grandes distâncias. O método
foi logo aceito no mundo todo.
Em 1852 foi instalado o telégrafo elétrico no Brasil e as telecomunicações
foram gradativamente se tornando um domínio de extrema força, em função das
relações internacionais cada vez mais estreitas e dependentes.
No entanto, a aproximação entre as distâncias ocorreu, de fato, com a
invenção do telefone. O telefone substituiu o telégrafo com vantagens, pois as
informações passaram a ser transmitidas rapidamente, permitindo maior
intercâmbio entre os lugares.
Os indivíduos modificaram e alteraram seus ritmos e rotinas de vida com
as inovações tecnológicas, pois as mercadorias consumidas nas cidades já não
141
Telecomunicações quer dizer comunicações a distância: tele (do grego têle = ao longe) +
comunicações.
98
seriam necessariamente produzidas no local e a transmissão das informações
não dependeria somente de mensageiros ou veículos.
O primeiro registro mundial desse aparelho data de 1876, com Alexandre
Graham Bell e Elisha Gray.
Em poucos anos, foram instaladas as primeiras redes telefônicas em Nova
Iorque, Filadélfia, Denver, Chicago, São Francisco e outras cidades dos Estados
Unidos pela Bell Telephone Company, fundada por Graham Bell. O telefone
espalhou-se rapidamente por todo o mundo, pois as cidades cresciam e
mudavam de natureza, consequentemente as funções urbanas se diversificavam.
Consequentemente, houve a descentralização de atividades, de tal maneira
que muitas empresas e pessoas puderam realizar seus negócios distantes do
centro urbano.
No Brasil, a chegada do telefone aconteceu logo após a visita de D. Pedro
II à Exposição do Centenário da Independência dos Estados Unidos, na
Filadélfia, em 1876.
Inicialmente, os telefones eram instalados apenas para comunicação entre
repartições do governo, órgãos militares e corpo de bombeiros.
Em 15 de novembro de 1879, o imperador outorgou concessão para a
exploração dos serviços telefônicos no Brasil.
99
2.5.4 Sucintas notas sobre a importância do rádio
O rádio foi o maior fenômeno de comunicação da primeira metade do
século 20, ele ocupava lugar de destaque nas salas de estar e as famílias se
reuniam ao seu redor.
Motivada principalmente pelo sucesso do recente filme “O discurso do
rei”, a sociedade rememora a história do rádio e recorda o papel de destaque na
sociedade deste que foi o maior fenômeno de comunicação da primeira metade
do século 20142.
Keila Grinberg143 observa que o grande personagem do filme é o rádio.
Afinal, é só porque o príncipe precisa falar em público – e para todo o império
britânico – que a necessidade de tratar sua gagueira é tão premente.
As principais cenas do filme são ao redor do rádio: da leitura do discurso
à sua transmissão e difusão para todo o império britânico.
Em seu primeiro discurso de guerra, por exemplo, proferido em 3 de
setembro de 1939, dois dias depois de as tropas alemãs invadirem a Polônia para
iniciar a Segunda Guerra Mundial, George VI disse que queria falar a seus
súditos como se estivesse entrando na casa deles.
O líder nazista Adolf Hitler só teve existência política graças ao rádio e
aos sistemas de dirigir-se ao público.
142
GRINBERG,
Keila.
O
rei,
o
discurso
e
o
radio.
Disponível
em:
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/o-rei-o-discurso-e-o-radio. Publicado em 15/02/2011
e Atualizado em 15/02/2011. Acesso em: 20 out. 2011.
143
Keila Grinberg é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Seus
textos discutem temas ligados à história, sem perder de vista a perspectiva do tempo presente.
100
De fato, o rádio afeta as pessoas, como que pessoalmente, oferecendo um
mundo de comunicação não expressa entre o escritor-locutor e o ouvinte. Esse é
o aspecto mais imediato do rádio144.
2.5.5 Imprensa e seu papel
A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o
que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem,
devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou
roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe
cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do
que a ameaça145.
Segundo Rui Barbosa146, além de órgão visual da nação, entre os povos
livres, a imprensa participa de quase todas as funções vitais, pois é, sobretudo,
mediante a publicidade que os povos respiram e a ação respiratória é uma das
mais complexas do corpo.
Não há vida possível se o meio onde todos respiram lhes não elabora o ar
respirável, ou se lhes deixa viciar pelo ar respirado.
Um país de imprensa degenerada ou degenerescente é, portanto, um país
cego e um país miasmado, um país de ideias falsas e sentimentos pervertidos,
um país que, explorado na sua consciência, não poderá lutar com os vícios que
lhe exploram as instituições.
144
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007, p. 336/337. 145
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Editora Papagaio, 2004, p. 32/33.
146
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Editora Papagaio, 2004. 101
Se a imprensa é o órgão visual da nação e o conteúdo das divulgações
influi decisivamente na vida da nação, de modo a viciar a consciência geral, a
estreita ligação entre imprensa e poder é inegável.
Rui Barbosa também ressalta o papel da imprensa, vinculado às ideias de
liberdade, isenção e moralidade:
Todo o bem que se haja dito, e se disser da imprensa, ainda será
pouco, se a considerarmos livre, isenta e moralizada. Moralizada, não
transige com os abusos. Isenta, não cede às seduções. Livre, não teme
os potentados147.
2.5.6 Imprensa e liberdade de expressão
Sem dúvida, exigir da imprensa que ela seja livre é uma demanda tão
antiga quanto a democracia148.
É certo que a liberdade deve ser interpretada como um dos deveres do
jornalista, o primeiro entre todos os deveres, pois a sociedade tem o direito de
contar com os serviços de jornalistas e de veículos noticiosas que sejam
ativamente livres.
O grau de independência se estabelece em relação aos interesses
organizados, sejam eles econômicos, políticos, religiosos, sindicais, científicos e
assim por diante.
No entanto, questões relacionadas ao abuso (que muitas vezes
caracterizam atitudes criminosas) são recorrentes.
147
148
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Editora Papagaio, 2004, p. 35.
BUCCI, Eugênio. A imprensa e o dever da liberdade. São Paulo: Contexto, 2009, p.11. 102
Apenas para exemplificar, recente artigo intitulado O povo versus
Murdoch149, publicado em 20/07/2011 no jornal O Estado de São Paulo,
reproduz um dos maiores escândalos dos últimos tempos, que envolve o
magnata Rupert Murdoch, protagonista dos escândalos de escutas telefônicas
ilegais envolvendo o seu grupo de mídia News Corporation, que controlava o
tabloide britânico News of the World.
(...)
Os subordinados de Murdoch ultrapassaram os limites, com ações
antiéticas e criminosas: grampos de telefones, subornos, um
comportamento criminoso coercivo, traindo a confiança dos leitores.
(...)
Não podemos desfrutar da liberdade e dos benefícios de uma imprensa
livre ignorando a privacidade dos indivíduos. Como dirigentes de
conglomerados jornalísticos, temos a responsabilidade de manter e
respeitar este limite. Embora Murdoch compreenda o significado do
que fazemos usando como pretexto a livre expressão, ele pode não ter
entendido a responsabilidade que uma publicação deve ter.
O curioso é que o autor do artigo é Larry Flynt, fundador e presidente da
Larry
Flint
Publications
(LFP),
que
produz
principalmente
material
pornográfico, fato que lhe rendeu diversas batalhas judiciais.
2.5.7 Os meios de comunicação são extensões do próprio
homem
Toda tecnologia nova cria um ambiente que é logo considerado
corrupto e degradante. Todavia o novo transforma seu predecessor em
forma de arte150.
149
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=internacional,o-povo-versusmurdoch,746635,0.htm. Acesso em: 20 jul. 2011.
150
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007, p. 12. 103
O Teórico canadense Herbert Marshall McLuhan151 esteve à frente de seu
tempo, pois há mais de 50 anos já acreditava que os meios de comunicação em
massa afetam profundamente a vida física e mental do homem, levando-o do
mundo linear e mecânico da Primeira Revolução Industrial para o novo mundo
audiotáctil e tribalizado da Era Eletrônica.
Insistia que os estudantes de comunicação mantivessem a consciência nos
efeitos
das
tecnologias
humanas,
especialmente
das
tecnologias
da
comunicação.
Um dos conceitos mais importantes sobre os meios de comunicação foi
desenvolvido por McLuhan: o meio é a mensagem.
Explica que as mais recentes abordagens ao estudo dos meios levam em
conta não apenas o “conteúdo”, mas o próprio meio e a matriz cultural em que
um meio ou veículo específico atua152.
Essa apreciação ensejou uma grande mudança de paradigma, pois antes
disso a maioria dos estudiosos ignorava o meio e focava apenas o conteúdo.
McLuhan153 afirma que as consequências sociais e pessoais de qualquer
meio – ou seja, de qualquer uma das extensões de nós mesmos – constituem o
resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia
ou extensão de nós mesmos.
151
BRYAN, Guilherme. Vidente da mídia in Revista da Cultura, edição 46, maio de 2011. Uma
publicação da Livraria Cultura.
152
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007, p. 25. 153
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007, p. 21.
104
Também acreditava que qualquer grande novo meio de comunicação
altera toda a perspectiva das pessoas que o utilizam.
Atribui-se a ele a previsão sobre o advento da internet (isso em 1964):
uma rede mundial de ordenadores tornará acessível, em alguns minutos, todo
tipo de informação aos estudantes do mundo inteiro.
2.5.8 O direito à informação
O direito à informação no Brasil é assegurado pela Constituição Federal.
A primeira menção está no art. 5o, inciso XIV, da Carta Magna:
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o
sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Também, ao tratar da Comunicação Social:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço
à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e
XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística.
No entanto, a extensão do direito à informação é um tema delicado e
controvertido por natureza.
105
Isso porque o exercício do direito à informação pública pode ocasionar,
no caso concreto, violação a outros direitos, também fundamentais.
São os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e a ponderação
de valores (estes últimos erigidos à condição de direitos fundamentais na
Constituição Federal) que irão orientar a decisão nas hipóteses de colisão entre o
direito à informação pública e o direito à preservação da intimidade, da vida
privada e o respeito à dignidade humana.
Como exemplo de sopesamento entre normas de direitos fundamentais,
Alexy154 cita o caso Lebach (1973). A seguir é reproduzido o relato, apenas para
demonstrar a solução (sopesamento) no caso concreto, sem analisar o acerto ou
equívoco em seu conteúdo.
A emissora de televisão ZDF planejava exibir um documentário chamado
“O assassinato de soldados em Lebach”. Esse programa pretendia contar a
história de um crime, no qual quatro soldados da guarda de sentinela de um
depósito de munições do Exército Alemão, perto da cidade de Lebach, foram
mortos enquanto dormiam e armas foram roubadas com o intuito de cometer
outros crimes.
Um dos condenados como cúmplice nesse crime, que, na época prevista
para a exibição do documentário estava perto de ser libertado da prisão, entendia
que a exibição do programa, no qual ele era nominalmente citado e apresentado
por meio de fotos, violaria seu direito fundamental garantido pela Constituição
Alemã, sobretudo, porque sua ressocialização estaria ameaçada.
154
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008,
p. 100/103.
106
O Tribunal Estadual rejeitou o pedido de medida cautelar para proibir a
exibição e o Tribunal Superior Estadual negou provimento ao recurso contra
essa decisão. O autor ajuizou, então, uma reclamação constitucional contra essa
decisão.
TCF (Tribunal Constitucional Federal da Alemanha) passou a apreciar o
caso e a argumentação se desenvolveu em três etapas:
1.
Constatou-se uma situação de tensão entre a proteção da
personalidade e a liberdade de informar por meio da radiodifusão (ambos
garantidos pela Constituição Alemã), de modo que o conflito deveria ser
solucionado por meio de “sopesamento”, no qual nenhum dos valores
constitucionais pode pretender uma “precedência geral”;
2.
O TCF sustenta uma precedência geral da liberdade de informar no
caso de uma “informação atual sobre atos criminosos” (mas é possível o
estabelecimento de exceções);
3.
O TCF constata que no caso da “repetição do noticiário televisivo
sobre um grave crime não mais revestido de um interesse atual pela informação”
e que coloca em risco a ressocialização do autor, a proteção da personalidade
tem precedência sobre a liberdade de informar, o que no caso em questão
significa a proibição de veiculação da notícia.
No Brasil, rico é o repertório de decisões do Supremo Tribunal Federal
que tratam sobre o tema. A título de exemplo:
(…) Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as
tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que
ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha
107
normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse
conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça
do art. 220 da Constituição Federal: liberdade de “manifestação do
pensamento”, liberdade de “criação”, liberdade de “expressão”,
liberdade de “informação”. (…) - ADI 4451 MC-REF, Relator(a):
Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 02/09/2010,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-125 DIVULG 30-06-2011 PUBLIC
01-07-2011
Portanto, o direito à informação, embora assegurado pela Constituição
Federal como um Direito Fundamental, pode, no caso concreto, conflitar ou
mesmo esvaziar outros princípios também tidos como fundamentais, nesses
casos, quando entram conflito, devem ser ponderados.
2.5.9 O poder da informação
Diante de tudo o que foi exposto, é inegável o imenso poder da
informação.
Sob todas as perspectivas analisadas, verifica-se que com o passar do
tempo, a informação ganhou mais relevância na sociedade. E aqui, não se trata
apenas do acesso à informação, pois conforme já ressaltado, exige-se do homem
algo mais do que acesso, busca-se a verdadeira educação para a informação.
Saber pesquisar, selecionar, organizar o tempo e as ideias são os fatores
diferenciadores.
Outro aspecto que merece menção é a manipulação da informação. Sabese, por exemplo, que a crise econômica mundial de 2008 foi influenciada por
inúmeros aspectos, mas o que interessa ressaltar neste momento é que, após a
108
crise, foram reveladas as crescentes dificuldades enfrentadas pelas autoridades
governamentais para neutralizar o chamado “risco sistêmico”.
A crise de 2008 evidenciou o deficit de informação das autoridades
nacionais sobre a situação de liquidez global dos bancos e evidenciou a falta de
transparência do setor155.
Rui Barbosa ressalta que a verdade tem compromissos constitucionais
com a honra, com a imagem e com a privacidade. A verdade deve emanar da
notícia isenta do fato a ser noticiado, para que, quando divulgada, a notícia
efetivamente expresse o que aconteceu, ou está para acontecer, isto é, o “fato”,
não a sua ilícita manipulação156.
Também é necessário citar brevemente as grandes dificuldades no
compartilhamento de informação, inclusive no âmbito dos próprios governos.
Considerando que informação é poder, os órgãos governamentais possuem
informações que devem ser mantidas sob restrito sigilo, que em geral referem-se
às questões de segurança.
Contudo, a imposição de sigilo muitas vezes prejudica a compreensão e
visualização de cenários conjunturais, já que cada órgão domina uma parte do
conhecimento. As novas formas de criminalidade transnacional e os avanços do
terrorismo nos dias de hoje colocam novamente em discussão os limites e
conveniências sobre o compartilhamento de informações.
Desse modo, principalmente após os atentados de 11 de setembro, a forma
de tratar o compartilhamento de informações e a imposição de sigilos foram
substancialmente alteradas.
155
156
FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito depois da crise. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 22. BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Editora Papagaio, 2004. 109
A humanidade caminha em direção ao fortalecimento da cooperação
internacional, com troca de informações entre nações e formulação de tratados,
acordos e parcerias com esse objetivo.
Nesse âmbito, Carlos Eduardo Adriano Japiassú157 chama atenção para o
fato de que, após o atentado contra as Torres Gêmeas em Nova Iorque, foi
intensificada a produção legislativa internacional sobre lavagem de dinheiro e
financiamento do terrorismo, que compõem os chamados sistemas globais de
proibição.
Isso quer dizer que há aproximação ou harmonização dos sistemas
nacionais e supranacionais com o Direito Penal Internacional.
No Brasil, é importante citar a atuação do Departamento de Recuperação
de Ativos e Cooperação Internacional, que é o órgão responsável por articular,
integrar e propor ações do Governo no que tange à prevenção e à repressão da
lavagem de dinheiro, do crime organizado transnacional, da recuperação de
ativos e da cooperação jurídica internacional.
Trata-se de órgão responsável pela negociação de acordos e tratados
internacionais, além de coordenar a execução da cooperação jurídica
internacional, exercendo a função de autoridade central para a tramitação de
pedidos de cooperação jurídica internacional para a maioria dos países, com
exceção de Portugal e Canadá (para os quais a Autoridade Central é o
Procurador-Geral da República). A competência do DRCI foi estabelecida pelo
Decreto nº 6.061, de 15 de março de 2007158.
157
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey,
2009, p. 57/63.
158
Disponível em: http://gtld.pgr.mpf.gov.br/gtld/cooperacao-internacional/drci/drci. Acesso em: 05
jan 2012.
110
A cooperação jurídica internacional se mostra um instrumento efetivo
para combate aos crimes transnacionais e repatriação de valores desviados.
Também no âmbito interno dos países, os órgãos começam a interagir na
busca da ampliação do acesso à informação, principalmente em decorrência dos
avanços da criminalidade, que hoje atua em escala global.
Por fim, e para estabelecer um elo com os próximos tópicos
(informatização e globalização), é necessário apontar que os avanços no campo
da tecnologia e a globalização trouxeram infinitos progressos, mas também
dificuldades para a humanidade.
Para a completa compreensão dos próximos tópicos, é necessário
considerar que o fenômeno da transmissão de mensagens não deve ser analisado
isoladamente, mas em conjunto com o seu meio de transmissão.
Segundo estudos desenvolvidos por McLuhan159, o meio influencia ou
mesmo se confunde com a própria mensagem, ou seja, o meio é a mensagem.
Portanto, a informatização e os novos meios de transmissão de
informação devem ser estudados de maneira conjuntural.
Dessa forma, será possível constatar de que maneira alteram toda a
perspectiva das pessoas que o utilizam.
Daí a importância do próximo tópico.
159
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 2007.
111
2.6 Informatização
2.6.1 Mudança do contexto sociocultural
O novo e inusitado quadro planetário de produção, circulação e recepção
da informação, definido como sociedade da informação ou do conhecimento, era
da informação (Castells), cibercultura (Lévy) ou, ainda, cibermundo (Virilio),
recoloca questões de todas as ordens, envolvendo o conhecimento e a cultura160.
As tecnologias da informação permitem a veiculação e distribuição, em
tempo real, de informações de todos os tipos e naturezas, em quantidades quase
que infinitas. Logo, houve uma mudança radical nas representações de mundo,
tempo, espaço, sociabilidades, modo de produzir, distribuir, receber e participar
da cultura.
Conforme já ressaltado, o acesso à informação deixou, em princípio, de
ser um problema para o homem. Florescem novas questões, mas agora
relacionadas à seleção das informações.
A educação deve estar direcionada para a seleção do conteúdo, e não mais
o local onde será realizada a pesquisa.
Isso porque todo o conteúdo se encontra em uma mesma base física
multifuncional – o computador. Pouco a pouco, com o desenvolvimento das
tecnologias e a informatização, houve a concentração de diversos meios de
160
PIERUCCINI, Ivete. A ordem informacional dialógica : estudo sobre a busca de informação em
Educação. São Paulo: Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
como requisito parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Informação e
Documentação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2004.
112
comunicação em uma mesma base (TV, rádio, jornal, telefone ...tudo é acessado
a partir de um único aparelho).
2.6.2 Tempo e espaço nos mundos on-line e off-line
Assuma o controle
Personalize a sua casa ou a sua ilha. Viva eternamente durante o dia
ou só de noite, na chuva ou no sol: no seu terreno, você controla o
tempo e o espaço161.
Zigmunt Bauman aborda em quase todas as recentes obras publicadas as
consequências do que chama de liquidez.
Ao tratar das mudanças no planeta, o autor aborda o que denomina
passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida”:
(...) para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que
limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a
repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem
mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam),
pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva
para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. É
pouco provável que essas formas, quer já presentes ou apenas
vislumbradas, tenham tempo suficiente para se estabelecer, e elas não
podem servir como arcabouços de referência para as ações humanas,
assim como para as estratégias existenciais a longo prazo, em razão de
sua expectativa de vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta
que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e
161
O que é o Second Life?. Disponível em: http://secondlife.com/whatis/?lang=pt-BR. Acesso em: 10
ago. 2011.
113
consistente, e ainda mais curta que o necessário para a realização de
um “projeto de vida” individual162.
Em relação aos avanços da tecnologia, Bauman observa que surge o
espaço cibernético do mundo humano com o advento da rede mundial de
informática.
Numa vida de contínuas emergências, as relações virtuais derrotam
facilmente a vida real. Para um jovem, o principal atrativo do mundo virtual é a
ausência de contradições e objetivos conflitantes que rondam a vida off-line163.
Na esfera on-line, o jovem tem a capacidade de remodelar a identidade e a
rede, sempre que necessário. As identidades são descartáveis.
As capacidades interativas da internet são feitas sob medida para essa
nova necessidade. Em sua versão eletrônica, é a quantidade de conexões, e não
sua qualidade, que faz toda a diferença para as chances de sucesso e fracasso.
A internet facilita a construção de novas identidades, a atualização do que
“todo mundo está falando”, o compartilhamento de experiências pessoais e a
atualização e substituição do que está fora de moda.
No ambiente virtual é possível a reinvenção da identidade e a ampliação
das relações interpessoais e laços sociais.
Essa é justamente a irrecusável proposta do Second Life, um ambiente
virtual onde é possível criar uma vida paralela e sem os limites que existem off-
162
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 07. BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.
23/24.
163
114
line, com o ingresso em um mundo com possibilidades infinitas, guiado pela
imaginação:
Quando você entra no Second Life pela primeira vez, seu ponto de
partida é a Welcome Island. Tudo no Welcome Island foi feito para
você aprender o Second Life básico rapidamente, como andar, usar o
zoom da sua câmera, conversar, ficar de pé, sentar, voar e se
teletransportar. Seus estudos serão recompensados com pequenas
surpresas164.
Além da vida perfeita oferecida no ambiente Second Life, outro nicho
virtual revoluciona o mercado do entretenimento. Trata-se do fantástico “reino
dos games”, onde os multijogadores em massa (MMOs) negociam moedas
virtuais e travam guerras em infindáveis séries de níveis cada vez mais altos e
desafiadores165.
Conforme será exposto mais adiante, a condensação da informação, do
entretenimento, da comunicação e da pesquisa em única plataforma física
portátil e multifuncional facilita a expansão dos jogos e monopoliza a atenção de
pessoas de todas as idades, sem distinção de raça, sexo, cor ou religião, pois
nesse tipo de ambiente todos são personagens poderosos, aflitos para encarar
novos desafios virtuais.
164
O que é o Second Life?. Disponível em: http://secondlife.com/whatis/?lang=pt-BR. Acesso em: 10
ago. 2011.
165
Em relação ao tema dos games, a obra Economia Bandida de Loretta Napoleoni foi de fundamental
importância para despertar a curiosidade e fomentar a pesquisa. Depois de inúmeras buscas nas fontes
e referências bibliográficas citadas no livro, foi possível despertar para o fato de que há uma imensa
demanda pelo entretenimento virtual, que fomenta não só a perniciosa dependência do jogo, que se
manifesta cada vez mais cedo entre crianças e jovens, mas também um comércio amplo, nocivo e
informal de moedas virtuais, varinhas mágicas e naves espaciais negociadas on-line.
Também se multiplicam os suadouros on-line (terminologia adotada no livro citado), que são locais
(em geral velhos hangares ou armazéns abandonados) onde jogadores profissionais desenvolvem suas
aptidões multiplicando as moedas virtuais (para que sejam vendidas) ou mesmo criando entraves para
driblar as autoridades e sustentar os ganhos. 115
2.6.3 Informática e sigilo
A informatização não trouxe apenas consequências positivas para a
humanidade, pois com o passar do tempo, tornou-se um recurso eficaz para a
prática de crimes.
Também em razão do grande número de dados que tramitam pelas redes e
computadores do mundo, foram criados incontáveis bancos de dados
eletrônicos.
O constante desenvolvimento dos bancos de dados eletrônicos que contêm
dados pessoais das pessoas constitui atualmente uma grande ameaça à
privacidade.
No ordenamento jurídico brasileiro não há regulamentação específica
sobre a coleta, organização e uso de bancos de dados.
Em relação às comunicações telefônicas, estabelece o artigo 5º, inciso
XII, da Constituição Federal:
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal;
Nota-se, atualmente, desenvolvimento crescente de meios eletrônicos de
captação de provas como maneira de se perseguir a criminalidade moderna,
116
própria da sociedade contemporânea marcada pelo avanço tecnológico e pela
globalização166.
O dado informatizado é uma informação numérica, de formato capaz de
ser entendido, processado ou armazenado por um computador ou parte
integrante de um sistema de computador. Ou ainda, uma informação preparada
para ser processada, operada ou transmitida por um sistema de computador ou
por um programa de computador.
O sigilo dos dados informatizados está previsto, de maneira genérica, na
lei nº 7.232/04 (lei de informática).
No entanto, a desatualização da legislação brasileira no campo da
informática é patente.
Dados bancários e fiscais também tramitam no ambiente virtual, que
abarca milhares de transações escriturarias por segundo.
Além do aspecto relacionado à segurança das transações, existem
questões referentes ao sigilo dos dados.
Os sigilos bancário e fiscal não foram objeto de proteção autônoma por
nenhum dispositivo constitucional, no entanto, ocorrem de um desdobramento
do direito de privacidade.
Atualmente o sigilo bancário é objeto de regulação pela Lei
Complementar nº 105/01.
166
MACHADO, André Augusto Mendes e KEHDI, André Pires de Andrade in FERNANDES,
Antônio Scarance et alii. Sigilo no Processo Penal – Eficiência e Garantismo. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2008, p. 251.
117
Segundo Antônio Scarance Fernandes167, garantir o sigilo do ser humano
significa proteger os seus segredos, tantos os de sua esfera íntima quanto os de
sua vida privada.
É nesse âmbito que está inserida a proteção do sigilo bancário. Os dados
que constam dos registros do titular da conta-corrente mostram aspectos
relevantes de sua vida privada. Os cheques por ele emitidos e os depósitos por
ele realizados revelam o âmbito de seus relacionamentos, expõem os lugares que
frequentou, evidenciam as pessoas que teve contato, dados estes de sua vida
privada.
Os empréstimos feitos por ele junto aos bancos constituem demonstração
de suas necessidades e, eventualmente, de graves dificuldades econômicas. Nos
documentos que preenche para realizar operações financeiras, o correntista
presta várias informações de caráter particular. Quando contata diretamente um
gerente, expõe muito de sua vida.
Por todos esses motivos, proteger o sigilo bancário é resguardar o
indivíduo contra a divulgação indevida de sua vida privada, sendo assim,
manifestação essencial da garantia constitucional da inviolabilidade da vida
privada e dos dados.
No entanto, assim como os demais direitos fundamentais, não se trata de
um direito absoluto, de modo que é admissível a quebra do sigilo bancário em
prol do interesse público, por determinação do Poder Judiciário, de uma CPI ou
do Ministério Público.
No mesmo sentido, o sigilo fiscal, protegido pelo art. 198 do CTN.
167
FERNANDES, Antônio Scarance. O sigilo financeiro e a prova criminal in COSTA, José de
Faria e SILVA, Marco Antônio Marques da (coordenação). Direito Penal Especial, Processo Penal e
Direitos Fundamentais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 459. 118
Porém, não se pode olvidar que o acesso a esses dados deve ser medida
excepcional, somente possível quando expressamente permitida pela legislação
e se for necessária para a apuração do ilícito penal.
2.7 Globalização
2.7.1 O processo de globalização
O sociólogo francês Edgar Morin168 distingue os vocábulos mundialização
(mondialisation) e globalização (globalisation). Estabelece que o primeiro teve
início no fim do século XV, com as Grandes Navegações, e o segundo surge no
século XX, pois a partir dos anos 60 e 70, cada indivíduo do mundo
(desenvolvido) começa a agregar em si e passa a possuir o “todo planetário”.
Nesse sentido, a globalização é o estágio atual da mundialização. Ela
começa precisamente em 1989, após o colapso das economias ditas socialistas,
como fruto da ascensão do capitalismo desenfreado e do surgimento de uma
rede de telecomunicações instantâneas (fax, celular, internet). Essa conjunção
ensejou a unificação tecnoeconômica do planeta169.
Não obstante a precisão vocabular e histórica de Morin, a origem desse
processo de transformação é incerta para a maioria dos estudiosos. Alguns
(como Luc Ferry170) identificam a primeira fase da globalização com a
revolução científica dos séculos XVI, XVII e XVIII, já que as Luzes rompem as
168
MORIN, Edgar. La voie – pour l’avenir de l’humanité. France: Librairie Arthème Fayard, 2011.
MORIN, Edgar. La voie – pour l’avenir de l’humanité. France: Librairie Arthème Fayard, 2011,
p. 18.
170
FERRY, Luc. Diante da crise; materiais para uma política de civilização. Rio de Janeiro: DIFEL,
2010.
169
119
visões antigas do mundo, que passa a ser estudado e compreendido de maneira
racional e científica, deixando um legado de reconhecimento para toda a
humanidade.
Dessa forma, a segunda globalização que hoje vivenciamos emerge na
segunda metade do século XX com o nascimento dos mercados financeiros
ligados à comunicação instantânea. Caracteriza-se, fundamentalmente, pela
economia de competição, que coloca as atividades humanas em um estado de
concorrência incessante, onde a história passa a mover-se fora da vontade dos
homens.
2.7.2 O sentido da globalização
(...) É simplesmente que o mundo cresceu de repente, e com ele e nele
a vida. Subitamente esta se mundializou de fato; quero dizer com isso
que o conteúdo da vida do homem médio de hoje é todo o planeta; que
cada indivíduo vive habitualmente todo o mundo. (...)171.
O pensamento acima reproduzido, do filósofo espanhol Ortega y Gasset,
foi manifestado no início do século XX em sua obra “A rebelião das massas”.
Observa-se, no entanto, que é simplesmente atual. Ilustra em poucas palavras o
significado da nossa sociedade nos dias de hoje, pois “cada indivíduo vive
habitualmente todo o mundo”.
Acredita-se atualmente que a globalização é o destino do mundo, um
processo irreversível, caracterizada pela transformação constante dos parâmetros
da condição humana.
Para Jacques Attali, Globalização significa:
171
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 67.
120
Convergência da conectividade, possibilitada pela tecnologia, com a
mundialização, tornada necessária pelo mercado. Uma aproxima no
tempo, a outra, no espaço. Todos os principais problemas tornar-se-ão
internacionais e interdependentes. Por exemplo, não será mais
possível tratar da droga sem falar dos tráficos financeiros, da poluição
sem falar da água, da segurança sem falar da geopolítica, do
atravancamento sem falar da triagem.
Tampouco será possível tratar qualquer desses problemas senão em
escala planetária172.
A palavra globalização traz em si uma ideia de nova compreensão
tempo/espaço, pois mesmo que estejamos fisicamente imóveis, estaremos em
movimento, já que a mobilidade não é uma opção realista num mundo em
permanente mudança173.
Esse fenômeno deu origem a um novo paradigma de organização da
humanidade – o modelo de sociedade global, na qual a ideia de uma fronteira
geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no mundo real.
As justificativas para os problemas da atual sociedade, com suas
complexidades, são geralmente atribuídas ao fenômeno da globalização.
A sociedade globalizada, com sua característica de sociedade da
comunicação, traz no seu bojo as transformações sociais até então não
conhecidas, ou levadas em conta pelo direito174.
172
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI – Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 201.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1999.
174
SILVA, Marco Antônio Marques da. Globalização e direito penal econômico in SILVA, Marco
Antônio Marques da (coordenação). Processo Penal e Garantias Constitucionais. São Paulo: Quartier
Latin, 2006, p. 402.
173
121
O fator decisivo da chamada globalização reside na aceleração do
processo, causada pela revolução tecnológica, empresas transnacionais e
mercado internacional.
Recentemente o processo de globalização vem ganhando importância em
função, principalmente, das invenções e desenvolvimento de tecnologias
relacionadas à transmissão de dados e informações.
Com o tempo de comunicação implodindo e encolhendo para a
insignificância do instante, o espaço e os delimitadores de espaço deixam de
importar, pelo menos para aqueles cujas ações podem se mover na velocidade da
mensagem eletrônica.
No mundo on-line, o internauta é livre para criar novos perfis, fazer
compras a qualquer hora do dia ou da noite, no conforto de sua poltrona,
integrar redes sociais e ter a oportunidade de revelar despreocupadamente
detalhes íntimos de sua vida, evitando a amargura de um olhar repressor ou de
qualquer manifestação de reprovação por parte do receptor da mensagem, já que
ao menor sinal de reprovação, é possível interromper o fluxo de informações.
Os sentimentos de solidão e abandono são sufragados pela companhia de
milhões de amigos do mundo virtual.
Nesse mundo, o internauta se sente poderoso, pois tem a possibilidade de
interromper o fluxo de informações a qualquer momento. Sente também que
para ser feliz não necessita mais da interação com outros homens, aqueles de
carne e osso.
122
2.7.3 Padronização e personalidade coletiva
O acesso amplo à tecnologia, aos meios de comunicação e à facilidade de
deslocamento no território global são aquisições do homem da atualidade, que
custaram a tão sonhada liberdade do homem do século XVIII.
Aos poucos, o indivíduo isolado perde sua identidade e passa a ser
considerado indivíduo na multidão.
Gustave Le Bon175 estudou com profundidade as características
psicológicas das multidões. Reproduziu, com sabedoria, suas impressões sobre o
aspecto mais surpreendente de uma multidão psicológica:
quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, por mais
semelhantes ou dessemelhantes que possam ser seu tipo de vida, suas
ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o mero fato de se haverem
transformado em multidão dota-os de uma espécie de alma coletiva176.
Explica, ainda, que essa alma os faz sentir, pensar e agir de um modo
completamente diferente daquele como sentiria, pensaria e agiria cada um deles
isoladamente.
Algumas ideias e sentimentos só surgem ou se transformam em atos nos
indivíduos em multidão.
175
Gustave Le Bon foi médico e sociólogo, nasceu em Nogent-le-Rotrou, França, em 1841. Estudou
medicina na Universidade de Paris. Escreveu, entre outros livros, L’Homme et les sociétés e Les
Premières Civilisations. Faleceu em 1931.
176
LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008, p.
32.
123
As ponderações precisas do sociólogo francês datam do início do século
XX, mas bem representam a sociedade dos nossos dias, do homem-consumidor
padrão, que é refém do celular, não sai de casa sem o tablet ou notebook, come o
mesmo fast-food em qualquer parte do mundo, veste marcas da moda e partilha
desejos. Faz parte de um verdadeiro exército de iguais.
Esse homem-padrão é apenas mais um na multidão. Ele busca satisfação
em experiências momentâneas, em estar onde os outros estão, portar distintivos
ou símbolos de intenções, partilhar estilos ou gostos comuns.
A padronização também é verificada no âmbito da cultura, ou seja, em
relação às utopias de exportação em matéria de educação.
A falta de tempo e a intensidade das intenções induz as pessoas a pensar a
curto prazo, em coisas a serem feitas de imediato ou num futuro muito próximo.
O aprendizado e o esquecimento são influenciados pela tirania do momento,
instigada pelo contínuo estado de emergência.
Além disso, estão em extinção os centros de formação que prestigiam o
desenvolvimento do sentido humano, respeitando as raízes culturais dos povos.
Isso porque os estudantes estão sendo treinados para maximizar lucros.
Há uma frenética busca por riqueza, mas o equívoco é considerar que,
nesse contexto, desenvolver significa desumanizar.
124
2.7.4 A globalização negativa
Observa-se que a sociedade atual é caracterizada pela insaciável sede de
consumo, pelo bombardeio de informações, por avanços tecnológicos e pela
globalização.
Todos esses elementos (consumo, informação, tecnologia e globalização)
atuam simultaneamente na coletividade, evidenciando, ademais de aspectos
positivos para a humanidade, forças negativas ligadas à volatilidade da
economia em âmbito mundial.
Isso quer dizer que a integração econômica unificou o mundo, revelando
efeitos não desejados e imprevistos da globalização. É a chamada globalização
negativa.
A primeira das consequências mais evidentes da globalização negativa é a
configuração do risco de origem humana como fenômeno social estrutural, ou
seja, os riscos que decorrem da decisão de outros concidadãos e envolvem
possíveis danos amplos, não delimitáveis, globais e irreparáveis. O tema
referente aos riscos na sociedade será oportunamente retomado.
No entanto, neste momento é importante ressaltar que existe um imenso
poder concentrado nas mãos dos investidores (detentores do capital, dinheiro
necessário para investir)177. A mobilidade do capital distanciou ainda mais os
verdadeiros tomadores de decisão (pessoas que investem) dos empregados, dos
fornecedores e da própria comunidade onde está situada a empresa.
177
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1999.
125
Novas hierarquias sociais, políticas, econômicas e culturais podem ser
criadas e destruídas em qualquer parte do mundo e a qualquer momento. O
fluxo de renda é flexível, o que gera completa desconexão do poder com as
obrigações (referentes aos empregados, jovens, comunidades, gerações futuras,
meio ambiente e condições de vida em geral).
Esse extraordinário poder revela uma assimetria extraterritorial, já que o
investidor é livre para alterar, inadvertidamente, seu âmbito de exploração,
transferindo os lucros e fluxos de renda e desprezando as consequências da
decisão, pois os ônus da própria deliberação não o atingem diretamente.
Também identifica-se o fenômeno que Loretta Napoleoni178 descreve
como “transformação do mundo moderno pela ação de forças econômicas que
buscam locupletar-se sobre a rede de ilusões econômicas e políticas que
aprisiona os consumidores num mundo de fantasia construído por bandidos
emergentes”.
É fato que o acúmulo de fortunas sempre existiu, bem como alianças
políticas para ampliar, restringir e manipular o poder, em benefício de quem
detém o domínio econômico.
No entanto, a economia bandida179 amplia o espectro da corrupção, que
evolui em escala global e passa a coexistir com valores opostos, dificultando ou
mesmo impossibilitando sua identificação.
O consumismo invade todas as esferas da existência humana. Objetos,
estilos de vida, aparências, artigos virtuais, enfim, tudo é exposto e desejado.
178
179
NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 18.
Expressão utilizada por Loretta Napoleoni.
126
Esse mercado global encobre, amplia e fomenta a miscigenação entre a
economia regular e as práticas nocivas – que podem ser qualificadas como
crimes ou não. Os consumidores não sabem e nem têm como estabelecer essa
interdependência. Segredos econômicos dos produtos consumidos são
mascarados pela rede de ilusões comerciais.
O trabalho escravo impregna o mundo da moda180, ao mesmo tempo em
que a combinação entre capital de alta tecnologia e mão de obra barata cria o
ambiente propício para a internacionalização da produção - terceirização do
serviço (outsourcing) e a transferência da produção para o exterior (offshoring).
Verifica-se a ampliação da indústria da pirataria, que atende à demanda
global das réplicas. A propriedade intelectual é indevidamente multiplicada com
utilização de tecnologia de reprodução abundante, barata e imediata.
Mas, além da propriedade intelectual, a falsificação já não é novidade no
campo dos medicamentos e até de próteses humanas para substituição de dentes
e ossos.
A China é mundialmente conhecida como a maior fornecedora de
produtos piratas, mas atualmente também abastece os outros países com
milhares de imigrantes ilegais181, que são absorvidos por uma rede étnica e
180
Recentes denúncias de trabalho escravo envolvendo a Marca Zara foram amplamente divulgadas
pela imprensa. Consta que fornecedora da rede espanhola mantinha uma casa na zona norte de São
Paulo com 16 trabalhadores sul-americanos em condições irregulares (reportagem veiculada pela
revista VEJA em 17/08/2011 – Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/economia/trabalhoescravo-encontrado-na-rede-da-zara. Acesso em: 20 ago. 2011).
181
O trabalho forçado em países industrializados é principalmente uma consequência do tráfico de
pessoas. O tráfico é um crime global que pode ser caracterizado como o lado escuro da globalização.
Um crescente número de pessoas procura deixar seus países em busca de trabalho, enquanto os canais
legais de imigração continuam restritos, especialmente para trabalhadores migrantes com pouca
qualificação e mulheres.
Os traficantes têm conseguido explorar essa brecha e obter grandes lucros com essa exploração de
trabalhadores migrantes. Eles visam as comunidades empobrecidas, subornam autoridades de
aplicação da lei e levam pessoas para situações de trabalho forçado.
127
econômica clandestina, manipulada por traficantes de seres humanos, na qual
devem trabalhar durante anos para saldar as dívidas e não podem se socorrer
das autoridades locais. A eles é reservado o submundo da invisibilidade.
Relatório sobre tráfico de pessoas do Departamento de Estado NorteAmericano indicou condições socioeconômicas que levam ao tráfico, tais como
pobreza, demanda por trabalho barato e baixo risco para os traficantes182.
Consequentemente, esses seres invisíveis mantêm outras redes de
clandestinidades, como por exemplo a burla do sistema bancário formal, já que a
repatriação dos lucros é feita em dinheiro, livre de tributação e sem deixar
rastros183.
A invisibilidade e a violência também destroem a juventude de crianças e
adolescentes pobres, que são usados para atrair estrangeiros envolvidos com o
turismo sexual184.
O tráfico também pode ocorrer de forma menos organizada, com recrutadores, transportadores e
empregadores agindo de forma independente e explorando trabalhadores migrantes irregulares para
ganhos em curto prazo. Mesmo os trabalhadores migrantes regulares, como os contratadores e
sazonais, podem ser vítimas da exploração do trabalho forçado. Fonte: site da Organização
Internacional
do
Trabalho.
Disponível
em:
http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/paises_industrializados.pdf. Acesso em: 18
out. 2011.
182
Fonte:
site
da
Organização
Internacional
do
Trabalho.
Disponível
em:
http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/paises_industrializados.pdf. Acesso em: 18
out. 2011.
183
Em geral, os imigrantes ilegais utilizam o método conhecido como hawala ou cabo, que é, em
síntese, um conhecido sistema informal de transferência de fundos que não são registradas pelo
sistema financeiro oficial. É um sistema rápido, com baixo custo operacional, simples e que não deixa
rastros. Está baseado na confiança e é utilizado, quase que exclusivamente, para a prática de crimes de
lavagem de dinheiro, evasão de divisas e financiamento ao terrorismo.
184
O turismo sexual como porta para o tráfico de pessoas é objeto de debate recente na Comissão
Parlamentar de Inquérito do Tráfico Internacional de Pessoas do Senado. O assunto chegou à CPI por
meio de um caso específico ocorrido no Amazonas.
Em julho, o jornal The New York Times noticiou que quatro mulheres brasileiras indígenas da cidade
de Autazes (AM) estavam processando a empresa norte-americana de turismo Wet-A-line por danos
morais. A Wet-A-Line atuava no Amazonas em parceria com a empresa nacional Santana Ecofish
Safari. Durante a investigação, a Polícia Federal teria constatado que, nas vendas de pacotes turísticos
para a pesca esportiva, a prostituição também estava incluída. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/noticias/cpi-vai-investigar-turismo-sexual-como-porta-para-traficohumano.aspx. Acesso em: 11 out. 2011.
128
Simultaneamente, outras crianças e adolescentes (aqueles que têm acesso
à tecnologia) são cooptados para o “mundo dos games” e tornam-se
multijogadores em massa (MMOs), viciados em desafios virtuais, especialistas
em objetos mágicos que servem para ludibriar adversários de jogo.
Segundo dados da DFC Intelligence185, estima-se que o mercado global de
videogames deva crescer de US$ 66 bilhões em 2010 para US$ 81 bilhões em
2016. A área de maior crescimento será a de entrega on-line de jogos186.
A crescente demanda alimenta, além do mercado negro global de
softwares (pirataria), a expansão de depósitos humanos insalubres onde
jogadores profissionais multiplicam e vendem moedas virtuais e outros objetos
bizarros que fornecem acesso a novas fases dos games.
A propósito, as moedas virtuais lideram a preferência da criminalidade.
Elas têm valor real, pois os comerciantes podem trocá-las a qualquer momento
por moedas de verdade.
Foram criadas para driblar as leis do mundo real e garantir o anonimato de
seus usuários por meio de sistemas seguros de pagamentos eletrônicos. Elas não
são rastreáveis e funcionam de maneira simples: o usuário abre uma conta online e a carrega de moedas eletrônicas usando o cartão de crédito (ex. PayPal)
ou mesmo por meio de conta bancária anônima (ex. e-gold).
Então, podem acessar tranquilamente jogos de azar ou mesmo pornografia
on-line, pois os servidores, em geral, estão localizados em países estrangeiros,
185
DFC Intelligence é um centro de pesquisa de mercado e consultoria estratégica na área de
entretenimento interativo e jogos on-line situado em San Diego/CA. Disponível em:
http://www.dfcint.com/index.php. Acesso em: 10 out. 2011.
186
DFC Intelligence Forecasts Worldwide Video Game Market to Reach $81 Billion by 2016 September 07, 2011. Disponível em: http://www.dfcint.com/wp/?p=312. Acesso em: 10 out. 2011.
129
com legislações mais permissivas, o que dificulta a identificação e inibe a
atuação das autoridades locais.
A pornografia on-line é o maior negócio eletrônico do mundo. Estima-se
que, a cada segundo, US$ 3.075.65 sejam gastos em pornografia e 28.258
usuários de internet estejam vendo pornografia. Nos Estados Unidos, a indústria
pornográfica da internet impulsiona US$ 2,84 bilhões por ano. A indústria
mundial vale US$ 4,9 bilhões187.
Acesso fácil a um conteúdo inapropriado também expõe indevidamente
crianças e adolescentes. Segundo a pesquisa citada, a média de idade com que as
crianças têm contato pela primeira vez com sites pornográficos é de 11 anos.
Desconhecimento e a ignorância são os ingredientes necessários para
fomentar outros nichos de clandestinidade, como a chamada biopirataria. Tratase, grosso modo, da apropriação ilegítima de lucrativos recursos biológicos
retirados de diversas localidades.
Em suma, o caminho inverso da cadeia de consumo conduz a uma origem
sombria de trabalho escravo, pirataria, falsificação, fraude, lavagem de dinheiro
etc.
Mas, superado o obscuro fosso da clandestinidade, outras questões
merecem reflexão, como o fomento à multiplicação dos lucros sem
investimentos na produção de bens e sem crescimento econômico real.
187
Os dados foram retirados de reportagem da revista Época, publicada em 03 jun. 2010, que cita
como fonte o infográfico com estatísticas sobre pornografia na internet publicado pelo site MBA
Online. Disponível em: http://colunas.epoca.globo.com/sexpedia/2010/06/03/domingo-e-dia-de-verpornografia-na-internet/. Acesso em: 14 out. 2011.
130
O oportunismo econômico envolve questões éticas e morais. A
manipulação tendenciosa (ainda que não criminosa) traz questionamentos sobre
o verdadeiro papel do Estado no âmbito econômico.
É cediço que a ausência do Estado cria o ambiente propício à expansão da
criminalidade estruturada. A rede criminosa se amplia e se retroalimenta com
uma ampla variedade de serviços e parcerias.
Cada pequeno nicho descoberto, invadido e explorado pela criminalidade
do mundo virtual escancara as portas para as infinitas redes de outras atividades
ilegais. O mercado secundário opera tranquilamente nesse universo desregulado,
em que o sigilo vem com o território.
A expansão da criminalidade organizada transnacional expõe a fragilidade
dos Estados e deixa claro que a expansão da economia foi desproporcional ao
desenvolvimento de estruturas jurídicas de proteção dos direitos.
É certo que a propagação da criminalidade segue o ritmo acelerado da
economia e se aproveita da globalização para consolidar organizações com
fortes redes geográficas que preenchem o vazio da ausência de jurisdição estatal.
Por vezes, essas organizações contam com as políticas de governos poderosos
para potencializar a força.
Nesse contexto, surgem vozes sustentando que as formas de governo
estão em fase de transição, ou seja, o Estado-nação baseado no bem-estar dos
cidadãos será sepultado pelo Estado-mercado, onde as entidades políticas
deixam de proteger os cidadãos e passam a assumir papel empresarial.
Isso quer dizer que, segundo os defensores do Estado-mercado, política e
indivíduo passam a desempenhar novos papéis. Em recente entrevista publicada
131
na revista Época188, o americano Philip Bobbitt189 sustenta essa tese de que os
Estados nacionais vão deixar de existir e serão substituídos por uma simbiose
do setor financeiro, de entidades privadas e do governo. Será o Estado-mercado.
Philip Bobbitt ressalta que:
A mudança que ocorre de Estados-nação para Estados-mercado não é
uma questão de vontade: é inevitável. É o caminho que estamos
seguindo: a expansão de um regime econômico mundial que ignora as
fronteiras na movimentação de investimentos de capital impede os
Estados de administrar nacionalmente seus problemas econômicos.
Contudo, a supremacia do Estado-mercado, nesses moldes, sepultaria
definitivamente a dignidade humana.
Os protagonistas da era da globalização podem até imaginar que o
capitalismo ocidental tomará toda a economia mundial e as pessoas e países
enriquecerão de uma maneira eficiente, de acordo com o que é apresentado por
Philip Bobbitt. No entanto, subjaz o evidente aspecto degradante e desumano
desse modelo.
E algumas vozes já se levantam, ainda que de maneira tímida, para
esboçar o início da frouxidão do cabresto capitalista.
188
"O Estado nacional não atende a sociedade"/ Entrevista/ Philip Bobbitt. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midiasnacionais/brasil/epoca/2011/10/10/o-estado-nacional-nao-atende-a-sociedade/print-nota. Acesso em:
20 out. 2011.
189
Philip Bobbitt é professor de Direito Constitucional na Universidade do Texas. Autor de A guerra e
a paz na história moderna, um dos livros mais influentes da última década, Bobbitt foi consultor de
quase todos os presidentes dos Estados Unidos desde 1970. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midiasnacionais/brasil/epoca/2011/10/10/o-estado-nacional-nao-atende-a-sociedade/print-nota. Acesso em:
20 out. 2011.
132
A humanização do próprio sistema financeiro ganha status dentre as
questões relevantes de âmbito global. Neste específico ponto, Loretta
Napoleoni190 indica que o sistema financeiro islâmico é o setor mais dinâmico e
o que mais rapidamente cresce na finança global.
Baseado na filosofia do compartilhamento dos riscos, na qual o
empreendedor deve dividir o risco com o tomador, esse sistema financeiro
apresenta forte componente social. Os princípios religiosos do islã o direcionam
de acordo com a crença de que não se deve usar o dinheiro como uma
mercadoria em si mesma, destinada a criar mais dinheiro.
Segundo a Organização Islâmica Al Furqán191, o próprio Vaticano
afirmou que o sistema financeiro islâmico poderá ajudar os bancos ocidentais
em crise, como alternativa ao capitalismo. Ou seja, os bancos deveriam olhar
para as regras éticas das finanças islâmicas a fim de recuperar a confiança dos
seus clientes numa época de crise econômica global192.
Sem a pretensão de abordar maiores detalhes sobre o sistema islâmico,
importa observar que se trata de uma novidade, rival em potencial do
capitalismo ocidental, regulado por princípios estranhos à economia de mercado,
relacionado a fatores religiosos e com apego à solidariedade.
Quiçá o sistema islâmico venha a substituir o atual modelo capitalista,
revigorando o ciclo histórico-evolutivo com a sedimentação de nova ordem
mundial calcada em sistemas financeiro e monetário de bases humanistas.
190
NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010, p. 263/289.
Al Furqán é uma Organização Islâmica de vanguarda, legal e independente, fundada em 21/4/81,
que, voluntária e gratuitamente, trabalha em prol da defesa do Islão divulgando e editando Estudos
Islâmicos em Portugal (Publica uma revista bimensal, livros, opúsculos, calendário Islâmico,
autocolantes, cds, etc.). Disponível em: http://www.alfurqan.pt/quem.asp. Acesso em: 20 out. 2011.
192
Temas islâmicos – O vaticano elogia o sistema financeiro islâmico. Disponível em:
http://www.alfurqan.pt/view_tema.asp?ID=122. Acesso em : 20 out. 2011.
191
133
A economia deve estar a serviço dos cidadãos. Para que isso ocorra, o
sistema financeiro precisa abdicar da ideia de que o dinheiro pode criar o
dinheiro, ou seja, uma economia a serviço dos cidadãos e não exclusivamente
orientada para o dinheiro fácil à custa dos consumidores.
Há que haver um esforço conjunto e contínuo da humanidade para que os
efeitos não desejados e imprevistos da globalização, a chamada globalização
negativa, sejam contidos, ou pelo menos minimizados.
Evolução cultural, estruturada na ideia de ordem e estabilidade social,
com amplo debate e conscientização sobre questões políticas, além da fixação
de objetivos de longo prazo, são os primeiros passos para a reciclagem da
história.
Retomar o sentido da grandeza do “ser humano” significa afirmar a
dignidade de todas as formas, em todos os âmbitos e com todos os predicados a
ela inerentes.
2.7.5 Crise mundial
Parece irrefutável que vivenciamos uma crise econômica mundial193.
Alguns aspectos verificados no decorrer da década de 90 nos auxiliam a traçar
um panorama dos seus antecedentes.
O primeiro aspecto que merece referência é a entrada na cena econômica
mundial dos países emergentes, o segundo fator é o crescente aumento das
exigências de remuneração do capital e, finalmente, o mais relevante (que nos
193
Luc Ferri observa que o reconhecimento de que a crise é econômica e não financeira implica
reconhecer sua maior gravidade e profundidade, o que exige respostas mais fundamentais.
134
restringiremos a tratar neste breve estudo), o fomento a uma lógica insana de
endividamento194.
Sobre esse último aspecto, alguns comentários.
A vida a crédito, em dívida e sem poupança, passou a ser considerada
como um método correto e adequado de administrar os assuntos humanos em
todos os níveis, tanto no da política de vida individual como no da política de
Estado, que se tornou oficial na atual sociedade de consumidores.
Os empréstimos contraídos pelos Estados Unidos, tal como as dívidas dos
consumidores, destinam-se a financiar o consumo (“fator de boa sensação” do
eleitorado), e não o investimento.
Analisando historicamente as possíveis procedências da crise, pode-se
identificar sua origem na década de 1980, quando os países ocidentais mais
industrializados, mormente os Estados Unidos, vivenciaram uma bipolarização
no mundo do trabalho.
De um lado estavam os trabalhadores com elevada formação e altas
remunerações, e de outro, uma massa de assalariados menos qualificada e por
consequência mal remunerada. Nessa conjuntura, as classes médias sofreram
uma incrível compressão.
Eram justamente essas classes médias que impulsionavam o crescimento e
o consumo e seu enfraquecimento ensejou um endividamento maciço das
famílias. Nesta fase, já não são mais os salários que carregarão o crescimento,
mas os créditos.
194
FERRY, Luc. Diante da crise; materiais para uma política de civilização. Rio de Janeiro: DIFEL,
2010.
135
A riqueza não se faz mais com riqueza, e sim com dívidas. Estimula-se o
endividamento com o sistema de empréstimos a risco muito alto.
Observa-se que, como era previsível, o excesso de endividamento
alimentou uma bolha especulativa nas áreas imobiliária e financeira, cujo
estouro ocasionou consequências nefastas como a perda de confiança no sistema
bancário e na economia real, dificuldade de acesso ao crédito e consequências
sobre o emprego, consumo e futuramente sobre o próprio poder de compra.
2.8 O mundo mudou
Diante do que foi exposto até o presente momento, é possível
compreender que em pequeno lapso temporal, houve uma alteração, em âmbito
mundial, da maneira de compreender os conceitos de tempo e espaço.
Para o homem de hoje, compreender e viver o próprio tempo é um grande
desafio. Não há oportunidade para conhecer a história, e o prazer do momento
limita os projetos de futuro.
O consumo desenfreado fornece o bem-estar instantâneo. A informação
agora é vasta e não demanda esforços na busca.
A propósito, não só informação, mas também diversão, comunicação,
pesquisa e outras formas de interação estão disponíveis em única plataforma
física portátil e multifuncional (computador, tablet, telefone etc.). Há relação de
completa dependência entre seres humanos e esses dispositivos.
136
A plataforma acessível, portátil e extremamente ampla tem aptidão para
receber variados tipos e quantidades de informações. Atende às necessidades
que vão de simples conversas até complexas transações financeiras
internacionais, que podem ser manejadas de qualquer parte do mundo apenas
com um toque na tela do smartphone.
Logo, houve uma verdadeira revolução mundial, pois a informatização e
os aparatos tecnológicos portáteis, que agregam incontáveis funções,
impregnaram a vida humana. Já não se vive sem eles.
Também o processo de globalização absorveu os seres humanos. Fazer
parte do mundo globalizado não é opcional.
Todos esses fenômenos interagem simultaneamente, e um furacão de
novidades desaba sobre a cabeça do homem a cada segundo. Dificuldades para
selecionar informações, acesso aos problemas alheios, compartilhamento de
agonias, gestões de plataformas virtuais que se reinventam a cada dia. São os
problemas constantes que fomentam as angústias.
As relações interpessoais certamente sofrem modificações substanciais,
pois não são mais estabelecidas com a segurança do olho no olho.
Relacionamentos afetivos dispensam o prazer do toque. Transações comerciais
agora são eletrônicas, e as assinaturas digitais.
Além de tudo isso, há o aspecto da criminalidade, que também se utiliza
das mesmas ferramentas e penetra no ambiente virtual para ampliar os
horizontes.
137
As facilidades da informatização amplificaram as possibilidades,
consequências e abrangência da criminalidade. Ela se tornou mais poderosa e
dissimulada.
Grandes fraudes e manipulação de sistemas informatizados substituem
com imensas vantagens a antiga criminalidade violenta.
Conhecer as sutilezas dos sistemas, os códigos de acesso, as técnicas de
manipulação e os nichos da dissimulação fazem toda a diferença nesse novo
ambiente.
Isso porque as possibilidades de ganhos financeiros foram potencializadas
e todas as ferramentas estão disponíveis em uma simples plataforma
multifuncional (computador, telefone etc.)
Ademais, o produto geralmente é escritural, ou seja, muitas vezes não há
necessidade de transferência efetiva de moeda, não restam vestígios e o autor
não suja as mãos com o produto do crime.
Identificar os responsáveis é tarefa árdua, pois, na maior parte das vezes,
as autoridades públicas não detêm o conhecimento necessário ou estão
despreparadas.
Verifica-se, outrossim, que as novas formas de criminalidade são
extremamente nocivas e atingem milhares de vítimas. Dessa maneira, há um
bloqueio cultural por parte daqueles que ainda acreditam viver na era da
criminalidade diretamente violenta, pois sentem imensa dificuldade em
estabelecer o vínculo e mensurar os danos da nova criminalidade difusa, que
gera violência.
138
Ademais, a falta de percepção sobre os impactos e consequências na
economia mundial representa mais um obstáculo à efetiva contenção da
criminalidade.
O homem, vulnerável e passivo, não tem força para se defender desse tipo
de invasão agressiva e é atingido por intermédio da nova plataforma
multifuncional e do ambiente virtual que concentra todos os seus dados,
informações e relacionamentos.
Se por um lado não lhe resta opção, pois é sugado pela globalização,
transformado em consumidor compulsivo, obrigado a transferir parcela da
própria identidade para o ambiente virtual e viciado em aparatos tecnológicos
portáteis, por outro, é abandonado nesse novo mundo, tornando-se potencial
vítima num ambiente desconhecido e sem regras.
A contenção da criminalidade on-line exige esforço concatenado de todas
as esferas da persecução, que devem contar com os mais modernos meios físicos
e material humano capacitado.
Educação para a realidade, disponibilidade e conhecimento de tecnologias
são indispensáveis e fundamentais para preservar a dignidade humana no
ambiente virtual.
A imagem do policial que persegue e prende o criminoso é
paulatinamente substituída pela do policial técnico que, no âmbito de uma
investigação complexa, dispõe de meios adequados e treinamento suficiente
para identificar os criminosos virtuais, colher provas do crime e fornecer os
subsídios para o futuro processo.
139
Logo, o maior desafio da era digital é, sem dúvida, o de garantir a
dignidade humana no frágil ambiente virtual, pois ele se tornou verdadeira
extensão da vida real e congrega informações e relacionamentos dos indivíduos.
Por outro lado, sem o fortalecimento da educação e da cultura de combate
à criminalidade difusa que alimenta a violência, não será possível superar esse
desafio.
No próximo capítulo, será analisado o papel do direito diante da nova
realidade.
3. Conjuntura e Direito
3.1 As incertezas
3.1.1 A sociedade e o risco
Pela primeira vez na história do mundo, agora todo ser humano está
sujeito ao contato com substâncias químicas perigosas, desde o
instante que é concebido até sua morte195.
No trecho acima reproduzido, a bióloga Rachel Carson196 denuncia a
realidade da época e dá início ao poderoso movimento social que alterou o curso
da história.
195
196
CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa. São Paulo: Editora Gaia, 2010, p. 29.
CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa. São Paulo: Editora Gaia, 2010.
140
Subjaz ao relato, publicado em 1962, a denúncia de um grande problema
que ainda hoje, após quase 50 anos, não encontrou o encaminhamento
adequado.
Trata-se do conflito estabelecido entre o desenvolvimento tecnológico
(substâncias químicas para controle do desenvolvimento de pragas na
agricultura) e a preservação da vida humana (exposição do ser humano a
substâncias perigosas, que lhe ameaçam a saúde e com implicações que não são
dimensionadas).
Conforme já mencionado, as duas Grandes Guerras legaram ao homem
marcas de catástrofes históricas inesquecíveis e cujas consequências alteraram
substancialmente o rumo da humanidade.
No entanto, uma série de outras catástrofes, crises e tragédias desenhou o
panorama sombrio do século XX e da primeira década do século XXI.
Ulrich Beck197 aponta, com precisão ímpar, que, ao olhar para as
singularidades históricas que abrangem tais calamidades, é possível constatar
que, paulatinamente, houve verdadeira mudança substancial na maneira de
observar, analisar, sentir e reagir do homem.
Isso porque “todo o sofrimento, toda a miséria e toda a violência que seres
humanos infligiram a seres humanos eram até então reservados à categoria dos
“outros” – judeus, negros, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas,
etc.”198.
197
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: editora 34, 2010.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: editora 34, 2010,
p. 7.
198
141
Nesse cenário, os observadores (que não pertenciam às categorias)
estavam protegidos por fronteiras reais ou simbólicas, onde aparentemente não
eram afetados e onde poderiam tranquilamente se recolher.
Contudo, desde Chernobyl199, a figura dos “outros” deixou de existir,
assim como a possibilidade de segregação das catástrofes, que foi eliminada
pela invisível contaminação nuclear.
Para dimensionar a magnitude do acidente nuclear de Chernobyl,
pertinente reproduzir trecho do artigo de autoria de Mikhail Gorbachev200:
E então veio o trovão de Chernobyl. Durante aqueles primeiros dias
do acidente, muitos cientistas – inclusive alguns respeitados –
argumentaram que não tinha sido “grande coisa”, que iríamos
sobreviver. Desde o primeiro dia, no entanto, essa foi nossa política
para chegar ao fundo da questão. Decidimos que as pessoas devem
saber a verdade. O poder do átomo estava fora de controle, e isso
demandou um esforço supremo da nação para lidar com ele. Foi um
divisor de águas na nossa compreensão para muitas coisas (tradução
nossa)201.
199
Chernobyl é o nome da cidade Ucraniana onde ocorreu em 1986 o pior acidente nuclear da história.
MIKHAIL GORBACHEV era presidente da União Soviética (URSS) em 1986, quando houve a
maior catástrofe nuclear da história envolvendo a energia atômica com fins pacíficos. Este acidente
foi, de fato, o que causou o colapso da União Soviética e, além de ensejar discussões mundiais
relacionadas às consequências e riscos dos acidentes nucleares, revelou dúvidas sobre a transparência
na transmissão da informação à população. Desconfiava-se que o ex-líder soviético escondia os dados
sobre as catastróficas dimensões do acidente. Esse fato jamais foi reconhecido por GORBACHEV,
que sempre respondeu no sentido de que no início ninguém mensurava a verdadeira magnitude do
evento. A catástrofe legitimou a continuidade da política de glasnost (transparência) e perestroika
(reestruturação), que anunciaram o fim do comunismo e o nascimento de regimes democráticos na
Europa do Leste.
201
And then came the thunder of Chernobyl. During that accident’s first days, many scientists – even
some respected ones – argued that it was “no big deal,” that we would get by. From day one, however,
it was our policy to get to the bottom of it. We decided that people must know the truth. The power of
the atom had gone out of control, and it took the nation’s supreme effort to cope with it. It was a
watershed in our understanding of many things apud GORBACHEV, Mikhail. The Road we
traveled, the challenges we face – speeches, articles, interviews. Moscow: Published by Izdatelstvo
VES MIR (IVM) for the Gorbachev Foundation, 2006, p. 71/72. Disponível em:
http://www.gorby.ru/userfiles/file/gorbaghev_book_speeches_en.pdf. Acesso em: 10 mai. 2011.
200
142
De fato, o poder do átomo suprimiu as fronteiras do perigo. O mundo
passou a admitir que uma contaminação nuclear perigosa equivale à admissão
da inexistência de qualquer saída possível, para todas as regiões do planeta.
O poder do átomo não pode ser segregado, e aí reside a novidade de sua
força cultural e política. A violência do perigo suprime todas as zonas de
proteção e todas as diferenciações da modernidade202.
Os riscos e efeitos da modernização, que se precipitam sob a forma de
ameaças à vida dos seres humanos, assumem significado novo e decisivo nos
debates sociais e políticos, pois já não podem ser limitados geograficamente ou
em função de grupos específicos, ou seja, a tendência globalizante faz surgir
ameaças supranacionais e independentes de classes.
Além disso, há o chamado efeito bumerangue203, diretamente ligado à
globalização, pois, cedo ou tarde, os riscos alcançam inclusive aqueles que os
produziram ou que lucram com eles. Ele também faz com que todos
globalmente e por igual arquem com os ônus.
A potencialização dos riscos converte a sociedade global em uma
comunidade de perigos. As desigualdades internacionais e as interdependências
do mercado global lançam os bairros pobres dos países periféricos às portas dos
ricos centros industriais.
202
Discussões sobre energia nuclear estão na ordem do dia. Em matéria publicada no jornal O Estado
de São Paulo, em 02.02.2007, intitulada “Brasil dá sinal verde à França para retomada de Angra 3”,
consta que a ministra de Comércio Exterior da França, Christine Lagarde, obteve um sinal favorável
do governo brasileiro à retomada do projeto Angra 3, de geração de energia nuclear. A França pleiteia
que companhia Areva, de capital francês, conduza a possível construção da usina, que demandará um
investimento
de
R$
7,2
bilhões.
Disponível
em:
http://www.estadao.com.br/arquivo/economia/2007/not20070202p19578.htm. Acesso em: 10 fev.
2011.
203
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São Paulo: editora 34, 2010,
p. 44.
143
Dessa forma, verifica-se que as ameaças à vida passam pelas
metamorfoses sociais do perigo. Os sistemas jurídicos, por sua vez, não dão
conta das situações de fato.
Constata-se, no entanto, que houve uma ruptura do paradigma de proteção
de bens individuais e sociais. Isso repercutiu em diversas áreas do Direito, mas,
substancialmente no campo do Direito Penal e do Direito Processual Penal, o
tema se tornou o principal objeto dos estudos e debates, pois exige a atualização
do pensamento e o conhecimento interdisciplinar sobre as grandes questões da
pós-modernidade.
Isso
porque
os
chamados
bens
jurídicos
menos
individuais
(transindividuais, metaindividuais ou interesses difusos) ingressaram no
panorama mundial e penetraram o ambiente do Direito.
A efetiva proteção dessa nova espécie de bens jurídicos deve ser
garantida, inclusive, por intermédio da intervenção ativa do Estado.
Nos próximos tópicos serão estabelecidas, em breves linhas, as relações
entre os riscos da atualidade e o papel do Direito penal e processual penal na
proteção dos bens jurídicos difusos como forma de preservação da vida humana
digna.
3.1.2 O homem e o medo
Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não
entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando
que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se
explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? E
no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior
144
medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que
se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu
pensava e sim outra – como se antes eu tivesse sabido o que era! Por
que é que ver é uma tal desorganização? 204.
Numa era em que as grandes idéias perderam credibilidade, o medo
do inimigo fantasma é tudo o que restou aos políticos para manterem
seu poder205.
A afirmação acima reproduzida expressa apenas uma das facetas do medo
na vida moderna, trata-se da manipulação e uso político dos medos.
Insegurança é certamente a característica marcante de nossa era. A
humanidade vivencia novamente a era de temores e o medo é um sentimento
conhecido de toda criatura viva.
Zygmunt Bauman206 define medo como nome que damos a nossa
incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do
que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do
nosso alcance.
O medo pode ter diversas origens, como fenômenos da natureza, atos
praticados por outras pessoas ou mesmo fatos inexplicáveis, mas é certo que o
desenvolvimento de tecnologias, a voracidade do consumo, a velocidade da
informação e a globalização criaram novas expectativas humanas e ampliaram o
204
O fragmento retirado da obra “A paixão segundo G.H.” (1964) de Clarice Lispector (1925-1977)
expressa as profundezas da alma humana. Trata-se de uma das maiores obras de Clarice Lispector, que
tem um enredo aparentemente banal. Depois de despedir a empregada, uma mulher vai fazer a faxina
no quarto de serviço. Mal começa a limpeza, depara-se com uma barata. Tomada pelo nojo, ela
esmaga o inseto contra a porta de um armário. Depois, numa espécie bárbara de ascese, decide provar
a barata morta. (LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H..Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 11).
205
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 21.
206
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 8.
145
espectro de eventos e cenários nos quais é necessário ingressar de olhos
fechados.
Atividades cotidianas como deslocar-se em uma aeronave, comprar
alimentos ou dirigir um veículo podem se tornar fontes de incertezas quando são
divulgados dados sobre falta de preparo de controladores de voo, possíveis
contaminações de alimentos ou “recall” para troca de peças de veículos.
Mas também podem originar o sentimento de horror ou consternação
geral, verdadeiro medo, quando são propagadas notícias de desastres aéreos de
grande magnitude, mortes decorrentes da ingestão de alimentos contaminados
ou mesmo geneticamente modificados ou acidentes com veículo decorrentes de
falhas no sistema de frenagem.
Depois da globalização, no mundo civilizado, não há como evitar o
deslocamento aéreo e veicular e nem a ingestão de alimentos. Portanto, as
ameaças da vida moderna são múltiplas e inevitáveis, mormente num cenário
capitalista.
Neste panorama de medo, impera a tentativa constante de minimização
dos riscos, seja com a racionalização individual dos perigos, que se traduz na
contratação de seguros; seja com a movimentação coletiva no sentido de atribuir
responsabilidades por ações ou omissões, com uma feição criminosa.
Neste último caso, por vezes, exige-se do Estado uma postura firme de
repressão que culmina com a edição descontrolada de leis penais, frutos do
clamor de uma coletividade assustada.
Essa legislação, dita emergencial, ao contrário de cumprir suas
expectativas, é, em sua grande maioria, inaplicável na prática, seja porque não
146
encontra o devido respaldo no ordenamento jurídico vigente, seja porque não se
presta a proteger bens jurídicos relevantes.
Zygmunt Bauman207 comenta que como todas as outras formas de
coabitação humana, nossa sociedade líquido-moderna é um dispositivo que tenta
tornar a vida com medo uma coisa tolerável.
E dando continuidade ao conceito de liquidez por ele desenvolvido,
acrescenta que a vida líquida flui ou se arrasta de um desafio para outro e de um
episódio para outro, e o hábito comum dos desafios e episódios é sua tendência a
terem vida curta.
Da mesma forma, e parafraseando o pensamento do sociólogo, uma
legislação penal líquida corre vazia pelos espaços da mídia, na tentativa de
tranquilizar os ânimos da coletividade, até que novos episódios brotem no
contexto social, sepultando-a prematuramente sem que tenha produzido
qualquer efeito prático, sob a perspectiva do direito.
Outra constatação na esfera da sociedade de risco atual é o incremento do
chamado direito penal de risco, que nada mais é do que uma espécie de
criminalização em âmbito prévio208.
São, em geral, situações caracterizadas como de perigo abstrato, tentativa,
punição de atos preparatórios e proteção de bens difusos.
A imputação de riscos coloca em discussão os limites de redução,
ampliação e flexibilização dos princípios e garantias tradicionais. Contudo, a
imputação de riscos há que ser considerada como uma medida globalizante
207
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 13/14.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual: interesses difusos. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 121/122.
208
147
viável de proteção dos interesses que são mais caros aos seres humanos, ou seja,
a vida e a saúde.
Dessa forma, a constitucionalidade da proteção difusa mediante o perigo
abstrato deve ser analisada, em consonância com os bens jurídicos vida e saúde.
O homem é confrontado com inéditas realidades nas quais a criminalidade
ganhou novos contornos. A globalização expõe e fragiliza o homem, de modo
que, se o Direito penal pretende se firmar como instrumento eficiente de
controle da criminalidade, deve se adaptar ao novo ambiente, desenvolvendo
instrumentos de controle adequados.
Logo, a proteção dos bens jurídicos menos individuais encontra o devido
respaldo na Constituição Federal e demanda mecanismos modernos de tutela
penal, como a criminalização do perigo abstrato, sempre que necessário, em
virtude da magnitude do bem jurídico.
3.2 A proteção dos interesses menos individuais
Parece não restar dúvidas de que, na atualidade, o direito penal vai
abrindo espaço no sentido de estender sua proteção a interesses menos
individuais, porém de grande importância para amplos setores da população,
como o meio ambiente, a economia social, as condições de alimentação, o
direito ao trabalho em determinadas condições de segurança social e material –
enfim, o que se vem denominando de interesses difusos209.
209
PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: parte general. 5a. Ed. Barcelona: Reppertor, 1998, p. 135
apud STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso
(ÜBERMASSVERBOT) à proibição de proteção deficiente (UNTERMASSVERBOT) ou de como
não
há
blindagem
contra
normas
penais
inconstitucionais.
Disponível
em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=66&Itemid=40.
Acesso em: 20 ago. 2011.
148
Em relação a esses interesses, Hugo Nigro Mazzilli210 esclarece que,
como o interesse do Estado ou dos governantes não coincide necessariamente
com o bem geral da coletividade, Renato Alessi entendeu por oportuno
distinguir o interesse público primário do interesse público secundário.
O interesse público primário (bem geral) é o interesse da sociedade ou da
coletividade como um todo, e o interesse público secundário é o modo pelo qual
os órgãos da Administração veem o interesse público. É o interesse da Pessoa
Jurídica de Direito Público.
Portanto, esclarece que os interesses transindividuais estariam situados
numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, os
quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. São
interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam a
constituir interesse público.
Rodolfo de Camargo Mancuso211, por sua vez, esclarece que interesses
supraindividuais, transindividuais ou metaindividuais são aqueles atinentes a um
número razoável de pessoas.
Seriam, na realidade, interesses privados, de dimensão coletiva; eles não
chegam a ser interesses públicos na essência, já que não têm relação absoluta
com o bem da coletividade, mas também não são interesses meramente
individuais, pois não afetam pessoas individualmente consideradas.
O meio ambiente, regulado há muito pelo direito administrativo, surge no
horizonte do Direito Penal a título fragmentário e ensejando complexos
210
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo: Saraiva, 21ª
edição, 2008.
211
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do
patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e legislação complementar. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009.
149
questionamentos e discussões relacionados às novas áreas da sociedade de
risco212.
Da mesma forma, dúvidas e divergências gravitam sobre a necessidade e a
forma adequada de oferecer proteção eficiente ao cidadão-consumidor.
Se por um lado ele é considerado o grande fomentador de um sistema
autofágico, por outro, ele não passa de vítima de um aparelho agressivamente
direcionado à persuasão.
No Direito Brasileiro, a Constituição Federal de 1988 deve ser a base e o
fundamento que conduz explicitamente o intérprete à conclusão segura de que é
dever do Estado efetivar a proteção do homem.
Recorde-se que o Direito está voltado para a proteção de alguns bens.
Esses bens “jurídicos” expressam em geral valores que são caros à sociedade em
determinado tempo/espaço e, portanto, devido à sua relevância, são merecedores
da tutela estatal.
Portanto, superado o aspecto referente à necessidade, questiona-se sobre a
adequação da proteção, ou seja, a controvérsia ganha vulto quando se discute
sobre a conformação da intervenção penal.
A forma de proteção estatal deve estar diretamente relacionada à
importância que a Lei Maior e a sociedade atribuem ao “bem jurídico”, de modo
que os mais importantes recebem proteção estatal, inclusive no âmbito do direito
penal, que é a ultima ratio.
212
NEVES, Rita Castanheira. O ambiente no Direito Penal: a acumulação e a acessoriedade in
ANDRADE, Manuel da Costa e NEVES, Rita Castanheira (organizadores). Direito Penal Hoje:
novos desafios e novas propostas. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 292.
150
Sob a perspectiva da Constituição Federal, primeiro aspecto a ser
considerado é que o Brasil é um Estado Democrático de Direito Humanista, isso
significa, em breves palavras, que: todos estão submetidos à Lei; a Lei deve
expressar a vontade do povo; e os direitos humanos fundamentais devem ser
efetivos, inclusive orientando a interpretação/aplicação de todo o sistema legal.
E como nenhum campo do direito está imune à vinculação constitucional,
quando a Constituição estabelece os parâmetros do sistema jurídico-social há
que corresponder à devida alteração no campo de conformação legislativa, já
que o legislador e o intérprete não são livres para extrapolar.
E
os
bens
jurídicos
constitucionalmente
relevantes
devem
ser
identificados a partir de uma análise conjuntural do texto Constitucional.
Dessa forma, estreme de dúvidas que promoção da defesa do consumidor
é atribuição Constitucional do Estado e, conforme determina o Inciso XXXII do
artigo 5º da Carta Magna, integra o rol de direitos fundamentais:
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor
Também a ordem econômica recebeu especial atenção do Constituinte.
Isso fica claro no artigo 170 da Carta Magna que, apesar de consagrar a forma
econômica capitalista, retoma explicitamente a dignidade humana (assegurar a
todos existência digna) e a justiça social como finalidades da economia de
mercado.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios:
I - soberania nacional;
151
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e
de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.
O meio ambiente é citado por diversas vezes no corpo da Carta Magna,
sempre com ênfase no dever de proteção, no entanto, é no artigo 225 que a
Constituição Federal lhe atribui de maneira clara a feição de direito
fundamental.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público (…)
Outros aspectos relevantes dizem respeito à cidadania e à dignidade
humana, que são fundamentos da República Federativa do Brasil.
De maneira sucinta, é possível relacionar a noção de cidadania hoje no
Brasil213 essencialmente à dignidade humana. Ser cidadão é ter o poder/dever de
213
O conceito de cidadania é histórico, ou seja, seu sentido varia no tempo e espaço. No âmbito deste
breve estudo, não se pretende apresentar um conceito elaborado e definitivo, mas apenas uma noção
para subsidiar a análise do tema central.
152
participar ativa e efetivamente, de acordo com os instrumentos legalmente
previstos, da vida política e social, na qualidade de ser humano integrante de
uma coletividade.
Nesse contexto, verifica-se que em determinados casos, o “cidadão” pode
ter seu poder/dever de participação prejudicado ou mesmo suprimido, por razões
diversas, como por exemplo, pelas forças econômicas, pelas forças do mercado
etc.
Nesses casos, é dever do Estado promover a reafirmação da cidadania e
da dignidade humana, por meio de instrumentos jurídicos efetivos.
Isto é, com o devido respaldo na Constituição Federal e legitimado pela
relevância do bem jurídico, o Direito Penal há que se firmar como uma
alternativa viável e ser aplicado nos exatos limites da necessidade, evitando
omissões ou excessos.
3.3 A noção de Constituição Penal
O papel do Estado hoje não pode ser apenas de defesa do indivíduo face
aos arbítrios estatais. Os direitos individuais e os bens sociais também devem ser
protegidos dos ataques de terceiros (no caso, forças econômicas e de mercado),
com atuação direcionada à preservação dos valores fundamentais consagrados
na própria Carta Magna214.
Logo, observa-se que, em consonância com os princípios orientadores do
Estado Democrático de Direito Humanista, da cidadania e da dignidade humana,
214
STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente (untermassverbot) e o
cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superado o ideario liberalindividualista-clássico
in
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=77&Itemid=29.
Acesso em: 27 set. 2010.
153
é certo que hoje no Brasil a proteção humana adequada e digna deve ser e é uma
das principais funções Estatais.
Dessa forma, os bens jurídicos têm estrita relação com a materialidade
constitucional, sob uma perspectiva conjuntural.
Existe uma evidente congruência entre o Direito Penal e o perfil atual do
Estado, que está normativamente comprometido com a proteção e efetivação de
direitos de natureza individual e transindividual (menos individual). A
Constituição irriga o Direito Penal com a máxima efetividade215.
Diante desse panorama, Luciano Feldens216 propõe a noção de
Constituição Penal:
Aqui concebida como o conjunto de diretrizes normativas
estabelecidas à organização e ao funcionamento do sistema jurídicopenal requerido pela Constituição, as quais compreendem os
princípios e regras gerais respeitantes à matéria criminal (penal e
processual penal) positivados na ordem constitucional; ademais, uma
vez assentada a missão precípua do Direito Penal como instrumento
de proteção de bens jurídicos, o conceito de Constituição Penal
assumirá uma perspectiva material para abranger, em seu núcleo de
problematização, as categorias que, produto do desenvolvimento
dogmático dos direitos fundamentais enquanto imperativos de tutela,
sejam, por essa razão mesma, diretamente referíveis à Constituição,
ainda que nela não ostentem uma consagração explícita.
215
FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de
normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
216
FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de
normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 23/24.
154
Nessa perspectiva, a função do Direito penal decorre da concepção de
Estado e do modelo valorativo jurídico-constitucional em que ela se traduz.
Trata-se de um enfoque Constitucionalista do Direito Penal.
Portanto, o direito penal é o meio adequado para a tutela dos bens
jurídicos difusos, mas sempre nos estritos parâmetros da Lei Maior.
3.4 O critério do paralelismo entre a Constituição e a
legislação Penal
Objetivamente, o caminho proposto para a adequada e legítima proteção
penal dos bens jurídicos difusos segue uma lógica de paralelismo entre a
Constituição Federal e a legislação penal217.
Isso quer dizer que, partindo-se da Constituição Federal, é preciso extrairlhe
os
aspectos
penais,
estabelecendo
um
verdadeiro
paralelo
de
correspondência com a legislação penal infraconstitucional que nela encontra
fundamento de existência e validade.
Ressalta-se, novamente, que a Constituição há que ser considerada de
maneira conjuntural e sistemática. Ela fundamenta a existência das leis
(vigência) e também sua validade (forma e conteúdo)218.
Conforme já assinalado, a Constitucionalização do Direito, potencializada
por algumas características associadas ao contexto filosófico do pós-positivismo
217
Luciano Feldens, citando Jorge de Figueiredo Dias, fala em implicação, no âmbito dos mandados
constitucionais de penalização, já que não há perfeita identidade, mas sim uma correspondência de
sentido, pois a Constituição constitui o quadro referencial obrigatório da atividade punitiva. Aqui, o
vocábulo paralelismo é tomado como relação de equivalência.
218
FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de
normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 34.
155
– centralidade da ideia de dignidade humana e dos direitos fundamentais,
desenvolvimento da nova hermenêutica, normatividade dos princípios, abertura
do sistema, teoria da argumentação, tem tornado o debate jurídico atual
extremamente rico e instigante219.
Pois bem, o primeiro aspecto a ser analisado diz com a identificação das
normas constitucionais que proíbem ou determinam a criminalização de
condutas.
É a própria Constituição Federal que deixa a cargo do legislador a
definição de crime e a cominação da respectiva pena, conforme estabelece no
inciso XXXIX do artigo 5o:
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal;
Contudo, é certo que a democracia constitucional impõe regras ao
legislador, de modo que sua legitimidade democrática é exercida sempre dentro
dos parâmetros Constitucionais.
Também não se pode olvidar a posição central que ocupa o bem jurídico
neste contexto. Ele pode ser identificado explicitamente no próprio texto ou
decorrer da análise conjunta e sistemática da Carta Magna.
Portanto, no âmbito penal, o primeiro limite imposto ao legislador são as
proibições de criminalização.
219
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 87.
156
São, em geral, restrições relacionadas aos princípios constitucionais
fundamentadores do direito penal. A título de exemplo, é possível citar o
princípio da irretroatividade da lei mais gravosa.
Consequentemente, traçando um paralelo entre a Constituição e a
legislação penal, deve o legislador respeitar as proibições constitucionais de
criminalização.
Por outro lado, existem os mandados constitucionais de penalização que,
segundo Luciano Feldens220, devem ser compreendidos a partir do
relacionamento material que compartem, entre si, a Constituição e o Direito
Penal, relação que está logicamente associada à vinculação existente entre a
ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos.
Nesse aspecto, ressalva-se que o reconhecimento dos chamados mandados
constitucionais de criminalização não é pacífico, mas quando reconhecidos,
trazem uma consequência prática importantíssima, que é de atribuir ao poder
judiciário, por meio dos mecanismos de controle de constitucionalidade, a
análise da legitimidade constitucional de uma lei, quando considerada
excedente, mas também quando considerada deficiente na tutela de bens
jurídicos.
Observa-se que este estudo se baseia no reconhecimento dos referidos
mandados, mas nos moldes expostos a seguir.
Os mandados explícitos de criminalização referem-se aos bens jurídicos
que o legislador Constituinte reputou substancialmente relevantes, a ponto de
determinar ao legislador ordinário sua criminalização.
220
FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de
normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 69.
157
Dessa forma, deve existir um paralelo entre a Constituição Federal e a
legislação penal, de modo que a todos os mandados explícitos de criminalização
devem corresponder normas penais aptas a proteger adequadamente os
respectivos bens jurídicos constitucionalmente tutelados.
Esses mandados explícitos de criminalização estão espalhados pela Carta
Magna, mas, em geral, relacionam-se com as garantias dos direitos
fundamentais, como por exemplo, os relativos às discriminações atentatórias de
direitos e liberdades constitucionais, racismo, terrorismo, tortura, tráfico ilícito
de entorpecentes e crimes hediondos; ação de grupos armados civis e militares
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; retenção dolosa dos
salários dos trabalhadores; abuso, exploração e violências sexuais contra
crianças e adolescentes e condutas lesivas ao meio ambiente.
O terceiro ponto refere-se ao que a doutrina convencionou chamar de
mandados implícitos de criminalização.
Adverte-se de plano que a formulação dos chamados mandados implícitos
de criminalização decorre de construção doutrinária complexa, mas não por isso
deve ser descartada, ao contrário, deve ser objeto de reflexão, pois pode se
revelar um meio eficiente de tutela de bens jurídicos derivados dos princípios
adotados pela Constituição Federal, que lhe dão a feição de Estado Democrático
de Direito Humanista.
A questão que subjaz ao reconhecimento dos mandados implícitos de
criminalização refere-se substancialmente à relação estabelecida entre princípio
da proporcionalidade e direitos fundamentais221.
221
Neste específico aspecto, a doutrina, em geral, reproduz como marco histórico de reconhecimento
dos mandados implícitos de criminalização a decisão do Tribunal Constitucional Federal da
158
Dois aportes dogmáticos relacionados à teoria dos direitos fundamentais
sustentaram seguidas decisões judiciais que, em diversos países, reconheceram a
existência de tais mandados.
O primeiro é a dupla dimensão dos direitos fundamentais na atualidade,
ou seja, conforme já referido, exige-se algo além da mera atuação negativa do
Estado, uma proteção efetiva. O segundo é a proibição da proteção deficiente,
baseada no reconhecimento de exigências mínimas de tutela no âmbito dos
direitos fundamentais.
Neste contexto, Lenio Luiz Streck222 observa que:
(...) é preciso considerar que a Constituição Federal de 1988 ampliou
significativamente o rol de bens elevados a tal categoria em relação
aos textos constitucionais anteriores, especialmente no referente à
ordem social, o qual praticamente somente abriga disposições
tutelares de bens não individuais. A simples positivação de tais
valores indica senão a imposição de proteção penal, pelo menos a
possibilidade de extensão do sistema penal para a guarida de tais bens.
Disso resulta, sem dúvida, um deslocamento histórico do princípio da
intervenção estatal penal de uma posição minimalista para uma
situação de adequação de sua magnitude numa relação direta com a
gama de bens constitucionalizados merecedores de tutela jurídica.
Alemanha, em 25 de fevereiro de 1975, quando declarou inconstitucional a Lei de Reforma do Código
Penal em relação ao aborto, já que deixou de criminalizar a interrupção da gravidez (aborto) quando
realizada até 12 semanas de gestação.
222
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso
(ÜBERMASSVERBOT) à proibição de proteção deficiente (UNTERMASSVERBOT) ou de como
não
há
blindagem
contra
normas
penais
inconstitucionais.
Disponível
em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=66&Itemid=40.
Acesso em 20 ago. 2011.
159
Portanto, os argumentos sucintamente reproduzidos, baseados na
Constituição Federal, são aptos a sustentar a existência de mandados implícitos
de criminalização.
Uma vez reconhecida a existência, novos questionamentos surgem quanto
à dimensão dessa criminalização. E a principal dificuldade situa-se no juízo de
necessidade constitucional da tutela jurídico-penal.
Isso porque quando se pensa em necessidade, ademais do critério
estritamente constitucional (que deve estar presente), há que ser considerado o
aspecto fático-social, de reprovabilidade da conduta. A importância desse
aspecto será abordada em tópico futuro.
Neste momento é relevante ressaltar apenas que são aqueles direitos
fundamentais constitucionalmente protegidos, e socialmente relevantes, que
devem receber a efetiva proteção jurídico-penal.
E quando se trata de mandados implícitos, não pairam dúvidas dobre a
necessidade de proteção da vida, da dignidade humana e da liberdade.
Em suma, considerando que o direito penal é meio adequado para a tutela
dos bens jurídicos difusos, dentro dos parâmetros constitucionais, é necessário
estabelecer uma relação de equivalência (paralelismo) entre a Constituição
Federal e a legislação penal.
Portanto, nos moldes da moderna doutrina do neoconstitucionalismo ou
do garantismo, é necessário que o Direito Penal, assim como a Constituição
Federal, esteja direcionado à proteção dos bens jurídicos relevantes (neste caso
os difusos ou menos individuais), como forma de preservação do Estado
Democrático de Direito Humanista.
160
A dimensão atingida pelos direitos fundamentais nos dias de hoje
direciona a leitura do direito penal como meio de assegurar efetivamente tanto a
proibição dos excessos quanto a proibição da proteção deficiente dos bens
jurídicos por parte do Estado.
3.5 O papel da política criminal
(...) O penalista sente hoje que não mais pode ser simplesmente um
jurista,
discutindo
abstratamente
as
condições
legais
da
responsabilidade ou os elementos jurídicos do delito segundo uma
definição estabelecida pelo direito e uma técnica unicamente jurídica.
Mas o criminalista mais avisado sente igualmente que ele não pode
reconhecer, sem distinção, ao médico, ao sociólogo ou ao psicólogo o
direito de substituí-lo223.
Diante de um cenário de mudança de época, caracterizado pela
complexidade, incerteza e indeterminação e no qual a sociedade e o próprio
Estado passam por uma certa crise de identidade e assumem novas
configurações, há que se buscar uma essência estável.
Isso quer dizer que o Estado não é uma forma de organização política
ultrapassada, pelo contrário, ele é o suporte para a formação das identidades
coletivas e, na esfera internacional, permanece como um elemento essencial.
Sua compreensão se modificou em razão das transformações estruturais
da própria conjuntura global, mas é fundamental que seja preservada uma base
sólida mínima para a edificação de novos modelos.
223
ANCEL, Marc. A nova defesa social. 2. ed. Trad. Osvaldo Melo. Rio de janeiro: Forense, 1979, p.
XXI/XXII. 161
Nesse ponto, a coordenação entre o Direito e a Política é essencial para
determinar o equilíbrio necessário à manutenção da vida em sociedade, e a
política criminal é uma das formas mais efetivas de realização dessa
incumbência.
Cláudio José Pereira224 observa que, na atualidade, o excessivo apego à
legalidade estrita não atinge os fins de garantia da segurança e da prevenção, de
modo que, uma política criminal, entendida com um conjunto de métodos
socialmente adequados ao combate do delito, deve ser reconhecida como missão
social do Direito Penal.
Atribuída ao professor alemão Feuerbach (1803), a expressão “Política
Criminal” foi durante muito tempo sinônimo de teoria e prática do sistema
penal, designando o conjunto de procedimentos repressivos pelos quais o Estado
reage contra o crime225.
Atualmente, a política criminal destacou-se do Direito Penal, da
criminologia e da sociologia criminal e adquiriu significado autônomo.
A criminologia relaciona-se ao estudo empírico da violência e a
dogmática jurídico-penal refere-se ao estudo, interpretação e sistematização das
normas penais vigentes.
A origem dessa independência, característica fundamental do movimento
denominado “defesa social”, pode ser identificada já no Iluminismo com Cesare
224
PEREIRA, Cláudio José. Política criminal e os fins do Direito Penal no Estado Social e
Democrático de Direito in SILVA, Marco Antonio Marques (coord). Processo Penal e garantias
constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 86. 225
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Manole, 2004,
p. 3.
162
Baccaria e, mais recentemente, no século passado, com Von Liszt. Mas foi com
Filippo Gramática226 que ela se difundiu mundialmente.
Mireille Delmas-Marty227 apresenta o seguinte conceito:
Retomando e ampliando a fórmula de Feuerbach, poder-se-ia dizer
que a política criminal compreende o conjunto dos procedimentos
pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno
criminal, aparecendo, portanto, como “teoria e prática das diferentes
formas de controle social”. É claro que o direito penal continua muito
presente, como o núcleo rígido ou o ponto de maior tensão,
igualmente, de maior visibilidade.
Interessa ressaltar que as práticas penais não estão sozinhas no campo da
política criminal. Elas compõem grandes sistemas, em conjunto com outras
práticas de controle social, que podem ser não penais, não repressivas e até
mesmo não estatais.
É possível identificar, de forma geral, três modelos de política criminal. O
primeiro modelo, já superado, diz respeito às correntes abolicionistas, que
fundamentam-se no seguinte argumento: o mal que o Direito Penal pretende
evitar é menor do que aquele que a intervenção punitiva acarreta.
O segundo modelo, antagônico ao primeiro, é conhecido como
Movimento de Lei e Ordem, pois seus seguidores acreditam na necessidade de
recrudescimento do sistema penal para o controle da criminalidade.
226
O movimento de defesa social moderno surgiu na Itália, nos anos que se seguiram à 2a Grande
Guerra, quando Filippo Gramatica fundou em Gênova um Centro de Estudos de Defesa Social. Devese a ele o surgimento do que hoje se poderia chamar de verdadeira escola “pela transformação dos
sistemas penais da atualidade em sistemas de educação e tratamento, em relação com a personalidade
individual dos delinquentes” (FRAGOSO, Heleno Cláudio, no prefácio da obra de Marc Ancel apud
ANCEL, Marc. A nova defesa social. 2. ed. Trad. Osvaldo Melo. Rio de janeiro: Forense, 1979). 227
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Barueri: Manole, 2004,
p. 3/4. 163
Por fim, o terceiro modelo é o do minimalismo penal, no qual a pena é
um mal necessário.
Para compreender a abrangência do sentido das políticas criminais, é
necessário ultrapassar a compreensão do direito penal como direito em vigor em
determinado país ou momento histórico, pois, além de mais amplas que o
próprio direito penal, também são mais abertas e não delimitadas, ou seja, os
conteúdos não podem ser expostos de forma exaustiva, pois há necessidade de
integração entre os infinitos elementos que as compõem.
O movimento de defesa social moderno, que se desenvolveu após a II
Guerra Mundial, tinha por objetivo estabelecer um conteúdo mínimo,
pragmático e humanista, no qual se afirmava que a luta contra a criminalidade
deve ser reconhecida como uma das tarefas mais importantes da sociedade e que
essa luta exige meios de ação diversos.
Esses meios deveriam ter por finalidade não apenas proteger a sociedade
contra os criminosos, mas também proteger os membros da sociedade contra os
riscos de tornarem-se criminosos.
Para tanto, a aplicação das normas deve ser uma tarefa de ordem prática,
mas que exige estudo atento e científico da realidade. Como linha de princípio
impera o respeito aos valores humanos, segundo a regra de uma estrita
legalidade.
164
A nova defesa social proclama, em suma, a necessidade de ultrapassar a
abordagem puramente jurídico-formal dos problemas, considerando o direito
penal parte da política social do Estado228.
A propósito, a ciência criminal se compõe de três ramificações: o Direito
Penal, que se refere à norma e à aplicação das regras positivas, a Política
Criminal, que se refere ao valor e tem o objetivo prático de possibilitar a melhor
formulação das regras positivas, e a Criminologia, que estuda fato e seu autor,
ou seja, o fenômeno criminal em todos os seus aspectos.
A doutrina moderna tende a adotar um modelo integrado e
interdisciplinar,
de
modo
que
as
três
esferas
se
desenvolvam
concomitantemente.
Mas a dificuldade é estabelecer com exatidão quais elementos, princípios
e objetivos devem orientar o sistema penal.
Nesse sentido, Claus Roxin atribui à política criminal o fundamento
primeiro do direito penal, em uma unidade sistemática. O direito penal deve
estar estruturado teleologicamente para atender a finalidades valorativas.
Jorge de Figueiredo Dias229 também compreende que o sentido e
aplicação do direito penal ficam dependentes da teleologia, das valorações e das
proposições político-criminais inerentes ao sistema:
Nesta acepção se pode concluir com segurança que o problema , tal
como deve ser hoje solucionado, das relações entre política criminal e
dogmática jurídico-penal não é, como muito certeiramente assinala
228
FRAGOSO, Heleno Cláudio, no prefácio da obra de Marc Ancel apud ANCEL, Marc. A nova
defesa social. 2. ed. Trad. Osvaldo Melo. Rio de janeiro: Forense, 1979. 229
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo :
Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 44.
165
Zipf, o da introdução de um âmbito no outro, mas de uma questão de
otimização da colaboração entre ambos; e que por isso, para que na
medida do possível se evitem equívocos, melhor do que uma unidade
sistemática, como vimos pretende Claus Roxin, será falar de uma
unidade cooperativa ou de uma unidade funcional entre as duas
disciplinas.
A política criminal é uma atividade do estado, que deve ser exercida em
consonância com os modelos fixados pela Constituição Federal, portanto, na
atual realidade brasileira, é o Estado Democrático de Direito Humanista que dita
o rumo da política criminal.
Políticas criminais (penais e extrapenais) devem estar direcionadas a
garantir a coexistência pacífica dos cidadãos. Os meios adequados para atingir
esse fim só serão legítimos quando estiverem de acordo com o direcionamento
Constitucional e com a realidade humana.
Além disso, o sistema de política criminal há que ser harmônico e
condizente com a dogmática penal, sob pena de estabelecer um sistema
inconsistente e contrário à sistemática Constitucional.
Um enfoque Constitucionalista do Direito Penal estabelece os limites para
que a política criminal legitimamente se desenvolva.
Mas é a sensibilidade com a realidade humana e a observação da
conjuntura global pós-moderna, com sua contextualização, que garantem a
lucidez necessária para superar fórmulas ou teorias estanques e estabelecer
diretrizes de política criminal baseadas na promoção de uma cultura ética, capaz
de garantir harmonia social e o pleno desenvolvimento digno do ser humano.
166
3.6 Revisita às questões éticas e aspirações da pósmodernidade
Se, como tudo indica, o Direito levar a melhor sobre a Lei e o
mercado sobre a democracia, a Ética tornar-se-á o principal cimento
social. À falta de uma moral coletiva serão introduzidas algumas
regras de comportamento necessárias para a vida em sociedade. O
senso do interesse coletivo será substituído pela moralização do
comportamento individual. Deveres de cidadão face à coletividade
serão transformados em restrições impostas a consumidores frente a
outros consumidores. Todos terão de ser honestos e transparentes para
não terem de se tornar fraternos e solidários. As emoções da
amoralidade serão relegadas ao mundo virtual.
Tudo isto sem deixar de esperar que a rala exigência da ética venha
um dia a ser substituída pelas exigências e ambições mais amplas da
Fraternidade230.
É com a utilização de metáforas que o economista francês Jacques Attali
manifestou sua percepção de ética no século XXI. Entende que o século XIX foi
o da Liberdade, o século XX se foi com a miragem da Igualdade, e o século XXI
poderá ser o da Fraternidade - outra utopia que pode cumprir o seu destino de
ser absorvida pelo mercado ou pelas ditaduras.
A fraternidade se revela em 1789 como um dos lemas da Revolução
Francesa. Em 1948 é expressamente citada no artigo I da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às
outras com espírito de fraternidade.
230
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 166.
167
Sua relevância é indiscutível na seara dos direitos humanos. No entanto,
antes de abordá-la, alguns comentários sobre questões morais e éticas.
Verifica-se na atualidade forte tendência de retomada das questões de
fundo moral e ético, como forma de se estabelecer uma diretriz de conduta
humana legítima.
A consciência do bem e do mal, com o consequente sentimento de justiça
ou injustiça, é inerente à condição humana, qualquer que seja a origem: como
algo inato ou totalmente adquirido no curso da vida social231.
A ambição e as relações de poder se infiltram e se confundem com a
própria história da humanidade. Este tema sempre despertou paixões.
O saber tecnológico não é apenas condição de desenvolvimento dos
sistemas de organização social, mas também um dos grandes instrumentos de
exercício do poder.
Aliás, a racionalidade da ciência moderna, que teve início no século XVI,
pretendia aprimorar a vida humana, atribuindo ao homem felicidade, saúde,
estabilidade e segurança a partir do conhecimento e controle das leis da
natureza. O homem passou a dominar os saberes científicos e tornou-se o
Senhor e possuidor de todo o universo232.
Também o avanço do saber tecnológico revolucionou a forma de
exercício do poder sobre a natureza e a sociedade, abalando o sistema de valores
éticos vigentes no mundo antigo. Nada superava a técnica.
231
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
232
segundo Descartes “o conhecimento nos torna senhores e possuidores da natureza”.
168
No entanto, nos dias de hoje a hegemonia da técnica não é mais capaz de
solucionar ou evitar os riscos à própria preservação da vida.
O grande dilema do mundo globalizado, já mencionado neste estudo,
aflige o homem e ainda não foi encontrada a solução adequada para
encaminhamento do problema.
Trata-se do conflito estabelecido entre o desenvolvimento tecnológico
(substâncias químicas para controle do desenvolvimento de pragas na
agricultura) e a preservação da vida humana (exposição do ser humano a
substâncias perigosas, que lhe ameaçam a saúde e com implicações que não são
dimensionadas).
Isso porque a natureza reage aos séculos de exploração incontida,
naufragando, de vez, a crença na soberania humana decorrente do simples
domínio da técnica e valores como a preservação do equilíbrio ecológico, do
patrimônio artístico mundial, ou simplesmente a dignidade do ser humano
emergem no horizonte do futuro.
Técnica e ética devem se complementar para impulsionar a união entre os
povos e as civilizações.
Nesse âmbito, eis o grande desafio: construir bases teóricas e
institucionais de instauração de uma nova ética para a humanidade.
As concepções de vida ligadas às compreensões coletivas permeiam a
sociedade hodierna e isso significa na prática que relações que se estabeleciam
outrora entre sujeitos determinados e eram facilmente circunscritas no tempo e
espaço, hoje foram coletivizadas e apresentam inúmeras dificuldades, não
169
apenas no que diz respeito à delimitação temporal e espacial, mas também na
eleição da forma adequada de tutela.
A complexidade do mundo contemporâneo expõe a possibilidade e a
necessidade de os indivíduos aspirarem não a um reduzido grupo de valores ou
princípios, com uma homogeneidade de características e funções, mas, de outra
forma, a um rol axiológico e principiológico variado que possibilite a
conformação normativa da vida social e coletiva do tempo presente233.
Nesse contexto, surgem novos princípios e valores que legitimam a
necessidade de tutela de bens não individuais. E em função da relevância desses
bens coletivos (em sentido amplo), exige-se que a tutela seja eficiente.
Consequentemente, verifica-se uma adequação do modelo penal brasileiro
em função do surgimento gradual de uma série de leis que determinaram o
deslocamento do seu foco de tutela de bens individuais para bens coletivos.
O Direito Penal trabalha com escala de valores, de modo que o aspecto
fático-social, de reprovabilidade da conduta, não pode ser descartado. Ele deve
estar comprometido com a contenção da criminalidade e direcionado a evitar ou
minorar as consequências gravosas do delito, reafirmando, dessa forma, a
dignidade humana.
Ressalta-se, nesse aspecto, que o Direito Penal decorre da Constituição
Federal, de modo que ela também há de estar comprometida com as mesmas
finalidades.
233
STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente (untermassverbot) e o
cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superado o ideario liberalindividualista-clássico.
Disponível
em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=77&Itemid=29.
Acesso em: 27 set. 2010.
170
Konrad Hesse234, ao tratar das tarefas fundamentais da Constituição,
indica duas funções da Constituição na vida da comunidade: formação e
manutenção da unidade política e criação e manutenção do ordenamento
jurídico.
Em seguida, explica que o Estado, entendido como unidade política de
ação, necessita do ordenamento jurídico. Este há que ser ordenado, para que
possa levar a cabo suas competências e também deve contar com a adesão das
pessoas que viverão sob ele.
Os direitos fundamentais cumprem essa tarefa, atribuindo à Constituição o
status de ordenamento jurídico do processo de integração estatal.
Também compete à Constituição estabelecer uma normatização da
arquitetura do Estado e do cumprimento de suas tarefas.
Por fim, e não menos importante, cabe à Constituição estabelecer uma
direção jurídica, ou seja, o ordenamento jurídico deve ter conteúdo moralmente
reto e, portanto, legítimo.
Hesse argumenta que o Direito é qualquer regulação que tenha sido
definida como tal pelas instâncias competentes, no entanto, seus parâmetros são
deduzidos da história do Direito, e não do Direito natural ou do positivismo
cético.
Isso quer dizer que é a consciência da historicidade do Direito o cânon da
retidão nos tempos atuais.
234
HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p.
6/7.
171
Cânones são os modelos para configurar o presente e o futuro da geração
atual e decorrem dos princípios jurídicos nascidos da luta e da experiência de
muitas gerações e que se confirmaram por elas, principalmente dos direitos
humanos e civis, bem como de outros princípios, como os de independência
judicial ou o direito de ser ouvido.
A função diretriz da Constituição, segundo Hesse, consiste em assumir
esses cânones e – sobretudo, nos direitos fundamentais – dotá-los de força
vinculante para todo o ordenamento jurídico. Por sua vez, esta Constituição
contribui, seja como escalão intermediário, seja como traço de união, para
garantir a existência de um ordenamento jurídico moralmente reto.
E os direitos humanos não deixam de ser uma forma de direito moral
universal.
Com o novo constitucionalismo, a Constituição, em seu todo, é
reconhecida como repositório fundamental e expressão dos valores jurídicos e
da ordem jurídica de um povo.
A centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito
e ética estão na base do neoconstitucionalismo. Logo, a Constituição tem
fundamentos éticos, jurídicos e sociais, presentes em todas as sociedades e em
todos os seres humanos. É o conjunto das peculiaridades de cada povo que vai
moldar cada Constituição, mas sempre respeitando a dignidade humana.
172
É necessário estabelecer um plano ético para a promoção do homem, para
a justiça e para a paz, sem o que a dignidade não se realiza, tornando inócuos os
fins sociais235.
A convivência humana deve se basear na igualdade e no respeito, e a ética
existe para ordenar as ações e regular o poder de agir humano, indicando o que é
bom ou permitido.
A construção histórica dos valores éticos fundamenta o atual sistema
universal dos direitos humanos.
O reconhecimento sucessivo das categorias de direitos humanos revelou
gerações de direitos, cujo critério é a titularidade dos indivíduos, dos grupos
sociais, dos povos e da humanidade. No entanto, cada uma das categorias de
direitos humanos é fortalecida com o respeito às demais esferas.
Assim, sem o reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais,
ou o dos direitos dos povos à democracia, não se garante o respeito aos direitos
individuais, de caráter civil e político. Sem o reconhecimento dos direitos dos
povos à autodeterminação e ao desenvolvimento, não se garante o direito à
democracia. Sem o reconhecimento dos direitos da humanidade, todos os
direitos dos povos carecem de adequada proteção236.
A ética social deve pautar a atuação dos entes públicos e dos particulares.
Novas possibilidades de ação humana no mundo globalizado trazem
novas consequências para a humanidade, tanto sob a perspectiva dos objetos
235
SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e Democracia: Instrumentos para a efetivação da
dignidade humana in MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco Antonio Marques da (coordenação).
Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 232.
236
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 435.
173
quanto em relação à magnitude. Portanto, uma nova ética deve se colocar a
serviço da sociedade, para satisfazer as aspirações humanas e concretizar a
dignidade do ser humano sob todas as perspectivas.
Nesse ponto, é necessário retomar a citação do economista francês
Jacques Attali acima reproduzida, no sentido de que a ética deve se tornar o
principal cimento social. Isso porque a globalização aproximou os seres
humanos, exigindo maior consciência em relação às ações individuais, que
devem ser orientadas pela honestidade e transparência.
Isso não significa que a personalidade humana deve ser moldada pelo
direito, mas sim que a efetividade da dignidade depende da conduta de todos os
seres humanos. A humanidade deve caminhar em direção ao bem comum, com
garantia de respeito a cada cidadão que compõe essa coletividade.
E o respeito é conquistado por meio da prática da conduta humana ética.
Quiçá os sentimentos de solidariedade e fraternidade possam emergir da
sociedade global pautada no respeito e na ética.
A alteridade traduz ao homem sentido da solidariedade e da fraternidade.
Colocar-se no lugar do outro, dar sem esperar receber, ser útil e ajudar são ações
que traduzem o espírito de fraternidade.
Por enquanto, contentamo-nos com a retomada da ética para o
fortalecimento da dignidade humana, mas sempre com a esperança de que o
espírito de solidariedade e fraternidade possam um dia produzir efeitos
concretos para além da Constituição Federal e da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
174
Conclusão
Vivenciamos atualmente um período singular de mudanças na história da
humanidade. Os conflitos das últimas décadas impuseram a necessidade de
retomada dos fundamentos do modelo de sociedade que o homem pretende
construir.
É certo que o homem e a sociedade se transformam com o passar do
tempo, mas em determinados períodos da história é possível identificar
verdadeiras crises de referências.
Assim como no nascimento do mundo moderno, que emergiu do
desmoronamento da cosmologia antiga e da necessidade de reavaliação das
autoridades religiosas, na sociedade contemporânea, as deformações são tão
incisivas e relevantes que representaram verdadeira ruptura na cultura da
civilização.
A Primeira Guerra Mundial pode ser considerada o marco histórico, que
significou a transição da modernidade para o atual mundo pós-moderno.
Observando essa realidade, é possível perceber o verdadeiro paradoxo do
presente. Se por um lado existem infinitos benefícios advindos dos avanços
tecnológicos, da informatização dos sistemas, da informação disponível e farta e
do acesso imediato aos infinitos bens de consumo, por outro, aumentam cada
vez mais as percepções de exposição aos riscos e a sensação de medo.
O medo e a insegurança abafam os cidadãos, pois os riscos geralmente
decorrem das decisões de outras pessoas e podem efetivamente ocasionar danos
amplos, não delimitáveis, globais e irreparáveis.
175
Nesta seara, é necessário destacar a importância das decisões tomadas no
âmbito da atividade empresarial.
Verifica-se que a atividade empresarial atingiu relevante papel no mundo
contemporâneo, inclusive tomou para si parcela do poder econômico, político e
decisório do próprio Estado.
Com a expansão capitalista potencializada após o fim da Guerra Fria, a
hegemonia dos mercados globais associada às forças do mercado e a distorção
do sentido de cidadania, houve um enfraquecimento do Estado.
A mídia universal, as tecnologias em rede e a concentração da informação
em base física multifuncional e compacta reduziram as possibilidades de
controle Estatal, não só na seara da economia, mas também no campo da
criminalidade.
Ao mesmo tempo, ampliaram as fronteiras para um novo mundo, onde o
exercício do poder parece ilimitado, pois não encontra obstáculos ou regras
previamente estabelecidas.
Dessa forma, a democracia se esvazia diante do novel cenário e da falta de
equilíbrio entre o Estado, a sociedade civil e o indivíduo. Alguns estudiosos
chegam a sustentar que o Estado passará a assumir um papel exclusivamente
empresarial, em detrimento da proteção dos cidadãos.
Inovações das últimas décadas refletiram na maneira de compreender os
próprios conceitos de Estado, Sociedade, Direito, Política e Economia. Também
houve modificação na forma de interação entre diversos campos do
conhecimento.
176
A ideia desenvolvida sob a ótica Iluminista de que o homem, em função
da racionalidade, mantém o controle sobre todas as atividades, foi superada.
Dessa forma, passou a ser admitida a existência de uma estrutura histórica na
qual a sociedade civil é um elemento, em conjunto com o Estado e a própria
estrutura econômica.
A força representada pelo monopólio legítimo do poder Estatal se
fragmentou. Emerge o poder do mercado global e dos grupos ilegítimos que
atuam na esfera da criminalidade organizada transnacional.
Fazer parte do mundo globalizado não é opcional e, a partir dessa
constatação, inúmeras consequências podem ser apontadas.
Sob a perspectiva das consequências políticas decorrentes da globalização
econômica, verifica-se que o Estado do bem-estar social capitalista, organizado
em bases democráticas, perde sua força. Emerge o poder das empresas que
atuam globalmente e assumem papel central na configuração da economia e da
própria sociedade.
A ampliação geográfica decorrente da mobilidade trouxe como
consequências: a crescente interação do comércio internacional, a conexão
global dos mercados financeiros, o aumento do poder das companhias
transnacionais e a expansão incontrolável da criminalidade organizada
transnacional.
As atividades empresariais socialmente danosas se multiplicam, a própria
existência humana torna-se refém da soberania do mercado e a intervenção
Estatal é insuficiente para conter o avanço descontrolado da mercantilização e
da vulnerabilidade humana diante da criação de infinitos e ainda desconhecidos
cenários propícios à expansão da criminalidade.
177
A sociedade, por sua vez, sofre com a total desorientação das novas
gerações, ávidas pela busca de soluções urgentes para os problemas mais agudos
do destino da humanidade.
Mas a exigência de preparo para o enfrentamento desses problemas de
magnitude planetária parece incompatível com a rapidez das mudanças de
cenário.
Os nichos para a expansão das atividades criminosas são múltiplos e, em
geral, de conhecimento restrito. Bancos de dados e sistemas de informações em
geral apresentam peculiaridades que apenas seus desenvolvedores conhecem.
As vulnerabilidades dos sistemas informatizados, que permitem
manipulação, adulteração ou alteração criminosa, só são constatadas, em geral,
depois de muito tempo, já que se exigem conhecimentos técnicos que estão
adstritos, em geral, aos seus próprios usuários.
Encontrar as soluções eficientes e apropriadas, além do necessário
conhecimento e informação, exige adequada educação para a seleção da
informação e aptidão para contextualizar e globalizar.
Mais do que isso, é necessário desenvolver a sensibilidade para analisar
condutas violadoras da ética, que causam danos, atingem vítimas e geram custos
impossíveis de serem medidos.
As mudanças nos rumos da humanidade trazem à baila o grande desafio
humano de compreender o próprio tempo. Para superá-lo, busca-se a
investigação do significado da vida humana nessa nova situação em que o
mundo se encontra.
178
Dessa forma, o atual momento é propício para reflexões, pois nada que
venha a acontecer no planeta pode ser considerado um fato isolado. Cada
acontecimento afeta todo o planeta.
Como não poderia deixar de ser, o paradoxo da globalização e as
mudanças nos rumos da humanidade também atingiram a esfera do Direito.
Conhecer o Direito é conhecer o homem, a maneira como se organiza na
sociedade, a maneira como adquire e exerce o poder em relação aos demais
seres humanos.
Dessa forma, a cultura jurídica da pós-modernidade assinala uma
marcante preocupação com a retomada das grandes questões do passado, que
envolvem valores considerados intocáveis.
A realidade desperta o homem para a necessidade de reapreciação das
crenças, com a superação das respostas clássicas e a reformulação do significado
da própria vida humana.
O apego excessivo às concepções de legalidade e legitimidade tendem a
desaparecer em detrimento da eficácia. No entanto, esse movimento deixa de
considerar a necessidade de conjugação de todos esses elementos, absorvendo
seus aspectos positivos, de acordo com a experiência histórica.
Na busca da própria preservação, multiplicam-se os discursos dos direitos
humanos de caráter universal.
E, nesse âmbito, parece não restar dúvidas de que, na atualidade, o direito
ganha espaço no campo da proteção dos interesses menos individuais.
179
Esses interesses representam grande relevância para a humanidade, como
o meio ambiente, a economia social, as condições de alimentação, o direito ao
trabalho em determinadas condições de segurança social e material. Enfim, é o
que se conhece atualmente por interesses difusos.
Partindo de uma análise conjunta de elementos da norma jurídica e dados
de realidade, constata-se que o Direito Penal segue, mais do que nunca,
legitimado a atuar na preservação do Estado Democrático de Direito Humanista.
O Direito Penal não há que ser máximo ou mínimo, senão exato, nos
limites do próprio Estado Democrático de Direito Humanista. Ele decorre do
dever de proteção estatal e deve incidir em consonância com os direitos
fundamentais, pois são eles que legitimam e impõem a ação dos poderes
públicos no controle da criminalidade organizada.
Para compreender o exato campo da tutela jurídico-penal nos dias de hoje,
indispensável a reflexão multidisciplinar abrangente, com foco nos fenômenos
já citados, que inovaram e transformaram a vida humana.
O homem é explicitamente reconhecido como pessoa de direito no atual
ordenamento Constitucional, logo, há o dever geral de garantir a existência
humana digna.
Mais do que isso, a Constituição Federal de 1988 vinculou a Dignidade
Humana aos direitos fundamentais, atribuindo feição axiológica ao Direito
Constitucional Contemporâneo, agregada ao dever de concretização dos direitos
fundamentais.
180
A dignidade humana evoluiu com o passar dos anos e, despindo-se de seu
caráter conceitual, fundamentado no direito natural, alçou o status
constitucional e passou a desempenhar um papel normativo.
Trata-se de uma qualidade intrínseca e indissociável de qualquer ser
humano, portanto, irrenunciável. Quando desvirtuada, atinge a todos os seres
humanos, implicando a deturpação da sistemática em relação ao outro.
O grande objetivo do Estado Democrático de Direito Humanista e da
própria humanidade é garantir o respeito e a proteção da dignidade da pessoa.
Nesse sentido, o Direito Penal e o Direito Processual Penal desempenham
hoje as tarefas primordiais de preservação da dignidade humana e conjugação
das necessárias reformas materiais e processuais com as garantias individuais e
direitos fundamentais constitucionais (conquistas históricas da humanidade).
A tarefa imediata é a efetiva proteção de bens jurídicos especialmente
importantes.
Logo, a tutela jurídico-penal de bens jurídicos é mais do que nunca
legítima, porque sua base é Constitucional e sua função de proteger bens
jurídicos essenciais ao grupo social é necessária e adequada para tornar concreta
a concepção material de dignidade.
Superada a questão da legitimidade, surge a questão mais complexa,
referente ao seu âmbito de atuação e interpretação, aspectos relacionados à
eficácia.
Neste campo, emergem questões referentes à garantia de relações sociais
justas no caso concreto.
181
Novas teorias surgem para tentar estabelecer os critérios e delinear a
esfera de incidência do Direito Penal e do Processo Penal.
Destacam-se os estudos do chamado neoconstitucionalismo ou novo
direito constitucional, que considera um conjunto amplo de transformações no
Estado e no Direito Constitucional, dentre as quais, a formação do Estado
Constitucional de Direito, a centralidade dos direitos fundamentais com a
reaproximação entre Direito e Ética, além de outras mudanças, relacionadas
essencialmente à força normativa da Constituição, expansão da jurisdição
Constitucional e desenvolvimento de nova dogmática de interpretação
Constitucional.
De fato, conforme já enfatizado, o cenário mundial e o conjunto de
transformações sociais das últimas décadas modificaram a humanidade e
criaram ambientes inéditos e propícios para o desenvolvimento de novas formas
de criminalidade.
A análise da conjuntura global revela cenários de grandes transformações,
de magnitude planetária, nos quais, por vezes, a capacidade humana de
adequação é superada pela voracidade do mundo globalizado, gerando períodos
de crise e transformação que resultam em transições, reflexões e
amadurecimento de ideias sobre o sistema vigente, a forma de compreender a
democracia, a educação, a economia e, sobretudo, a maneira de pensar a própria
crise.
A recente crise econômica mundial ressuscitou questões aparentemente
adormecidas. Isso porque sua origem está relacionada a atividades de nítida
violação da ética de mercado e suas consequências não puderam ser contidas,
182
pois atingiram o mundo todo, causando incisivas alterações no padrão de vida
da população mundial.
A identificação das vítimas e os custos oriundos da crise são impossíveis
de serem medidos, mas é certo que os cidadãos que mantinham padrões de vida
digno foram expostos aos efeitos do contingenciamento dos recursos
financeiros, e houve um imenso legado relacionado ao custo social do desgaste
da base moral da sociedade.
Emergiram questões sobre o papel do Estado e da própria política na
economia, já que a ausência do Estado nessa esfera trouxe consequências
humanas desastrosas. Ficou claro que não foi cumprido o papel de garantia
efetiva da dignidade humana.
Por outro lado, houve nítida mudança no eixo da economia mundial, com
o surgimento de grandes economias.
Nesse cenário, o peso econômico dos países que representam um
agrupamento informal conhecido por Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África
do Sul) influiu diretamente na vida dos cidadãos. O crescimento da economia,
com a maior concentração de poder, lhes exige novos conhecimentos e impõe
desafios.
Além da crise, outros fenômenos abalam o cenário mundial.
De plano, é possível citar a sociedade de consumo, caracterizada por um
número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do crédito e do
marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à Justiça.
183
O mercado hiperconsumista é desumano e conduz o homem a um
caminho sem fim de busca da felicidade e bem-estar. A ascensão financeira
serve para ampliar a classe de consumidores, já que a pecha da pobreza impede
a ascensão cultural e a melhora das condições de vida da população menos
abastada.
Também os impactos ambientais causados pelos padrões de produção e
consumo se tornaram insustentáveis. A natureza reage e fenômenos naturais
evidenciam a degradação. A ideia de consumo sustentável passa a permear as
discussões e são impostas questões referentes à consciência acerca dos limites
que o planeta suporta.
Além do consumo, a comunicação afeta diretamente a vida dos seres
humanos de todo o mundo.
Herbert Marshall McLuhan já advertia, há mais de 50 anos, que os meios
de comunicação em massa afetariam profundamente a vida física e mental do
homem, levando-o do mundo linear e mecânico da Primeira Revolução
Industrial para o novo mundo audiotáctil e tribalizado da era Eletrônica.
De fato, a inclusão digital é o tema do momento, objeto de inúmeros
projetos do Governo Federal, que têm como objetivo ampliar o acesso de
computadores e internet às classes menos privilegiadas da população brasileira.
Isso porque agora a plataforma da informação é única e está concentrada
na rede mundial de computadores.
No entanto, a garantia de acesso, por si só, não induz necessariamente à
inclusão digital, pois a integração no mundo moderno exige do homem algo
184
mais do que acesso, a verdadeira educação. Sem ela, será perpetuado o quadro
atual de exclusão social.
Com os avanços da tecnologia e o advento da rede mundial de informática
surgiu o espaço cibernético do mundo humano. Na esfera on- line, o jovem tem
a capacidade de remodelar a identidade e a rede, sempre que necessário. As
identidades são descartáveis.
Mas a crescente dependência do ambiente virtual torna o homem
vulnerável, pois grande número de dados tramitam pelas redes e computadores
do mundo, inclusive, dados bancários e fiscais.
Se por um lado a integração informacional facilita a vida do homem,
tornando a troca de informações mais eficiente, rápida e segura, por outro,
promove a insegurança e o aparecimento de novas formas de criminalidade,
mais difundidas, com maior dificuldade de identificação dos responsáveis e que
trazem consequências nefastas para um número indeterminado de seres
humanos.
O panorama da criminalidade tradicional foi substancialmente alterado no
mundo digital, onde as possibilidades se tornaram mais sofisticadas e seguras,
pois seus usuários não precisam mais do que a rede mundial de computadores,
que é acessada por meio de plataformas físicas únicas, portáteis e
multifuncionais.
Milhares de bancos de dados eletrônicos são criados todos os dias e dados
pessoais transitam pelas redes sem controle, inclusive o Brasil, assim como
inúmeros países, ainda não regulamentou a coleta, organização e uso de bancos
de dados.
185
O acesso amplo à tecnologia, aos meios de comunicação e a facilidade de
deslocamento no território global são aquisições do homem da atualidade.
Mas, como já ressaltado, essas facilidades de interação ampliaram as
consequências e a abrangência da criminalidade. O homem e a sociedade são
vítimas dessa criminalidade agressiva e voraz que atinge sobretudo a economia.
Por conseguinte, clamam por proteção.
Cabe ao Estado corresponder às expectativas do cidadão com meios
efetivos de controle da criminalidade, e recentemente é possível observar uma
adequação na expectativa que a sociedade tem em relação ao papel do Direito
Penal.
A potencialização dos riscos e a sensação de insegurança ameaçam os
seres humanos. Não existem mais limites geográficos ou sociais, ou seja, a
tendência globalizante faz surgir ameaças supranacionais e independentes de
classes.
As ameaças da vida moderna e a realidade do perigo não integraram de
maneira adequada os sistemas jurídicos. Isso porque há certa resistência em
reconhecer a relevância dos chamados bens jurídicos menos individuais.
Além disso, a política se desvirtua paulatinamente. Faltam estruturas de
mando organizadas sob a perspectiva global. Da mesma forma, não existem
estratégias sedimentadas a partir do debate nacional de temas e projetos para o
futuro.
A cultura democrática cede lugar à discussão de problemas que exigem
soluções urgentes.
186
Da mesma forma, a definição de bases para a coexistência e as estratégias
de integração da economia com a sociedade são considerados aspectos
secundários sob a perspectiva da política mundial.
Portanto, é necessário, antes de mais nada, delinear e estabelecer os
objetivos da sociedade e, respeitando as diferenças culturais, reorganizar
estruturas, fortalecer valores humanos e estabelecer metas.
Em continuação, reconhecer os novos bens jurídicos no seio social, pois a
delinquência dolosa tradicional foi superada pela criminalidade transnacional,
que é essencialmente fluída, sem rosto e sem fronteiras.
O combate a essa nova forma delituosa, perniciosa e nociva exige mais do
que políticas responsáveis, postura firme e efetiva por parte do Estado, ou
melhor, dos Estados, já que apenas os sistemas globais de proibição (exemplo
em relação à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo), quando
adequadamente aplicados, têm força suficiente para tornar efetivas as ações
contra a criminalidade.
A consciência das consequências, a atualização do pensamento e o
conhecimento interdisciplinar sobre as grandes questões da modernidade são
armas indispensáveis nessa luta contra o crime.
O papel do Estado hoje não pode ser compreendido apenas como de
defensor do indivíduo face aos arbítrios estatais ou pior, como mero executor da
economia de mercado.
Políticas fiscais responsáveis devem ser impostas ao mercado.
187
Os direitos individuais e os bens sociais devem ser efetivamente
protegidos dos ataques de terceiros (no caso, forças econômicas e de mercado),
com atuação direcionada à preservação dos valores fundamentais consagrados
na Carta Magna.
A proteção jurídico-penal há que ser efetiva, já que a dimensão atingida
pelos direitos fundamentais nos dias de hoje direciona a leitura do Direito Penal
como meio de assegurar efetivamente não apenas a proibição dos excessos, mas
também a proibição da proteção deficiente dos bens jurídicos por parte do
Estado.
Nesse âmbito, a política criminal, enquanto atividade do Estado, não pode
ser exercida fora ou em contradição com os parâmetros estabelecidos na
Constituição Federal. O Estado Democrático de Direito Humanista dita o rumo
da política criminal.
Portanto, a interpretação evolutiva dos direitos fundamentais na era da
globalização pressupõe o reconhecimento da realidade social. E, mais do que
isso, impõe ao Estado a atuação efetiva e direcionada ao fortalecimento da
cidadania e à preservação da dignidade humana.
A retomada das questões éticas no panorama da globalização revela que é
necessário estabelecer um plano ético consistente para a promoção do homem,
concretização da justiça e busca da paz.
Também considerando os grandes desafios da atualidade, é preciso
compreender, construir, desenvolver e concretizar o Estado Democrático de
Direito Humanista, cuja finalidade de preservar a existência humana digna
nunca pode ser perdida.
188
Diante de todo o exposto, conclui-se que:
-
a pós-modernidade se apresenta como um período de incertezas e
crises que afetam o próprio sentido da existência humana;
-
dois movimentos antagônicos influenciam o futuro da humanidade:
o capitalismo e o desenvolvimento do sistema global dos direitos
humanos;
-
a globalização aboliu limites geográficos e sociais, tornando a
mobilidade uma realidade humana. No entanto, ao lado das
consequências positivas da integração mundial surgiram os
aspectos negativos, que são verificados, principalmente, no
âmbito da criminalidade;
-
a criminalidade se alastrou e ganhou dimensões transnacionais,
legitimando a necessidade de políticas responsáveis, postura firme
e efetiva por parte dos Estados, bem como proteção penal efetiva
de bens jurídicos difusos, para a preservação da própria
humanidade;
-
por outro lado, a evolução da espécie humana segue o caminho do
reconhecimento do outro, ou seja, cada indivíduo ou grupo social
tende a reconhecer no outro o complemento necessário de si
próprio;
-
consequentemente, a noção de humanidade deve ser associada à
efetividade da dignidade, que depende da conduta de todos os
seres humanos. A humanidade deve buscar o bem comum, com
garantia de respeito a cada cidadão;
-
Compreensão e consciência da posição humana no mundo,
alteridade e prática da conduta humana ética são os pressupostos
para a edificação das novas estruturas sociais das gerações futuras.
189
Bibliografia
ADAMS, John. Risco. Trad. Lenita Rimoli Esteves. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2009.
ALEXANDRINO, José Melo. O discurso dos Direitos. 1. ed. Lisboa: Coimbra
Editora, 2011.
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de
Oliveira Mendes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 5. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2008.
ALMEIDA, Candido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e Leis do
Reino de Portugal: Recompiladas por Mandado d’El-Rei D. Filipe I. 1o volume
desta edição fac-similar. 14. ed. Brasília: Edições do Senado Federal, 2004.
ANCEL, Marc. A nova defesa social. 2. ed. Trad. Osvaldo Melo. Rio de
janeiro: Forense, 1979.
ANDRADE, Manuel da Costa e NEVES, Rita Castanheira (organizadores).
Direito Penal Hoje: novos desafios e novas propostas. Coimbra: Coimbra
Editora, 2009.
ARAÚJO, Luiz Alberto David e JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de
Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
ATTALI, Jacques. Dicionário do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
ATTALI, Jacques. Fraternités: une nouvelle utopie. France: Fayard, 1999.
BALTAZAR JUNIOR, Jose Paulo. Crime Organizado e proibição da
insuficiência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Editora
Papagaio, 2004.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo:
os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
190
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do
Direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil in THEMIS Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará. Disponível em
<http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18540/Neoconstitucionalis
mo_e_Constitucionaliza%E7%E3o_do_Direito.pdf?sequence=2>. Acesso em:
08 ago. 2010.
BARROSO, Luis Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito
Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e
Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado,
dezembro de 2010. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf. Acesso em: 10
jan. 2012.
BUAINAIN, Antônio M. O desafio da fome no mundo – artigo publicado no
caderno Economia do jornal O Estado de São Paulo em 12 jul. 2011.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo liquido moderno. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo a uma outra modernidade. São
Paulo: editora 34, 2010.
BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do globalismo, respostas à
globalização. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed. rev. Trad. Fernando
Pavan Baptista e Ariana Bueno Sudatti. Bauru: Edipro, 2008.
191
BRAGA, Pedro. Crime e Sociedade. Brasília: Subsecretaria de edições
técnicas do Senado Federal, 2008.
BRYAN, Guilherme. Vidente da mídia in Revista da Cultura, edição 46, maio
de 2011. Uma publicação da Livraria Cultura.
BUCCI, Eugênio. A imprensa e o dever da liberdade. São Paulo: Contexto,
2009.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra:
Almedina, 1991.
CANTU, Césare. História Universal. Volume primeiro. São Paulo: Editora das
Américas, 1960.
CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa. São Paulo: Editora Gaia, 2010.
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do
direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade – A era da Informação:
Economia, Sociedade e Cultura. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 2007.
CASTRO, Josué. Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de
Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CASTRO, Josué. Homens e caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. 3. ed. Trad. Marçal Justen
Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo
moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da e COSTA, Fernando José da. Crimes contra o
consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.
COSTA, José de Faria e SILVA, Marco Antônio Marques da (coordenação).
Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. São Paulo:
Quartier Latin, 2006.
192
COULANGES, Numa Denis Fustel de. A Cidade Antiga: estudo sobre o culto,
o direito e as instituições da Grécia e de Roma. 2. ed. Trad. J. Cretella Jr. e
Agnes Cretella. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade
média ao século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010.
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal.
Barueri: Manole, 2004.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal
Revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o privado. São
Paulo: Paz e Terra, 2003.
FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito depois da crise. São Paulo:
Saraiva, 2011.
FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade
no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
FERNANDES, Antônio Scarance. O sigilo financeiro e a prova criminal in
COSTA, José de Faria e SILVA, Marco Antônio Marques da (coordenação).
Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. São Paulo:
Quartier Latin, 2006.
FERNANDES, Antônio Scarance et alii. Sigilo no Processo Penal – Eficiência
e Garantismo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell.
Madrid: Editorial Trotta, 2008.
FERRY, Luc. Apprendre à vivre. France: J’ai lu, 2008.
FERRY, Luc. Diante da crise: materiais para uma política de civilização. Rio
de Janeiro: DIFEL, 2010.
FISCHER, Douglas. Delinqüência Econômica e Estado Social e Democrático
de Direito. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.
GORBACHEV, Mikhail. The Road we traveled, the challenges we face –
speeches, articles, interviews. Moscow: Published by Izdatelstvo VES MIR
193
(IVM) for the Gorbachev Foundation, 2006, p. 71/72. Disponível em:
http://www.gorby.ru/userfiles/file/gorbaghev_book_speeches_en.pdf.
Acesso
em 10 mai. 2011.
GRINBERG, Keila. O rei, o discurso e o radio. Disponível em:
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/o-rei-o-discurso-e-o-radio.
Publicado em 15/02/2011 e Atualizado em 15/02/2011. Acesso em: 20 out.
2011.
GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São
Paulo: Edições Loyola, 2002.
HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertátio. Belo Horizonte: Del Rey,
2007.
HASSEMER, Winfried. O sistema do Direito e a codificação: a vinculação do
juiz à lei. Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência,
legislação e crítico judiciária. Ano XXXIV - no 112. Porto Alegre: Revista
Jurídica Ltda, mar/abr 1986, p. 9/34.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2009.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
HUNT, Lynn. La invención de los derechos humanos. Trad. Jordi Beltrán
Ferrer. Buenos Aires: Tusquets Editores, 2010.
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2009.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a
civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
194
KAUFMANN, Arthur. Derecho, moral e historicidad. Madrid: Marcial Pons,
2000.
KAUFMANN, Arthur. La Filosofía del Derecho en la Posmodernidad. 3. ed.
Trad. Luis Villar Borda. Bogotá: Editorial Temis S.A., 2007.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009.
KLOEPFER, Michael. Os direitos fundamentais da lei fundamental:
sucessos, fraquezas, tarefas para o futuro in LEITE, George Salomão, SARLET,
Ingo Wolfgang e CARBONELL, Miguel (organizadores). Direitos, deveres e
garantias fundamentais. Salvador: Editora Jus Podium, 2011.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense,
2003.
LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2008.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de
hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H..Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
LISZT, Frans Von. Tratado de direito penal alemão, vol. II. Brasília: Senado
Federal, Conselho editorial, 2009.
MACHADO, André Augusto Mendes e KEHDI, André Pires de Andrade in
FERNANDES, Antônio Scarance et alii. Sigilo no Processo Penal – Eficiência
e Garantismo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio
ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e
legislação complementar. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
MATIAS, Eduardo Felipe Pérez. A humanidade e suas fronteiras: do Estado
soberano à sociedade global. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
MATTELART, Armand. História da sociedade de informação. São Paulo:
edições Loyola, 2002.
195
MAXIMILIANO, Carlos. Comentários à Constituição Brasileira de 1891.
Coleção História Constitucional Brasileira. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2005.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São
Paulo: Saraiva, 21ª edição, 2008.
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do
homem. São Paulo: Cultrix, 2007.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26. ed.
São Paulo: Malheiros, 2009.
MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do
sistema de direitos fundamentais in MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco
Antonio Marques da (coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade
Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
MOKHIBER, Russell. Crimes corporativos. 1. ed. Trad. James F. S. Cook.
Bahia: Scritta, 1995.
MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios.
São Paulo: Cortez, 2009.
MORIN, Edgar. La voie – pour l’avenir de l’humanité. France: Librairie
Arthème Fayard, 2011.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: Introdução à teoria e
metódica estruturantes. 2. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2009.
NAPOLEONI, Loretta. Economia bandida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
NEVES, Rita Castanheira. O ambiente no Direito Penal: a acumulação e a
acessoriedade in ANDRADE, Manuel da Costa e NEVES, Rita Castanheira
(organizadores). Direito Penal Hoje: novos desafios e novas propostas.
Coimbra: Coimbra Editora, 2009.
NUNES, Rizzatto. Manual da monografia jurídica. 8. ed. rev. São Paulo:
Saraiva, 2011.
196
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
PEREIRA, Claudio José. O direito penal pós-moderno e a expansão
econômica supranacional in COSTA, José de Faria e SILVA, Marco Antônio
Marques da (coordenação). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos
Fundamentais. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
PEREIRA, Cláudio José. Política criminal e os fins do Direito Penal no
Estado Social e Democrático de Direito in SILVA, Marco Antonio Marques
da (coord). Processo Penal e garantias constitucionais. São Paulo: Quartier
Latin, 2006.
PIERUCCINI, Ivete. A ordem informacional dialógica : estudo sobre a busca
de informação em Educação. São Paulo: Tese apresentada ao Curso de Pós
Graduação em Ciências da Comunicação como requisito parcial para a obtenção
do Título de Doutor em de Ciência da Informação e Documentação pela Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2004.
PILLE, Lolita. Hell. Paris: Grasset, 2002.
PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Curso de Direito Romano. Volume I: Programa.
Método. História. Fontes. Actores Judiciários. (753 a.C.-395). Caiscais:
Princípia Editora, 2009.
PIOVESAN,
Flávia.
Direitos
humanos
e
o
direito
constitucional
internacional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. 3. ed. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2010.
ROBLES, Gregório. Os direitos fundamentais e a ética na sociedade atual.
Barueri: Manole, 2005.
ROXIN, Claus. Funcionalismo e imputação objetiva no direito penal. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002.
RUSSEL,
Roberto
y
TOKATLIAN,
Juan
Gabriel. Autonomia
y
neutralidad en la globalización – una readaptación contemporânea. Buenos
Aires: Capital Intelectual, 2010.
197
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2011.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: editora Forense,
2001.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São
Paulo: Malheiros, 2007.
SILVA, Marco Antonio Marques da. Cidadania e Democracia: Instrumentos
para a efetivação da dignidade humana in MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco
Antonio Marques da (coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade
Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
SILVA, Marco Antonio Marques da (coordenação). Processo Penal e
Garantias Constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual: interesses
difusos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. Excelente
SODRÉ, Marcelo Gomes. Dignidade Planetária: o direito e o consumo
sustentável in MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco Antônio Marques da
(coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo:
Quartier Latin, 2008.
STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso
(ÜBERMASSVERBOT)
à
proibição
de
proteção
deficiente
(UNTERMASSVERBOT) ou de como não há blindagem contra normas penais
inconstitucionais.
Disponível
em:
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gi
d=66&Itemid=40. Acesso em: 20 ago. 2011.
STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente
(untermassverbot) e o cabimento de mandado de segurança em materia
criminal: superado o ideario liberal-individualista-clássico. Disponível em:
198
http://leniostreck.com.br/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gi
d=77&Itemid=29. Acesso em: 27 set. 2010.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.
http://www.estadao.com.br/arquivo/economia/2007/not20070202p19578.htm.
Acesso em: 10 fev.2011.
http://www.senado.gov.br/agencia/vernoticia.aspx?codNoticia=102395&codApl
icativo=2
http://www.correios.com.br/institucional/conheca_correios/conheca.cfm. Acesso
em 10 fev. 2009.
http://www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=internacional,o-povo-versusmurdoch,746635,0.htm. Acesso em: 20 jul. 2011.
http://www.estadao.com.br/arquivo/economia/2007/not20070202p19578.htm.
Acesso em: 10 fev. 2011.
http://www.itamaraty.gov.br/temas/mecanismos-inter-regionais/agrupamentobrics. Acesso em: 18 out. 2011.
http://www.ecolnews.com.br/agenda21/. Acesso em: 12 out. 2011.
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28direi
to+fundamental+e+m%EDnimo+existencial%29+E+S%2EPRES%2E&base=ba
sePresidencia. Acesso em: 28 jun. 2011.
http://secondlife.com/whatis/?lang=pt-BR. Acesso em: 10 ago. 2011.
http://veja.abril.com.br/noticia/economia/trabalho-escravo-encontrado-na-rededa-zara. Acesso em: 20 ago. 2011.
http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/paises_industrializados
.pdf. Acesso em: 18 out. 2011.
http://www.senado.gov.br/noticias/cpi-vai-investigar-turismo-sexual-comoporta-para-trafico-humano.aspx. Acesso em: 11 out. 2011
http://www.dfcint.com/index.php. Acesso em: 10 out. 2011.
http://www.dfcint.com/wp/?p=312. Acesso em: 10 out. 2011.
199
http://colunas.epoca.globo.com/sexpedia/2010/06/03/domingo-e-dia-de-verpornografia-na-internet/. Acesso em: 14 out. 2011.
http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midiasnacionais/brasil/epoca/2011/10/10/o-estado-nacional-nao-atende-asociedade/print-nota. Acesso em: 20 out. 2011.
http://www.itamaraty.gov.br/temas/mecanismos-inter-regionais/agrupamentobrics. Acesso em: 18 out. 2011.
http://www.alfurqan.pt/quem.asp. Acesso em: 20 out. 2011.
http://www.alfurqan.pt/view_tema.asp?ID=122. Acesso em : 20 out. 2011.
http://gtld.pgr.mpf.gov.br/gtld/cooperacao-internacional/drci/drci. Acesso em:
05 jan 2012.
Edgar Morin na palestra sobre o tema “A ambivalência da globalização: rumo a
novos caminhos”, Fronteiras do pensamento, Sala São Paulo, 9 de agosto de
2011.
Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de
dezembro de 1948. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível
em <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>.
Acesso em 14 out. 2011.
Download