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FUNDAÇÃO DE ENSINO “EURÍPIDES SOARES DA ROCHA”
CENTRO UNIVERSITÁRIO EURÍPIDES DE MARÍLIA - UNIVEM
GRADUAÇÃO EM DIRE ITO
MOISÉS FERREIRA DA PAIXÃO
DIREITO EM DEBATE: UM ESTUDO CRÍTICO POR UM DIREITO
CRÍTICO
Marília
2007
MOISÉS FERREIRA DA PAIXÃO
DIREITO EM DEBATE: UM ESTUDO CRÍTICO POR UM DIREITO
CRÍTICO
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Direito do Centro Universitário Eurípides de
Marília, mantido pela Fundação de Ensino Eurípides
Soares da Rocha, como requisito parcial para
obtenção do Título de Bacharel em Direito.
Orientador:
Prof. Dr. Benedito Cerezzo Pereira Filho
Marília
2007
PAIXÃO, Moisés Ferreira da.
Direito em Debate: Um Estudo Crítico por um Direito Crítico/
Moisés Ferreira da Paixão; orientador: Dr. Benedito Cerezzo Pereira Filho.
Marília, São Paulo: [s.n.], 2007.
59f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) –
Faculdade de Direito de Marília, Fundação de Ensino “Eurípides Soares da
Rocha”.
1. Direito. 2. Justiça Social. 3. Transformação Social. 4. Efetividade
e Inefetividade Processual
CDD: 340.1
.
NUNCA PARE DE SONHAR
Ontem o menino que brincava me falou
Que hoje é semente do amanhã
para não ter medo que esse tempo vai passar
Não se desespere
Nem pare de sonhar
Nunca se entregue
Nasça sempre com as manhãs
Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar
Fé na vida
Fé no homem
Fé no que virá
Nós podemos tudo nós podemos mais
Vamos lá fazer o que será
(Gonzaguinha)
A todos aqueles que não perderam a
capacidade de se indignar.
AGRADECIMENTOS
Termino esse trabalho monográfico consciente de suas limitações. Poderia e deveria
ter fundamentado e aprofundado melhor diversos conceitos e conclusões. Ainda assim, chego
nesse final de jornada, até certo ponto tranqüilo e satisfeito.
Trata-se de um texto um tanto quanto “panfletário” já que peca por ausência de um
maior rigor científico (como sempre observou e criticou minha amada e inseparável
companheira e esposa Katia), contudo, tenho a convicção que com esse texto ficou externado
um certo grau de maturidade, uma vez que tive a oportunidade (e até certo ponto a ousadia) de
expor uma opinião/posição amadurecida ao longo de dois cursos de graduação. Com mais
tempo, quem sabe num Mestrado, terei a oportunidade de fazer um trabalho melhor
elaborado...
Satisfeito e tranqüilo porque esse trabalho representa ainda, a conclusão de um curso
que comecei a fazer quase que por acaso e extremamente cético, sem expectativas. Por esse
motivo, passo a agradecer, numa certa ordem cronológica àquelas pessoas que considero
terem sido fundamentais para que esse momento ocorresse e, principalmente, para que
ocorresse dessa forma (encontro-me cheio de esperança e expectativa de ser sim possível
conciliar trabalho com militância e realização pessoal).
Agradeço em primeiro lugar meus pais, Zé Paixão e Lourdes, exemplos de
honestidade e caráter, portadores de firmeza, mas sempre muito amáveis e carinhosos.
Ensinaram-me, com suas vidas, o senso de humildade, respeito e coerência, da qual aprendi
que não devo nunca baixar a cabeça para quem seja “mais forte”, nem “pisar” na cabeça de
quem seja “mais fraco”.
Agradeço aos meus irmãos: Davi, Rose, Eliza e Zezinho que por terem tido a sorte e a
honra de terem os mesmos pais que os meus, desenvolveram e cultivam o espírito de respeito,
amizade e companheirismo.
Ao “mala” do Sojinha que me incentivou e me convenceu a fazer o Curso de Direito.
Aos professores e mestres Vinícius Carrilho Martinez e José Geraldo Poker que já no
primeiro ano de faculdade fizeram-me gostar do curso de direito em razão de suas aulas
críticas e reflexivas sobre o direito e contra o dogmatismo e ideologismo predominante.
Mostraram-me que era possível estudar e aprender direito criticando o direito. Além é claro de
terem sido os primeiros e principais fomentadores de um espírito científico – pesquisador,
essencial a todos aqueles que pretenderem passar pelo curso de direito sem se deixar seduzir
pelo discurso acrítico.
Agradeço à professora Daniela Marques e ao professor Ricardo Fracasso que com suas
juventude e garra mostram que para ser juristas diferenciados é necessário estudo, dedicação e
principalmente espírito crítico (o mundo jurídico precisa de mais pessoas como essas).
Ao professor Edinilson Donizete e professor Paraíba pelas aulas, debates, conselhos e
apoio. Sempre muito companheiros, compreensivos e humanos. Sempre provocaram em mim,
o desejo e a necessidade de estudar e aprender mais.
Agradeço ao professor Benedito Cerezzo, meu orientador e grande mestre no curso de
direito. Advogado militante, jurista crítico. Posso dizer sem medo de errar que esse professor
foi e é o grande fator diferencial no curso de direito da Fundação. Seja por suas aulas e
discussões, seja em razão da atualidade com que trata e discute o direito (sempre com um
texto novo, um artigo novo para se pensar e discutir o direito) e também, pela
organização/promoção de cursos, palestras, congressos e seminários com os temas e
palestrantes mais atuais e necessários para se ter uma formação crítico - reflexiva.
Agradeço ao professor Paulo Cunha, da UNESP, a quem atribuo a frase utilizada na
dedicatória. Um grande companheiro e incentivador desde os tempos de UNESP até os dias
atuais. Ontem, nas Ciências Sociais ensinou-me que é preciso não perder nunca a capacidade
de se indignar frente às injustiças e frente a toda e qualquer forma de opressão. Hoje, no
Direito, apesar de não pertencer a este mundo nem a esta instituição, sempre incentivou e
cobrou para que eu estudasse e pesquisasse. E não vislumbro outra forma de estudar ou
pesquisar sem levar em conta a premissa de que o conhecimento deve estar a serviço da
compreensão/superação da realidade calcada em injustiças.
Agradeço aos Advogados da União em Marília; em especial ao Márcio e ao Lauro
pela paciência, sabedoria e humildade que me fizeram ter um sentimento de profundo respeito
e admiração. Exemplos de seriedade, probidade e dedicação ao trabalho. E à Lúcia Helena
pela paciência e hospitalidade com que me recebeu e me aturou.
À Fernanda Rosa, Defensora Pública em Marília, que com sua juventude e
sensibilidade comprova que é possível realizar um trabalho sério e dedicado, mantendo o
respeito e a consideração para com as pessoas.
Agradeço por fim, à Katia de Moura Graça Paixão, minha esposa, eterna companheira
e namorada. Esteve e está ao meu lado em todos os momentos da minha vida. Conselheira
dedicada, crítica contundente, mulher decidida e amiga fiel. Como diria Machado de Assis em
Dom Casmurro: desde o dia em que nos conhecemos e nos dias atuais – você é e sempre foi
muito mais mulher do que eu homem. Num primeiro momento me fez homem e num
segundo, me fez PAI – agradeço a você pelo meu bebê.
Agradeço ao Ícaro Graça Paixão, meu filhotinho, minha razão de existir, minha razão
de viver, meu motivo para lutar e meu motivo para sonhar. Renovou meu oxigênio, renovou
minhas esperanças. Espero ser para ele, pelo menos algo próximo do que o meu Pai foi e é
para mim. Dizem que os filhos nascem graças aos pais, contudo, ele é quem me fez renascer.
Agora que abri as asas ao belo desejo,
Tanto mais sob os pés o ar avisto
Mais as velozes plumas ao vento exponho,
E desprezo o mundo e ao céu me lanço.
Nem do filhote de Dédalo o fim ruim
Faz com que abaixo incline, antes bem mais
ascendo.
Que eu tombe morto por terra bem sei:
Mas qual vida se compara à minha morte?
A voz do meu coração aos ares ouço,
Onde me levas, temerário? baixa,
Que raro fica sem dano muita audácia.
Não é de temer, respondo eu, a elevada ruína.
Corta seguro as nuvens e morre contente;
Se o céu a tão ilustre morte destina.
Dos Furores Heróicos
(Giordano Bruno)
PAIXÃO, Moisés Ferreira da. Direito em Debate: Um Estudo Crítico por um Direito
Crítico. 2007. 59f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) - Centro
Universitário “Eurípides de Marília” - UNIVEM, Fundação de Ensino Eurípides Soares da
Rocha, Marília, 2007.
RESUMO
Discutimos na presente pesquisa o Direito enquanto área de conhecimento e, principalmente
seu papel concreto na realidade social: conflitiva e profundamente marcada por desigualdades
econômicas, sociais, políticas e culturais. Enfatizamos seu caráter político como forma de
crítica á tradicional dogmática jurídica alicerçada no positivismo jurídico, com o intuito de
contribuir para a desconstrução de tal ideário gerador (ou ao menos justificador) do
imobilismo e apatia do poder judiciário e dos juristas em geral. Discorremos sobre a ineficácia
e inefetividade do direito no momento em que esse, preso a um formalismo burocrático, deixa
de prestar a real tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva. Por fim, sinalizamos
possíveis transformações que urgem serem introduzidas e efetivadas no direito para que este
seja elencado no rol das instituições eficientes e democráticas e, como tal, seja utilizado como
um instrumento de luta e militância pela transformação da realidade dada através da
promoção e priorização da Justiça Social.
Palavras-chave: Direito; Justiça Social; Transformação Social; Efetividade e Inefetividade
Processual; Prestação da Tutela Jurisdicional.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................
10
CAPÍTULO - I DIREITO: DEBATES E DEFINIÇÕES..........................................................
13
CAPÍTULO - II DIREITO: INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DA (DES)ORDEM
VIGENTE...................................................................................................................................
24
CAPÍTULO - III DIREITO: POSSIBILIDADES DE CRÍTICA E TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL......................................................................................................................................
35
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................................
47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................
50
ANEXOS....................................................................................................................................
10
INTRODUÇÃO
Ao optarmos numa pesquisa de iniciação científica debater e definir O QUE É O
DIREITO, conceito que baliza toda uma área específica do conhecimento, ou seja, um ramo
das ciências humanas já largamente debatido pela filosofia, sociologia, ciência política, etc.
(além é claro de tal conceito consistir numa disciplina acadêmica autônoma amplamente
difundida nas sociedades ocidentais), incorremos no risco de realizarmos uma pesquisa
meramente descritiva de alguns autores que dissertaram e discordaram sobre o tema e, com
isso, muito pouco (para não dizer nada) acrescentar à ciência, ao conhecimento humano.
A real contribuição/relevância de tal pesquisa será a de auto-aprendizado. Ou seja, o
acúmulo de conceitos e posicionamentos referentes ao tema – direito – possibilitar-nos-á um
amadurecimento intelectual para quem sabe, futuramente podermos contribuir para o
avanço/desenvolvimento das chamadas ciências jurídicas que, muito mais que se tratar apenas
de um ramo do conhecimento, refere-se a uma área de interferência direta na vida prática e
cotidiana de seres humanos.
Com isso queremos dizer que, ao optarmos por esse tema estamos cientes de nesse
primeiro momento, termos ingressado num ramo estritamente teórico/bibliográfico, contudo,
sem perder de vista nosso real objetivo, qual seja, tocarmos criticamente nos efeitos
práticos/concretos do direito (enquanto jurisdição estatal) frente às realidades sociais, para
quem sabe, podermos contribuir para a conquista de justiça social ou ao menos,
compreendermos de que forma o jurista contribui ou atrapalha a militância em prol de tal
objetivo.
No primeiro capítulo – Direito: debates e definições – discutimos diferentes correntes
filosóficas acerca do direito, enfatizando que a forma de compreendê-lo é um fator relevante
para justificar o posicionamento social e político. Em outras palavras, aquilo que estivermos
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dispostos a definir/entender como direito será o resultado da forma como percebemos o
mundo e nos posicionamos frente aos conflitos sociais. Para tanto chegamos à proposição de
que direito na concepção de um membro do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
Terra) será diferente da concepção dada por um membro da UDR (União Democrática
Ruralista) sobre mesmo tema.
Fizemos nesse capítulo, um breve histórico do conceito – direito – enfatizando a sua
associação inevitável e necessária ao conceito de Estado. Interligação esta que ficou mais
evidente a partir da formação e consolidação do Estado moderno (centralizado e
centralizador). Necessário este breve histórico para contrapormos as divergentes leituras sobre
o direito e suas implicações concretas na realidade social, ressaltando o papel político e
histórico que o direito representa, para por fim, arriscarmos uma definição nossa do conceito.
No segundo capítulo – Direito: Instrumento de manutenção da (des)ordem vigente –
priorizamos a análise crítica do direito e dos juristas da (des)ordem, ou seja, sua associação
concreta e real na defesa dos interesses das classes dominantes e da forma com a qual
contribuem para a manutenção/perpetuação dos privilégios, fonte das desigualdades sociais.
A arrogância de suas instituições e de seus membros com a qual ignoram e excluem
o ser humano real, isto é, a grande parcela da população que necessita de seus serviços. Sua
ineficácia na defesa e garantia dos direitos/interesses das camadas menos favorecidas (social –
cultural – econômica e politicamente), a partir da demora, ineficácia e custas do processo.
Além é claro, de no caso específico do direito penal, a realidade ser inversa, ou seja, eficaz
para os pobres e ineficaz para as camadas abastadas e dirigentes.
No terceiro capítulo – Direito: Possibilidades de crítica e transformação social –
procuramos vislumbrar algumas saídas possíveis e necessárias para que o direito se torne
efetivamente um mecanismo/instrumento de promoção de justiça e com isso, de
transformação social. Para tanto enfatizamos a urgente necessidade de se romper com a
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ideologia positivista que impera no direito e com seu discurso sedutor de que o direito é a lei,
a lei é o direito e esta é justa, neutra, abstrata, geral, eqüidistante e imparcial.
Romper com a ideologia dogmático–positivista que impera no direito consiste no
primeiro passo para se admitir e reconhecer o caráter político do direito e, com tanto, pode e
deve ser utilizado, de forma política (como instrumento de disputa política) na defesa dos
interesses das camadas populares menos favorecidas.
Ressaltamos as dificuldades de tal empreitada (opção pelos pobres), contudo,
enfatizamos que grupos de juristas engajados crescem cada vez mais no país. Ainda, a luta
política por um direito justo é uma faceta da luta geral por uma sociedade justa. E estas lutas,
por uma sociedade justa e por um direito justo, ou seja, que atenda aos interesses e anseios
sociais, econômicos, culturais e históricos das camadas populares excluídas (esmagadora
maioria da população) está sim sendo travada no cenário político – social concreto.
Incumbe aos juristas militantes, assim como aos militantes por justiça de outras
áreas, identificar e criar mecanismo para as suas lutas. Necessário que se apropriem, utilizem
e ampliem os espaços já existentes e conquistados, além é claro, de que no processo de luta
cotidiana, criem-se novos.
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CAPÍTULO I – DIREITO: DEBATES E DEFINIÇÕES.
Na interpretação/definição do que é o direito, divergentes e até concorrentes são as
abordagens referentes ao assunto. Não encontraremos e nem temos a pretensão de propormos
uma definição definitiva que atinja consenso.
Autores consagrados como Carnelutti (2005, p. 22), depois de toda uma vida
dedicada à prática e estudos jurídicos, ressalta a impossibilidade de tal empreitada ao traçar
um paralelo entre sua juventude e velhice (maturidade) de jurista:
Isto é, pois, o direito? E este é o jurista, que quer saber o que é o direito?
Não sabe, afinal, nada de preciso. Expressa-se, em suma, mais do que como
um douto como um poeta.
Precisamente aqui está a diferença entre minha juventude e minha velhice de
jurista. O jovem tinha fé na ciência; o velho a perdeu. O jovem acreditava no
saber; o velho sabe que nada sabe. E quando o saber junta-se com o saber
que não sabe então a ciência converte-se em poesia. O jovem contentava-se
com o conceito científico de direito; o velho sente que neste conceito perdese seu impulso e seu drama, e, portanto, sua verdade. O jovem queria os
contornos cortantes da definição; o velho prefere as matizes da comparação.
O jovem não crê senão no que via; o velho não crê mais no que não pode
ver.
Com essa premissa traçada pelo autor em questão, ressaltamos a complexidade do
tema que ora nos propomos a enfrentar, estando cientes de que a realidade será sempre mais
rica e abrangente que o conhecimento. Em outras palavras, o conhecimento será sempre uma
tentativa parcial e limitada de apreensão e sistematização de um todo complexo e dinâmico.
Mais difícil ainda será essa tarefa de inter-relação sujeito cognocente e objeto
cognocível no momento em que tal objeto é motivo de disputas e divergências ao longo de
séculos: a melhor, mais justa ou mais conveniente forma de organizar e sistematizar a vida em
sociedade. Em razão disso, inúmeras são as formas teórico-práticas de abordar, compreender e
se posicionar frente ao tema.
Independente da corrente teórica adotada e de sua matriz filosófica, uma pré-noção
que ousaríamos dizer ser comum, ao passo que geradora da relevância da discussão sobre o
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que vem a ser o fenômeno compreendido como Direito, é o fato de o homem viver em
sociedade. Desconsiderando o debate apriorístico/metafísico de o homem ser ou não um
animal político/social, a vida em sociedade é um fato. E essa vida em sociedade é conflitiva
no momento em que colidem interesses coletivos e individuais principalmente no que se
refere à apropriação e usufruto de bens limitados ou escassos.
A maneira de entender e se posicionar frente a esse conflito ditarão a
compreensão/definição de Direito. Em poucas palavras, as correntes teórico – filosóficas
acerca do direito são conflitivas e concorrentes justamente pelo motivo de lidarem com
interesses conflitivos e concorrentes (um latifundiário compreenderá e definirá o que é direito
de uma forma totalmente diversa da compreensão/definição dada ao mesmo tema por um
membro do MST).
A primeira corrente filosófica acerca do direito que abordaremos na presente
pesquisa é a escola jusnaturalista. Para a mesma o Direito é algo anterior à própria vida em
sociedade, ou seja, existe um direito natural superior e transcendental inerente à natureza
humana. Direito este que submeterá e delimitará o direito positivo. Isto porque, na hipótese de
o direito positivo se contrapor ao direito natural, este será ilegítimo e ineficaz pelo fato de
contrariar a própria natureza.
Para tal corrente as leis naturais são eternas e imutáveis, dessa forma, cabe aos
homens desvendá-las, descobri-las, mas, em hipótese alguma criá-las ou elaborá-las. Sua
matriz filosófica é a metafísica e pode ser considerada uma forma de interpretação do direito
em desuso, ao passo que perdeu força com o advento da “era da razão” e com o conseqüente
fortalecimento do positivismo jurídico.
Combatendo essa explicação metafísica do direito, alicerçada num conceito de
“justiça” superior e, portanto, que foge ao controle e à razão humana, o Positivismo Jurídico
terá como meta principal “depurar” o direito de quaisquer juízos de valor. Em outras palavras,
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buscará criar uma “ciência pura do direito”. Para tanto priorizará o método, a forma sobre a
substância: nas palavras de Mário G. Losano (apud KELSEN, 1998, p. XIII e XIV):
[...] O elemento central da ciência é pois, o método e não o objeto; o
cientista, portanto, visa a construção de uma teoria formal, não substancial.
A teoria pura do direito é uma teoria que ‘quer única e exclusivamente
conhecer o objeto. Procura responder a esta questão: O que é e como é o
direito? Mas já não lhe importa a questão de como deve ser o direito, ou
como deve ele ser feito? É ciência jurídica e não política do direito.
Essa visão que presa pela neutralidade axiológica do direito tomou força e passou a
influenciar o sistema jurídico como um todo. Podendo ser considerada a corrente dominante
do pensamento/teoria jurídica na medida em que se verifica nos dias atuais o discurso que
enfatiza e defende a necessidade da “neutralidade” e “imparcialidade” do juiz, o qual deve
permanecer “eqüidistante” das partes em litígio.
Outro fator que revela o predomínio do positivismo jurídico na realidade social
vigente é a constante confusão entre Direito e lei e entre legalidade e legitimidade. Tais
conceitos por mais distintos que sejam são ensinados nas universidades através de seus
manuais como conceitos sinônimos. E como enfatiza Lyra filho (1999, p. 7): “[...] não se trata
de um problema de vocabulário. A diversidade das palavras atinge diretamente a noção
daquilo que estivermos dispostos a aceitar como direito”.
A aplicação do direito, segundo esta vertente, tende a priorizar e privilegiar a norma
genérica e abstrata sobre a situação fática, ou seja, considera-se como mais relevante o rigor
do formalismo processual do que drama humano real. Para essa corrente o poder judiciário é a
“boca da lei”, isto é, cabe ao juiz aplicar a lei e não interpretá-la (aplica-se a lei doa a quem
doer). Importante ressaltar que é com base nessa visão de direito que surge o termo:
“operadores do direito” muito utilizado e difundido atualmente.
Tal concepção de direito tornou-se historicamente possível no momento da
consolidação do Estado Moderno. Momento este em que o Estado tornou-se centralizado e
passou a monopolizar o uso legal do poder coercitivo e repressivo. O Estado vedou aos
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particulares o uso da força privada (autotutela), chamando para si a responsabilidade da
prestação da tutela jurisdicional (juris dicção: do Latim, dizer o direito, ou seja, recorre-se ao
Estado que ele dirá quem tem ou de quem é o direito).
Com a centralização do poder jurisdicional pelo Estado através da imposição do
monopólio da força, dos meios de repressão, fundamentando tal ato na necessidade de se
manter a paz, harmonia e coesão social, protegendo todos seus membros (todos seus cidadãos)
das ameaças externas ou internas, o Estado legitima-se. A partir de então o Estado passa a ser
o único ente legítimo para elaborar e ditar normas de conduta. E como sua preocupação é o
bem público, ou seja, o bem geral da Nação e não o mero interesse particular de um indivíduo
ou de um grupo, tais normas ou leis são legítimas, portanto, justas.
Note-se que é no momento em que o Estado reveste-se de “ente superior”
apresentando-se como aquele que está acima dos interesses e conflitos particulares, estando,
portanto, em condições de resolver e decidir os conflitos é que o Direito passa a ser entendido
como lei. Pois estas, ao serem elaboradas por Aquele cujo único interesse é o bem comum
serão necessariamente legítimas e justas.
Na esfera da política teremos o Estado centralizador que ditará as regras e normas de
convivência. Na compreensão teórico-filosófica do mundo teremos a predominância do
chamado cientificismo, resultante do Iluminismo também denominado “A era da razão”, onde
a Ciência, mais que conhecer e explicar a realidade física e material, passará a ser considerada
a única forma de conhecimento possível para se chegar à “verdade”. Verdade esta que
transcende às paixões e interesses mesquinhos e classísticos de um ou outro grupo social.
Verdade científica passa a ser a verdade para além dos valores, para além da questão
econômica, social ou filosófica. Em outras palavras, quando o positivismo eleva a ciência ao
status de “Verdade” incorre no mesmo erro das religiões e do jusnaturalismo até então
criticados.
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Esse ideal de verdade científica, pura e neutra, que transcende aos valores e aos
interesses de grupos sociais é bem assimilado pelos juristas. Assim foi na ascensão e
consolidação do direito moderno e ainda é nos dias atuais.
Nas palavras de Aguiar (1993, p. 23):
Os juristas têm muita confiança na ciência. Tanto isso é verdade que só a
partir de Kelsen podemos falar de uma teria geral do direito. Antes e hoje,
para a maioria dos juristas, o estudo sistemático do direito positivo estatal é
denominado doutrina. Ora, quando desenvolvemos uma doutrina,
previamente já estamos afirmando que ela é comprometida com valores,
com princípios e com um entendimento do mundo. A doutrina, seja ela
moral, religiosa ou jurídica, é um discurso do dever-ser. Ela não diz como as
coisas são ou estão, ela afirma como as coisas devem ser ou estar. Não é
uma linguagem que se pretende neutra, pois tem um “a priori” valorativo ao
menos.
Surpreendentemente, os que aceitam a doutrina como metalinguagem do
direito positivo vão afirmar que tanto o direito positivo como a linguagem
sobre ele são neutros, eqüidistantes e não comprometidos, pois o direito
objetiva o bem comum e a doutrina procura uma explicação neutra. Que
paradoxo instigante!
Assim, o imaginário dos juristas entende o direito e sua doutrina como
neutros e assépticos, pairando para além da concretude observável, como um
corpo de normas que traduz o melhor para a sociedade e que, por isso, deve
ser garantido pelas garras da coatividade. Os problemas ideológicos, as
inversões traduzidas pelas normas, as terríveis estigmatizações que o
ordenamento prevê, são apenas críticas daqueles que não sabem direito ou
estão comprometidos com idéias destrutivas. O direito é um detergente para
as sujeiras do mundo e sujos são os pobres e os diferentes, que devem ser
tratados de modo firme para que permaneçam em seus lugares “naturais”.
Nada pode macular essa alienação tão bem construída.
A questão que surge de tal situação contraditória, com o intuito de desmistificar tal
neutralidade e imparcialidade do Estado e, conseqüentemente de suas leis é: Mas afinal quem
ou o que é este Estado? Quem são seus membros, quem o compõem e o dirige? Porque ele
tem a legitimidade de monopolizar o uso da força e dos meios de repressão? Por quem e
quando lhe foi dado tal poder, tal direito?
Responder tais questões seria, no momento, desviarmo-nos do objetivo proposto para
a presente pesquisa; ao passo que elas em si já representam um novo tema de pesquisa. Não
temos, portanto, a pretensão de aprofundá-las no presente momento, contudo, tais
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questionamentos são relevantes para introduzirmos uma outra concepção do que vem a ser o
Direito. Concepção esta oposta e concorrente da apresentada anteriormente.
Numa leitura reducionista do pensamento de Karl Marx, isto é, leitura economicista,
o Direito, da mesma forma que a Política e a Religião, são meros instrumentos de manutenção
da dominação de uma classe sobre a outra. Da mesma forma que a religião, ao prometer para
quem sofre uma recompensa eterna em outra vida (vida futura ou vida após a morte),
garantindo com isso a passividade das camadas populares exploradas, a promessa de direitos
iguais para todos a partir da premissa básica do Direito de que todos são iguais perante a lei,
garante igual passividade social. Em outras palavras, recorre-se ao poder judiciário e fica-se
aguardando a “justiça que tarda, mas não falha”.
E pelo motivo de a dominação de classe ser exercida por uma minoria sobre a
maioria, tal dominação não persistiria por muito tempo se não fosse a presença ostensiva e
beligerante do Estado com todo seu aparato policial, judiciário, forças armadas... Presença
esta de dominação e exploração pela força “travestida/mascarada” pelo discurso sublime da
legitimidade jurídica de que o próprio Estado está submetido e agindo conforme a lei,
conforme o ordenamento jurídico.
Tal visão do Direito, assim como o da religião e da política não é equivocada,
contudo, reducionista ao abordar uma realidade interativa tão complexa. Ao separar
radicalmente a infra-estrutura (base material de reprodução da vida social) da superestrutura
(mecanismos e institutos que emergem da infra-estrutura para garantir e viabilizar a
reprodução da mesma), ou seja, ao desconsiderar a inter – relação dialética que ocorre entre
estas duas esferas da realidade social e o papel contraditório que uma exerce sobre a outra,
não leva em consideração que em eventuais momentos ou sob determinados aspectos possa
haver na superestrutura (na política, na religião, na arte, e em especial para a presente
pesquisa, no fenômeno jurídico) forças progressivas/ transformadoras.
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A partir desse debate sobre o Direito com uma breve exposição das correntes que, ao
abordar o fenômeno jurídico consideramos as mais antagônicas, traçaremos alguns aspectos
do que entendemos por Direito.
Para se chegar a uma definição crítica do que vem a ser o Direito, imprescindível
será romper de vez com a ideologia positivista de neutralidade e imparcialidade jurídica. Para
tanto, dissociar, ou melhor, dizendo, diferenciar definitivamente Direito de Lei, pois como
sugere Lyra Filho (1999, p. 8):
A lei sempre emana do Estado e permanece, em ultima análise, ligada à
classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a
sociedade politicamente organizada, ficam sob o controle daqueles que
comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios
de produção. Embora as leis apresentem contradições, que não nos permitem
rejeitá-las sem exame, como pura expressão dos interesses daquela classe,
também não se pode afirmar, ingênua ou manhosamente, que toda legislação
seja Direito autêntico, legítimo ou indiscutível. Nesta última alternativa, nós
nos deixaríamos embrulhar nos ‘pacotes’ legislativos, ditados pela simples
conveniência do poder em exercício. A legislação abrange, sempre, em
maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito,
reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e
caprichos continuístas do poder estabelecido.
A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do
Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que
cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que
vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou
acima das leis.
Queremos dizer com isso que uma definição crítica de Direito perpassa pelo
reconhecimento de sua politização, ou seja, o Direito é fruto/resultado de embates políticos,
desempenhando conseqüentemente um papel político. Dessa forma resta saber ou optar que
posicionamento político adotar frente determinada realidade concreta.
Assertiva essa que pode ser verificada quando nos propomos a falar em miséria,
pobreza, desigualdade social, injustiça no Brasil atual. Os meios de comunicação de massa
relatam diariamente esse cenário. Os políticos profissionais com seus partidos de médio e
grande porte discutem a questão, apresentam propostas, conhecem a solução para tais
20
problemas. O cidadão médio reclama da realidade e responsabiliza de forma generalizada os
políticos e, indiretamente o Estado, por suas mazelas.
Por que então esses problemas não são sanados, nem de forma política nem jurídica?
Por que o senso comum tem a certeza que nada mudará, que não adianta fazer nada?
Apesar da vasta discussão e crítica em relação à realidade vigente um ponto, a nosso
ver crucial, não é tocado. Um ponto que é sagrado e intocável tanto para o cidadão comum
quanto para os meios de comunicação de massas, para os juristas, políticos e partidos políticos
em geral: A questão da Propriedade.
Consagrada em nossa Constituição Federal como um direito e garantia fundamental,
portanto inviolável, aos moldes da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão da França
revolucionária (séc. XVIII), trará em seu bojo ideais burgueses que, ideologicamente
apresenta-se como um direito de todos.
Já no século XIX Proudhon (1988, p. 43) critica essa equivalência da Propriedade
com os demais Direitos ditos naturais, inalienáveis e imprescritíveis atribuída pela carta
francesa. De forma irônica ele pergunta como pode a propriedade ser um Direito Natural e
Inalienável como a liberdade, a igualdade e a segurança se a mesma carta prevê situações em
que o próprio Estado a desrespeita? O Estado é o primeiro a desrespeitar a propriedade
(Direito natural e inalienável) ao cobrar taxas e impostos proporcionais da mesma e, ao
reservar-se a prerrogativa de, em determinadas situações, utilizar a propriedade alheia e, até
mesmo desapropriá-la.
Mais adiante, no mesmo texto Proudhon (1988, p. 49) diferencia a propriedade dos
demais direitos fundamentais:
A liberdade é um direito absoluto, porque constitui para o homem, como a
impenetrabilidade constitui para a matéria, uma condição sine qua non de
existência; a igualdade é um direito absoluto, porque sem ela não há
sociedade; a segurança é um direito absoluto, porque aos olhos de todo
homem sua liberdade e sua vida são tão preciosas quanto as de um outro:
esses três direitos são absolutos, isto é, não suscetíveis de aumento ou
diminuição, porquanto na sociedade associados recebem tanto quanto dá,
21
liberdade por liberdade, igualdade por igualdade, segurança por segurança,
corpo por corpo, alma por alma, na vida e na morte.
E continua:
Mas a propriedade, segundo sua razão etimológica e as definições da
jurisprudência, é um direito exterior à sociedade; pois é evidente que, se os
bens de cada um fossem sociais, as condições seriam iguais para todos e
implicaria uma contradição afirmar: A propriedade é o direito que tem um
homem de dispor da maneira mais absoluta de uma propriedade social.
Portanto, se estamos associados para a liberdade, a igualdade, a segurança,
não o estamos para a propriedade; assim se a propriedade é um direito
natural, esse direito natural não é social, mas anti-social. Propriedade e
sociedade são coisas mutuamente repulsivas: é tão impossível associar dois
proprietários quanto reunir dois imãs por pólos iguais. É preciso que a
sociedade pereça ou então que elimine a propriedade.
Essa associação, propriedade como direito natural, imprescritível e inalienável é
difundida, como bem lembra Galvão Filho (sd, p.368), por Locke. Para este, “a propriedade
era um direito natural ao homem, ele a adquiria ao trabalhar a terra e a incorporaria à sua
pessoa”.
Essa visão de propriedade enquanto fruto do trabalho humano discutida por Locke no
século XVIII é extremamente atual. Hoje em dia é a visão que predomina na sociedade.
Consiste a mesma, numa forma ideológica de legitimar a desigualdade social atribuindo
honras e méritos aos possuidores ao mesmo tempo culpa aos desprovidos de posses, ou seja,
quem não tem é porque não se esforçou o bastante ou não teve competência para conquistar
(basta se esforçar que você chega lá).
Já no próprio século XVIII, Rousseau refutou a tese meritocrática da propriedade
defendida por Locke, ou seja, para esse autor:
[...] o homem é capaz de apropriar-se de mais do que precisa. [...] a
propriedade desvirtua a natureza humana, provoca o desnivelamento social,
extrai o homem do meio, cria disputas pela terra e permite o aparecimento
do Estado para assegurar o domínio da terra a quem não a trabalha.
(GALVÃO FILHO, sd, p. 368).
22
Essa tese de que o Estado foi criado num momento histórico específico em que surge
a propriedade privada (mudança de hábito humano, isto é, o homem deixa de ser nômade e
passa a levar uma vida sedentária) e por isso é criado para defende-la, será aprofundada por
Marx..
Para esse autor, o Estado é um instrumento de dominação de uma classe sobre a
outra sendo seu fundamento último a defesa da propriedade e tudo o que ela representa, isto é,
o privilégio de uma minoria em detrimento da maioria e o direito de essa minoria explorar os
demais.
Isso fica evidente quando Marx (2002, p. 96) ao estudar os economistas burgueses
diz: “O direito do proprietário agrário tem a sua origem no roubo. Os senhores de terras,
como todos os outros homens, gostam de colher onde não plantaram e exigem mesmo uma
renda pelo produto natural da terra.
Nessa discussão preliminar, onde procuramos delinear o que entendemos por Direito,
percebemos ser o conceito “propriedade” crucial para esta definição. Isto porque, para
entendermos a propriedade, necessário será sua compreensão de forma ampla, ou seja, como
se dá e o que é esse instituto na nossa sociedade capitalista.
Num primeiro aspecto infra-estrutural, é a propriedade privada o meio necessário
para
a
reprodução
da
vida
material,
para
a
produção
da
riqueza
social
e
apropriação/distribuição dessa. E, nessa abordagem, encontraremos a fonte e a manutenção
das desigualdades sociais uma vez que, no processo de apropriação/ distribuição
verificaremos a concentração da riqueza socialmente produzida.
Partindo para a análise da propriedade no plano da superestrutura social, notaremos
que com a consolidação do Estado Contemporâneo, principalmente a partir das grandes
revoluções burguesas (final do século XVIII e início do século XIX), ocorre um maior
estreitamento entre o poder político com o poder econômico. Os detentores do poder
23
econômico “tomam definitivamente as rédeas” do poder político em detrimento de reis,
nobreza e clero.
Nos dias atuais e, em especial na sociedade brasileira, quando os detentores do poder
econômico não assumem pessoalmente os cargos políticos, financiam e apóiam políticos que
defenderão seus interesses.
Por fim, numa perspectiva jurídica da propriedade, enquanto predominar a prática
dos juristas fundamentada na ideologia positivista, ínfima será a possibilidade de se promover
justiça social (distribuição de riqueza/implementação do “direito justo”) por mecanismos
jurídicos. Isso porque, como dito anteriormente, nessa perspectiva o direito acaba sendo um
“mero apêndice” da política e os juristas subordinados e reféns da “vontade do legislador”1,
agindo então, nos limites e de acordo com a forma preestabelecida por este.
Sendo esse “legislador” um legítimo representante dos proprietários, detentores dos
meios de produção e com isso, do poder econômico, não restará outra alternativa aos
“operadores do direito” senão a de aplicar e salvaguardar esses interesses, conforme prescrito
no ordenamento jurídico.
Em suma, ao discutirmos o instituto propriedade privada, teremos inevitavelmente
que “arrancar o véu” da neutralidade e imparcialidade jurídica ao ressaltarmos seu caráter
político. E ao assumirmos o caráter político do direito, substituiremos “operador do direito”
(mero aplicador/manipulador de leis) pelo militante do direito (aquele que pensa, questiona,
critica e combate leis injustas). Substituição esta que representa um primeiro passo na luta
pela conquista/promoção de justiça através do direito.
1
Mais um termo muito utilizado nos círculos jurídicos dominado pelo positivismo que acaba por personificar o
poder legislativo elevando-o ao status “ente superior”.
24
CAPÍTULO II – DIREITO: INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DA
(DES)ORDEM VIGENTE
A desigualdade social atrelada à desigual apropriação dos meios de produção
verificada na sociedade brasileira consiste em algo que remonta aos primórdios da
colonização.
Com a chegada dos portugueses inicia-se um processo de criação de uma elite
possuidora de terras, poder e privilégios que, representando a coroa, teriam a responsabilidade
de colonizar e promover o desenvolvimento do país.
Em função da distância entre Colônia e Metrópole essa elite recém criada
concentrará além do poder econômico, o poder político. Poder esse que por consistir na
organização do Estado e de suas instâncias decisórias servirá como um instrumento de
manutenção de privilégios e defesa da propriedade, do poder econômico.
Nesse primeiro momento, como ressalta Wolkmer (2002, p. 40 - 41), o Estado e o
Direito encontram-se diretamente atrelados às elites detentoras de riqueza e poder.
Característica que marcará a sociedade brasileira ao longo de sua história ditando, de forma
majoritária, a atual estrutura político-administrativa do Estado brasileiro. Em poucas palavras,
a relação entre poder econômico e poder político legitimados pelo Direito, representa um
traço característico de nossa sociedade.
Nas palavras do autor:
A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais
permitiu construir um modelo de Estado que defenderia sempre, mesmo
depois da independência, os intentos de segmentos sociais donos da
propriedade e dos meios de produção. Naturalmente, o aparecimento do
Estado não foi resultante do amadurecimento histórico-político de uma
Nação unida ou de uma sociedade consciente, mas de imposição da vontade
do Império colonizador.
Instaura-se, assim, a tradição de um intervencionismo estatal no âmbito das
instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico.
(WOLKMER, 2002, p. 40 – 41)
25
Ao contrário da maioria das colônias americanas que, ao formarem uma identidade
nacional iniciaram as lutas e revoluções pela independência, no caso brasileiro, esse processo
resultaria da reivindicação das elites, principalmente a paulista. A construção da identidade
nacional e a efetiva participação popular nos processos decisórios do país encontram-se
pendentes de realização.
Essa característica inicial do Estado brasileiro criou uma tradição de difícil
superação. Poder econômico e poder político fundem-se numa simbiose que marcará a
política econômica do país. Como legado da herança colonial teremos um conservadorismo na
política externa onde o Brasil teve e continua tendo sua economia dependente do capital
internacional. As grandes monoculturas voltadas para exportação de produtos agro-industriais
com a contrapartida da importação de produtos industrializados e tecnologias de ponta
persistem.
Em razão de a economia estar centrada nas grandes monoculturas, a concentração
fundiária adquiriu “sobrevida”. Enquanto que nos países capitalistas desenvolvidos a reforma
agrária representou um processo inevitável e necessário para o desenvolvimento do próprio
capitalismo, como por exemplo, as grandes marchas para o Oeste nos E.U.A do século XIX.
No Brasil, ocorreu o oposto, ou seja, houve uma fusão entre o capital urbano e o rural. Como
conseqüência disso, a questão da reforma agrária, reforma essencialmente burguesa, geradora
da pequena e média burguesia agrária, adquire no país uma dimensão revolucionáriosubversiva digna de combate e repressão pelo aparato jurídico-policial do Estado (vide
massacre dos Sem-terra em Eldorado dos Carajás-PA), além, é claro, da reprovação e
perseguição ostensiva aos movimentos sociais ligados à terra, encabeçados pela grande
imprensa escrita e televisiva.
Desse Estado conservador e elitista resultou um direito conservador e elitista
apegado ás formalidades burocráticas que o torna moroso, caro e ineficaz para a grande
26
maioria da população. Ao passo que altamente eficaz para os grandes proprietários que, para
defenderem suas propriedades usufruirão de liminares expedidas pelo poder judiciário e de
todo um procedimento especial, posto pelo poder legislativo, à sua disposição.
Direto elitista ao passo que apegado a estruturas burocrático-formais que o torna
ininteligível e, portanto, inacessível à grande parte da população. Além do excentrissísmo dos
juristas ocasionado pelo tecnicismo exacerbado gerador de um idioma todo próprio, o
“juridiques”, a atividade jurídica tradicional representa ainda uma estrutura arcaica e
opressora. Arcaica porque muitas vezes fundamentada em valores e normas socialmente
ultrapassadas, além do emprego de estrangeirismos em especial o Latim. Língua que quase
não é mais utilizada nem nos ritos religiosos da Igreja Católica, contudo, goza de “charme e
prestígio” no universo jurídico. Opressora por exigir uma padronização de comportamento e
vestimenta tanto dos profissionais que atuam nessa área quanto daqueles que precisarem
adentrar em seus “sagrados” e formais recintos (não raro é noticiado que pessoas humildes
são barradas/impedidas de entrar no fórum ou participar de audiências em razão da roupa que
está usando).
Também esse elitismo/formalismo jurídico são resquícios do direito colonial que
sempre desprezou (e despreza) as manifestações jurídico-culturais daqueles que realmente
formavam (e formam) o povo brasileiro. Em outras palavras, como lembra Wolkmer (2002, p.
49), o direito brasileiro foi estruturado e formado na importação de modelos elaborados para
tratar com realidades estranhas à nossa.
O modelo jurídico hegemônico durante os primeiros dois séculos de
colonização foi, por conseqüência, marcado pelos princípios e pelas
diretrizes do Direito alienígena – segregador e discricionário com relação à
própria população nativa –, revelando, mais do que nunca as intenções e o
comprometimento da estrutura elitista de poder. Nesse sentido, para Antonio
C. Mendes, a subjugação da população era praticamente completa, pois,
“distribuía entre raros colonos livres e uma maioria de trabalhadores
escravos, seus direitos estavam codificados no arbítrio dos donatários das
capitanias, que enfeixavam em si a figura do único proprietário, do único
responsável pelos castigos e pelas penas, chefe industrial e militar,
distribuidor de sesmarias e de prêmios”.
27
E continua:
Desde o início da colonização, além da marginalização e do descaso pelas
práticas costumeiras de um Direito nativo e informal, a ordem normativa
oficial implementava, gradativamente, as condições necessárias para
institucionalizar o projeto expansionista lusitano. A consolidação desse
ordenamento formalista e dogmático está calcada doutrinariamente, num
primeiro momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente, na exegese
positivista. Cumpre ressaltar, nessa trajetória, que os traços reais de uma
tradição subjacente de práticas jurídicas informais não – oficiais podem ser
encontrado nas remotas comunidades de índios e negros do Brasil colonial.
Sob tal prisma é essencial o resgate histórico de um pluralismo jurídico
comunitário, localizado e propagado através das ações legais associativas no
interior dos antigos “quilombos” de negros, e nas “reduções” indígenas sob a
orientação jesuítica, constituindo-se nas formas primárias e autênticas de um
“Direito insurgente, eficaz, não estatal”. (WOLKMER, 2002, p. 49-50)
Apesar dessa realidade objetiva mantenedora de privilégios e desigualdades, ou seja,
da (des)ordem vigente, não raro nos círculos jurídicos, a crença de que o aparato jurídico –
estatal age de forma imparcial, buscando o bem comum, tratando a todos de forma igualitária
e eqüidistante.
Mais que tratar todos de forma justa e igualitária há aqueles, no auge da arrogância e
prepotência, que acreditam serem os responsáveis pela promoção da justiça e de uma
sociedade mais justa. Acreditam que a partir do exercício de seu ofício e, só a partir desse
exercício é que a “justiça” será realizada. Acreditam realmente que são essências e
fundamentais para a promoção da “justiça” uma vez que são os únicos capazes de decifrarem
e aplicarem a norma jurídica ao caso concreto.
A tais juristas indagamos: que direito justo e igualitário é esse, que trata de forma
diferenciada pessoas de diferentes níveis sócio – econômicos? Pois que igualdade há quando
pessoas comuns (a grande maioria da população), despossuídas de propriedades, para terem
suas pretensões atendidas pelo Poder Judiciário, responsável por prestar a tutela jurisdicional
do Estado, encontrar-se-ão obrigados a submeterem-se ao procedimento comum e,
“pacientemente”, arcarem com o ônus do tempo?
28
Isso porque, como dissemos anteriormente, há para os proprietários (minoria ínfima
da população) o procedimento especial que, de plano, satisfaz a pretensão almejada via
liminar, bastando demonstrar apenas sua condição de proprietário.
Dirão os mantenedores da (des)ordem que a lei protegerá a todos e de forma
igualitária que forem proprietários e não apenas os ricos. Afirmação que em nada prejudicará
a crítica ao passo que o número de pequenos proprietários é ainda, bem inferior ao grande
número de desprovidos de toda e qualquer propriedade.
Por outro lado, aqueles em nossa sociedade que constantemente vêem questionada a
legitimidade e, portanto, ameaçada a integridade de suas propriedades não são os pequenos,
mas sim, os grandes proprietários que sempre colhem onde nunca plantam e especulam no
mercado imobiliário com terras ociosas, rurais e urbanas que, se aproveitadas, certamente
contribuiriam para a geração/distribuição de riqueza e renda.
Questionamos novamente: que justiça e igualdade poderá haver nos contratos de
adesão, e em especial o bancário, uma vez que um princípio basilar desse ramo do direito é o
princípio da autonomia das vontades?
Novamente teremos a intervenção dos juristas defensores da (des)ordem alegando
que a autonomia da vontade é respeitada ao passo que cada pessoa está livre para contratar ou
não. E, em razão da livre concorrência entre os bancos, terá a liberdade de escolher o contrato
bancário que julgar mais interessante.
Ignoram ou se esquecem na sua arrogância elitista, que o “grosso” da população não
têm o conhecimento técnico necessário para escolher ou decidir, dentre os contratos de adesão
bancários, qual o MENOS vantajoso. Ainda, que autonomia de vontade terá o empregado ou
funcionário público ou da iniciativa privada cujo empregador, em convênio com determinado
banco, contratou que para aquele receber terá que possuir conta nesse banco “parceiro”?
29
Dizer que as pessoas são livres para assinar ou não um contrato bancário faria
sentido se vivêssemos em uma sociedade cujo grau de desenvolvimento e complexidade não
acarretasse privações e exclusão àqueles que optassem por não serem clientes de um banco.
Justamente em razão de a vida em sociedade, nos dias atuais, exigir cada vez mais que se
recorra ao sistema bancário, os banqueiros, fortalecidos e unidos, aumentam sua fortuna e,
através de lóbis políticos ampliam sua influência e asseguram seus privilégios.
O direito vigente protege os bancos não só quanto à previsão e legitimação dos
contratos de adesão, mas, principalmente em razão de toda uma legislação que assegura,
garante e facilita que as dívidas para com os bancos serão pagas. As dívidas bancárias
asseguradas pelas garantias reais serão sempre especiais e preferenciais a outras dívidas.
Criou-se com esse instituto, garantia real, uma ficção jurídica que prescreve que o
bem, móvel ou imóvel, de uma pessoa não é dela, mas sim do banco. Com isso esse bem não
poderá ser utilizado para saldar outras dívidas, uma vez que esse bem não poderá ser elencado
no rol de seu patrimônio.
Sem hipocrisia, o banco não é, nunca foi e nunca será legítimo dono do bem
financiado. Na realidade, nem interesse no bem o banco tem. Ele apenas emprestou o
dinheiro. O que existe de fato é uma dívida da pessoa que efetuou o empréstimo para com o
banco. Dívida esta que será remunerada com juros e efetivada após a realização de ampla
pesquisa ao histórico creditício do cliente e preenchidas outras exigências dentre as quais, a
comprovação de emprego e de renda, para só então ser aprovado o crédito.
Ao contrário de todos os outros empresários que, no exercício de sua atividade
empresarial estarão sujeitos e assumirão os riscos do negócio e dos contratos, para os bancos,
não haverá risco algum, pois se o devedor se tornar insolvente (insolvência civil ou falência
da pessoa jurídica) a dívida para com os bancos, gravadas pela garantia real, não estarão
sujeitas ao concurso universal de credores.
30
Situação jurídica esta que só fará sentido se admitirmos que os bancos são
HIPOSSUFICIENTES e, em razão dessa condição de PARTE FRÁGIL numa relação
econômica e processual, uma legislação protetiva faz-se necessária já que cabe ao direito
promover e restabelecer o equilíbrio entre as partes.
Deve ser em razão dessa “fragilidade” dos bancos que, não só no Brasil, mas também
nos demais países capitalistas desenvolvidos ou não, que sempre que um banco está em crise
financeira, imediatamente é expedido um pacote governamental (leia-se: ajuda financeira)
para socorrê-lo. Isso ocorre ao lado de micro, pequenas e médias empresas que dia-a-dia
enfrentam graves crises e até mesmo fecham suas portas. Só que nesses casos o governo não
pode intervir já que cabe à “mão invisível” do mercado, por um processo de seleção natural,
selecionar e separar os aptos dos inaptos (esses sucumbirão e se extinguirão).
Lei dura e cruel, contudo, natural e inevitável, que se aplicará a todos os mortais,
menos aos “pobres e frágeis” bancos que devem ser amparados pelo benevolente e
compreensivo PAI ESTADO. Daí a necessidade e legitimidade do encontro promovido pela
FEBRABAN com desembargadores brasileiros2.
Basta a outros grupos ou organizações sociais ou populares como o MST
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o MTST (Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto) dentre vários outros que, como os bancos, demonstrarem que também
desempenham uma relevante função social para conseguirem realizar um encontro nacional
com os magistrados brasileiros já que esses se encontram abertos a todos aqueles de boa
vontade.
Alegarão ainda os juristas da (des)ordem que o poder judiciário tem como finalidade,
a todo momento, promover a composição entre as partes. Ora, se as partes objetivassem a
composição não precisariam recorrer ao poder judiciário.
2
Reportagem reproduzida na íntegra – anexo I.
31
Não seria essa vocação “altruísta” do poder judiciário a responsável pela criação e
perpetuação dos litigantes habituais?
Em especial no processo do trabalho onde, num pólo teremos o empregador, dono
dos meios de produção e do dinheiro, no outro o empregado, que como única propriedade terá
sua força de trabalho é que essa realidade é posta em evidência. Ou seja, a quem interessa a
demora do processo? Um péssimo acordo beneficiará a quem? E é lógico, péssimo acordo
para um, ótimo para o outro.
Tendo em vista que as dívidas trabalhistas são de natureza alimentar sendo em regra,
com esse dinheiro que sobrevive o trabalhador e dá sobrevivência à sua família, não terá o
mesmo, condições nenhuma de suportar o tempo do processo, tendo necessariamente que se
submeter à “filantrópica” conciliação conquistada graças ao “imparcial” Estado – Juiz.
Outra demonstração da “neutralidade” estatal no que se refere a litígios trabalhistas
está no prazo prescricional para se reclamar créditos trabalhistas. Ou os mesmos são
reclamados até 5 (cinco) anos depois de ocorrida a lesão ou não mais poderão ser reclamados
pois, como é sabido, “a lei não protege aqueles que dormem”. Contudo, qual empregado que
pretendendo manter seu emprego poderá intentar reclamação trabalhista na vigência do
contrato de trabalho para não ter um direito prescrito?
Temos que admitir, no entanto, que o direito não é feito apenas para os detentores do
poder. Não são apenas os ricos ou os bancos que gozarão de uma legislação própria criada
especialmente para si.
Os pobres, as camadas populares terão toda uma legislação penal direcionada para
sua classe, para seus iguais social e economicamente. É o processo penal e principalmente o
sistema prisional brasileiro um “privilégio” dos pobres. Fator que torna o banco dos réus nada
democrático ao passo que inacessível para algumas camadas sociais.
32
O Estado Social Democrático de Direito não atinge de forma eficaz as comunidades
periféricas, geralmente mais afastadas dos centros urbanos. Nesses locais falta todo tipo de
infra-estrutura: saneamento básico, pavimentação, postos de saúde, escolas ...
Realidade bem retratada na música dos Racionais MC’s:3
Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e sujo,
porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal,
por cima ou por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou.
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.
Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas.
Logo depois esqueceram [...].
Ausente o Estado para promover direitos e benfeitorias sociais, presente ele se faz
para impor a “ordem” e a “justiça” em forma de repressão e punição.
Uma característica que bem exemplifica essa eficácia punitiva do Estado é a criação
do estigma do delinqüente. Todos os “homens de bem” saberão, apenas ao olhar, quem é o
criminoso em potencial. Se o individuo já foi condenado ou já esteve preso então, não será
mais um criminoso em potencial, mas sim, um criminoso que está esperando o momento certo
para delinqüir novamente. É uma ameaça constante aos “cidadãos de bem”.
Realidade esta denunciada pelos racionais em outro trecho da mesma música:
Assaltos na redondeza levantaram suspeitas,
logo acusaram a favela para variar,
E o boato que corre é que esse homem está,
com o seu nome lá na lista dos suspeitos,
pregada na parede do bar.
A noite chega e o clima estranho no ar,
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente,
mas na calada caguentaram seus antecedentes,
como se fosse uma doença incurável, no seu braço a tatuagem,
DVC, uma passagem , 157 na lei...
No seu lado não tem mais ninguém.
A Justiça Criminal é implacável.
Tiram sua liberdade, família e moral.
Mesmo longe do sistema carcerário,
3
Letra da Música “O homem na estrada”, reproduzida na íntegra anexo II.
33
te chamarão para sempre de ex presidiário.
Não confio na polícia, raça do caralho.
Se eles me acham baleado na calçada,
chutam minha cara e cospem em mim é..
eu sangraria até a morte...
Já era, um abraço!
Por isso a minha segurança eu mesmo faço.
Uma vez desamparados pelo Estado, ou pior, tendo-o como um “vilão” declarado
que nada fornece e muito exige, aberto estará o espaço para a criação, o fortalecimento e a
expansão do chamado “Estado Paralelo” que ditará suas próprias regras de convivência e
organização social.
Mas nem sempre o Estado será esse “Leviatã” implacável que com sua força e
“justiça” combate e pune severamente os desajustados delinqüentes. Para determinados
crimes ele será complacente e tolerante, pois, se o “pobre coitado” que cometer um “pequeno”
deslize reconhecer seu erro e reparar os danos, este será agraciado e perdoado pelo
“compreensivo e benevolente” Estado.
Ironicamente os crimes tolerados serão os crimes cometidos por aqueles que moram
longe das periferias afastadas e abandonadas. São os crimes cometidos por aqueles “cidadãos
de bem” que têm medo de se aproximarem dos bairros periféricos onde se amontoam os
verdadeiros criminosos. Para exemplificar, elencamos os crimes de sonegação fiscal e os
crimes de responsabilidade cometidos por funcionários públicos do alto escalão.
Enquanto nos crimes contra a propriedade característico dos pobres como o furto e
principalmente o roubo são combatidos com todo o rigor da lei já que demonstrada estará a
“índole criminosa” daqueles que praticarem a conduta típica e antijurídica descrita no Código
Penal, para aqueles que praticarem outra conduta, típica e antijurídica também prescrita na
legislação penal pátria, o tratamento será outro. Pois aquele que for pego sonegando impostos,
nem será processado caso quite o débito. E se for processado uma vez que não pagou o que é
devido, extinta estará a punibilidade assim que o fizer ou ao menos, assim que renegociar e
parcelar a dívida. Caso seja condenado por sentença penal transitada em julgado, após anos de
34
processo e recursos, ainda assim não será punido se, um pouco antes do trânsito em julgado
da sentença pagou ou reparcelou o débito fiscal.
A impressão que dá é que compensa sonegar e poupar esse valor, caso o Fisco
descubra, paga-se o devido que ainda não fora atingido pela prescrição e segue-se a vida de
cidadão de bem que se revolta e fica indignado frente a corrupção e a violência que não param
de crescer no país.
Tão ou mais benevolente que para com os sonegadores é o tratamento dado pelo
Estado a seus altos funcionários com cargos eletivos (políticos) ou para aqueles que sem
serem eleitos exercem o Poder de Estado (magistratura e ministério público), portanto, de
origem popular.
Caso um político, no exercício de um mandato eletivo, cometa um crime de
responsabilidade, além de ser processado e julgado por foro privilegiado por prerrogativa de
função, interessante será renunciar ao mandato para assegurar seus direitos políticos.
De forma semelhante, se um juiz (ou desembargador) cometer crime de
responsabilidade (inclusive de corrupção como venda de sentença), a pena máxima a ser
aplicada será a de aposentadoria compulsória, donde estará assegurado o recebimento de seus
proventos.
35
CAPÍTULO – III DIREITO: POSSIBILIDADES DE CRÍTICA E
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL.
Conforme discutimos ao longo do Capítulo II, é o direito (poder judiciário e juristas
em geral) essencialmente e hegemonicamente conservador, apresentando-se via de regra,
como um instrumento de manutenção da (des)ordem vigente. Quer por seu formalismo
exagerado (vestes, recintos e vocabulário) que de plano exclui a grande parte da população
que necessita dos seus serviços. Quer por leis injustas que privilegia e protege os interesses de
setores abastados da sociedade em detrimento do interesse da maioria. Ou ainda, por sua
APATIA camuflada/disfarçada pelos “princípios” ideológicos da NEUTRALIDADE e
IMPARCIALIDADE, a partir dos quais desconsidera as desigualdades e carências reais e com
isso, não opta por tomar o partido do mais fraco com o objetivo de se estabelecer o real
equilíbrio entre as partes.4 É conservador também na utilização do aparato jurídico–repressor
do Estado na aplicação da lei penal (severos com os pobres e complacente com os ricos).
Contudo, como toda força conservadora e hegemônica, o direito vigente não está
aberto a críticas e sugestões. Considera-se uma verdade estabelecida, eterna, pura e boa. E
assim como nas religiões, aquele que ousar discutir seus dogmas, ou não sabe o que está
dizendo ou é indigno de fazer parte de tão nobre ministério. Não deveria fazer parte desse
“mundo” perfeito, harmônico e coerente. E, fazendo parte, será considerado um vírus da
discórdia e da desestabilização e, como tal, deve ser desqualificado e combatido.
Nas palavras de Aguiar (1993, p. 18), referindo-se aos juristas da (des)ordem:
4
Que equilíbrio, que obriga a eqüidistância do juiz, poderá haver entre um aposentado ou pensionista do INSS
num conflito de interesses com uma financeira especializada em realizar empréstimo com desconto direto em
folha, a juros abusivos (para não dizer imorais), contudo, amparada pela legislação vigente. Diria hipocritamente
algum jurista da (des) ordem que pode o aposentado efetivar ou não o empréstimo após análise da conveniência
e possibilidade de se arcar com as prestações imbuídas de juros. Afirmação esta que ignora ou desconhece toda
essa realidade de hipossuficiência jurídica, social, cultural e econômica da população brasileira. E está
desconsiderando ainda, toda a propaganda agressiva empregada pelas financeiras para aliciar clientes, inclusive
com abordagem ostensiva nas vias públicas.
36
[...] eles aparecem uniformizados, apresentam um mesmo código lingüístico,
têm um entendimento do mundo, do homem e da história semelhante, vivem
adorando o Estado (mesmo quando dele reclamam), preocupam-se com o
controle da sociedade e, mesmo quando discursam em contrário, agem
segundo um dogma: são as leis que modificam o mundo.
Outro ponto que emerge ao observador atento é o de que eles não habitam
no mundo concreto. Embora suas ações causem efeito na concretude, eles
rejeitam o mundo contraditório e conflitivo e caem nos braços da tessitura
harmônica das normas, onde as pessoas se tornam partes, onde os conflitos
se traduzem em contraditórios particularizados e onde viver é um processo
dedutivo-retórico, que torna a existência um confronto com as urdiduras do
texto em detrimento do contexto. Assim, eles são plasmados para viver num
purgatório cinzento de processos, prazos e chavões, que torna a vida segura
(às vezes), mas que o exclui da possibilidade de serem autônomos, de terem
nas mãos a história e de escrever com suas própria tintas o roteiro de suas
histórias.
E mais adiante
Seu mundo é o da semelhança, da linearidade e, todos os que, pertencentes a
essa categoria, tentarem ser diferentes, certamente sofrerão estigmatizações.
Ora são considerados comunistas, ora são tachados de teóricos, ora de
poetas, quando não sofrem ações mais diretas de desestabilização nos
escritórios, nas repartições e nas escolas de direito. Seu reino é o da
reprodução, não havendo lugar para o novo, para o diferente, para o ousado,
para a contestação e para tudo que cheira a terra, pão e povo. São seres
metafísicos, no sentido deformado da palavra.
Esses pobres profissionais do direito são profissionais de um direito pobre.
Seu mundo é o da lei estatal. Ela é o direito para eles. O direito real que
emerge das lutas, das utopias realizadas, do sofrimento histórico dos povos,
não é jurídico para eles, pois seu lar é a estabilidade e sua cama a harmonia,
mesmo que as vidas pessoais sejam instáveis, as sociedades contraditórias e
a história um risco dinâmico e mutável. Eles são os arautos do ontem, os
lutadores da conservação e os profetas do amor descarnado. Perigosos
conservadores. Eficientes reprodutores dos comandos dos poderes, sem
lugar claro nos conflitos que se travam, sem uma existência de riscos e
rasgos e sem rotas traçadas por seus próprios pés (AGUIAR, 1993, p. 1819).
Como toda força que precisa e quer se manter, o direito vigente, quando agredido ou
criticado reage com força e violência que pode se manifestar em perseguições, facilitação ou
imposição de dificuldades para ingresso em carreiras públicas, processos administrativos e
judiciais.
37
Aquele que ousar questionar o status quo vigente deverá estar ciente que decidiu
remar contra a maré e, ao final da empreitada, o mais provável é que se encontre exausto,
sozinho e, olhado para traz, verá que nada ou muito pouco avançou.
Essa foi a sina de um oficial de justiça que “caiu na besteira” de se preocupar com
seres humanos reais, de carne e osso, quando começou a observar o resultado prático de seu
serviço e da “justiça” da qual era porta-voz:
Sou oficial de justiça desde 1991. Nesse meio tempo, fiz coisas nada
elogiáveis. Corrompi-me e assisti outros se corromperem. Vi juízes
prevaricarem ou abusarem de seu “poder”. Menti, e participei de mentiras de
outros. Vi advogados venderem seus clientes às escâncaras. Mas nada disso,
doutora, ou antes, tudo isto não é nada se comparado ao cumprimento de um
só mandado. Nenhum desses meus erros se compara ao fato de haver posto
na rua uma família inteira na antevéspera de natal. Tudo dentro da lei, é
claro. Nada disto se compara, doutora, a colocar uma família para fora de
um apartamento, que eles haviam invadido no CDHU, sabendo que eles não
tinham para onde ir e sabendo que os “donos” aos quais a justiça dera ganho
de causa possuem mais imóveis, têm carros e bons salários (...)
Que espécie de justiça e esta, que me julga por abandonar meu cargo, se ela
própria jamais assumiu suas funções?
O que dá a essa justiça o poder de julgar, se ela não atende ao povo, em
nome de que se exerce, pretensamente, todo o poder?
Que ascendência moral pretende ter sobre mim este circo, eu, que ao menos
tenho a decência de ser réu confesso de meus erros?
Quem são vocês, senhores e senhoras de negro hábito? Onde, exatamente,
reside a vossa moral para punir seus subalternos, se para vocês, a maior
punição é a disponibilidade remunerada?
Que é o tribunal do júri senão um coliseu moderno, onde os pretos são
jogados aos leões? Asseguro-lhe que não há coisa mais hipócrita que dizer
que ali a sociedade julga a sociedade. Ali, a classe média, amparada nos
ideais da elite, julga os miseráveis [...]
E é esta justiça que vem me processar?
Tenho, doutora Márcia, a mais profunda aversão por tudo o que vi e do que
esta justiça representa. Aversão não, trata-se de nojo mesmo, esta justicinha
cega, surda, muda e entrevada. Feita por juizes tão arrogantes, que não
consideram que a roupa de um trabalhador seja digna do ambiente do
Fórum. Proíbem-lhes a entrada no Fórum em trajes que são os do dia-a-dia
da esmagadora maioria da população e o fazem com arrogância de quem tem
o direito de decidir o que é moral ou imoral [...].
Essa justicinha de mentirinha, essa coisa cruel, eu a considero uma dama de
má vida, que flerta com os pobres por diversão, mas deita-se com os ricos
por profissão.
Talvez os médicos estejam certos.
Saiba, doutora, que se eu for condenado nesse processo – e creio que o serei
– terei orgulho disso. Para mim, é agradável ser condenado pela justiça que
absolve criminosos de colarinho branco. Seria como – guardada as devidas
proporções – ser fuzilado por nazistas.
38
Juízes são criaturas estranhas. Estudam a fundo a lei. Mas esquecem da
Antropologia da História, e de outras Ciências Humanas, sem as quais a
aplicação da lei torna-se uma atividade sem finalidade, um ato vazio.
Dane-se esta justiça então, doutora, que a minha condenação não mudará em
nada, nem minha situação, muito menos a situação da justiça.
Enfim, só o que posso lhe dizer é que não abandonei o cargo. Ele é que
abandonou.
Talvez eu esteja louco de fato.
Mas neste caso, recuso-me a abrir mão de minha insanidade. Pois é a minha
insanidade que me protege dos maus exemplos de sua justiça5.
Cabe àqueles que trabalham com o “direito” nunca se esquecerem que estão li dando
com papéis, processos, juízes, promotores e advogados. A pessoa por trás do emaranhado de
papéis, prazos, recursos é um mero detalhe, mais um número. Quem nunca se esquecer disso,
não terá porque sofrer ou reclamar.
Contudo, reclamar é preciso...6
A crítica é o primeiro passo para se superar uma realidade a ser superada. Ou antes,
uma pseudo-realidade fundada em mitos e ilusões. Superar as ilusões que mascaram ou
distorcem a realidade é o passo necessário e inevitável para se enxergar e viver a realidade
concreta.
Nas palavras de Marx (2002, p. 46):
[...] O banimento da religião como felicidade ilusória dos homens é a
exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a
respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que
precisa de ilusões [..]
A crítica colheu nas algemas as flores imaginárias, não para que o homem
suporte as amarras sem cuidado ou conforto, mas para que lance fora as
algemas e colha a flor viva [...]
A tarefa da história, dessa forma, depois que o mundo da verdade se
apagou, é constituir a verdade deste mundo. A imediata tarefa da filosofia,
que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas
suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma
sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a
crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da
política7 .
5
Texto na íntegra, anexo III
Usamos a palavra “reclamar” com o sentido de não calar; não se submeter à realidade dada. “Reclamar” como
sinônimo de se indignar e se indignar como pressuposto da crítica.
7
Trechos em itálico conforme o original.
6
39
Superar as ilusões que impede que se veja/compreenda a realidade consiste na
superação dos mecanismos que criam e propagam as ilusões. E uma vez realizada a crítica da
religião “ópio” e “alienação”, necessário se faz a crítica ao direito também ópio e alienação,
que trás em seu bojo um agravante a mais: o aparato jurídico repressor do Estado.
A superação da (des)ordem vigente através da superação do direito vigente não tem
nada a ver com um ato de “heroísmo” ou “altruísmo”. Significa apenas mantermos a
coerência com a proposta inicialmente discutida no capítulo I; qual seja, substituirmos o
“operador do direito” pelo “militante do direito”, isto é, ter a ação prática engajada e
direcionada a defesa dos interesses das camadas populares – despossuídas e desamparadas.
Para tornar isso possível, imprescindível será a superação da ideologia positivista que
impera no direito.
Isso porque, como enfatiza Staccone (1991, p. 78):
A ideologia é para Gramsci, sempre, uma concepção do mundo, isto é, uma
maneira específica e particular da compreensão do mundo natural e social –
mas também sobrenatural – que os homens desenvolvem e superam
historicamente.
Assim, a ideologia, longe de ser falsa consciência ou ilusão, é a realidade
gnoseológica dos homens de uma determinada sociedade num período
histórico dado. [...] ela constitui a referência implícita ou explícita de todo
“agir” humano. Se, e quando, a ideologia torna-se “religião” e “fé”, produz
atividades práticas, move as vontades.
Com isso, superar a ideologia positivista é um desafio pelo qual a teoria crítica,
denominada por Gramsci de “filosofia da práxis”, terá que enfrentar, pois nas palavras do
autor em questão:
[...] para a filosofia da práxis, as ideologias não são de modo algum
arbitrárias; elas são fatos históricos reais que devem ser combatidos e
denunciados em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de
moralidade etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar os
governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir
uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessário da inversão da
práxis” (Q. II, 1319, apud, STACCONE 1991, p. 79).
Elas são, portanto, “forças e armas” de ataque e de defesa: para a
manutenção da “ordem” constituída ou para a “libertação intelectual” dos
governados, como momento inicial da inversão da práxis orientada a criar
uma nova ordem e uma nova hegemonia (STACCONE 1991, p. 79).
40
Entendendo a ideologia dominante como a expressão/manifestação dos valores e
anseios
de
determinada
classe
dominante
em
determinado
momento
histórico,
compreenderemos que essa dominação ideológica se manifestará nas mais diversas áreas do
conhecimento e de atuação humana.
Justamente em razão de o direito estar localizado em uma determinada realidade
histórico – social (apesar de os juristas da (des)ordem se esquecerem disso) e por li dar
diretamente com interesses em disputa, essa briga ideológica torna-se mais evidente.
Importante frisar nesse momento, que a ideologia predominante ou hegemônica, é a
ideologia da classe dominante. Contudo, dizer que uma ideologia é a predominante significa
dizer que esta não é a única, ou seja, em cada momento histórico, diversas e de diferentes
intensidades serão as forças que se oporão à força predominante.
Na concepção marxista da história, é justamente nos momentos de crises ocasionadas
pelas próprias contradições internas da sociedade, que surge o momento propício e necessário
para que as forças progressivas/antagonistas tenham a possibilidade de iniciarem um processo
de superação/transformação dessa sociedade.
E é também dessa concepção filosófica de mundo que extrairemos a premissa de que
a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenha de uma nova. Ou seja, o
nascimento da nova sociedade é um processo em curso que se iniciou nas entranhas da
sociedade a ser superada.
Dessas premissas chegamos as seguintes conclusões: a superação de determinada
realidade dada já está, de forma contraditória, em curso nessa própria realidade; cabendo às
forças progressivas identificar e intensificar esse processo. E a nova sociedade a ser
construída não é o resultado de um tipo ideal ou arbitrário sistematizada de forma pronta e
acabada na mente brilhante e esclarecida de um ente superior (seja humano ou divino). Mas
41
sim o resultado histórico de lutas concretas travadas cotidianamente por indivíduos que,
através da organização, conseguem se elevar ao status de grupos para reivindicarem justiça.
E é no palco das tomadas de decisões políticas8 que esse embate: forças progressivas
X forças regressivas ou conservadoras que essa luta se trava. Tomar decisões, se posicionar
politicamente significa ter opções para tanto. E é justamente nessas opções a ser tomadas que
identificaremos os elementos do “novo”. E é na luta pelo “novo”, pelo justo, que a
consciência crítico – transformadora se desenvolve e se aperfeiçoa. E essa consciência é o
elemento crucial para construção de uma nova hegemonia.
É a organização e a luta concreta de movimentos e grupos sociais engajados que
fomentam novas e superiores formas de sociabilidade humana e, concomitantemente,
viabilizam novas concepções/visões de mundo. Lutas e organizações oriundas de
necessidades reais e urgentes ocasionada, como dissemos anteriormente, pelas próprias
contradições internas do modo de vida e organização capitalista.
Passemos a exemplificar:
• Verificamos nos dias atuais a constante e crescente adesão aos projetos de
limitação do lucro de empresas que depredam o meio ambiente. É da natureza do capitalismo
a busca voraz pelo lucro ao passo que preservar o meio ambiente é uma questão de
sobrevivência do próprio homem. Daqui se desenvolve a consciência global de que o lucro
pode e deve ser regulado, controlado e limitado.
• Consolidou-se o Estado moderno para defender com a força os direitos dos
cidadãos (leia-se proprietários) das ameaças internas e externas. Surgiu para delimitar os
territórios e possuía como característica essencial a idéia de identidade nacional fundamentada
no princípio da soberania. Nos dias atuais verificamos uma ampliação das atribuições do
Estado somada a modificação de sua estruturação político – administrativas. Passa a ser
8
Por tomada de decisão política entenderemos o sentido amplo de posicionamento frente a conflitos sociais em
geral e não apenas no sentido restrito da disputa político - partidária.
42
atribuição prioritária deste a realização e intensificação de políticas sociais de distribuição de
renda e terra sob pena de incorrer em ilegitimidade. Caso isso ocorra, abre-se o precedente
para os governados exercerem a Desobediência Civil. Ainda, a crescente internacionalização
do Estado-Nação (flexibilização das fronteiras e aumento da interdependência entre os povos)
trata-se
de
um
pressuposto
teórico-programático
vinculados
às
classes
populares/trabalhadoras, antagonistas históricos das classes proprietárias/dominantes.
• O crescimento da violência, do crime organizado somado às denúncias e
escândalos de corrupção e de mau uso do dinheiro público põem em “xeque” o Estado, a
classe política e os grupos sociais que esta representa. Empresários, publicitários, tradicionais
“caciques” regionais, autoridades policiais e judiciárias passam a ser investigados e
processados. Falta ainda a real e efetiva punição, principalmente a patrimonial, contudo, não
se pode negar o início de um processo de “democratização” do banco dos réus.
• Democratização essa levada a cabo em razão do também contraditório papel
desempenhado pela mídia. Esta se apresenta hegemonicamente conservadora e porta voz dos
interesses da classe dominante, contudo, não se pode negar sua crucial importância nas
investigações e denúncias de desvio de verba pública; nas denúncias de afronta e desrespeito
aos direitos humanos de presos ou suspeitos investigados, bem como de trabalhadores rurais
reduzidos à condição análoga a de escravo; nas denúncias e cobranças da inércia do poder
público quanto a efetivação de políticas sociais, seja escola, merenda, postos de saúde com
fornecimento de medicamentos, asfalto, pontes, estradas, rodovias, energia, transporte, etc.
Necessário ressaltar por fim, o papel da mídia como elemento difusor de uma nova hegemonia
ao passo que abre espaço (principalmente através da internet) para a proposição e discussão
de novas idéia e também, para a propagação da crítica e da denúncia às ideologias
dominantes.
43
Ressaltamos essas questões com o intuito de demonstrar que as bases de uma nova
sociedade portadora de uma sociabilidade superior estão postas na sociedade atual – nos dias
atuais. Incumbe aos grupos progressistas intensificar e radicalizar as conquistas e as
instituições da velha sociedade que trazem em seu ventre a nova sociedade. Ou seja, construir
uma nova sociedade não significa destruir tudo que a humanidade construiu e conquistou
para, após o regresso a estaca zero, começar de novo. Não se trata de um novo “dilúvio”; de
um regresso à barbárie.
Ao contrário do que pensa o senso comum, não se trata o socialismo ou o
comunismo de um processo de “socialização da miséria”, mas sim da riqueza.
Nas palavras de Staccone (1991, 113- 114):
[...] só uma situação democrática estável e fundada no Estado de direito é o
terreno adequado para o livre conflito entre os grupos sociais antagônicos e,
conseqüentemente, para as mudanças nos equilíbrios das relações de força,
como momento necessário da degradação de uma hegemonia e do
surgimento de outra.
Pois:
[...] dos construtores de uma nova sociedade exige-se conhecimento e
vontade, ação e organização, capacidade de sondar os caminhos e suas
asperezas, e flexibilidade para refazer os percursos teóricos e práticos que
levaram a resultados não programados.
Exige-se racionalidade política acima do misticismo revolucionário;
racionalidade que se realiza na práxis incansável para construir um mundo
novo, que necessariamente deverá nascer do velho mundo destruído.
Porém, a destruição da sociedade burguesa não deve concluir-se num retorno
à “barbárie”. Só a construção de uma nova liberdade, sem privilégios e sem
desigualdades, pode nos mover para destruir a velha liberdade. Práxis esta
sem subterfúgios e sem aventuras, pois a construção da nova liberdade
processa-se dentro das velhas estruturas, que serão derrubadas na medida em
que a experiência prática do novo for conquistando as mentes e as vontades,
tornando-se uma nova cultura, que fundamenta uma nova hegemonia e uma
nova organização da sociedade. (STACCONE, 1991, 114- 115)
Dessa forma, militar no direito por um direito crítico significa fazer parte dessas
forças progressivas que se opõem a ideologia hegemônica que defende e mantém os
privilégios da classe dominante. Mais que isso, militar no direito significar ocupar os espaços
44
criados pelas contradições sociais e pelos embates intrínsecos ao próprio direito com o intuito
de instrumentalizá-lo a serviço da construção de um novo direito – só possível com a
construção de uma nova sociedade.
Assim como nos conflitos políticos – sociais temos a presença de elementos
geradores de uma nova sociabilidade, também no direito, elementos geradores de um novo
direito podem ser verificados; como exemplo apontamos:
• A discussão recente de que a propriedade deverá cumprir sua função social é uma
forma eficaz para se atingir e profanar a “sagrada” propriedade privada. Consiste sim num
elemento que por si só não dirá quase nada, ou seja, o jurista conservador continuará sendo
conservador e, na sua concepção de direito e de mundo, defenderá e protegerá a propriedade.
Contudo, nas mãos de um jurista engajado, a propriedade privada deixa de ser sagrada e passa
a ser um bem hierarquicamente inferior à vida e à dignidade do ser humano.9
• O movimento crítico ao direito vigente está consolidado e em constante
expansão. Diversos são os eventos, congressos, palestras e publicações de livros e artigos
realizados e organizados por juristas críticos e engajados. Cada vez mais juristas,
principalmente estudantes, aderem a esse movimento. É cada vez maior e mais efetiva a
influência desse movimento tanto nos círculos acadêmicos quanto nos cenários jurídicos –
forenses.
• Cresce nos dias atuais a preocupação e a defesa dos interesses difusos e coletivos.
Multiplicam-se os órgãos e ações de defesa dos interesses do consumidor e do meio ambiente.
Como conseqüência disso, diversas são as possibilidades de restrição e limitação do lucro.
• No direito penal, contundente são as críticas internas ao direito e a legitimidade
do Estado de punir. Há a necessidade de se repensar a pena e em especial a pena privativa de
liberdade. Esta não pode mais ter o mero caráter de retributividade ou de vingança pública. Há
9
Exemplo dessa proposição é a do juiz que indeferiu a ação de reintegração de posse movida pelo DNER contra
o MST – reportagem anexo IV
45
o consenso de que prender e isolar um indivíduo (o preto pobre) em nada se resolve o
problema da violência e da criminalidade. Cresce as lutas e reivindicações por políticas
efetivas do Estado nessa área. A constante preocupação com a “ressocialização” através da
educação e da profissionalização do condenado somada à intransigente luta em defesa do
princípio da dignidade da pessoa humana refletem de forma embrionária essas novas
exigências.
• Na discussão do acesso à justiça, atrelado ao novo papel do Estado Social de
Direito, diversas são as medidas visando possibilitar que pessoas carentes, denominadas
hipossuficientes, sejam assistidas. Para tanto, instituições privadas (Universidades,
Organizações não governamentais, Ordem dos advogados) bem como públicas (Defensoria
Pública) passam a exercer essa função. E com isso, entram e contato com os pobres e
começam a perceber e conviver com suas angústias e dramas reais.
• Diversos
são
os
mecanismos
jurídicos
–
processuais,
conquistados
historicamente, postos à disposição dos juristas engajados para a reivindicação da justiça.
Dentre os quais mencionamos: as diversas modalidades do controle de constitucionalidade; o
mandado de injunção; o mandado de segurança; o habeas corpus; o habeas data; a antecipação
da tutela; as medidas cautelares protetivas e preventivas; a ação civil publica; a ação popular.
Temos a consciência de que tais dispositivos e mecanismos jurídicos estão muito
longe de representar a consolidação de um direito justo. Contudo podem e devem ser
utilizados como armas a ser empunhadas por juristas engajados e comprometidos com a
construção de uma nova hegemonia, com as camadas populares, para a transformação do
direito e da sociedade.
46
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão do direito como aparato jurídico – estatal, regido por um sistema
normativo positivado, tendo no poder judiciário seu expoente máximo de promoção, aplicação
e execução, conste na concepção hegemônica do direito tanto nos círculos jurídicos como
também no senso comum.
Essa concepção de direito atrelada ao Estado, mais que isto, que tem o Estado como
único e legítimo ente elaborador (personificado na figura mística do “Legislador”), e
executor/aplicador do direito, tem sua origem no processo de colonização brasileira.
Já nesse momento (ou desde esse momento) encontraremos um direito atrelado e
comprometido com a defesa dos interesses das classes dominantes, detentoras de poder e
terra.
No Brasil, poder político e poder econômico sempre caminharam lado-a-lado. E o
poder judiciário, nessa concepção atrelada ao Estado, nada mais é que um apêndice da
política, do poder político constituído, uma vez que incumbe aos OPERADORES DO
DIREITO interpretar e aplicar a sábia e soberana VONTADE DO LEGISLADOR.
De inocente e inofensiva essa concepção/aplicação do direito não tem nada. Ela é
resultante de um Estado centralizado e centralizador que se consolidou com a missão
histórica, social e política de proteger os BONS (proprietários, políticos, empresários e
patrões em geral) dos MAUS (trabalhadores e principalmente pobres em geral que não tinham
e não têm nada a perder, muitas vezes nem emprego).
Tem como base ideológica de legitimação o discurso da neutralidade e da
imparcialidade e, reivindicando-se a expressão de um Estado – Pai que protege, cuida e trata
todos os seus filhos com “justiça” ao aplicar fielmente os princípios da igualdade, não poderá
ser questionado quanto à nobreza de suas intenções e decisões.
47
Ora, a realidade social é bem diferente dessa proposição ideológica. As pessoas não
são tratadas de forma igualitária e muito menos justa. Ainda, tratar de forma igualitária
pessoas tão diferentes social – econômica e culturalmente, significa agir de forma
irresponsável ou ardilosa propagando e perpetuando as desigualdades, fonte das injustiças.
Contudo, não concluiremos o presente trabalho considerando esse direito
predominante como “o grande vilão” da sociedade, fonte de todos os males e injustiças. Ele é
sim um poderoso mecanismo de manutenção da (des)ordem vigente, mas atribuir-lhe tal
mister, significaria dar-lhe mais importância e poder do que ele realmente possui ou
representa. Ele é apenas um dentre muitos elementos/institutos utilizados para a manutenção
de privilégios e desigualdades. É apenas mais um mecanismo de dominação presente na
sociedade vigente.
Compreender a sociedade em questão como organizada e estruturada pela e para a
classe dominante, significa admitir que as instituições sociais estão estruturadas de tal forma
que assegurem e viabilizem a predominância desses interesses. A contrário senso, acreditar de
forma ingênua ou manhosa que a sociedade,
o Estado e o direito são democráticos e
asseguram direitos iguais para todos, significa cair nas armadilhas ideológicas da classe
dominante passando-se à condição de “papagaio” reprodutor de leis e jargões que em nada
contribuem para a promoção e consolidação da efetiva justiça social.
Desmistificar o direito, através da desmistificação da sociedade e do Estado, consiste
no primeiro passo para se compreender o direito como ele é. Contudo, desmistificar o direito
não é um simples trabalho individual e intelectual de mera leitura. Significa sim a adesão a
um projeto coletivo de engajamento efetivo na defesa dos interesses das camadas populares.
Engajamento efetivo aos interesses dessas camadas sociais, significa por sua vez, em
diversas oportunidades, entrar em confronto direto com os interesses dos poderosos
assumindo, conseqüentemente, os riscos de tal comprometimento.
48
Nossa preocupação central na presente pesquisa consistiu em compreender de que
forma o jurista, no exercício de seu ofício, contribuiria ou não para a promoção de justiça
social.
Donde constatamos que se a preocupação central for com a promoção de justiça, o
jurista terá necessariamente que se desvincular do direito estatal para aderir ao direito real,
concreto que se manifesta nas lutas e anseios populares cotidianos e históricos.
Aderir ao projeto de um direito justo pressupõe, antes de mais nada, aderir ao projeto
de uma sociedade justa. Para tanto, urge superar criticamente o positivismo/dogmatismo
jurídico e, abandonar a arrogância presunçosa de que são os juristas – intérpretes, aplicadores,
doutores da lei – que manipulando o direito (leia-se lei) promoverão a justiça.
Ou seja, imprescindível será desenvolver e elaborar uma concepção crítica do direito
e do mundo, atrelada a uma postura humilde e consciente de que sua luta e militância estão
inseridas num contexto bem mais amplo.
Em outras palavras, impossível será a adoção de uma postura crítica dentro do direito
sem a adoção da mesma postura fora dele. Não há que se falar em consolidação/construção de
um direito efetivo e justo desvinculado da construção/consolidação de uma sociedade justa.
Ao passo que brigar por esse direito consiste em, dialeticamente, brigar por aquela sociedade.
49
REFERÊNCIAS
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ano 1993, São Paulo: Acadêmica, 1993
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LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política. Global, 1987.
50
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ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
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STACCONE, Giuseppe. Gramsci – 100 anos: revolução e política. Petrópolis: Vozes, 1991.
WOLKMER, A. C. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
51
ANEXO I - Bancos pagam feriado na praia de 47 juízes.
Febraban gasta R$ 182 mil e leva magistrados e suas famílias a Comandatuba, na Bahia, para
discutir "spread" e crédito.
Encontro contou ainda com outros 60 participantes; banqueiros dizem que evento visa um
diálogo aberto com os juízes.
FERNANDO RODRIGUES - ENVIADO ESPECIAL A COMANDATUBA
O feriado de Sete de Setembro foi especial para 16 ministros (dois aposentados) do STJ
(Superior Tribunal de Justiça) e 31 desembargadores de sete Estados: eles receberam
passagem e estada grátis no resort de luxo Transamérica da Ilha de Comandatuba, no litoral
baiano, para assistirem a algumas palestras sobre como funciona a arquitetura do crédito do
sistema bancário brasileiro.
O patrocínio do evento foi da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), que arcou com uma
fatura de ao menos R$ 182 mil com hospedagem e transporte dos 47 juízes. Esse valor é
estimado com base no número de magistrados presentes e de seus acompanhantes
multiplicado pelo preço básico promocional cobrado pelo pacote.
Os magistrados podiam trazer familiares para o hotel. A lista completa de participantes não
foi divulgada. A agenda em Comandatuba foi leve. As palestras começavam às 16h.
Terminavam por volta de 20h30, com jantar e algum show. O restante do tempo era livre. O
domingo também foi aberto para passeios.
O seminário "A importância do crédito como fator de desenvolvimento econômico e social"
teve como ponto alto, logo na sessão de abertura -às 18h30 do dia 7 de setembro- uma
palestra de Pedro Moreira Salles, presidente e acionista do Unibanco. Com gráficos e tabelas
projetadas num telão, o banqueiro tentou explicar aos juízes que o spread cobrado nas
operações de crédito no Brasil não é tão alto como se pensa.
O spread é a diferença entre o que o banco paga para captar o dinheiro e a taxa que cobra de
quem pede recursos emprestados. Para Moreira Salles, esse spread, após descontados custos
do banco e impostos, seria próximo de 1%. O banqueiro disse que o lucro médio sobre o
patrimônio líquido médio das dez maiores instituições financeiras do país seria menor do que
o apurado em mineração, siderurgia, transportes e concessões e petróleo.
Os juízes só chegaram a Comandatuba na tarde de 7 de setembro num Air Bus fretado da
TAM que atrasou a saída de São Paulo. O avião fez escala em Brasília para pegar magistrados
de tribunais superiores. Aterrissou na pista do hotel Transamérica por volta das 16h.
Além dos magistrados, o evento contou com outras 60 autoridades. Além de Pedro Moreira
Salles, compareceram o presidente do Bradesco e da Febraban, Marcio Cypriano, o presidente
do Itaú, Roberto Setúbal, o presidente do Banco Real, Fábio Barbosa, e até Ivan Moreira e
Rodrigo Pacheco, do Banco Rural, instituição que teve o nome ligado ao mensalão.
Quando indagados, os banqueiros explicam o evento como um diálogo com os juízes. Uma
maneira de "um conhecer melhor o outro", na explicação de Marcio Cypriano. Esse é o
terceiro encontro realizado nesse formato nos últimos três anos, sempre num resort de luxo e
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com o patrocínio da Febraban. Nada é feito de maneira escondida e a imprensa tem acesso a
todos os debates.
No segundo dia, os juízes assistiram à apresentação "Spread bancário: trabalho científico
sobre sua composição", feita pelo professor Alexandre Assaf, da FEA-USP, contratado pela
Febraban e pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e
Financeiras.
Com transparências projetadas na tela do auditório, Assaf concluiu que o spread anual médio
dos bancos ficaria em até 2%. No meio da apresentação, um quadro mostrava que o lucro
líquido dos bancos subiu de 2002 a 2005 de 10,6% para 15,6% em relação ao chamado "valor
adicionado" (todas as riquezas produzidas pelo setor). Um juiz que pediu anonimato, saiu da
sala e ironizou: "Bom, o tal do spread eles estão dizendo que é baixo, mas o lucro deles
cresceu 50% em quatro anos".
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ANEXO II – Homem na estrada
Um homem na estrada recomeça sua vida.
Sua finalidade: a sua liberdade.
Que foi perdida, subtraída;
e quer provar a si mesmo que realmente mudou, que se recuperou e quer viver em paz, não
olhar
para trás, dizer ao crime: nunca mais!
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não.
Na Febem, lembranças dolorosas, então. Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim.
Muitos morreram sim, sonhando alto assim, me digam quem é feliz, quem não se desespera,
vendo
nascer seu filho no berço da miséria.
Um lugar onde só tinham como atração, o bar, e o candomblé pra se tomar a benção.
Esse é o palco da história que por mim será contada.
...um homem na estrada.
Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e sujo, porém, seu único lar, seu bem e seu
refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal, por cima ou por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou.
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou. Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas.
Logo depois esqueceram, filhos da puta!
Acharam uma mina morta e estuprada, deviam estar com muita raiva.
"Mano, quanta paulada!".
Estava irreconhecível, o rosto desfigurado.
Deu meia noite e o corpo ainda estava lá, coberto com lençol, ressecado pelo sol, jogado.
O IML estava só dez horas atrasado.
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim, quero que meu filho nem se lembre daqui, tenha uma
vida
segura.
Não quero que ele cresça com um "oitão" na cintura e uma "PT" na cabeça.
E o resto da madrugada sem dormir, ele pensa
o que fazer para sair dessa situação.
Desempregado então.
Com má reputação.
Viveu na detenção.
Ninguém confia não.
...e a vida desse homem para sempre foi danificada.
Um homem na estrada...
Um homem na estrada..
Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual.
Calor insuportável, 28 graus.
Faltou água, ja é rotina, monotonia, não tem prazo pra voltar, hã! já fazem cinco dias.
São dez horas, a rua está agitada, uma ambulância foi chamada com extrema urgência.
Loucura, violência exagerada. Estourou a própria mãe, estava embriagado.
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Mas bem antes da ressaca ele foi julgado.
Arrastado pela rua o pobre do elemento, o inevitável linchamento, imaginem só!
Ele ficou bem feio, não tiveram dó.
Os ricos fazem campanha contra as drogas e falam sobre o poder destrutivo delas.
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro com o álcool que é vendido na favela.
Empapuçado ele sai, vai dar um rolê.
Não acredita no que vê, não daquela maneira,
crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo seu café da manhã na lateral da feira,
Molecada sem futuro, eu já consigo ver, só vão na escola pra comer,
Apenas nada mais, como é que vão aprender sem incentivo de alguém, sem orgulho e sem
respeito,
sem saúde e sem paz.
Um mano meu tava ganhando um dinheiro,
tinha comprado um carro,
até rolex tinha!
Foi fuzilado a queima roupa no colégio, abastecendo a playboyzada de farinha,
Ficou famoso, virou notícia, rendeu dinheiro aos jornais, hu!, cartaz à policia
Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares... superstar do notícias populares!
Uma semana depois chegou o crack, gente rica por trás, diretoria.
Aqui, periferia, miséria de sobra.
Um salário por dia garante a mão-de-obra.
A clientela tem grana e compra bem, tudo em casa, costa quente de sócio.
A playboyzada muito louca até os ossos!
Vvender droga por aqui, grande negócio.
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim,
Quero um futuro melhor, não quero morrer assim,
num necrotério qualquer, como indigente, sem nome e sem nada,
o homem na estrada.
Assaltos na redondeza levantaram suspeitas,
logo acusaram a favela para variar,
E o boato que corre é que esse homem está, com o seu nome lá na lista dos suspeitos,
pregada na parede do bar.
A noite chega e o clima estranho no ar,
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente,
mas na calada caguentaram seus antecedentes,
como se fosse uma doença incurável, no seu braço a tatuagem, DVC, uma passagem , 157 na
lei...
No seu lado não tem mais ninguém.
A Justiça Criminal é implacável.
Tiram sua liberdade, família e moral.
Mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão para sempre de ex presidiário.
Não confio na polícia, raça do caralho.
Se eles me acham baleado na calçada, chutam minha cara e cospem em mim é..
eu sangraria até a morte...
Já era, um abraço!.
Por isso a minha segurança eu mesmo faço.
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É madrugada, parece estar tudo normal.
Mas esse homem desperta, pressentindo o mal, muito cachorro latindo.
Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no quintal.
A vizinhança está calada e insegura, premeditando o final que já conhecem bem.
Na madrugada da favela não existem leis, talvez a lei do silêncio, a lei do cão talvez.
Vão invadir o seu barraco, é a polícia!
Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia, filhos da puta, comedores de carniça!
Já deram minha sentença e eu nem tava na "treta", não são poucos e já vieram muito loucos.
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem, quinze caras lá fora, diversos calibres, e eu
apenas
com uma "treze tiros" automática.
Sou eu mesmo e eu, meu deus e o meu orixá.
No primeiro barulho, eu vou atirar.
Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém, e o que eles querem: mais um "pretinho" na
febem.
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim, a gente sonha a vida inteira e só acorda no fim, minha
verdade
foi outra, não dá mais tempo pra nada... bang! bang! bang!
Homem mulato aparentando entre vinte e cinco e trinta anos é encontrado morto na estrada do
M'Boi Mirim sem número.
Tudo indica ter sido acerto de contas entre quadrilhas rivais.
Segundo a polícia, a vitíma tinha vasta ficha criminal."
Música Mano Bronw
CD Raio X do Brasil (1993)
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ANEXO – III Essa Justicinha, dama de má Vida
ESSA JUSTICINHA, DAMA DE MÁ VIDA
Exa. Sra. Juíza de Direito
Márcia Tessitore:
Eu não tinha a intenção de apresentar qualquer defesa no processo de abandono de cargo do
qual sou réu. Porém, a atitude do meu advogado, dando-se ao trabalho de me procurar a fim
que eu lhe apresentasse meus motivos, de forma que ele pudesse preparar minha defesa,
tocou-me, e me fez voltar atrás.
Diante de atitudes como esta, de meu advogado, chego a crer que talvez ainda existam
pessoas idealistas no círculo do Poder Judiciário.
O fato, Excelência, é que há três anos não consigo mais trabalhar. A Psiquiatria tem um
diagnóstico para isso, tal como já foi anteriormente apresentado em laudo solicitado por V.
Exa. em outro processo de abandono de cargo.
Tentei manter-me afastado para tratamento médico. Porém, um médico do Departamento de
Perícias que nunca me viu, nem examinou, julgou que me bastavam dois e não três meses de
afastamento.
Se ainda não fui até o Fórum para pedir minha exoneração, é porque considero seriamente a
possibilidade de estarem os psiquiatras certos a meu respeito.
Por outro lado, também não comparecerei para os atos deste processo, pois não reconheço a
autoridade do Poder Judiciário brasileiro para julgar qualquer de meus atos.
Independente do que pensam os médicos, eu não consigo mais cumprir mandados. Não
consigo mais, porque não creio mais em absolutamente nada do que o Poder Judiciário se diz
representar. Não posso mais continuar a ser cúmplice desse espetáculo cruel de distribuir
“justiça” apenas a pretos e pobres, enquanto criminosos de colarinho branco permanecem
intocados.
Sou oficial de Justiça desde 1991. Nesse meio tempo, fiz coisas nada elogiáveis. Corrompime e assisti outros se corromperem. Vi juízes prevaricarem ou abusarem de seu “poder”.
Menti, e participei de mentiras de outros. Vi advogados venderem seus clientes às escâncaras.
Mas nada disto, doutora, ou antes, tudo isto não é nada se comparado ao cumprimento de um
só mandado. Nenhum desses meus erros se compara ao fato de haver posto na rua uma família
inteira na antevéspera de Natal. Tudo dentro da lei, é claro. Nada disto se compara, doutora, a
colocar uma família para fora de um apartamento, que eles haviam invadido no CDHU,
sabendo que eles não tinham para onde ir e sabendo que os “donos” ao quais a justa justiça
dera ganho de causam possuem mais imóveis, têm carros e bons salários.
Alguém já disse: “O que é roubo de um banco, comparado à fundação de um banco?”
Parafraseando, digo: O que é descumprimento de um mandado, comparado a expedição de um
mandado?
Não. Não vou continuar sendo cúmplice desses crimes. Creia-me doutora algum dia, este país
vai mudar e tudo o quanto for feito por esta justiça, será execrado, julgado e devidamente
punido.
Mas no momento, o que temos é apenas uma parte do instrumento de dominação de uma elite
podre sobre a maioria miserável e indefesa.
Nossa polícia não serve ao povo. Nossa justiça não serve ao povo. Nosso Congresso não serve
ao povo. Não reconheço, neste serralho, denominado justiça, a autoridade, a isenção e, sobre
tudo, os atributos morais necessários para julgar quem quer que seja.
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Se não, que me responda: que atributos para julgar possui esta justiça, desconhecida que é
setenta por cento da população do país a que diz pertencer?
Que espécie de justiça é esta, que me julga por abandonar meu cargo, se ela própria jamais
assumiu sua funções?
O que dá a esta justiça o poder de julgar, se ela não atende ao povo, em nome de que se
exerce, pretensamente, todo o poder?
Que ascendência moral pretende ter sobre mim este circo, eu, que ao menos tenho a decência
de ser réu confesso de meus erros?
Quem são vocês, senhores e senhoras de negro hábito? Onde, exatamente, reside a vossa
moral para punir seus subalternos, se para vocês, a maior punição é a disponibilidade
remunerada?
Que é o tribunal do júri senão um coliseu moderno, onde os pretos são jogados aos leões?
Asseguro-lhe que não há coisa mais hipócrita que dizer que ali a sociedade julga a sociedade.
Ali, a classe média, amparada nos ideais da elite, julga os miseráveis.
Como se pode dizer que a sociedade esteja representada ali, naqueles bancos? Somente sendo
totalmente imbecil ou sendo muito mal intencionado. O grupo de marionetes formado,
geralmente representa trinta por cento, quando muito, da sociedade.
E é esta justiça que vem me processar?
Tenho, doutora Márcia, a mais profunda aversão por tudo o que vi e do que esta justiça
representa. Aversão não, trata-se de nojo mesmo, esta justicinha cega, surda, muda e
entrevada. Feita por juízes tão arrogantes, que não consideram que a roupa de um trabalhador
seja digna do ambiente do Fórum. Proíbem-lhes a entrada no Fórum em trajes que são os do
dia-a-dia da esmagadora maioria da população e o fazem com arrogância de quem tem o
direito de decidir o que é moral ou imoral.
Mas é claro, o direito foi além. Ele definiu a própria moral. Palmas! É o Admirável mundo
novo; não! É o Admirável terceiro mundo novo.
Essa justicinha de mentirinha, essa coisa cruel, eu a considero uma dama de má vida, que
flerta com pobres por diversão, mais deita-se com os ricos por profissão.
Talvez os médicos estejam certos.
Saiba, doutora, que se eu for condenado nesse processo – e creio que o serei – terei orgulho
disso. Para mim, é agradável ser condenado pela justiça que absolve criminosos de colarinho
branco. Seria como – guardadas as devidas proporções – ser fuzilado por nazistas.
Juízes são criaturas estranhas. Estudam a fundo a lei. Mas esquecem da Antropologia da
História, e de outras Ciências Humanas, sem as quais a aplicação de leis torna-se uma
atividade sem finalidade, um ato vazio.
Dane-se esta justiça então, doutora, que a minha condenação não mudará em nada, nem minha
situação, muito menos a situação da justiça.
Enfim, só o que posso lhe dizer é que não abandonei o cargo. Ele é que abandonou.
Talvez eu esteja louco de fato.
Mas neste caso, recuso-me a abrir mão de minha insanidade. Pois é a minha insanidade que
me protege dos maus exemplos de sua justiça.
E isto encerra minha exposição.
Guarujá, 6 de abril de 1997.
Luiz Antônio Goulart
Oficial de Justiça do
Foro de Guarujá
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ANEXO IV – Sentença Denegatória de reintegração de posse
"VISTOS etc.
"Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu
paraíso por espadas de fogo,iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados. Não tinham
sexo, nem idade, nem condição humana. Eram os retirantes. Nada mais."
(José Américo de Almeida, em "A Bagaceira")
Várias famílias (aproximadamente 300 - fls. 10) invadiram uma faixa de
domínio ao lado da Rodovia BR 116, na altura do km 405,3, lá construindo barracos de plástico preto,
alguns de adobe, e agora o DNER quer expulsá-los do local. "Os réus são indigentes", reconhece a
autarquia, que pede reintegração liminar na posse do imóvel.
E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. São os
excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade deste ano. Repito, isto não é ficção. É um
processo. Não estou lendo Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou José do Patrocínio.
Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem
se saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, João Leite (João Leite ???). Só isso para
identificá-los. Mais nada. Profissão, estado civil (CPC, artigo 282, II) para quê, se indigentes já é
qualificação bastante?
Ora, é muita inocência do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal,
com a ajuda da polícia, de seu moquiços, em nome de uma mal arrevesada segurança nas vias
públicas. O autor esclarece que quer proteger a vida dos próprios invasores, sujeitos a atropelamento.
Grande opção! Livra-os da morte sob as rodas de uma carreta e arroja-os para a
morte sob o relento e as forças da natureza. Não seria pelo menos mais digno - e menos falaz - deixar
que eles mesmos escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi dado optar pela forma de vida?
O Município foge à responsabilidade "por falta de recursos e meios de
acomodações" (fls. 16 v). Daí, esta brilhante solução: aplicar a lei.
Só que, quando a lei regula as ações possessórias, mandando defenestrar os
invasores (artigos 920 e seguintes do CPC), ela - COMO TODA LEI - tem em mira o homem comum,
o cidadão médio, que, no caso, tendo outras opções de vida e de moradia diante de si, prefere
assenhorar-se do que não é dele, por esperteza, conveniência, ou qualquer outro motivo que mereça a
censura da lei e, sobretudo, repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma espécie
possuem.
Mas este não é o caso no presente processo. Não estamos diante de pessoas
comuns, que tivessem recebido do Poder Público razoáveis oportunidades de trabalho e de
sobrevivência digna (v. fotografias).
Não. Os "invasores" (propositadamente entre aspas) definitivamente não são
pessoas comuns, como não são milhares de outras que "habitam" as pontes viadutos e até redes de
esgoto de nossas cidades. São párias da sociedade (hoje chamados excluídos, ontem de descamisados),
resultado do perverso modelo econômico adotado pelo país.
Contra este exército de excluídos, o Estado (aqui, através do DNER) não pode
exigir a rigorosa aplicação da lei (no caso, reintegração de posse), enquanto ele próprio - o Estado não se desincumbir, pelo menos razoavelmente, da tarefa que lhe reservou a Lei Maior.
Ou seja, enquanto não construir - ou pelo menos esboçar - "uma sociedade livre,
justa e solidária" (CF, artigo 3º, I), erradicando "a pobreza e a marginalização" (n. III), promovendo "a
dignidade da pessoa humana" (artigo 1º, III), assegurando "a todos existência digna, conforme os
ditames da Justiça Social" (artigo 170), emprestando à propriedade sua "função social" (art. 5º, XXIII,
e 170, III), dando à família, base da sociedade, "especial proteção" (art. 226), e colocando a criança e o
adolescente "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, maldade e
opressão" (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os marginalizados à condição de cidadãos
comuns, pessoas normais, aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para deles
exigir - diretamente ou pelo braço da Justiça - o reto cumprimento da lei.
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Num dos braços a Justiça empunha a espada, é verdade, o que serviu de
estímulo a que o Estado viesse hoje a pedir a reintegração. Só que, no outro, ela sustenta a balança, em
que pesa o direito. E as duas - lembrou RUDOLF VON IHERING há mais de 200 anos - hão de
trabalhar em harmonia: "A espada sem a balança é força brutal; a balança sem a espada é a impotência
do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia
com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança"
Não é demais observar que o compromisso do Estado para com o cidadão
funda-se em princípios, que têm matriz constitucional. Verdadeiros dogmas, de cuja fiel observância
dependem a eficácia e a exigibilidade das leis menores.
Se assim é - vou repetir o raciocínio - enquanto o Estado não cumprir a sua
parte (e não é por falta de tributos que deixará de fazê-lo), dando ao cidadão condições de cumprir a
lei, feita para o homem comum, não pode de forma alguma exigir que ela seja observada, muito menos
pelo homem "incomum".
Mais do que deslealdade, trata-se de pretensão moral e juridicamente
impossível, a conduzir - quando feita perante o Judiciário - ao indeferimento da inicial e extinção do
processo, o que ora decreto nos moldes dos artigos 267, I e VI; 295, I, e parágrafo único, III, do
Código de Processo Civil, atento à recomendação do artigo 5º da LICCB e olhos postos no artigo 25
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que proclama: "Todo ser humano tem direito a um
nível de vida adequado, que lhe assegure, assim como à sua família, a saúde e o bem estar e, em
especial, a alimentação, o vestuário e a moradia ".
Quanto ao risco de acidentes na área, parece-me oportuno que o DNER sinalize
convenientemente a rodovia, nas imediações. Devendo ainda exercer um policiamento preventivo a
fim de evitar novas "invasões".
P. R. I.
Belo Horizonte, 03 de março de 1995.
ANTONIO FRANCISCO PEREIRA
Juiz Federal da 8ª Vara
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