1. Quando hoje ouvimos falar em «crise», pensamos, de imediato, na crise económica que se abateu sobre nós nos últimos tempos; na crise dos mercados, das finanças públicas, do Estado social, do modelo social europeu. E, todavia, nós, juristas, vínhamos convivendo há já largos anos com a «ideia de crise»: a «crise da Justiça», a crise do próprio Direito e em consequência a crise do Estado Social de Direito. O que há de novo para os juristas nesta nova «crise» não é portanto a ideia de um desfalecimento, de uma erosão dos princípios e dos mecanismos jurídicos de regulação social, mas a forma desabrida como a chamada «crise económica» questionou radicalmente os ordenamentos jurídico-constitucionais e os tratados internacionais que asseguravam a estabilidade da nossa sociedade. Aquilo de que antes vínhamos falando como sintoma, como prenúncio, com tendência, rebentou, assim, sem fantasia nem mais máscara, na cara dos juristas. Mas, esta explosão violenta e subversiva parece, contudo, não ter causado entre estudiosos do Direito Europeu, constitucionalistas, jus-laboristas e especialistas de todas as áreas direito social a reacção, também ela escandalosa, que os inúmeros estudos e comentários que a precederam e anteciparam deixavam antever e exigem. 2. Alguns, numa atitude muito típica dos juristas, começaram, desde logo, a procurar justificações para os «factos», justificação essa que lhes permitirá, numa «situação de crise», ou de «estado de necessidade», ou ainda «de excepção», fazer aceitar pelo Direito vigente, aquilo que ele precisamente não queria que fosse aceite: a derrogação radical dos direitos fundamentais de natureza social, a sua própria derrogação. Talvez por terem já meditado muito sobre o tema, por terem antecipado a sua realidade, não tenham, como outros – os cidadãos que acreditavam no Direito e na Justiça como factores de estabilidade e progresso –, sido sensíveis ao verdadeiro escândalo que a «crise da economia» trouxe para o Direito, o Estado de Direito e, assim, também para a Justiça Social e o modelo Social europeu. No fundo, é como se os juristas tivessem já aceitado que, de facto, não estamos realmente perante uma «crise», mas antes perante algo mais profundo e que põe em causa os próprios fundamentos primeiros do ordenamento político-jurídico em que nos temos movido, pelo menos desde a II Guerra Mundial. 1 3. E, na realidade, o que tem acontecido com as medidas financeiras decretadas pelos Estados e impostas pela ortodoxia financeira da EU sobre a despesa com os salários e direitos sociais contemplados nos tratados europeus, nas constituições e leis nacionais, não pode deixar de ser visto como uma ruptura radical dos princípios e conceitos mais evidentes da ordem jurídica existente até então. Princípios como o do não retrocesso dos direitos sociais contido na Carta Social Europeia e hoje parte integrante do Tratado de Lisboa, princípios constitucionais referentes à não reversibilidade dos direitos sociais, à intocabilidade dos salários e, em geral, à boa-fé e estabilidade da ordem jurídica, foram, com efeito, reduzidos a pó de uma penada. Países há em que essas derrogações nem sequer são calendarizadas e consideradas excepcionais ou valendo apenas para um determinado período de tempo considerado como reflectindo uma espécie de «estado de necessidade» circunstancial. Nestes, a «revolução» a ruptura do paradigma anterior, é mais evidente e propõe-se mesmo reduzir, se não erradicar de vez os direitos adquiridos de natureza social, consolidando-se, a propósito da crise – afinal eterna – um verdadeiro retrocesso nas conquistas sociais que os povos desses países alcançaram. O que está em causa é já não uma crise, mas um a emergência de um novo paradigma de sociedade. 4. No fundo, parece repetir-se, agora como tragédia, o ensinamento de M. Foucault, quando dizia, a propósito da Revolução liberal do Sec. XVII, que nesse período se dera uma revolução cultural quando se substituíra o pensamento jurídico que enformava a sociedade política pela ideia da «verdade» e que essa verdade não era outra que não a «verdade económica». E digo como tragédia, porque, ao contrário do que então aconteceu, esta revolução contraria uma evolução político-social resultante de um alargado «consenso» popular que a catástrofe da II Guerra evidenciou como necessário para assegurar o desenvolvimento e a paz. Com efeito, foi esse consenso sobre o estado social e a sua aparelhagem políticojurídica que, corporizado por um conjunto alargado de tratados e instituições europeias, legitimou a própria ideia actual de EU e o seu tratado refundador: o Tratado de Lisboa. 2 Rompido o chamado modelo social europeu, ou degradado este a um mínimo meramente assistencialista, pouco restará então do consenso que legitimou o processo fundador da União, processo esse baseado na solidariedade entre os povos e na solidariedade activa com os mais desfavorecidos. E eram precisamente esses desfavorecidos cuja dignidade se pretendia reabilitar. Uma reabilitação que implicava uma construção solidária, por parte de todos os países e povos europeus, de sociedades mais justas e humanas, na perspectiva da edificação de uma Europa mais equilibrada e democrática e que, por isso, se tornaria num factor de paz interna e, também, externa. Rompido o equilíbrio conseguido pela constitucionalização e judicialização dos direitos sociais – ie, pela consideração desses direitos como verdadeiros direitos fundamentais e portanto como direitos invocáveis em Tribunal – outras rupturas, contudo, se seguirão. Porventura rupturas mais amargas e perigosas. Que essa ruptura seja agora justificada com a «verdade económica» de pouco monta. É que, a própria ideia de verdade económica não é neutra e atrás dela escondem-se tanto os incontrolados interesses económicos que desenvolveram um processo de globalização sem direitos (e por vezes até contra os direitos) e políticas financeiras e monetárias egoístas e prepotentes que nos conduziram à «crise», como os direitos económicos e sociais dos povos e cidadãos de todos os países que compõem a União. A «verdade económica» dos cidadãos europeus não pode ser menos relevante para um Direito e uma Justiça que, ao longo de anos, os países europeus e a EU edificaram como seu pressuposto político. Isto é, a «verdade económica» não dita necessariamente o sentido anti-social das políticas financeiras europeias e nacionais e isso significa que elas podem e devem ser questionadas judicialmente. 5. E ao Judiciário e juízes das instâncias Europeias ou das Justiças nacionais, que papel se lhes reserva, ou eles se reservam a si próprios, nesta situação? 3 Será o judiciário chamado a intervir, como era regra em momentos de crise, apenas na resolução dos conflitos político-sociais resultantes da crise ou da ruptura do direito social europeu, na perspectiva das suas consequências securitárias e criminógenas? Ou poderá, desta vez, almejar-se para o Direito, a Justiça, os Tribunais e os seus magistrados, um papel efectiva e socialmente integrador como pretendeu o legislador europeu? Uma função capaz de impor, mais do que uma ordem «verdadeira» na perspectiva da economia que temos, uma «verdadeira ordem económica», porque justa e porque humana, mesmo que ela possa ainda ser encarada tão só como progressiva e, nesse sentido, utópica. Será que desta vez o Direito, a Justiça, os Tribunais e os seus magistrados conseguirão fazer que a sociedade encare a sério os direitos fundamentais; leve os direitos fundamentais a sério, como preconiza L. Ferrajoli? Se isso não acontecer desta vez o que restará da autoridade do Direito, do Estado de Direito, do Estado Social de Direito, da Justiça e dos Tribunais? Que restará da superioridade e portanto da autoridade das instituições democráticas e da própria Democracia? Pensar e fazer pensar estas questões no seio das diversas organizações internacionais de juristas, das respectivas sociedades e organizações sociais e de magistrados será, talvez, em meu entender, a função, a estratégia que deverá nortear a MEDEL e as suas associações nos próximos tempos. Ao comemorar com este tema o seu 25.º Aniversário a MEDEL continua, assim, a cumprir os objectivos que a levaram a constituir-se como um fórum único de Liberdade e Democracia. António Cluny 4