CURRÍCULO E QUESTÕES DE INDISCIPLINA GARCIA•, Joe - UTP [email protected] Resumo Um estudo analítico sobre o papel que exerce a indisciplina escolar nas decisões que produzem o currículo. O currículo representa um discurso de regulação social que tem sido confrontado e resistido por diversas forças, entre as quais as expressões de indisciplina na escola. Tendo por referência algumas questões da teoria curricular, bem como alguns estudos sobre indisciplina escolar, investigamos o papel dos contextos e expressões de indisciplina como forças de transformação do currículo praticado - aquele que é efetivamente desdobrado no contexto cotidiano das práticas pedagógicas. Analisamos como a indisciplina é capaz de participar dos processos de desdobramento do currículo praticado, segundo diferentes mecanismos, e argumentamos que ela implica efetivamente sobre as decisões que o definem. Após a introdução do texto, consideramos o conceito e o desdobramento do currículo praticado, destacando em particular o papel exercido pelos professores. A este propósito exploramos diversas forças que convergem nas decisões sobre o currículo praticado, destacando a indisciplina dos alunos. Em seguida refletimos sobre as relações entre indisciplina e os processos de decisão sobre o currículo. Nessa seção destacamos os resultados de algumas pesquisas sobre indisciplina escolar, analisando como o currículo pode ser modificado através de decisões mediadas por alunos e professores. Ao final apresentamos algumas considerações tendo em vista destacar alguns argumentos derivados da articulação entre currículo e indisciplina escolar. Refletimos sobre a indisciplina como uma força que incide sobre a "conversa complicada" que é o currículo escolar. Também observamos que a indisciplina pode representar uma esvaziamento do currículo, como forma de provocar uma crise reflexiva sobre a legitimidade do processo decisório que o define. Finalmente exploramos a noção de currículo como uma conversa complicada em andamento, aberta às vozes da indisciplina. Palavras-chaves: Educação; Currículo; Indisciplina; Práticas Pedagógicas . Introdução O currículo é um artefato social e cultural implicado em relações de poder, que reflete de visões sociais particulares e interessadas (MOREIRA e SILVA, 1994, p. 7-8). O currículo não é neutro, não é inocente, e representa um discurso de regulação moral, de disciplinamento e produção de identidades (SILVA, 2003). O desdobramento do currículo, entretanto, não ocorre sem resistência. Na escola o currículo é confrontado por diversas forças, entre as quais as expressões de indisciplina. Neste trabalho argumentamos que a indisciplina nas escolas é capaz de exercer um papel de contestação e resistência ao discurso e prática do currículo. Seguindo essa perspectiva, o objetivo aqui proposto reside em analisar as relações entre • Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná. 718 currículo e indisciplina escolar, tendo por foco o papel de resistência e transformação que exercem as expressões de indisciplina sobre a construção social do currículo praticado nas escolas. O currículo já foi descrito como um território contestado (SILVA, 2003, SILVA e MOREIRA, 2001). Ele resulta e representa um complexo processo de construção social, e corporifica relações sociais (SILVA, 2001, p. 201). Ele é um campo de atividade que engloba a convergência de múltiplos agentes (SACRISTÁN, 2000, p. 101). No horizonte dos estudos contemporâneos sobre o currículo, encontramos um conjunto de diferentes concepções e denominações para diferentes instâncias ou formas de expressão do currículo. Na literatura educacional se destaca, por exemplo, a noção de currículo formal. Essa noção se refere às expectativas oficiais sobre o que deve ser compreendido pelo currículo nas escolas. Mas o currículo, entretanto, tal como praticado no cotidiano das escolas, reflete bem mais que tais expectativas oficiais. Uma noção destacada neste trabalho é a de currículo praticado, também denominado de currículo em uso (MOREIRA, 1999, p. 21). Essa noção se refere ao currículo efetivamente trabalhado pelos professores em sala de aula. Há também outras noções que neste texto não estaremos analisando, tendo em vista a delimitação desejada na discussão a ser feita. Neste estudo focalizamos a construção social do currículo praticado, aquele que é efetivamente desdobrado no contexto das práticas pedagógicas. O currículo praticado reflete determinações legais e as expectativas formais do currículo oficial. Mas ele também é uma instância de reelaboração decisória. É um artefato que engloba decisões derivadas de transações entre professores e alunos. Em sala de aula o currículo é configurado através de negociação entre professores e alunos (ERIKSON e SHULTZ, 1992). Sobre essas transações incidem diferentes forças, diversos elementos e configurações, que se apresentam no cotidiano da sala de aula, e que implicam um repensar do currículo, mudanças de rumo, ênfases e omissões. É nessa perspectiva, portanto, que investigamos o papel dos contextos e expressões de indisciplina como forças de resistência e transformação do currículo. Os eventos de indisciplina no cotidiano escolar estão entre as forças que incidem sobre as decisões do currículo praticado. Assim, afirmamos que a indisciplina dos alunos exerce um papel nas decisões sobre o currículo praticado em sala de aula, o que ocorre através de diferentes mecanismos. As expressões de indisciplina representam forças de resistência, de contestação, de instabilidade e de esvaziamento do currículo. Diante da indisciplina a equação de poder decisório se transforma em sala de aula, e o currículo se transforma. Em síntese, a 719 indisciplina implica mudanças nas decisões sobre o currículo, bem como transformações na situação dos sujeitos envolvidos no currículo. As expressões de indisciplina apresentam distintos mecanismos capazes de abalar o poder regulador do currículo. As atitudes dos alunos frente ao currículo praticado podem assumir a forma de contestação e esvaziamento de saberes e práticas "oficiais", por exemplo, ou mesmo através da legitimação de outros saberes e práticas. A indisciplina, por exemplo, pode expressar a disposição dos alunos de não cooperar com as atividades curriculares propostas. Nesse caso temos um exemplo do que sugerem Walker e Soltis (1992, p. 5), quando afirmam a capacidade dos estudantes para exercer controle sobre o currículo em sala de aula. O currículo é local de entrecruzamento de saber, poder e regulação (SILVA, 2001, p. 200). É um lugar de diálogo, conflito e negociação, de conversas complicadas (PINAR, 2004). Esse local está sujeito a diversas modificações implicadas por indisciplina, que sob diferentes formas é capaz de ameaçar não somente a noção de conhecimento válido embutida no currículo, mas a própria noção de sujeito que se deseja como norte do processo educacional. O currículo não consegue sair imune da relação com os sujeitos que deseja educar. O currículo praticado pode ser abreviado, simplificado, negado ou esvaziado. Mas também pode ser a ampliado, atualizado e contextualizado. Sob a sombra da indisciplina é possível que os conteúdos do currículo sejam trabalhados de um modo a não alimentar confrontos, indisposições, polêmicas, descontentamentos, balbúrdia, insatisfação e revolta. Mas o currículo pode também ser transformado de forma a atender melhor as expectativas e necessidades dos alunos. Argumentamos, portanto, que a indisciplina pode refletir-se sobre a construção do currículo praticado de um modo a produzir diferentes cenários e sujeitos afinal, somos também produzidos pelo currículo (SILVA, 2003, p. 194). Tendo em vista a intenção deste trabalho, a seguir analisamos a dinâmica dos processos decisórios que engendram o currículo. Mais adiante exploramos algumas questões derivadas dos estudos sobre indisciplina escolar, e analisamos seu papel nas decisões sobre o currículo praticado. Nas considerações finais destacamos algumas reflexões de síntese que buscam articular currículo e indisciplina escolar. O Conceito de Currículo Há diversas formas pelas quais o currículo tem sido representado na literatura educacional. Este é um conceito plural, e há uma variedade interessante de visões teóricas que 720 tem disputado o significado desse conceito. Se podemos afirmar que o campo do currículo é um "território contestado" (SILVA e MOREIRA, 2001), também é certo que ele tem sido produtivo como objeto de teorização. Entre os sentidos mais usuais atribuídos ao termo currículo, estão conhecimento escolar e experiência de aprendizagem (MORERA, 1997, p. 12). Assim, o currículo pode ser definido, por exemplo, como um conjunto das experiências de aprendizagem proporcionadas aos estudantes na escola. Uma leitura propõe currículo como "um modo pelo a cultura é representada e reproduzida no cotidiano das instituições escolares" (PEDRA, 2000, p. 38), ou, tal como sugere Sacristán (p. 15), o currículo é uma forma particular de se entrar em contato com a cultura. Neste texto, entretanto, exploramos a noção de currículo como uma seleção de elementos da cultura. Pensado como seleção, o currículo reflete escolhas exercidas por diferentes sujeitos, segundo diferentes propósitos, interesses e poder. O currículo produz conhecimento, mas também é uma relação social. Se podemos afirmar que o currículo é algo produzido por professores e alunos, também estes são produzidos pelo currículo como sujeitos particulares (SILVA, 2003, p. 194-195). O currículo engloba diferentes possibilidades situadas entre aquilo que se espera seja ensinado (currículo oficial), o que é efetivado (currículo praticado), e o que efetivamente ocorre como aprendizagem (currículo aprendido). Na escola observamos que o currículo praticado, e o currículo aprendido podem estar mais ou menos distantes do que está proposto no currículo oficial. Além disso, o desdobramento do currículo reflete diferentes racionalidades, processos e sujeitos. O currículo é um campo de atividades onde atuam múltiplos agentes e forças, em um processo de deliberação aberto (SACRISTÁN, 2000, p. 101-102). O currículo, portanto, é decidido por diferentes agentes, em conflito ou confluência, investidos de diferentes graus de poder decisório. Considerando o foco nas transformações produzidas nas negociações de poder engendradas pela indisciplina, neste trabalho focalizamos o desdobramento do currículo praticado. Essa noção se refere à instância curricular provavelmente mais próxima do poder decisório efetivo dos professores. Mas o currículo praticado não reflete apenas as decisões dos professores sobre o que consideram deva ser trabalhado no currículo. embora seja essa instância onde os professores conseguem exercer um grau destacado de autonomia. No desdobramento do currículo praticado convergem determinações que até mesmo antecedem os professores. Tal como observa Sacristán (2000, p. 102), o currículo implementado na prática pedagógica "é o resultado de uma série de influências convergentes e sucessivas, coerentes ou contraditórias, adquirindo, dessa forma, a característica de ser um objeto preparado num processo complexo, que se transforma e constrói a si mesmo". Assim, o 721 currículo praticado é lugar de reinvenção, e , tal como veremos mais adiante, também um território de conflitos, resistência, indisciplina. O currículo articula diferentes sujeitos, dentre os quais destacamos professores e alunos. Os professores atuam de diversas formas na configuração do currículo praticado. Podemos afirmar que eles produzem transformações segundo diversas racionalidades, justificativas e intencionalidades, as quais refletem, por exemplo, suas identidades e perspectivas culturais, poder e autoridade, formação e conhecimento especializado, expectativas e pressupostos em relação aos seus alunos, experiência profissional e os próprios contextos onde atuam. Assim, os professores desempenham um papel ativo nas decisões sobre currículo, este entendido com algo bem mais amplo que um conjunto de conhecimentos formais a serem ensinado em sala de aula - embora tais conhecimentos sejam uma parte importante do currículo escolar. O currículo também é regulação, e esta também é produzida pelas decisões dos professores. Em sala de aula os professores não atuam sozinhos, e o desenho do currículo reflete muito mais que apenas suas decisões. Entretanto, os professores são responsáveis e estão diretamente vinculados à implementação do currículo. Nessa tarefa eles exercem escolhas, diariamente, que se refletem sobre aquilo que afinal se torna o currículo praticado. Mas tais decisões, de um modo significativo, não raramente consideraram as circunstâncias e contextos que encontram em sala de aula, bem como os próprios alunos. Nesse contexto, o currículo se revela aberto a resistências e diversas formas de contestação, entre as quais a indisciplina. A indisciplina vai colocar os alunos na mesa de negociação do currículo. Os processos decisórios implicados no desdobramento do currículo ocorrem em um contexto de forças que não consegue evitar a participação dos alunos. Embora a própria finalidade do currículo implique a necessidade de participação dos alunos em seus processos decisórios, seu projeto de controle e regulação (desses sujeitos) parece incompatível com aquele desejo. Assim, embora o papel tradicionalmente central dos professores nos processos que definem o currículo praticado, é inevitável receber também o aluno na mesa de negociações. É nesse sentido que argumentamos que a indisciplina, de um certo modo, representa uma força capaz de colocar os alunos em uma inevitável e talvez inesperada posição de negociação sobre o currículo. Em sala de aula o currículo reflete o encontro de diferentes forças, bem como de diferentes sujeitos. Embora os professores exerçam um importante papel decisório no desdobramento do currículo praticado, eles não entram ou estão sozinhos em sala de aula. A sala de aula é um espaço complexo de construção social do conhecimento. É um espaço 722 contestado, tal como o currículo. Sob várias formas os alunos são capazes de influenciar as decisões sobre o currículo. Tal como observam Walker e Soltis (1992, p. 5), "os estudantes exercem algum controle sobre o currículo em sala de aula através do modo como cooperam ou não". A ausência de cooperação dos alunos, que em determinados contextos vai ser interpretada como indisciplina, pode expressar um desejo por mudanças no currículo. Mas a resistência aos esquemas de regulação tácita ou explicitamente presentes no currículo não somente representa uma solicitação por mudança. O exercício da resistência também se torna currículo. Há diversas forças que atuam sobre o currículo praticado e que são capazes de transformá-lo. A indisciplina dos alunos, em suas distintas expressões, pode ser pensada como uma dessas forças a serem destacadas. Tais mudanças no currículo praticado, relacionadas às expressões de indisciplina na escola, englobam mudanças qualitativas e quantitativas. A indisciplina é capaz de mudar ênfases e omissões no currículo. Ela pode implicar mudanças em alguns tempos praticados no currículo, tais como, por exemplo, o tempo da explicação, da exemplificação ou do debate. Mas há outras questões a considerar na análise da relação entre indisciplina e currículo, o que faremos a seguir, avançando na análise de alguns mecanismos pelos quais a indisciplina transforma as decisões sobre o currículo. Indisciplina e Instabilidade do Currículo A prática do currículo é uma espécie de território instável, onde diversas escolhas precisam ser feitas continuamente. O currículo é uma prática, tal como observa Sacristán (2000, p. 16), na qual se estabelece um diálogo entre diferentes agentes. O currículo engloba intenções, reflete escolhas, e expressa a influência de diversas forças sociais, econômicas e culturais. O currículo reflete diferentes escolhas, simples e complexas, muitas das quais exercidas diretamente por professores e alunos em sala de aula. Como parte desse contexto é preciso considerar o poder representado nas expressões de indisciplina. A indisciplina coloca termos ao currículo. Nesse sentido é interessante considerar não somente quais sejam tais termos, mas os processos como são elaborados, como adquirem poder. Isso solicita uma leitura da própria noção de indisciplina. Os estudos de indisciplina tem se ampliados particularmente nas últimas duas décadas, talvez refletindo a intensidade com que essa questão tem sido pontuada nas escolas. A literatura educacional tem apresentado espaço destacado a esse tema, que na atualidade também constitui uma produtiva interrogação de pesquisa. A indisciplina se apresenta como um dos grandes desafios colocados aos professores em sala de aula, e parece capaz de 723 influenciar as decisões sobre currículo e ensino (D'ANTOLA, 1989; GARCIA, 1999; REBELO, 2002; VASCONCELLOS, 1995; XAVIER, 2002). Embora a pergunta recorrente entre os educadores sobre o que poderia ser feito a respeito da indisciplina nas escolas, há uma questão distinta que nos interessa destacar, sobre o que ela é capaz de fazer ao currículo. Em sala de aula o currículo não consegue ser indiferente à indisciplina. Ali, onde os professores experimentam o que Sacristán (2000) denominou de "fluxo mutante de acontecimentos" (p. 205), a indisciplina representa uma fonte de instabilidade no currículo. Em meio a esse fluxo ocorrem as negociações entre professores e alunos, que transformam o currículo praticado. Mas esse é um processo nem sempre claro e explicitado. Sobre esse processo incidem diferentes elementos, forças e circunstâncias, que modificam o jogo das decisões sobre o currículo. As expressões de indisciplina incidem sobre esse fluxo decisório, e o transformam, agindo de um modo a influenciar o currículo, seja ao modificar atividades e tarefas, os conteúdos ou as experiências sociais de aprendizagem, ou simplesmente a disponibilidade para aprender. A indisciplina, portanto, implica não somente disposições em relação a tarefas e conteúdos. Ela também pode ressignificar experiências de aprendizagem, na forma, por exemplo, de resistência e esvaziamento, a ponto de ser considerada pelos professores como responsável pela não-aprendizagem (REBELO, 2002, p. 39). A indisciplina, assim, assume o sentido de uma força de instabilidade sobre o currículo - enquanto um conjunto desejado e relativamente estável de experiências de aprendizagem. Mas a indisciplina não é apenas força de instabilidade. Ela pode ser ruptura. O que se tem denominado de indisciplina engloba também conflitos do relacionamento entre alunos e currículo. Aqui atribuímos um sentido pedagógico à indisciplina, ou seja, a situamos no contextos das relações entre professores, alunos e conhecimento. A indisciplina seria uma forma de ruptura no contrato social da aprendizagem. Pensada desse modo a indisciplina seria uma força de instabilidade no campo das relações entre professores, alunos e currículo. A indisciplina também pode ser pensada como sintoma de uma crise instalada nessa relação. Nesse caso, ela representa um dilema reflexivo que nos leva para dentro de uma revisão da capacidade do currículo fornecer uma experiência de conhecimento significativo e emancipatório. Vemos, assim, que a indisciplina pode estar intrincada no currículo. A indisciplina é capaz de integrar a própria experiência do currículo. Ela se torna currículo. A indisciplina também pode ser pensada como expressão de descontentamento. Em uma sociedade e educação mais democráticas, os alunos encontram maior liberdade para expressar mais abertamente sua apreciação pela experiência escolar, ou seu descontentamento com a falta de sentido que muitas vezes encontram naquilo que deveriam estudar segundo os 724 critérios de conhecimento oficial. Nesse contexto de abertura, o currículo parece mais suscetível à contestação e enfrentamentos da indisciplina dos alunos, e talvez mais suscetível a mudanças. Aqui, o currículo deseja apreciação como forma de abertura a mudanças. O currículo, enquanto projeto de controle e regulação, mostra-se na verdade frágil ao conversar com a indisciplina. Alguns estudos sobre indisciplina escolar mostram o quanto os professores apresentam sensibilidade aos contextos e expressões de indisciplina dos alunos (OLIVEIRA, 2004; REBELO, 2002; ESTRELA, 1994). Em um estudo bastante amplo sobre as diversas forças e agentes que atuam na estabilidade e mudança do currículo, Cuban (1992) sugere que as visões e ações dos alunos também são capazes de mudar o currículo escolar. A influência dos estudantes sobre o currículo praticado pelos professores, engloba, entre outros elementos, a forma como aqueles participam nas atividades das aulas e o modo como podem alterar o que ali ocorre. Essa participação pode, entretanto, ser de tal forma a dissuadir os professores a ensinar aquilo que estava originalmente planejado como currículo, implicando alterações menores ou maiores, e até mesmo um esvaziamento da importância dos conteúdos oficiais. Assim, mesmo que os conteúdos previstos sejam apresentados, eles já não fazem sentido, estão desconectados, distanciados do campo dos interesses e da aprendizagem dos alunos - se tornaram esvaziados. Há uma outra forma pela qual o currículo praticado pode ser modificado. Isso pode ocorrer quando os professores, em sala de aula, decidem recuar em suas intenções de abordar determinado conteúdo tendo em vista seus desdobramentos (ENNIS, 1996). Os professores fariam isso de modo a evitar a abordagem de algum conteúdo ofensivo ou controvertido. Em uma investigação etnográfica que realizou, envolvendo professores do ensino secundário, aquele autor observou que os professores modificaram o currículo originalmente planejado para evitar confrontações com os alunos. Os professores preferem evitar ou não lecionar conteúdos que acreditam não ser do interesse dos alunos, que os estudantes se recusam a aprender ou a participar da aprendizagem, ou que geram discussões para as quais os professores não se sentem preparados (ENNIS, 1996). Assim, antevendo situações de confronto em sala de aula, os professores alteram suas escolhas sobre currículo, evitando trabalhar com conteúdos que poderiam parecer ofensivos ou gerar controvérsias (ENNIS, 1996, p. 146). Em síntese, a indisciplina é capaz de trazer diferentes implicações para as aulas planejadas pelos professores, e portanto para o currículo, também devido as suas próprias atitudes. Uma pesquisa realizada por Oliveira (2004), sobre a atitude dos professores diante da indisciplina em sala de aula, sugere que os professores vêem na indisciplina um elemento 725 capaz de alterar o desenvolvimento da aula, capaz de impedir que sigam lecionando o que haviam planejado fazer, ou ainda capaz de inviabilizar o trabalho pedagógico que deveria ser realizado. Neste ponto há uma consideração necessária a fazer. Embora as pesquisas indiquem a suscetibilidade do currículo a questões de indisciplina, também revelam que as decisões dos professores têm e mente evitar certas formas de participação dos alunos nem sempre ameaçadoras à integridade do currículo que está sendo praticado, mas que podem colocar em cheque o sentido do que está sendo ensinando, e a autoridade com que falam tais professores. Assim, por exemplo, os professores, diante da ingovernabilidade da classe, podem excluir do currículo tarefas onde sintam mais insegurança, pois exigem mais atividade e nas quais é mais difícil manter a ordem (SACRISTÁN, 2000, p. 260). As pesquisas sobre indisciplina destacadas acima sugerem algo não somente sobre as ações dos alunos, mas colocam os professores no centro da questão das transformações forçadas no currículo. Observa-se que as mudanças no currículo não somente refletem algo que supostamente estaria faltando aos alunos, na visão dos professores - e que seria manifestado como indisciplina. Tais mudanças também refletiriam algo que estaria faltando aos professores, e ao próprio currículo, na visão dos alunos. A indisciplina, assim, seria um modo de avaliar os professores e de ler o currículo. Considerações Finais O currículo articula conhecimento, e corporifica relações sociais (SILVA, 2001, p. 201). Ele é um local de entrecruzamentos, onde diversas decisões precisam ser feitas. Tais decisões são negociadas sob diferentes formas e forças. O currículo, tal como analisa Pinar (2004, p. 186-188), é uma "conversa complicada", através da qual nem sempre os alunos conseguem explorar a si mesmos e a sociedade onde vivem. O currículo é altamente abstrato e não raramente está divorciado do mundo ao redor. Nessa conversa complicada são ouvidas diversas vozes. E outras tantas foram tornadas ausentes. A indisciplina escolar representa uma voz que disputa espaço nessa conversa complicada. Mas suas mensagens são diversas, nem sempre conexas ou desejadas. Na escola, a indisciplina cumpre diferentes papéis. De um lado a indisciplina parece representar uma ameaça de esvaziamento do currículo. Esse esvaziamento, enquanto o conjunto daquilo que se ensina em sala de aula, se expressa sob diversos queixas dos professores em relação à indisciplina dos alunos. Essa indisciplina se expressa, por exemplo, quando os alunos estão desinteressados, sem material para acompanhar as aulas, quando não 726 participam ou desenvolvem outras atividades em sala de aula (REBELO, 2002, p. 67). Mas é preciso refletir se esse esvaziamento não decorre também da própria concepção e prática do currículo nas escolas. É preciso, por exemplo, discutir a questão da autoria do currículo. de quem é o currículo praticado nas escolas? Assim, o esvaziamento sentido pelos professores não deveria remeter apenas a uma discussão sobre os conteúdos do currículo, mas colocar em questão a extensão da autoridade (autoria) docente, tradicionalmente responsável pelas decisões do currículo praticado. A indisciplina, nesse cenário, talvez promova uma necessária crise reflexiva sobre quem afinal está à frente das decisões sobre o currículo. O papel de agente reflexivo da indisciplina soa como produtivo. Mas ele não está dissociado de outros possíveis papéis. A indisciplina dos alunos também pode expressar uma recusa a cumprir certas expectativas que recaem sobre eles, vistos muitas vezes como sujeitos passivos de aprendizagem, incondicionalmente dispostos a internalizar valores e atitudes, e a desenvolver habilidades que lhes dará passagem para posições sociais similares a dos seus pais (CUBAN, 1992, p. 236). Mas porque a recusa? Há certamente diferentes respostas para essa pergunta. Neste trabalho exploramos algumas respostas possíveis. Nas escolas o currículo está em sintonia com as expectativas e necessidades dos alunos? Se há dúvidas entre os educadores, e se desejam outras perspectivas, provavelmente precisam dialogar com outros atores sociais, a começar pelos próprios alunos, que afinal, precisam encontrar na experiência do currículo um conjunto de oportunidades para praticar escolhas. A indisciplina, como força de contestação e resistência, surge como um agente capaz de transformar uma conversa já complicada que constitui o currículo. Entretanto, podemos argumentar, a indisciplina pode ser pensada como uma possível solicitação de que o currículo precisa ser uma conversa aberta, reflexiva, atenta às vozes e autoria dos diversos sujeitos envolvidos em sua prática. Afinal, enquanto algo pensado como uma conversa, ainda que complicada, o currículo precisa ser uma conversa em andamento (PINAR, 2004, p. 188). REFERÊNCIAS CUBAN, L. Curriculum stability and change. In: JACKSON, P. W. (Ed.). Handbook of research on curriculum. New York: Macmillan, 1992. p. 216-247. D'ANTOLA, A. (Org.). Disciplina na escola: autoridade versus autoritarismo. São Paulo: E.P.U., 1989. 727 ENNIS, C. When avoiding confrontation leads to avoiding content: disruptive students' impact on curriculum. Journal of Curriculum and Supervision, Alexandria, v. 11, n. 2, p. 145-162, Winter 1996. 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