currículo e questões de indisciplina

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CURRÍCULO E QUESTÕES DE INDISCIPLINA
GARCIA•, Joe - UTP
[email protected]
Resumo
Um estudo analítico sobre o papel que exerce a indisciplina escolar nas decisões que
produzem o currículo. O currículo representa um discurso de regulação social que tem sido
confrontado e resistido por diversas forças, entre as quais as expressões de indisciplina na
escola. Tendo por referência algumas questões da teoria curricular, bem como alguns estudos
sobre indisciplina escolar, investigamos o papel dos contextos e expressões de indisciplina
como forças de transformação do currículo praticado - aquele que é efetivamente desdobrado
no contexto cotidiano das práticas pedagógicas. Analisamos como a indisciplina é capaz de
participar dos processos de desdobramento do currículo praticado, segundo diferentes
mecanismos, e argumentamos que ela implica efetivamente sobre as decisões que o definem.
Após a introdução do texto, consideramos o conceito e o desdobramento do currículo
praticado, destacando em particular o papel exercido pelos professores. A este propósito
exploramos diversas forças que convergem nas decisões sobre o currículo praticado,
destacando a indisciplina dos alunos. Em seguida refletimos sobre as relações entre
indisciplina e os processos de decisão sobre o currículo. Nessa seção destacamos os
resultados de algumas pesquisas sobre indisciplina escolar, analisando como o currículo pode
ser modificado através de decisões mediadas por alunos e professores. Ao final apresentamos
algumas considerações tendo em vista destacar alguns argumentos derivados da articulação
entre currículo e indisciplina escolar. Refletimos sobre a indisciplina como uma força que
incide sobre a "conversa complicada" que é o currículo escolar. Também observamos que a
indisciplina pode representar uma esvaziamento do currículo, como forma de provocar uma
crise reflexiva sobre a legitimidade do processo decisório que o define. Finalmente
exploramos a noção de currículo como uma conversa complicada em andamento, aberta às
vozes da indisciplina.
Palavras-chaves: Educação; Currículo; Indisciplina; Práticas Pedagógicas
.
Introdução
O currículo é um artefato social e cultural implicado em relações de poder, que reflete
de visões sociais particulares e interessadas (MOREIRA e SILVA, 1994, p. 7-8). O currículo
não é neutro, não é inocente, e representa um discurso de regulação moral, de disciplinamento
e produção de identidades (SILVA, 2003). O desdobramento do currículo, entretanto, não
ocorre sem resistência. Na escola o currículo é confrontado por diversas forças, entre as quais
as expressões de indisciplina. Neste trabalho argumentamos que a indisciplina nas escolas é
capaz de exercer um papel de contestação e resistência ao discurso e prática do currículo.
Seguindo essa perspectiva, o objetivo aqui proposto reside em analisar as relações entre
•
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná.
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currículo e indisciplina escolar, tendo por foco o papel de resistência e transformação que
exercem as expressões de indisciplina sobre a construção social do currículo praticado nas
escolas.
O currículo já foi descrito como um território contestado (SILVA, 2003, SILVA e
MOREIRA, 2001). Ele resulta e representa um complexo processo de construção social, e
corporifica relações sociais (SILVA, 2001, p. 201). Ele é um campo de atividade que engloba
a convergência de múltiplos agentes (SACRISTÁN, 2000, p. 101). No horizonte dos estudos
contemporâneos sobre o currículo, encontramos um conjunto de diferentes concepções e
denominações para diferentes instâncias ou formas de expressão do currículo. Na literatura
educacional se destaca, por exemplo, a noção de currículo formal. Essa noção se refere às
expectativas oficiais sobre o que deve ser compreendido pelo currículo nas escolas. Mas o
currículo, entretanto, tal como praticado no cotidiano das escolas, reflete bem mais que tais
expectativas oficiais.
Uma noção destacada neste trabalho é a de currículo praticado, também denominado
de currículo em uso (MOREIRA, 1999, p. 21). Essa noção se refere ao currículo efetivamente
trabalhado pelos professores em sala de aula. Há também outras noções que neste texto não
estaremos analisando, tendo em vista a delimitação desejada na discussão a ser feita. Neste
estudo focalizamos a construção social do currículo praticado, aquele que é efetivamente
desdobrado no contexto das práticas pedagógicas.
O currículo praticado reflete determinações legais e as expectativas formais do
currículo oficial. Mas ele também é uma instância de reelaboração decisória. É um artefato
que engloba decisões derivadas de transações entre professores e alunos. Em sala de aula o
currículo é configurado através de negociação entre professores e alunos (ERIKSON e
SHULTZ, 1992). Sobre essas transações incidem diferentes forças, diversos elementos e
configurações, que se apresentam no cotidiano da sala de aula, e que implicam um repensar
do currículo, mudanças de rumo, ênfases e omissões. É nessa perspectiva, portanto, que
investigamos o papel dos contextos e expressões de indisciplina como forças de resistência e
transformação do currículo.
Os eventos de indisciplina no cotidiano escolar estão entre as forças que incidem sobre
as decisões do currículo praticado. Assim, afirmamos que a indisciplina dos alunos exerce um
papel nas decisões sobre o currículo praticado em sala de aula, o que ocorre através de
diferentes mecanismos. As expressões de indisciplina representam forças de resistência, de
contestação, de instabilidade e de esvaziamento do currículo. Diante da indisciplina a equação
de poder decisório se transforma em sala de aula, e o currículo se transforma. Em síntese, a
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indisciplina implica mudanças nas decisões sobre o currículo, bem como transformações na
situação dos sujeitos envolvidos no currículo.
As expressões de indisciplina apresentam distintos mecanismos capazes de abalar o
poder regulador do currículo. As atitudes dos alunos frente ao currículo praticado podem
assumir a forma de contestação e esvaziamento de saberes e práticas "oficiais", por exemplo,
ou mesmo através da legitimação de outros saberes e práticas. A indisciplina, por exemplo,
pode expressar a disposição dos alunos de não cooperar com as atividades curriculares
propostas. Nesse caso temos um exemplo do que sugerem Walker e Soltis (1992, p. 5),
quando afirmam a capacidade dos estudantes para exercer controle sobre o currículo em sala
de aula.
O currículo é local de entrecruzamento de saber, poder e regulação (SILVA, 2001, p.
200). É um lugar de diálogo, conflito e negociação, de conversas complicadas (PINAR,
2004). Esse local está sujeito a diversas modificações implicadas por indisciplina, que sob
diferentes formas é capaz de ameaçar não somente a noção de conhecimento válido embutida
no currículo, mas a própria noção de sujeito que se deseja como norte do processo
educacional.
O currículo não consegue sair imune da relação com os sujeitos que deseja educar. O
currículo praticado pode ser abreviado, simplificado, negado ou esvaziado. Mas também pode
ser a ampliado, atualizado e contextualizado. Sob a sombra da indisciplina é possível que os
conteúdos do currículo sejam trabalhados de um modo a não alimentar confrontos,
indisposições, polêmicas, descontentamentos, balbúrdia, insatisfação e revolta. Mas o
currículo pode também ser transformado de forma a atender melhor as expectativas e
necessidades dos alunos. Argumentamos, portanto, que a indisciplina pode refletir-se sobre a
construção do currículo praticado de um modo a produzir diferentes cenários e sujeitos afinal, somos também produzidos pelo currículo (SILVA, 2003, p. 194).
Tendo em vista a intenção deste trabalho, a seguir analisamos a dinâmica dos
processos decisórios que engendram o currículo. Mais adiante exploramos algumas questões
derivadas dos estudos sobre indisciplina escolar, e analisamos seu papel nas decisões sobre o
currículo praticado. Nas considerações finais destacamos algumas reflexões de síntese que
buscam articular currículo e indisciplina escolar.
O Conceito de Currículo
Há diversas formas pelas quais o currículo tem sido representado na literatura
educacional. Este é um conceito plural, e há uma variedade interessante de visões teóricas que
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tem disputado o significado desse conceito. Se podemos afirmar que o campo do currículo é
um "território contestado" (SILVA e MOREIRA, 2001), também é certo que ele tem sido
produtivo como objeto de teorização. Entre os sentidos mais usuais atribuídos ao termo
currículo, estão conhecimento escolar e experiência de aprendizagem (MORERA, 1997, p.
12). Assim, o currículo pode ser definido, por exemplo, como um conjunto das experiências
de aprendizagem proporcionadas aos estudantes na escola. Uma leitura propõe currículo como
"um modo pelo a cultura é representada e reproduzida no cotidiano das instituições escolares"
(PEDRA, 2000, p. 38), ou, tal como sugere Sacristán (p. 15), o currículo é uma forma
particular de se entrar em contato com a cultura. Neste texto, entretanto, exploramos a noção
de currículo como uma seleção de elementos da cultura. Pensado como seleção, o currículo
reflete escolhas exercidas por diferentes sujeitos, segundo diferentes propósitos, interesses e
poder. O currículo produz conhecimento, mas também é uma relação social. Se podemos
afirmar que o currículo é algo produzido por professores e alunos, também estes são
produzidos pelo currículo como sujeitos particulares (SILVA, 2003, p. 194-195).
O currículo engloba diferentes possibilidades situadas entre aquilo que se espera seja
ensinado (currículo oficial), o que é efetivado (currículo praticado), e o que efetivamente
ocorre como aprendizagem (currículo aprendido). Na escola observamos que o currículo
praticado, e o currículo aprendido podem estar mais ou menos distantes do que está proposto
no currículo oficial. Além disso, o desdobramento do currículo reflete diferentes
racionalidades, processos e sujeitos. O currículo é um campo de atividades onde atuam
múltiplos agentes e forças, em um processo de deliberação aberto (SACRISTÁN, 2000, p.
101-102).
O currículo, portanto, é decidido por diferentes agentes, em conflito ou
confluência, investidos de diferentes graus de poder decisório.
Considerando o foco nas transformações produzidas nas negociações de poder
engendradas pela indisciplina, neste trabalho focalizamos o desdobramento do currículo
praticado. Essa noção se refere à instância curricular provavelmente mais próxima do poder
decisório efetivo dos professores. Mas o currículo praticado não reflete apenas as decisões dos
professores sobre o que consideram deva ser trabalhado no currículo. embora seja essa
instância onde os professores conseguem exercer um grau destacado de autonomia. No
desdobramento do currículo praticado convergem determinações que até mesmo antecedem
os professores. Tal como observa Sacristán (2000, p. 102), o currículo implementado na
prática pedagógica "é o resultado de uma série de influências convergentes e sucessivas,
coerentes ou contraditórias, adquirindo, dessa forma, a característica de ser um objeto
preparado num processo complexo, que se transforma e constrói a si mesmo". Assim, o
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currículo praticado é lugar de reinvenção, e , tal como veremos mais adiante, também um
território de conflitos, resistência, indisciplina.
O currículo articula diferentes sujeitos, dentre os quais destacamos professores e
alunos. Os professores atuam de diversas formas na configuração do currículo praticado.
Podemos afirmar que eles produzem transformações segundo diversas racionalidades,
justificativas e intencionalidades, as quais refletem, por exemplo, suas identidades e
perspectivas culturais, poder e autoridade, formação e conhecimento especializado,
expectativas e pressupostos em relação aos seus alunos, experiência profissional e os próprios
contextos onde atuam. Assim, os professores desempenham um papel ativo nas decisões sobre
currículo, este entendido com algo bem mais amplo que um conjunto de conhecimentos
formais a serem ensinado em sala de aula - embora tais conhecimentos sejam uma parte
importante do currículo escolar. O currículo também é regulação, e esta também é produzida
pelas decisões dos professores.
Em sala de aula os professores não atuam sozinhos, e o desenho do currículo reflete
muito mais que apenas suas decisões. Entretanto, os professores são responsáveis e estão
diretamente vinculados à implementação do currículo. Nessa tarefa eles exercem escolhas,
diariamente, que se refletem sobre aquilo que afinal se torna o currículo praticado. Mas tais
decisões, de um modo significativo, não raramente consideraram as circunstâncias e contextos
que encontram em sala de aula, bem como os próprios alunos. Nesse contexto, o currículo se
revela aberto a resistências e diversas formas de contestação, entre as quais a indisciplina.
A indisciplina vai colocar os alunos na mesa de negociação do currículo. Os processos
decisórios implicados no desdobramento do currículo ocorrem em um contexto de forças que
não consegue evitar a participação dos alunos. Embora a própria finalidade do currículo
implique a necessidade de participação dos alunos em seus processos decisórios, seu projeto
de controle e regulação (desses sujeitos) parece incompatível com aquele desejo. Assim,
embora o papel tradicionalmente central dos professores nos processos que definem o
currículo praticado, é inevitável receber também o aluno na mesa de negociações. É nesse
sentido que argumentamos que a indisciplina, de um certo modo, representa uma força capaz
de colocar os alunos em uma inevitável e talvez inesperada posição de negociação sobre o
currículo.
Em sala de aula o currículo reflete o encontro de diferentes forças, bem como de
diferentes sujeitos. Embora os professores exerçam um importante papel decisório no
desdobramento do currículo praticado, eles não entram ou estão sozinhos em sala de aula. A
sala de aula é um espaço complexo de construção social do conhecimento. É um espaço
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contestado, tal como o currículo. Sob várias formas os alunos são capazes de influenciar as
decisões sobre o currículo. Tal como observam Walker e Soltis (1992, p. 5), "os estudantes
exercem algum controle sobre o currículo em sala de aula através do modo como cooperam
ou não". A ausência de cooperação dos alunos, que em determinados contextos vai ser
interpretada como indisciplina, pode expressar um desejo por mudanças no currículo. Mas a
resistência aos esquemas de regulação tácita ou explicitamente presentes no currículo não
somente representa uma solicitação por mudança. O exercício da resistência também se torna
currículo.
Há diversas forças que atuam sobre o currículo praticado e que são capazes de
transformá-lo. A indisciplina dos alunos, em suas distintas expressões, pode ser pensada como
uma dessas forças a serem destacadas. Tais mudanças no currículo praticado, relacionadas às
expressões de indisciplina na escola, englobam mudanças qualitativas e quantitativas. A
indisciplina é capaz de mudar ênfases e omissões no currículo. Ela pode implicar mudanças
em alguns tempos praticados no currículo, tais como, por exemplo, o tempo da explicação, da
exemplificação ou do debate. Mas há outras questões a considerar na análise da relação entre
indisciplina e currículo, o que faremos a seguir, avançando na análise de alguns mecanismos
pelos quais a indisciplina transforma as decisões sobre o currículo.
Indisciplina e Instabilidade do Currículo
A prática do currículo é uma espécie de território instável, onde diversas escolhas
precisam ser feitas continuamente. O currículo é uma prática, tal como observa Sacristán
(2000, p. 16), na qual se estabelece um diálogo entre diferentes agentes. O currículo engloba
intenções, reflete escolhas, e expressa a influência de diversas forças sociais, econômicas e
culturais. O currículo reflete diferentes escolhas, simples e complexas, muitas das quais
exercidas diretamente por professores e alunos em sala de aula. Como parte desse contexto é
preciso considerar o poder representado nas expressões de indisciplina. A indisciplina coloca
termos ao currículo. Nesse sentido é interessante considerar não somente quais sejam tais
termos, mas os processos como são elaborados, como adquirem poder. Isso solicita uma
leitura da própria noção de indisciplina.
Os estudos de indisciplina tem se ampliados particularmente nas últimas duas décadas,
talvez refletindo a intensidade com que essa questão tem sido pontuada nas escolas. A
literatura educacional tem apresentado espaço destacado a esse tema, que na atualidade
também constitui uma produtiva interrogação de pesquisa. A indisciplina se apresenta como
um dos grandes desafios colocados aos professores em sala de aula, e parece capaz de
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influenciar as decisões sobre currículo e ensino (D'ANTOLA, 1989; GARCIA, 1999;
REBELO, 2002; VASCONCELLOS, 1995; XAVIER, 2002). Embora a pergunta recorrente
entre os educadores sobre o que poderia ser feito a respeito da indisciplina nas escolas, há
uma questão distinta que nos interessa destacar, sobre o que ela é capaz de fazer ao currículo.
Em sala de aula o currículo não consegue ser indiferente à indisciplina. Ali, onde os
professores experimentam o que
Sacristán (2000) denominou de "fluxo mutante de
acontecimentos" (p. 205), a indisciplina representa uma fonte de instabilidade no currículo.
Em meio a esse fluxo ocorrem as negociações entre professores e alunos, que transformam o
currículo praticado. Mas esse é um processo nem sempre claro e explicitado. Sobre esse
processo incidem diferentes elementos, forças e circunstâncias, que modificam o jogo das
decisões sobre o currículo. As expressões de indisciplina incidem sobre esse fluxo decisório, e
o transformam, agindo de um modo a influenciar o currículo, seja ao modificar atividades e
tarefas, os conteúdos ou as experiências sociais de aprendizagem, ou simplesmente a
disponibilidade para aprender. A indisciplina, portanto, implica não somente disposições em
relação a tarefas e conteúdos. Ela também pode ressignificar experiências de aprendizagem,
na forma, por exemplo, de resistência e esvaziamento, a ponto de ser considerada pelos
professores como responsável pela não-aprendizagem (REBELO, 2002, p. 39). A indisciplina,
assim, assume o sentido de uma força de instabilidade sobre o currículo - enquanto um
conjunto desejado e relativamente estável de experiências de aprendizagem.
Mas a indisciplina não é apenas força de instabilidade. Ela pode ser ruptura. O que se
tem denominado de indisciplina engloba também conflitos do relacionamento entre alunos e
currículo. Aqui atribuímos um sentido pedagógico à indisciplina, ou seja, a situamos no
contextos das relações entre professores, alunos e conhecimento. A indisciplina seria uma
forma de ruptura no contrato social da aprendizagem. Pensada desse modo a indisciplina seria
uma força de instabilidade no campo das relações entre professores, alunos e currículo. A
indisciplina também pode ser pensada como sintoma de uma crise instalada nessa relação.
Nesse caso, ela representa um dilema reflexivo que nos leva para dentro de uma revisão da
capacidade do currículo fornecer uma experiência de conhecimento significativo e
emancipatório. Vemos, assim, que a indisciplina pode estar intrincada no currículo. A
indisciplina é capaz de integrar a própria experiência do currículo. Ela se torna currículo.
A indisciplina também pode ser pensada como expressão de descontentamento. Em
uma sociedade e educação mais democráticas, os alunos encontram maior liberdade para
expressar mais abertamente sua apreciação pela experiência escolar, ou seu descontentamento
com a falta de sentido que muitas vezes encontram naquilo que deveriam estudar segundo os
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critérios de conhecimento oficial. Nesse contexto de abertura, o currículo parece mais
suscetível à contestação e enfrentamentos da indisciplina dos alunos, e talvez mais suscetível
a mudanças. Aqui, o currículo deseja apreciação como forma de abertura a mudanças.
O currículo, enquanto projeto de controle e regulação, mostra-se na verdade frágil ao
conversar com a indisciplina. Alguns estudos sobre indisciplina escolar mostram o quanto os
professores apresentam sensibilidade aos contextos e expressões de indisciplina dos alunos
(OLIVEIRA, 2004; REBELO, 2002; ESTRELA, 1994). Em um estudo bastante amplo sobre
as diversas forças e agentes que atuam na estabilidade e mudança do currículo, Cuban (1992)
sugere que as visões e ações dos alunos também são capazes de mudar o currículo escolar. A
influência dos estudantes sobre o currículo praticado pelos professores, engloba, entre outros
elementos, a forma como aqueles participam nas atividades das aulas e o modo como podem
alterar o que ali ocorre. Essa participação pode, entretanto, ser de tal forma a dissuadir os
professores a ensinar aquilo que estava originalmente planejado como currículo, implicando
alterações menores ou maiores, e até mesmo um esvaziamento da importância dos conteúdos
oficiais. Assim, mesmo que os conteúdos previstos sejam apresentados, eles já não fazem
sentido, estão desconectados, distanciados do campo dos interesses e da aprendizagem dos
alunos - se tornaram esvaziados.
Há uma outra forma pela qual o currículo praticado pode ser modificado. Isso pode
ocorrer quando os professores, em sala de aula, decidem recuar em suas intenções de abordar
determinado conteúdo tendo em vista seus desdobramentos (ENNIS, 1996). Os professores
fariam isso de modo a evitar a abordagem de algum conteúdo ofensivo ou controvertido. Em
uma investigação etnográfica que realizou, envolvendo professores do ensino secundário,
aquele autor observou que os professores modificaram o currículo originalmente planejado
para evitar confrontações com os alunos. Os professores preferem evitar ou não lecionar
conteúdos que acreditam não ser do interesse dos alunos, que os estudantes se recusam a
aprender ou a participar da aprendizagem, ou que geram discussões para as quais os
professores não se sentem preparados (ENNIS, 1996). Assim, antevendo situações de
confronto em sala de aula, os professores alteram suas escolhas sobre currículo, evitando
trabalhar com conteúdos que poderiam parecer ofensivos ou gerar controvérsias (ENNIS,
1996, p. 146).
Em síntese, a indisciplina é capaz de trazer diferentes implicações para as aulas
planejadas pelos professores, e portanto para o currículo, também devido as suas próprias
atitudes. Uma pesquisa realizada por Oliveira (2004), sobre a atitude dos professores diante da
indisciplina em sala de aula, sugere que os professores vêem na indisciplina um elemento
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capaz de alterar o desenvolvimento da aula, capaz de impedir que sigam lecionando o que
haviam planejado fazer, ou ainda capaz de inviabilizar o trabalho pedagógico que deveria ser
realizado.
Neste ponto há uma consideração necessária a fazer. Embora as pesquisas indiquem a
suscetibilidade do currículo a questões de indisciplina, também revelam que as decisões dos
professores têm e mente evitar certas formas de participação dos alunos nem sempre
ameaçadoras à integridade do currículo que está sendo praticado, mas que podem colocar em
cheque o sentido do que está sendo ensinando, e a autoridade com que falam tais professores.
Assim, por exemplo, os professores, diante da ingovernabilidade da classe, podem excluir do
currículo tarefas onde sintam mais insegurança, pois exigem mais atividade e nas quais é mais
difícil manter a ordem (SACRISTÁN, 2000, p. 260).
As pesquisas sobre indisciplina destacadas acima sugerem algo não somente sobre as
ações dos alunos, mas colocam os professores no centro da questão das transformações
forçadas no currículo. Observa-se que as mudanças no currículo não somente refletem algo
que supostamente estaria faltando aos alunos, na visão dos professores - e que seria
manifestado como indisciplina. Tais mudanças também refletiriam algo que estaria faltando
aos professores, e ao próprio currículo, na visão dos alunos. A indisciplina, assim, seria um
modo de avaliar os professores e de ler o currículo.
Considerações Finais
O currículo articula conhecimento, e corporifica relações sociais (SILVA, 2001, p.
201). Ele é um local de entrecruzamentos, onde diversas decisões precisam ser feitas. Tais
decisões são negociadas sob diferentes formas e forças. O currículo, tal como analisa Pinar
(2004, p. 186-188), é uma "conversa complicada", através da qual nem sempre os alunos
conseguem explorar a si mesmos e a sociedade onde vivem. O currículo é altamente abstrato e
não raramente está divorciado do mundo ao redor. Nessa conversa complicada são ouvidas
diversas vozes. E outras tantas foram tornadas ausentes. A indisciplina escolar representa uma
voz que disputa espaço nessa conversa complicada. Mas suas mensagens são diversas, nem
sempre conexas ou desejadas.
Na escola, a indisciplina cumpre diferentes papéis. De um lado a indisciplina parece
representar uma ameaça de esvaziamento do currículo.
Esse esvaziamento, enquanto o
conjunto daquilo que se ensina em sala de aula, se expressa sob diversos queixas dos
professores em relação à indisciplina dos alunos. Essa indisciplina se expressa, por exemplo,
quando os alunos estão desinteressados, sem material para acompanhar as aulas, quando não
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participam ou desenvolvem outras atividades em sala de aula (REBELO, 2002, p. 67). Mas é
preciso refletir se esse esvaziamento não decorre também da própria concepção e prática do
currículo nas escolas. É preciso, por exemplo, discutir a questão da autoria do currículo. de
quem é o currículo praticado nas escolas? Assim, o esvaziamento sentido pelos professores
não deveria remeter apenas a uma discussão sobre os conteúdos do currículo, mas colocar em
questão a extensão da autoridade (autoria) docente, tradicionalmente responsável pelas
decisões do currículo praticado. A indisciplina, nesse cenário, talvez promova uma necessária
crise reflexiva sobre quem afinal está à frente das decisões sobre o currículo.
O papel de agente reflexivo da indisciplina soa como produtivo. Mas ele não está
dissociado de outros possíveis papéis. A indisciplina dos alunos também pode expressar uma
recusa a cumprir certas expectativas que recaem sobre eles, vistos muitas vezes como sujeitos
passivos de aprendizagem, incondicionalmente dispostos a internalizar valores e atitudes, e a
desenvolver habilidades que lhes dará passagem para posições sociais similares a dos seus
pais (CUBAN, 1992, p. 236). Mas porque a recusa? Há certamente diferentes respostas para
essa pergunta. Neste trabalho exploramos algumas respostas possíveis.
Nas escolas o
currículo está em sintonia com as expectativas e necessidades dos alunos? Se há dúvidas entre
os educadores, e se desejam outras perspectivas, provavelmente precisam dialogar com outros
atores sociais, a começar pelos próprios alunos, que afinal, precisam encontrar na experiência
do currículo um conjunto de oportunidades para praticar escolhas.
A indisciplina, como força de contestação e resistência, surge como um agente capaz
de transformar uma conversa já complicada que constitui o currículo. Entretanto, podemos
argumentar, a indisciplina pode ser pensada como uma possível solicitação de que o currículo
precisa ser uma conversa aberta, reflexiva, atenta às vozes e autoria dos diversos sujeitos
envolvidos em sua prática. Afinal, enquanto algo pensado como uma conversa, ainda que
complicada, o currículo precisa ser uma conversa em andamento (PINAR, 2004, p. 188).
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