Análise da adequação de rótulos de “ração humana”

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Análise da adequação de rótulos de “ração humana” à
legislação vigente
Danielle Cézar da Silva1
Kelia Xavier Resende2
RESUMO: A “ração humana” é composta por cereais triturados adicionados de outros ingredientes e
entrou no mercado brasileiro tendo como principais propósitos o emagrecimento e a melhora da função
intestinal. Porém, estes produtos também têm sido comercializados como alimentos funcionais, embora
não haja comprovação científica de sua eficácia como suplemento nutricional e nem das propriedades
funcionais alegadas. Este trabalho teve por objetivo investigar a adequação dos rótulos de produtos
comercializados no Brasil como “Ração humana” à regulamentação normativa sanitária. Considerando a
legislação vigente, todos os produtos alimentícios analisados apresentaram irregularidades quanto às
informações constantes nos rótulos e propagandas. Dentre essas irregularidades, foi constatada a falta de
informações ou informações inadequadas quanto ao benefício proporcionado pelo consumo do produto,
provavelmente devido ao marketing de venda praticado pelos fabricantes para conquistar os diversos
consumidores. Diante disso, percebe-se a necessidade de uma revisão da legislação vigente para torná-la
mais clara e efetiva, uma maior fiscalização pelos órgãos responsáveis e pelo consumidor que, antes de
tudo, deve ter acesso a uma educação nutricional mais eficiente.
Palavras-chaves: “Ração humana”, fibra alimentar, rótulo, rotulagem, legislação.
ABSTRAT: A "Ração humana" is composed of crushed grains and other ingredients added entered the
Brazilian market and its main purpose the weight loss and improvement in bowel function. However,
these products have been marketed as functional foods, although there is no scientific proof of its
effectiveness as a nutritional supplement and functional properties or alleged. This study aimed to
investigate the appropriateness of the labels of products sold in Brazil as "human race " normative
regulation health . Considering the current legislation, all food products analyzed showed irregularities on
the information contained on labels and advertisements. Among these irregularities, we noticed the lack
of information or inadequate information regarding the benefits provided by consuming the product,
probably due to the sale of marketing practiced by manufacturers to achieve the various consumers.
Given this, we see the need for a review of existing legislation to make it clearer and more effective, more
oversight by the responsible agencies and the consumer who, above all, must have access to a nutrition
education more efficient.
Keywords: “Ração humana”, dietary fiber, label, labeling, legislation.
1
Nutricionista formada pela UnB. Especialização Lato Sensu em Vigilância Sanitária pela
Universidade Católica de Goiás (em andamento). E-mail: [email protected].
2
Farmacêutica-bioquímica (FCFar – Unesp). Docente do curso de Farmácia da Universidade Católica de
Brasília. E-mail: [email protected].
INTRODUÇÃO
A multimistura foi elaborada inicialmente com o propósito de combater a
carência nutricional da população brasileira, atuando, principalmente, no combate à
desnutrição infantil. Este produto alimentício é composto por cereais que, devido sua
riqueza em fibras e minerais, enriquece a alimentação habitual favorecendo o
balanceamento da dieta sem a alteração dos hábitos alimentares, além de ser um
alimento acessível a toda população (KAMINSKI, 2007; SACCHET et al, 2006).
A “ração humana” foi elaborada baseando-se nesse tipo de multimistura; é
composta por cereais triturados adicionados de outros ingredientes, tais como açúcar
mascavo, gelatina, levedo de cerveja, e entrou no mercado tendo como principais
propósitos o emagrecimento e a melhora da função intestinal. Porém, a utilização dessas
multimisturas ainda é alvo de polêmica, pois não há comprovação científica de sua
eficácia como suplemento nutricional e nem das propriedades funcionais alegadas
(KAMINSKI, 2006; KAMINSKI, 2007; DUARTE & CARVALHO, 2010).
Os alimentos funcionais são alvo de propagandas pelos fabricantes de produtos
alimentícios devido às suas propriedades de promoção da saúde. No entanto, em muitos
casos, as alegações normalmente são exageradas e não oferecem informações
fidedignas, indicando atributos ao alimento com o intuito de satisfazer o consumidor. As
propagandas de produtos direcionados à melhoria da saúde associada à mudança de
hábitos alimentares devem encorajar, sempre que possível, a prática de atividade física e
a alimentação balanceada, inibindo assim, o consumo em excesso do produto ou mesmo
a substituição de refeições. A omissão dessas informações no rótulo muitas vezes é
proposital e tem a finalidade de iludir o consumidor, indicando maneiras fáceis e
milagrosas de redução de peso, melhora de parâmetros bioquímicos, como colesterol,
glicemia sérica e triglicerídeos, bem como de se ter uma vida saudável, levando o
consumidor a falsa ideia deque que está comprando um remédio (DUARTE &
CARVALHO, 2010; GUIMARÃES, 2008).
Assim, um rótulo inadequado de um produto alimentício, ao invés de favorecer
uma alimentação saudável, pode provocar problemas de saúde com o consumo
exagerado do produto por alguns consumidores e ainda sem a correta contextualização
deste consumo com a sua alimentação ao longo do dia (KAMINSKI, 2007; ISHIMOTO
& NACIF, 2001; COUTINHO & RECINE, 2007). De acordo com o estudo realizado
por Coutinho (2004), muitos dos consumidores entrevistados acreditam nas alegações
terapêuticas informadas pelo fabricante do produto, tais como, a prevenção de doenças
(CAMARA, 2007). Segundo o Código de proteção e defesa do consumidor (Lei
8.078/90), é por meio do rótulo que o consumidor pode identificar a composição, as
características nutricionais e os possíveis riscos que o alimento pode oferecer. Diante
disso, percebe-se a importância de se ter informações nutricionais fidedignas para que a
segurança alimentar e, consequentemente, a saúde do consumidor sejam preservadas
(ISHIMOTO & NACIF, 2001; YOSHIZAWA et al., 2003).
Nesse contexto, o Estado é responsável por adotar medidas que garantam a
segurança alimentar do consumidor. Para tanto, no Brasil, foram criadas inúmeras
normas a fim de assegurar aos consumidores que os produtos vendidos no País estejam
com informações corretas e detalhadas.
O Decreto-Lei nº 986, de 1969, foi a primeira norma referente à rotulagem de
alimentos no âmbito do Ministério da Saúde. Instituindo as normas básicas sobre
alimentos, este Decreto determina que: “não devem ser descritos no rótulo vocábulos,
sinais, denominações, emblemas, ilustrações ou qualquer representação gráfica que
possam tornar a informação falsa, insuficiente ou confusa, induzindo o consumidor a
engano. Da mesma forma, o rótulo não pode indicar que o alimento possui propriedades
medicinais ou terapêuticas, aconselhando seu consumo para evitar ou curar doenças”.
Portanto, a presença de falsas informações e/ou o realce de características intrínsecas ao
produto como atributo exclusivo de uma determinada marca tornam-se, assim, infração
à Lei (BRASIL, 1969).
Após a publicação do Decreto-Lei nº 986, de 1969, foram criados diversos
regulamentos a fim de modernizar a legislação, tornando-a mais efetiva. Tais como a
RDC nº 263/05 que regulamenta os produtos de cereais, amidos, farinhas e farelos; a
Portaria SVS/MS nº 27/98 que regulamenta a informação nutricional complementar; a
Portaria SVS/MS nº 29/98 que regulamenta os alimentos para fins especiais; a RDC nº
27/2010 que dispõe sobre as categorias de alimentos e embalagens isentos e com
obrigatoriedade de registro sanitário; dentre outros regulamentos.
A normatização associada à criação de programas e à tomada de ações sanitárias
efetivas, em conjunto com a cooperação do cidadão, promove a segurança alimentar.
Para isso, políticas de educação nutricional são necessárias para que o consumidor
esteja ciente daquilo que está comprando, sendo menos susceptível à falsas informações
veiculadas pelos fabricantes (ISHIMOTO & NACIF, 2001). Muitos consumidores
alegam ter dificuldade de entender as informações trazidas nos rótulos e por isso são
levados pelas ilustrações, pelo preço e pela marca do produto, colocando em risco sua
saúde (CÂMARA, 2008).
Nesse contexto, este trabalho teve por objetivo investigar a adequação dos
rótulos de produtos comercializados no Brasil como “Ração humana” à regulamentação
normativa sanitária, pois tais produtos são comercializados com alegações de
propriedades funcionais e/ou promotoras da saúde, as quais devem estar previstas na
legislação ou serem comprovadas junto à ANVISA.
METODOLOGIA
Foram analisados 24 rótulos de 12 marcas de ração humana, coletados
aleatoriamente em supermercados e lojas de produtos especializados de Brasília - DF,
no período de julho de 2010 a janeiro de 2011. Verificou-se a adequação das
informações contidas nos rótulos e nas propagandas dos produtos com a legislação
vigente, bem como relacionou-se tais informações com os dados disponíveis na
literatura científica publicada.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A ração humana é uma mistura de cereais acrescida de um ou mais ingredientes,
tais como cacau em pó, gelatina, levedo de cerveja, entre outros. A comercialização
desse tipo de produto é regulamentada pela RDC nº 263, de 2005, que aprova o
regulamento técnico de cereais, amidos, farinhas e farelos (BRASIL, 2005). De acordo
com a referida Resolução, esse tipo de mistura deve ser designada de “mistura à base de
farelos”, pois é uma mistura de farelos adicionada de outros ingredientes, e essa
informação deve constar no rótulo do produto.
Nenhuma das amostras analisadas traz em seu rótulo a designação indicada pela
legislação, apresentando somente o nome “Ração Humana” como denominação de
venda. Apenas dois dos rótulos avaliados (8,3%) exibiam a expressão “mix de cereais”
que, apesar de não ser aquela indicada na legislação, permite ao consumidor ter uma
ideia das características reais do produto.
De acordo com o disposto na Resolução da ANVISA RDC nº 259, de 2002, “a
denominação de venda do alimento é o nome específico, e não genérico, que indica a
verdadeira natureza e as características do alimento”, portanto, a designação “ração
humana” não está adequada à legislação vigente. Ademais, este nome pode gerar a falsa
percepção de que todos os nutrientes necessários ao indivíduo são fornecidos em um só
produto, assim como acontece na comida preparada para os animais (BRASIL, 2002;
DUARTE & CARVALHO, 2010).
A RDC 263, de 2005, determina que misturas à base de farelos, devem conter,
obrigatoriamente, a seguinte advertência, em destaque e em negrito: “O Ministério da
Saúde adverte: não existem evidências científicas de que este produto previna, trate ou
cure doenças”; e determina ainda que é vedada a indicação do produto para suprir
deficiências nutricionais (BRASIL, 2005).
Em apenas uma das marcas analisadas foi encontrada essa advertência, no
entanto, nesse rótulo são exibidas alegações de indicações terapêuticas para o alimento,
indicando seu consumo por pessoas com grande desgaste físico e mental. Observou-se
ainda que 100% das amostras analisadas continham algum tipo de indicação do produto
para suprir deficiências nutricionais, contrariando a legislação vigente.
De acordo com RDC nº 27, de 2010, os alimentos que, em seu rótulo e/ou
propaganda, apresentarem alegações de propriedades funcionais já aprovadas pela
ANVISA, ou seja, propriedades elencadas na resolução RDC nº 18 de 1999, devem
obrigatoriamente ser registrados na categoria de “Alimentos com Alegações de
Propriedade Funcional e ou de Saúde”, e ainda, tais propriedades devem ser
comprovadas junto às autoridades competentes. Considerando que os produtos
designados “mistura à base de farelos” encontram-se no rol de alimentos isentos da
obrigatoriedade de registro, conforme RDC 27/2010, e que todos os produtos analisados
não possuem registro, não poderiam fazer nenhuma alegação de propriedades funcionais
em seu rótulo e propaganda (DUARTE & CARVALHO, 2010; FERRAZ, 2001).
A marca que destacou a advertência do Ministério da Saúde, também utilizou
ilustrações e/ou expressões que induzem o consumidor ao engano, o que é vedado pela
ANVISA (RDC 259/02). Em um de seus produtos foi colocada a foto de um homem
com músculos definidos que simula malhar o bíceps, a este produto foi acrescentado a
palavra “power” junto à designação “ração humana”, o que indica ser um alimento
recomendado para quem pratica atividade física, pois contém alimentos proteicos e
energéticos, como albumina, gelatina e colágeno hidrolisados, catuaba, ginseng, açaí.
Outra marca analisada, que também indica o produto para praticantes de atividade
física, informa ainda que o produto fortalece e mantém as fibras musculares, aumenta a
resistência, evitando lesões e perdas de massa musculares durante a prática de
exercícios físicos. Além dessas, mais outras duas marcas fizeram indicação de seu
produto para praticantes de atividade física também estando, portanto, em desacordo
com a legislação vigente.
Ressalta-se que os alimentos para praticantes de atividade física devem obedecer
à Portaria SVS/MS 222/98, que estabelece o teor de proteína de alto valor biológico que
deve estar presente no alimento, bem como a concentração de carboidratos e proteínas.
É importante considerar que as proteínas de origem vegetal são de baixo valor biológico
e tem digestibilidade menor se comparadas às de origem animal (SACCHET et al.,
2006). Diante disso, percebe-se que há um apelo inadequado dos fabricantes ao
investirem no marketing do produto, a fim de conquistar os diversos grupos de
consumidores, uma vez que a indústria está ciente de que a maioria destes acredita nas
informações contidas nos rótulos. Segundo estudo realizado por Coutinho (2004), 43%
dos consumidores brasileiros, ao comprarem alimentos, buscam nas embalagens
informações sobre benefícios para a saúde, por acreditarem nessas informações
(CAMARA, 2007).
Em todos os produtos analisados é destacada a riqueza em fibras alimentares
que, pela sua composição e sua alegação de propriedade de saúde, é considerada um
alimento com propriedades funcionais (Resolução RDC 18/99). Diversos estudos
apontam vários benefícios associados ao consumo adequado de fibras, insolúveis e
solúveis, como a redução do colesterol e dos triglicerídeos; a melhora do trânsito
intestinal, se associado ao maior consumo de água; a maior saciedade após consumo,
que pode levar à redução do peso; a prevenção da constipação e do diabetes; o controle
da pressão arterial, entre outros benefícios. No entanto, é importante salientar que para
alcance desses objetivos, o consumo de fibras deve estar associado a uma alimentação
saudável e à prática de atividade física (PACHECO, 2006; CUPPARI, 2005;
KAMINSKI, 2007).
De acordo com a Portaria nº 27/98 da ANVISA, para um alimento ser
considerado com alto teor de fibras alimentares, estas devem constituir no mínimo 6g
em 100g de produto, com isso foi constatado que, todas as amostras estudadas podem
ser consideradas de alto teor de fibras alimentares.
A recomendação de ingestão diária de fibra alimentar, em vários países, é de 20g
a 30g/dia e o órgão responsável pelo controle sanitário americano, Food and Drug
Administration – FDA, recomenda o consumo de 25 g de fibra para uma dieta de 2000
kcal/dia para indivíduos adultos. Já no Brasil, de acordo com a Sociedade de
Alimentação e Nutrição (SBAN), é recomendada a ingestão diária de 20g de fibra
alimentar para adultos jovens com dieta de 2000 kcal/dia (CUPPARI, 2005).
De acordo com a informação nutricional dos produtos analisados, a porção
recomendada, consumida 2 vezes ao dia, não ultrapassaria a recomendação máxima de
ingestão de fibras para uma pessoa com dieta de 2000 kcal. Porém, em duas das marcas
analisadas, se consumidas duas porções diárias, a quantidade de fibra atingiria a
recomendação máxima, o que, associado ao teor de fibras contido nos outros alimentos
consumidos ao longo do dia, resultaria em consumo de teor inadequado de fibras
alimentares. Mesmo para as marcas cuja recomendação de consumo não excede a
máxima ingestão diária de fibras, é relevante considerar que, se computadas as fibras
presentes nos demais alimentos que serão consumidos pelo indivíduo ao longo do dia,
existe grande probabilidade dessa ingestão tornar-se muito elevada. É importante que o
consumo de fibras não seja muito elevado, pois pode diminuir a disponibilidade de
minerais, tais como o cálcio, o ferro e o zinco, devido aos seus fatores antinutricionais, e
ainda pode gerar flatulência, por isso a necessidade de uma alimentação balanceada
(DUARTE & CARVALHO, 2010; KAMINSKI, 2007; SANT’ANA et al., 2000).
Esses fatores antinutricionais, como o ácido fítico, compostos fenólicos, oxalato,
têm presença considerável nos cereais em geral, os quais, apesar dos efeitos benéficos,
podem interferir na biodisponibilidade dos nutrientes contidos no alimento
(SANT’ANA et al., 2000; BITTENCOURT, 1998). Portanto, apesar de os farelos
conterem diversos nutrientes, a biodisponibilidade dos mesmos não é garantida, sendo
possível que boa parte dos minerais e vitaminas presentes não sejam completamente
absorvidos pelo organismo (KAMINSKI et al., 2006; SACCHET et al., 2006;
CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS, 2002).
De acordo com as informações apresentadas nos rótulos analisados, 58,3% das
marcas alegaram que o produto é rico em vitaminas e minerais, sendo que nem todas as
marcas (41,6%) apresentaram a informação nutricional complementar, obrigatório
quando são indicadas propriedades nutricionais particulares (BRASIL, 1998a).
Além disso, fabricantes de duas marcas (16,6%) analisadas ressaltaram as
propriedades específicas de cada ingrediente adicionado à mistura, no entanto, deve-se
considerar a biodisponibilidade dos nutrientes, o equilíbrio entre eles e a quantidade a
ser consumida daqueles ingredientes para que forneça os benefícios constatados.
Associado a isso, deve-se avaliar todo o contexto alimentar e estilo de vida da pessoa
que irá consumir aquele ingrediente, pois o estado fisiológico do indivíduo interfere
diretamente na absorção dos nutrientes. Portanto, apesar das propriedades nutricionais
de cada componente, não se pode garantir se os nutrientes presentes na quantidade
consumida serão totalmente disponíveis após a ingestão. (CONSELHO FEDERAL DE
NUTRICIONISTAS, 2002; DEL-VECHIO, et al., 2005; BITTENCOURT, 1998). Devese considerar também que vários dos cereais que compõem esse tipo de produto são
ricos em ácidos graxos insaturados, considerados benéficos à saúde, entretanto
apresentam alta susceptibilidade à rancificação devido à lipólise, que aumenta a acidez e
oxidação dos ácidos graxos e, consequentemente, altera as propriedades funcionais do
alimento (KAMINSKI, 2008; KAMINSKI, et al., 2006). Destaca-se que a ANVISA
(RDC nº 259/02) proíbe que sejam ressaltadas qualidades ou supostas propriedades
terapêuticas que o ingrediente possa ter consumindo quantidade diferente daquela que
se encontra no alimento ou quando consumidos sob forma farmacêutica.
Outro fator importante a ser considerado é a condição higiênico-sanitária do
alimento, pois os principais componentes da mistura, os cereais, são muito susceptíveis
à contaminação. A aflatoxina, por enquanto, é o único indicativo da qualidade da
matéria-prima e/ou do armazenamento desse tipo de produto, porém ainda estão sendo
realizados estudos para identificar outros indicativos da condição sanitária do alimento.
Essa micotoxina pode provocar doenças como o câncer hepático. Por isso, não é muito
indicado o consumo desse tipo de alimento para pessoas com imunidade baixa
(LOMBARDI, 2006; KAMINSKI, et al., 2006).
E em 6 produtos (50%) analisados não havia a informação de como conservar o
alimento, e apenas 1 (8,3%) aconselhou conservar na geladeira após aberta a
embalagem, procedimento que pode impedir a contaminação pela aflatoxina e reduzir o
teor de oxidação. O processamento e o armazenamento dos alimentos podem alterar
significativamente o teor e qualidade dos ácidos graxos, das vitaminas e minerais, pois
esses compostos são sensíveis à diversos fatores, como o calor, umidade, luz, e, dessa
forma, é importante que o fabricante indique a forma de conservação, evitando maiores
perdas desses nutrientes (CORREIA, FARAONI, PINHEIRO-SANT’ANA, 2008; DELVECHIO, et al., 2005).
Estudos mostram que a ingestão adequada de fibras, associada a uma
alimentação saudável e à prática de atividade física, diminui o risco de obesidade e
estimula a perda de peso. No entanto, a população brasileira reduziu a ingestão de fibras
alimentares ao longo do tempo, devidos às mudanças no estilo de vida e nos hábitos da
população, por isso a importância do estímulo ao consumo de fibras alimentares
(PHILIPPI, 2008).
A maioria das marcas analisadas, 66,6%, alega em seus rótulos que o consumo
da “ração humana” auxilia na manutenção e na perda de peso, no entanto, não menciona
que isso pode acontecer se for associada a uma dieta balanceada e à prática de atividade
física. E, para reforçar, em um dos produtos foi colocada, no rótulo, a foto de uma
mulher magra realizando a medição de sua barriga com o uso de uma fita métrica,
reforçando a mensagem de que o consumo do alimento promove o emagrecimento, e
este é um dos maiores motivos para a adesão ao consumo desse produto, principalmente
pelas mulheres. Além disso, 75% dessas marcas sugeriram a substituição de refeições,
tais como o café da manhã e o jantar, para favorecer a perda e peso. No entanto, esses
tipos de alegações relacionadas ao emagrecimento ainda não foram aprovadas pela
ANVISA, conforme resolução RDC nº 18/99, portanto não são permitidas.
Alimentos que se destinam a substituir refeições, com a finalidade de auxiliar a
perda de peso, devem cumprir com as disposições da Portaria SVS/MS n. 30/98. De
acordo com essa Portaria, o painel principal do rótulo desses tipos de alimentos deve
conter a orientação em destaque e em negrito "Consumir somente sob supervisão de
médico e/ou de nutricionista", quando se tratar de substituição total das refeições. Deve
conter também no rótulo a orientação: "Ao consumir este alimento aumentar a ingestão
diária de água", dentre outras orientações. Tal Portaria proíbe a “menção ao eventual
ritmo ou quantidade de redução ou ganho de peso resultante do consumo dos Alimentos
para Controle de Peso, nem a qualquer diminuição da sensação de fome ou aumento da
sensação de saciedade”, e uma das marcas analisadas informa em seu rótulo uma
margem percentual de perda de peso em um determinado período de consumo do
alimento, e 66,6% das marcas informam que há um aumento da sensação de saciedade
com o consumo do produto devido à riqueza em fibras.
Outro fator a ser considerado é que alguns produtos possuem um ou mais
ingredientes calóricos compondo a mistura, tais como açúcar mascavo, cacau em pó,
guaraná em pó, e se ingerida em grande quantidade ou até mesmo a quantidade
recomendada associada a uma dieta desbalanceada, pode proporcionar o aumento de
peso e não o emagrecimento, como é tão divulgado pelos fabricantes do produto.
A indicação da “ração humana” aos diabéticos, em razão da propriedade das
fibras de controlar a absorção de glicose, é feita por 50% das marcas analisadas. Vários
estudos apontam para essa função das fibras alimentares, que reduzem os riscos de
incidência de diabetes, ou mesmo auxiliam a dieta alimentar dos diabéticos (CUPPARI,
2005). No entanto, segundo Kaminski (2007), essa propriedade não justifica o uso pelos
diabéticos, pois esse alimento apresenta alto teor de carboidrato devido à sua
composição à base de farelos. E ainda, de acordo também com Kaminski et al (2008),
foi evidenciado que o consumo desse tipo de mistura aumentou a glicemia, pela
presença de nutrientes que favorecem a absorção de carboidratos no intestino. Dessa
forma, a literatura científica mostra-se conflitante quanto à possibilidade de indicação
desse tipo de produto para diabéticos, refletindo a necessidade de realização de mais
estudos sobre o tema a fim de garantir a segurança dessa indicação.
Apesar dessa divergência, alguns fabricantes da “ração humana” colocaram no
mercado variações light e diet do produto, alegando que não há adição de açúcares. De
acordo com a ANVISA, os alimentos para dietas de ingestão controlada de açúcares,
não podem ser adicionados de açúcar, mas é permitida a presença dos açúcares naturais
dos ingredientes utilizados. O termo permitido para esse alimento é “sem adição de
açúcares”, sendo possível a utilização da expressão “diet”, e deve-se obedecer aos
critérios estabelecidos pela Portaria nº 27/98, que regulamenta a informação nutricional
complementar (INC) e pela Portaria nº 29/98, que regulamenta os alimentos para fins
especiais. Essas Portarias regulamentam também os alimentos light, ou seja, aqueles
que têm os mesmos componentes do produto normal, mas em menor concentração
(PACHECO, 2006). De acordo com a legislação, dentre outras obrigatoriedades, deve
ser explicitado o percentual de diferença do nutriente/valor energético quanto ao
produto normal, e essa diferença tem que ser de 25% no mínimo.
Foram analisados 6 produtos, dos quais 4 eram light e 2, diet. Baseado na
legislação, Portarias nº 27 e 29 de 1998, foi constatado que os produtos diet, apesar de
conterem a justificativa de uso de tal denominação, “sem adição de açúcares”, não
apresentavam a advertência para diabéticos (contêm mono e dissacarídeos) e nem
constava a orientação de “consumir o alimento sob orientação de médico ou
nutricionista”. Em um dos rótulos dos produtos light não havia a justificativa para o uso
dessa denominação, e em outro rótulo a justificativa dada foi “não contém glúten”, o
que não justifica ser um produto light. Além disso, essa informação é obrigatória, de
acordo com a Lei nº 10674/2003. Nos outros dois rótulos dos produtos light analisados,
a justificativa dada era “sem adição de açúcares”, e não havia redução percentual de
qualquer componente em relação ao produto normal. Foi constatado também que,
apenas uma marca fazia diferença dos rótulos e embalagens entre os produtos light, diet
e normais.
Durante a análise dos rótulos das “rações humanas”, foi constatado que a
informação nutricional dos produtos de uma mesma marca mantém-se a mesma,
independentemente dos ingredientes que compõem a mistura, se é diet, light, “power”,
ou se são diferenciadas por sabores. Segundo Ferraz (2001), as análises físico-químicas
dos produtos demandam um alto custo para as empresas, e assim poucas têm a
capacidade de fazer tais análises de acordo com exigência da legislação, e essa pode ser
a causa da duvidosa informação nutricional dos produtos mencionados. Esse fato é
ainda mais agravado quando se trata dos alimentos para fins especiais.
Em um dos produtos analisados não havia a informação da porção em gramas,
nem em medida caseira, e não havia a tabela nutricional. Os demais produtos estavam
de acordo com o estabelecido pela RDC 259/02. Em todos os produtos havia as
instruções de preparo do alimento.
Apesar de existir regulamentação normativa relativamente complexa no Brasil, a
isenção de obrigatoriedade de registro de diversos grupos de alimentos possibilita um
maior número de produtos com irregularidades quanto à legislação no mercado. De
acordo com pesquisa realizada no site da ANVISA, até a data de realização deste
estudo, não foi encontrado nenhum caso de algum produto “ração humana” ter sido
retirado do mercado, o que, tendo em vista os resultados obtidos neste estudo, pode
indicar certa deficiência na fiscalização pelos órgãos competentes, pois, considerando
todas as inadequações observadas, vários produtos já deveriam ter sido retirados do
mercado ou, pelo menos, advertidos de que deveriam adequar sua rotulagem ao
estabelecido na legislação. Já que cabe ao Estado garantir a segurança alimentar da
população, é importante não só regulamentar o mercado, mas também controlar a
eficácia dessa legislação e, para isso, é necessário adotar medidas quanto à melhoria da
fiscalização e acompanhamento do mercado, buscar modernizar a regulamentação,
acompanhando a evolução dinâmica da sociedade e, sobretudo, buscar a conscientização
dos cidadãos (ISHIMOTO & NACIF, 2001).
CONCLUSÃO
Em relação à legislação vigente, todos os produtos alimentícios analisados,
designados “Ração humana”, apresentaram irregularidades quanto às informações
apresentadas nos rótulos e propagandas. Dentre essas irregularidades, foi constatada a
falta de informações ou informações inadequadas ou mesmo enganosas nos rótulos, o
que pode indicar falta de conhecimento dos fabricantes com relação à regulamentação
de seu setor e, na pior das hipóteses, falta de compromisso ético dos fabricantes com seu
consumidor, pois muitas vezes lançam mão da propaganda para induzir o consumidor a
adquirir o produto, alegando propriedades funcionais nem sempre comprovadas
cientificamente.
Foi verificado que a “ração humana” realmente é um alimento fonte de fibras, no
entanto as propriedades funcionais alegadas devido aos ingredientes que compõem a
mistura ainda carecem de comprovação científica, pois a forma de processamento e
armazenamento podem alterar os nutrientes, assim como a interação entre eles. Deve-se
avaliar também o estado fisiológico do consumidor e o contexto de sua dieta alimentar
para que se identifique a biodisponibilidade dos nutrientes e os possíveis benefícios que
podem provocar.
A isenção da obrigatoriedade do registro desse produto e a fiscalização precária
da ANVISA associada às constantes modificações na legislação, que nem sempre é
clara, contribuem para essa situação.
Diante disso, percebe-se a importância de uma revisão da legislação vigente de
forma a torná-la mais clara e sem brechas, possibilitando uma fiscalização mais eficaz
desse tipo de produto, pois o consumo indiscriminado deste alimento associado à
propaganda enganosa pode comprometer a segurança alimentar dos consumidores. No
entanto, como a fiscalização de todos os produtos é praticamente impossível, a
obrigatoriedade do registro da ração humana seria uma solução possível para sanar
essas irregularidades identificadas por este estudo.
Ao mesmo tempo, deve-se buscar conscientizar o consumidor mediante
programas de educação nutricional mais eficazes, para que possa identificar possíveis
irregularidades e assim, além de proporcionar a preservação de sua saúde, seja um
fiscalizador desses produtos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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