Deficiência de IgA associada a Artrite reumatoide juvenil

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09/32-05/202
Rev. bras. alerg. imunopatol.
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RELATO DE CASO
Deficiência de IgA associada a Artrite reumatoide juvenil
IgA deficiency and Juvenile rheumatoid arthritis
Lilian B C Miranda1, Luciana A O Cunha2, Jorge A Pinto3
Resumo
Abstract
Objetivo: descrever um caso de deficiência de IgA associado a artrite reumatoide juvenil e infecções de repetição.
Relato do caso: paciente de 12 anos, sexo feminino, com
diagnóstico de artrite reumatoide juvenil associada a infecção
pulmonar grave. A deficiência de IgA foi suspeitada e o diagnóstico confirmado através da dosagem de IgA sérica.
Conclusão: os médicos devem estar atentos ao diagnóstico
de deficiência de IgA pela grande associação não só com processos infecciosos e alérgicos, mas, também com doenças auto
imunes.
Rev. bras. alerg. imunopatol. 2009; 32(5):202-204 deficiência de IgA, artrite reumatoide juvenil, doença auto imune,
infecções.
Objective: to describe a case of IgA deficiency and juvenile
rheumatoid arthritis and recurrent infections.
Case report: a 12 year-old patient, female, diagnosed with
juvenile rheumatoid arthritis associated with severe lung infection. IgA deficiency was suspected and the diagnosis was confirmed through serum IgA measurement.
Conclusion: physicians should be aware of the diagnosis of
IgA deficiency no only because of its close association with infectious and allergic processes, but also with auto immune diseases.
Rev. bras. alerg. imunopatol. 2009; 32(5):202-204 IgA deficiency, juvenile rheumatoid arthritis, auto immune disease,
infections.
1.
tória de há três meses ter iniciado dor em articulação coxofemural direita e dificuldade de deambulação. Evoluiu com
deformidades articulares e limitação funcional progressiva.
Ao exame físico, apresentava artrite grau dois em quatro
em joelhos, deformidade e limitação funcional acentuada
em articulações interfalangeanas, metacarpofalangeanas,
punhos, cotovelos, joelhos e articulações coxofemurais bilaterais. Os exames iniciais mostraram hemoglobina 12,6
g/dl, global de leucócitos 11.600/mm3, segmentados
63,4%, linfócitos 26,6%, monócitos 6,69%, eosinófilos
2,87%, plaquetas 382.000/mm3, creatinina 0,3 mg/dl,
PCR 32,4 mg/dl, VHS 40 mm, FR 37 UI/ml (positivo), FAN
negativo, provas de função hepática normais e urina rotina
normal. O exame oftalmológico mostrava cicatriz de corioretinite em olho esquerdo sem qualquer sinal de atividade
local. O tratamento da ARJ foi iniciado com naproxeno,
prednisona, metotrexato e indicado fisioterapia. Após um
ano de tratamento, a paciente evoluiu com sinais de artrite
em punhos, sendo associada cloroquina aos medicamentos
acima descritos. Dois anos após o início do tratamento, a
paciente suspendeu os medicamentos por conta própria,
não apresentou mais sinais de artrite, mas permaneceu
com sequelas funcionais importantes, principalmente em
articulações coxofemurais, mãos e punhos.
A paciente tinha história pregressa de infecção pulmonar
de repetição, com um episódio de pneumonia grave. Não
havia história de outros tipos de infecções e atopia. Apresentava história familiar negativa para imunodeficiência e
doença auto imune. Foi avaliada pela pneumologia que solicitou tomografia computadorizada (TC) de tórax evidenciando bronquiectasias com atelectasia total do pulmão esquerdo e pulmão direito hiperinsuflado. A broncoscopia evidenciou supuração pulmonar esquerda. Após quatro semanas de amoxicilina associado a clavulanato de potássio
(90mg/Kg/dia) e fisioterapia foi indicada pneumectomia total à esquerda.
Devido ao quadro de ARJ associada à história de infecção pulmonar grave, a paciente foi encaminhada ao serviço
de imunologia onde foram solicitados os seguintes exames:
IgA < 6,67 mg/dl; IgM 154 mg/dl; IgG 1910 mg/dl; IgE
57,4 mg/dl; Anti HIV (ELISA) negativo; BAAR negativo. As
2.
3.
Residente de Alergia e Imunologia do Hospital das Clínicas
(UFMG); médica pediatra do Hospital Mater Dei - Belo Horizonte; médica pediatra da FHEMIG - Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais.
Mestre em pediatria pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
Professor Associado, Departamento de Pediatria, FM/UFMG
Instituição ou serviço ao qual o trabalho está vinculado: Serviço
de Alergia e Imunologia do Hospital das Clínicas da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Fontes financiadoras e fornecedores de material: Hospital das
Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Artigo submetido em 25.03.2009, aceito em 02.11.2009.
Introdução
A deficiência de IgA é considerada a imunodeficiência
primária mais comum na maioria dos registros realizados
por grupos especializados. O critério de diagnóstico de deficiência de IgA definido pela Sociedade Européia de Imunodeficiência (ESID) é: níveis de IgA < 7 mg/dl com IgG e
IgM no soro normais em um paciente maior que quatro
anos de idade1.
A deficiência de IgA ocorre em 1:700 caucasianos em
contraste com 1:18500 japoneses e é mais frequente em
pacientes com doença auto imune em relação à população
saudável2, 3. Embora a maioria dos pacientes com deficiência de IgA seja assintomática, há alta incidência de infecções sinopulmonares recorrentes, doenças alérgicas, doença auto imune, e, possivelmente, artrite reumatoide juvenil
(ARJ)3, 4. A doença auto imune representa o fenótipo clínico
mais frequente nos pacientes com imunodeficiência primária após a alta susceptibilidade a infecções5.
O presente artigo descreve um caso de deficiência de
IgA com diagnóstico inicial de ARJ e história de infecção
pulmonar grave.
Descrição do caso clínico
Paciente JLL, aos 12 anos de idade iniciou seguimento
no ambulatório de Reumatologia do Hospital das Clínicas
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com his-
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Deficiência de IGA e artrite reumatoide juvenil
dosagens das imunoglobulinas séricas foram repetidas:
IGA< 5,53 mg/dl; IgM 96,5 mg/dl; IgG 1820 mg/dl; IgE
32 mg/dl; confirmando, assim, a deficiência de IgA. As
subclasses de IgG não foram realizadas. Não foi indicado
antibiótico profilático devido a ausência de novos episódios
de infecções.
Permanece em controle no serviço sem sinais de atividade da ARJ e sem novos episódios de infecções. Atualmente não faz uso de medicamentos imunossupressores
nem profilaxia antimicrobiana. No acompanhamento clínico
laboratorial mantém valores baixos de IgA.
Discussão
Várias doenças auto imunes têm sido associadas à deficiência de IgA tais como: ARJ, Artrite Reumatoide do
Adulto, e o Lupus Eritematoso Sistêmico (LES). Elas também incluem doenças endócrinas, vitiligo, anemia hemolítica, púrpura trombocitopênica imune e doenças neurológicas6.
As doenças auto imunes mais comumente associadas à
deficiência de IgA são ARJ e LES que podem ocorrer em 7
a 36% dos indivíduos com deficiência de IgA7. A ARJ pode
representar a primeira manifestação das imunodeficiências
primárias8. A frequência de deficiência de IgA em pacientes
com diagnóstico de ARJ é descrita entre 2 e 4%3, 7, 8.
Foi observado que o início da ARJ em paciente com deficiência de IgA é geralmente oligoarticular8. Quando ARJ está associada à deficiência de IgA há maior chance do paciente apresentar uveíte como complicação7.
A presença de infecção de repetição, história familiar de
imunodeficiência e doença auto imune reforça a necessidade de pesquisa rotineira das imunoglobulinas séricas nos
pacientes com artrite. Além disso, esses exames devem
ser preferencialmente solicitados em pacientes com ARJ e
LES, particularmente com infecção de repetição e história
familiar de doença auto imune8.
Muitas enfermidades reumáticas são caracterizadas por
achados de autoimunidade humoral (autoanticorpos) e autoimunidade celular (células reativas aos constituintes do
corpo) e essas observações levaram à especulação de que
enfermidades reumáticas são causadas por autoimunidade9.
A ARJ é uma doença auto imune com anormalidades de
célula T e humoral que ocorrem em pacientes com predisposição genética. As características patológicas de sinovite
crônica sugerem possível patogênese célula mediada. Múltiplos autoanticorpos, imunocomplexos e ativação do complemento indicam anormalidades humorais10. A fisiopatogênese da ARJ envolve múltiplos fatores, incluindo imunidade alterada, imunoregulação anormal e produção de citocinas aumentada (IL-4)11.
Alteração na função de supressão do linfócito T pode estar relacionada com a imunopatogênese da ARJ e permite a
produção de autoanticorpos. Muitos estudos sugerem um
defeito regulatório global de células T. Os genes que controlam o receptor de célula T (TCR) são importantes na
patogênese da ARJ. Um alelo com TCR nulo é um fator de
risco para ARJ. Apesar dessas evidências, mais estudos
ainda são necessários10-12.
O presente artigo mostrou um caso de deficiência de
IgA com diagnóstico inicial de ARJ e história pregressa de
infecção pulmonar grave sendo levantada a suspeita de
deficiência de IgA confirmada após dosagem de imunoglobulinas séricas.
Os pacientes com deficiência de IgA apresentam ao
diagnóstico principalmente infecções recorrentes, além de
atopia e autoimunidade13. Apesar da baixa prevalência da
associação de deficiência de IgA com doença auto imune,
médicos devem estar atentos em relação à infecções de repetição em pacientes com doença auto imune6. Quando
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ocorre infecção grave deve-se suspeitar de imunodeficiência de subclasses de IgG, além da deficiência de IgA7.
Não há tratamento específico para deficiência de IgA,
pois não há drogas que ativem as células B produtoras de
IgA6. O tratamento do quadro de deficiência de IgA consiste em tratar as infecções recorrentes, profilaxia vacinal e
acompanhamento clínico para rastrear desenvolvimento de
complicações14.
Conclusão
Médicos devem estar alertas durante o tratamento de
seus pacientes com doenças auto imunes em relação a infecções de repetição, pois as imunodeficiências podem estar relacionadas a essas doenças. Segundo documento publicado pela fundação Jeffrey Modell (organização não governamental ligada a organização mundial de saúde), as
doenças auto imunes assim como as infecções pulmonares
de repetição, estão entre os dez sinais de alerta para se
pensar em imundeficiência primária15. Por outro lado, os
pacientes com deficiência de IgA, desde cedo na infância,
devem ser rotineiramente checados em relação à manifestação auto imune clínica e laboratorial.
A alta susceptibilidade a infecção é a principal característica durante a infância. Após este período, na 2ª década
de vida, há mudança no padrão, com redução das infecções e o desenvolvimento de desordens auto imunes.
Pediatras, clínicos e imunologistas devem ter conhecimento da deficiência de IgA pela grande associação com
processos infecciosos, alérgicos e auto imunes.
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Deficiência de IGA e artrite reumatoide juvenil
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