Têmis e Dike: direito natural e direito positivo i J.C. Avelino da Silvaii No teatro grego, enquanto a cena se desenrolava em um diálogo entre o ator e o coro, antes de Ésquilo introduzir o segundo ator, importava trazer à tona a relação do homem com a coletividade (representada pelo coro), relação que afirmava a sociedade como mais forte (o coro era mais forte, o ator era simples respondedor). A introdução na cena do segundo ator por Ésquilo, que manteve o coro como representante da coletividade, mostra uma sociedade mais madura, uma sociedade que, além de enfrentar a relação entre o indivíduo e o coletivo, enfrenta também a relação de indivíduo para indivíduo, a relação entre o indivíduo e o outro. Ou, talvez se possa dizer, a relação entre indivíduo e sociedade passa a ser mediatizada pela relação prioritária entre indivíduos, numa sociedade que estava aprendendo a valorizar cada vez mais a individualidade. O ator, a partir de então, mesmo se ele continua dialogando com o coro, enfrenta o diálogo com um seu igual, tornando a trama mais complexa. O importante são os personagens e seus atributos, personalidades fortes. A trama é construída pela ação dos personagens, já que é na representação dos atores que o enfrentamento aparece. Os poetas trágicos trataram a política e a justiça como valores éticos relativos à convivência em sociedade e não como jogo de forças. A convivência em sociedade para Ésquilo baseia-se muito mais no perdão e na conciliação do que em qualquer outro valor, mostrando a identidade cultural da tragédia com o equilíbrio apolíneo. Sendo valores morais de convivência social, têm nítida função político-jurídica. Assim é que, na peça Prometeu, Ésquilo conta que, depois de milhares de anos de sofrimento imposto por Zeus, Prometeu aceita a reconciliação e marca essa reaproximação com o senhor do Olimpo revelandolhe o segredo de sua permanência no poder: o filho de Tétis, a Nereida – e Zeus está interessado nessa deusa –, suplantará seu pai. O destino está traçado, e o seu conhecimento fará Zeus afastar-se de Tétis, que mais tarde será mãe de Aquiles, o grande herói da Guerra de Troia. “Se Prometeu foi capaz de perdoar, eu também sou”, devia pensar o grego saindo do teatro. O fato de trabalhar o perdão e a conciliação não significa que a justiça esteja ausente do texto de Ésquilo. Pelo contrário, para ele, a conciliação e o perdão são os principais instrumentos do exercício da justiça. Isso não quer dizer, entretanto, que não há punição em Ésquilo: pune-se em primeiro lugar a intransigência. Prometeu paga, acorrentado, sua intransigência com relação a Zeus. Ésquilo exacerba o conflito, pois quanto maior é o enfrentamento, maior será a conciliação e o perdão. Na Oréstia, de Ésquilo, Apolo faz justiça com o braço de Orestes, quando este vinga a morte de seu pai Agamenon, rei de Argos. A trilogia aborda questões de vingança, punição e justiça. A justiça é feita contra sua mãe, Clitemnestra, autora do crime contra seu próprio esposo Agamenon. O julgamento de Orestes é feito no Areópago de Atenas que, tendo perdido sua competência política, se transformou em tribunal para julgar casos de homicídio. Daí surge a discussão entre Apolo e as Erínias sobre qual seria o maior crime: o de matar o marido ou o de matar a mãe. Éris, a Discórdia, está amplamente representada nessa tragédia. As Fúrias (ou Erínias), protetoras da ordem social antiga, ordem natural e feminina, castigavam sobretudo os crimes contra a família. Nesse diálogo, elas defendem que o crime de sangue (o matricídio, no caso) é o mais cruel. Uma das Fúrias diz para Orestes (Ésquilo, 1991, p. 155): Esgotarei a tua força toda e te transportarei ainda vivo para os abismos mais fundos da terra, onde afinal possas pagar o preço que um matricida deve à sua mãe. Lá te serão mostrados os sacrílegos que ousaram ofender as divindades, seus hóspedes ou seus progenitores, sofrendo cada um a punição imposta pela impávida justiça! Apolo defende o casamento como uma união sagrada e critica Clitemnestra, mulher de Agamenon, sua assassina e mãe de Orestes. Apolo diz que Clitemnestra é uma pessoa cruel e defende Orestes por ter sido o instrumento de sua justiça (da justiça de Apolo). Apolo pune a intransigência de Clitemnestra que, não conseguindo perdoar Agamenon, matou-o. Compreende-se a dificuldade de Clitemnestra perdoar Agamenon, já que sua ira nasceu por Agamenon ter matado Ifigênia, a filha do casal. Mesmo Agamenon tendo realizado tal ato para cumprir as determinações do Oráculo (que exigiu o assassinato da jovem para que os ventos voltassem e a frota pudesse seguir o caminho para Troia), Clitemnestra odiou-o até a morte. No confronto entre os dois mundos, reeditado por Ésquilo na Oréstia (1991), as Erínias, representando na peça os valores femininos, afirmavam que Orestes era filho de sua mãe, tal como se pensou durante milênios, quando não era conhecido o papel do pai como genitor. Nesse caso, Orestes teria cometido impiedade. No outro extremo, Apolo defendeu que Orestes era filho do pai e não da mãe, a mãe serviria apenas de recipiente para o desenvolvimento da semente que o homem planta. Apolo argumenta enfaticamente (Ésquilo, 1991, p. 172-3): Responderei também a isso e saberás que todos os meus argumentos são corretos. Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe - ela somente é a nutriz do germe nela semeado -; de fato, o criador é o homem que a fecunda; ela, como uma estranha, apenas salvaguarda o nascituro quando os deuses não o atingem. Oferecer-te-ei uma prova cabal de que alguém pode ser pai sem haver mãe. Eis uma testemunha aqui, perto de nós, Palas [Atena], filha do soberano Zeus olímpico, que não cresceu nas trevas do ventre materno. Os jurados se posicionaram em igual número a favor e contra o assassino de Clitemnestra. Atena, não nascida de mulher, presidia a seção do julgamento e desempatou a favor de Orestes, inocentando-o de criminalidade e confirmando o direito de Dike reinariii. Ésquilo colocou em confronto duas concepções de mundo, o feminino, herança das populações pré-históricas, pré-urbanas, em que o filho era um produto da mãe (quando o papel do homem na concepção era desconhecido ou desconsiderado) e o masculino e urbano de Zeus e Apolo, em que o homem planta uma semente e a mulher simplesmente dá as condições de a semente se desenvolver. Nesse caso, o filho seria filho do pai, e assim matar a mãe não seria um crime de sangue (de um parente). Esses dois mundos tinham duas referências simbólicas, Têmis e Dike. entre os homens o sentimento de justiça e a virtude. Quando a sociedade assumiu valores masculinos, urbanos e codificados, Têmis não foi capaz de se adaptar, foi aposentada e cedeu espaço para Dike, quando o direito e as leis tornaram-se humanos. Isso mostra que, desde a fundação do mundo ocidental na Grécia Antiga, Justiça, apesar de configurada historicamente, é um valor universal. Orestes é absolvido por interveniência de Atena, que passa a agir em busca do perdão das Erínias (as Fúrias). Por outro lado, Astreia, responsável por divulgar a justiça entre os homens, permaneceu virgem, vale dizer, os homens não a tocaram, não penetraram nela. Frente a um mundo hostil, masculino e urbano, Astreia subiu ao céu, onde se transformou na constelação da Virgem. Mas a questão não termina aí. Orestes pode ter sido absolvido, mas não é possível alcançar a harmonia final enquanto Atena não persuadir as próprias Fúrias a aceitar voluntariamente o veredito. A aquiescência é recompensada por uma mudança de sua própria natureza, concomitante com a residência permanente em solo ateniense. As Fúrias se transformam nas Eumênides, ou ‘deusas bondosas’ (Morrall, 1985, p. 15). É pensando na harmonia que Ésquilo, em Eumênides, a terceira parte da trilogia sobre Orestes, faz a deusa Atena dizer (Ésquilo, 1991, p. 160): Mas insultar quem não nos deu qualquer motivo para ser denegrido ou mesmo censurado, além de ser injusto é contra a equidade. Concordando que a punição da intransigência de Clitemnestra e a busca da harmonia com as Fúrias são questões importantes dessa trilogia, Brandão (2001, p. 29) dá outra interpretação para o tema central da Oréstia. Baseando-se em Bachofen, ele diz que essa tragédia teria como foco o confronto entre Têmis (a justiça antiga, baseada no princípio feminino) e Dike (a justiça masculina, a justiça de Apolo). Na sua defesa, o jovem deus garante que Orestes é filho do pai, que plantou a semente, e não da mãe, que serve apenas como recipiente para o desenvolvimento da criança. As Fúrias insistem que o filho é exclusivamente da mãe. É clara a oposição entre os princípios masculino e feminino. Sem dúvida, o confronto entre Têmis e Dike é central na peça, já que ele é a base da visão de mundo defendida por Ésquilo, qual seja, a conciliação e o perdão fazem parte da justiça masculina. Quando Ésquilo (1991) pôs em confronto essas duas maneiras de as leis serem pensadas (do ponto de vista do cosmo masculino ou do feminino), já no século V aC (a trilogia de Orestes é de 458 aC), ele trouxe para a discussão valores femininos que já estavam superados pelas instituições da pólis, mas ainda estavam presentes na mentalidade de importantes setores da população. A força das posições de Têmis na peça (defendidas pelas Erínias) tinha um alcance pedagógico. Ésquilo sabia que o cosmo representado por Têmis era coisa do passado, tanto é que deu a vitória a Atena, incontível defensora do cosmo masculino. A cultura grega enfrentou essa questão por meio da mitologia, criando o mito de Astreia. Astreia era filha de Zeus e de Têmis. Mãe e filha formavam um par complementar e reinavam antigamente, quando prevaleciam os valores agrários e femininos. Têmis exercia a justiça, enquanto Astreia difundia i Texto extraído de Zeus e a filosofia, do mesmo autor. Arquivo: ÉsquiloOréstiaTêmisDike2colDID.docx. Última edição: 28/ago/2016. ii Doutor pela Universidade de Paris (1980). Professor na Escola de Formação de Professores e Humanidades da PUC A justiça, em Ésquilo, é julgável na mesma proporção em que ela julga. Para o tragediógrafo grego, não deveria existir um sistema judiciário que se colocasse acima da sociedade. Para Ésquilo, a justiça deve ser julgada. Na tragédia grega, a justiça não está acima da justiça, e o diálogo se ocupa da crítica da justiça. Em cada ato e em cada punição há justiça e injustiça. No fundo, são aspectos do bem que estão em questão. Não há o bem puro nem o mal completo: há oposição entre o bem e o mal. A tragédia, refletindo a cultura grega, colocou o ser humano diante de um dilema sólido, difícil de se evitar: no ato e na punição há justiça e injustiça; o bem e o mal vêm juntos. Ésquilo resolve a questão com o perdão. Em Ésquilo, o convívio social assume o primeiro plano da cena: é pelo perdão e pela conciliação que se torna possível a vida em sociedade. REFERÊNCIAS BRANDÃO, J. de S. Teatro grego: tragédia e comédia. 8a ed. Petrópolis: Vozes, 2001. DA SILVA, J.C. Avelino. Zeus e a filosofia: religião e individualidade na Grécia Antiga. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2014. ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES. Prometeu acorrentado. Ájax. Alceste. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. MORRALL, John B. Aristóteles. Tradução de Sérgio Duarte. 2ª ed. Brasília: Editora UnB, 1985. Questões Explique o confronto entre Têmis e Dike na Oréstia de Ésquilo. Para Ésquilo, a justiça pode falhar menos ou falhar mais, mas, por ser humana, sempre falha. Qual é a solução dada por Ésquilo para o caráter falho da justiça? Do mito de Astreia, pode-se concluir que a ideia de justiça é mais forte, ou talvez mais fácil de conceber, do que sua adoção (esta sim implicando em exigências radicais na maneira de se colocar no mundo). Você concorda com essa ideia? Justifique. Goiás. Membro da International Association for Greek Philosophy. iii Esta é a origem do chamado voto de Minerva (nome que a deusa Atena assumiu entre os romanos).