a tragédia grega sob a perspectiva da história da

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Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais
ISSN 2177-6687
A TRAGÉDIA GREGA SOB A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO
OLIVEIRA, Flávio Rodrigues de (GETSEAM/FECILCAM)
OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/GETSEAM/UEM)
Na quadra atual não é difícil estigmatizar o teatro como sendo um espetáculo
cênico de caráter recreativo para as programações dos finais de semana. Há também
quem o vê a partir do aparecimento do cinema, da televisão e das outras expressões
midiáticas. Dessa maneira, subvertem os valores que normalmente deveriam ser dados
ao roteiro dramático e cenografia – que possuem uma estreita interdependência –, ao
invés disso depositam todo o mérito das encenações às personagens. Ainda partindo das
premissas do senso comum, quem nunca se pegou vendo a listagem dos atores que
fazem parte de uma peça teatral, filme ou seriado antes mesmo de ler a sinopse? Aliás,
tornou-se comum dizer que tal peça tem tais personagens com participações especiais de
tantas outras, levando o espectador muitas vezes a esquecer-se do roteiro e do sentindo
que o escritor pretendeu passar por meio da obra criada.
Nesse sentido, pretendemos mostrar que o theátron grego se diferencia dessa
concepção pós-moderna, em que para muitos assistir a uma peça possui simplesmente
uma finalidade recreativa. Claro é preciso fazer algumas ressalvas logo de início: não
sejamos ingênuos a ponto de acreditar que os gregos iam únicos e exclusivamente
prestigiar uma peça grega tanto de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes ou até mesmo a de
Aristófanes que já detinha certo apreço pelo gênero cômico, porque tais peças detinham
uma função pedagógica civilizatória.
Destarte, o que traremos a tona, é o porquê e como, o Estado utilizava-se da
teatrada para instruir moral/civil e religiosamente os helenos do século V a. C. Por isso,
propomos que para compreender a proposta pedagógica do teatro clássico,
identificando-o como uma sistematização do saber no período helênico que influência
diretamente na formação dos homens, devemos ter em mente que a instrumentalização
educacional não se pauta simplesmente no âmbito de instituições, escolas, universidades
e etc. Mas está inserido dentro de uma concepção mais ampla, da qual engloba todos os
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processos sociais que levantam indagações sobre a essência humana, tendo o homem
como o investigador, questionador de suas próprias ações, relações, conceitos, regras
e/ou dogmas a fim de explicá-los e se possível solucioná-los.
Assim, discutiremos por meio do método histórico social a importância do
trágico na educação clássica, preocupando-se com a sistematização do conhecimento e a
sua utilização desse saber para a formação da pólis, em um período em que essa
sociedade agregava novos segmentos no seu seio. Ainda, partiremos da premissa de que
a tragédia enquanto uma modalidade de arte-educação traduz o homem e a realidade por
ele criada, levando-o à concretização de um aprendizado e uma análise reflexiva
condizente
com
o
processo
de
desenvolvimento
da
essência
humana
e
instrumentalizando-o para o exercício da sua liberdade enquanto indivíduo.
Acompanhado de celebrações anuais à colheita da uva, surge na Atenas e em
toda Ática, uma homenagem ao deus do vinho. Baco ou Dioniso, como era mais
popularmente conhecido na sociedade helênica, era o deus responsável por conduzir
com muito vinho, as procissões aos iniciados nos Mistérios Elêusis.
Segundo narra à lenda, existiram dois Dioniso. O primeiro chamado de Zagreu,
filho bastardo de Zeus com Perséfone. Esse quase foi morto pelos Titãs após a ordem de
Hera, que não aceitava a o fato de Zagreu ser o mais querido entre os homens e os
deuses e o possível sucessor de Zeus no trono olimpiano. Contudo, em tempo a deusa
Atená puxou o coração ainda palpitando, após a luta de Zagreu e os Titãs e o entregou a
Zeus que engoliu e fecundou uma princesa da qual se apaixonara, Sêmele. Dessa
fecundação nasceria o segundo Dioniso. Porém, Hera muito mais furiosa do que antes,
transforma-se em ama da princesa e induz que essa peça para ver Zeus em todo o seu
esplendor, pois, segundo as palavras da ama, este que se chamava deus dos deuses,
poderia ser um mentiroso, aproveitando-se do amor que a princesa nutria por Zeus.
Ainda que tal desejo fosse inexoravelmente funesto a Sêmele, Zeus assim o fez,
uma vez que tinha prometido não negar àquela linda princesa nenhum desejo que seu. O
fato é que com os raios e trovões que o deus do Olimpo possuía, fez com que o castelo
se incendiasse e Sêmele viesse a falecer.
Novamente, em uma tentativa de salvar o feto ainda em vida, Zeus, termina de
fecundá-lo em sua coxa, dando vida ao tão esperado deus Dioniso que desta vez foi
confiado aos cuidados dos Sátiros e Ninfas para que pudesse ter uma infância mais
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aprazível do que o seu nascimento. Em alguma gruta, portanto, do monte Nisa, Dioniso
foi criado. Por ser um ambiente com uma enorme vegetação de vides, tal espaço,
propiciou pelas mãos do prodígio menino deus a criação do vinho, fazendo com que
essa bebida levasse o seu nome pela eternidade e fosse cultuado nas festividades da
colheita da uva. Mas qual é a ligação dessas festividades com a tragédia?
De acordo com Brandão (1990), existem duas explicações para à associação das
festividades dionisíacas a tragédia grega: uma ligada à figura dos sátiros, outra, as
próprias oferendas ao deus. É interessante notar que ambas estão ligadas a figura do
bode. Na primeira, vemos que os adeptos dessas festividades do vinho novo, se
disfarçavam em sátiros (homens-bodes) que etimologicamente traria a menção ao canto
do bode (tragos: bode + oidé: canto), ou do latim tragoedia = tragédia.
Já o segundo grupo acreditava que a tragédia estava estritamente ligada ao
sacrifício de um bode ao deus, simbolizando a própria divindade, que na corrida sem
êxito para se salvar dos Titãs, o deus do vinho se metamorfoseia em bode antes de ser
devorado.
Mas, o fato é que independente do nome que dá origem a essas festividades, a
partir do século V a.C. elas ganharam um amplo espaço na Grécia Clássica se
estabelecendo enquanto ritual sagrado para à tradição helênica. Conforme Rosenfeld
(2010), pode-se dizer que foi por meio de Tespis que se estabeleceu a primeira ruptura
entre as festividades e a narrativa trágica. Apontamos como a primeira, pois, ainda que
Tespis tenha sido um separador de águas entre as dionisíacas e as tragédias, constatamos
que essa emancipação não foi total, uma vez que, ainda que exista, a partir de agora,
uma distinção entre a tragédia e as festividades dionisíacas, as primeiras permaneciam
sendo realizadas dentro do espaço oferecido para a segunda. De acordo com o autor:
Numa fase já adiantada do desenvolvimento cerimonial um solista
parece ter entrado numa espécie de responsório com o coro, de início
anda cantando e depois declamando em linguagem elevada e poética.
Esta renovação é atribuída a Tespis (ROSENFELD, 2010, p. 39).
Todavia, ainda que Rosenfeld reconheça a importância de Tespis é com Ésquilo,
Sófocles e Eurípedes que o teatro sai do limbo e ganha vida se fortalecendo enquanto
expressão artística. E será sobre o papel desempenhado sobre esses três importantes
tragediógrafos que vamos nos preocupar a partir de agora para podemos compreender
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como as suas peças nos passam muitas vezes uma instrução para a moral/política.
A tragédia a partir desse momento passa a ser uma peça fundamental dentro da
sociedade helênica, pois, em um período de formação política democrática, a sociedade
grega do século V a.C., fará uso do teatro para transmitir a nova educação devido ao seu
caráter totalizante1. Tanto é verdade, que o teatro passa a ser custeado pelo Estado,
depois que os governantes descobrem que ele pode ser usado para instrumentalizar
conceitos, tornando-se fundamental para estabelecer as inter-relações entre o
conhecimento político/religioso da pólis aos espectadores dos dramas. A difusão desse
conhecimento de caráter formador torna-se, portanto, papel da tragédia.
A tragédia passa a fornecer aos seus espectadores, por meio do enredo das suas
personagens uma possibilidade de pensar os relacionamentos humanos, fornecendo-lhes
estímulos pedagógicos que os levam a adequar-se ao seu próprio mundo histórico, nas
diferentes funções sociais desta sociedade.
Segundo Nagel (2006), ao fazer-se uma investigação sobre os conteúdos
educativos da Grécia do período clássico é impossível não nos atermos às tragédias. A
autora afirma que as tragédias apresentam-se como uma literatura insubstituível no
exame da consciência do povo grego. Nagel enfatiza que a dramaturgia dá
possibilidades ao homem de fazer reflexões sobre as forças universais, ou seja, levá-lo a
refletir sobre suas ações, relações, conceitos, regras e dogmas como estando dentro e da
pólis, uma vez que o teatro grego constrói um modelo de homem para a sociedade
grega.
Ainda conforme Nagel (2006), é inquestionável que o conhecimento educacional
e/ ou cultural do século V a.C. passa pela tragédia. Segundo ela, o poder de formação
dos homens por esta arte só pode ser dimensionado pela importância dada ao teatro,
pela sua larga projeção social entre os atenienses.
1
Entendemos o teatro grego como um movimento totalitário no mundo grego, na medida em que todos,
sem exceções, tinham o direito de assistir as peças. Pois em outros casos como ao tratar de política
mulheres e escravos não eram considerados cidadãos, já o teatro estava voltado para o todo, chagando até
ao ponto do Estado custeá-lo. Assim àqueles que não tinham condições financeiras para poder ir ao teatro,
o Estado custeava os seus ingressos. Segundo JAEGER (1986), é o Estado do século V a.C. o assímo
ponto de partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprimiu ao século e ao
seguinte, no que tem origem da ideia ocidental de cultura. Essa experiência coletiva de um grande número
distinto de integrantes da população se enfatiza com o coro – que designava um grupo de dançarinos e
cantores usuários de máscaras, nas tragédias, o coro, tem a missão de representar a heterogeneidade da
população – que dá ainda mais o caráter totalizante que o teatro clássico buscava alcançar em relação ao
seu público.
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ÉSQUILO, SÓFOCLES E EURÍPEDES
Sobre Ésquilo, (525 - 456 a.C.), cumpre destacar que o autor iniciou sua vida como
dramaturgo após ter regressado da guerra na qual participou como soldado em
Salamina. Ao voltar dessa, participou de vários concursos2 de tragédias realizadas em
sua época.
Ésquilo problematizou questões políticas e religiosas por meio de seus dramas.
Defendeu sua posição religiosa em relação às concepciones morales religiosae de seu
tempo. Escreveu3 seus dramas a partir dos fatos, discussões e crises sobre os quais o
período em que estava, sofria. Tornou-se, para os estudiosos e interessados pelo
período, uma importante literatura, capaz de elucidar com riqueza de detalhes o seu
momento histórico.
O teatro esquiliano dedicou-se a transmitir o conhecimento que o próprio autor alcançou
em sua trajetória de vida, bem como o entendimento que tinha sobre os sistemas, tanto
político, quanto religioso, no qual seu povo se encontrava, a saber, a dos governos
‘teocráticos’.
É por isso que Brandão (1990), ao se referir à tragédia esquiliana diz ser ela,
mais uma teomorfização do que uma antropomorfização. Suas personagens
normalmente tinham uma ascendência divina ou uma linhagem real, entre as peças de
mais destaques desse autor estão Prometeu Acorrentado e a trilogia Oréstia.
Sobre Sófocles (496-406 a. C.) de Atenas, podemos afirmar que o tragediógrafo
possuiu um lugar de destaque tão significativo quanto o do seu antecessor. Autor de
tragédias como Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, Filoctetes, As Traquínidas, Ájax
e Electra ele ficou mais conhecido pela posteridade por meio das suas duas primeiras
obras. Ainda que a sua intenção não tenha sido falar sobre o incesto, mas sim sobre a
maldição dos Labdácidas, a personagem de Édipo é universal, principalmente após o
uso que Freud faz da personagem para aludir à sua teoria sobre o amor que o filho nutre
2
Segundo Albin Lesky (1995), em a “História da literatura grega”, Ésquilo começou a participar cedo
dos concursos dos poetas trágicos. No Agnon na 70° Olimpíada (499/96), ele enfrentou Pratinas e
Quérilo. O Marmor Parium indica que o seu primeiro triunfo foi obtido em 484. Seguiram-lhe outros
doze.
3
Na tradução de “Oréstia” de Mario Gama Kury, temos a informação de que Ésquilo produziu 79
tragédias, mas, infelizmente chegaram até nós apenas 07 (sete) tragédias completas e alguns fragmentos,
porém, com esses dados podemos perceber a relevância dos seus dramas, tanto no que se refere à
quantidade, quanto no que se refere à temática ampla de que transcenderam o período histórico em que o
autor estava inserido.
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pela mãe, ou seja, o complexo de Édipo. Porém, não é nossa intenção discorrer sobre as
similitudes e as disparidades sobre o tema.
Se com Ésquilo o trágico é uma teomorfização, com Sófocles ele adquirirá um
caráter mais voltado para o antropocêntrico e teosférico, ou seja, o homem começa a
desempenhar um papel mais significativo nas suas ações e os deuses encontram-se ao
seu redor. Segundo Brandão, nesse modelo, o herói é dotado de vontade livre para agir,
pouco importando as consequências dessa ação, já os deuses ainda que possuem uma
ação, essa já não é tão significativa quanto em Ésquilo, sendo a atuação das divindades
feitas a distância, por meio de adivinhos e oráculos (BRANDÃO, 1990). Segundo a
Poética de Aristóteles Sófocles era o príncipe dos poetas dramáticos da Grécia, e sua
obra Édipo Rei a mais perfeita das tragédias.
De Eurípedes (485-406 a. C.) sabemos que dedicou grande parte da sua vida a
escrever peças em que a complexidade da alma humana fosse exaltada. Dentre as 92
peças atribuídas ao autor, apenas 19 chegaram até nossos dias. Dentre os três
tragediógrafos parece haver uma preferência gritante por esse último. Segundo Kury:
As gerações subsequentes manifestaram sensível preferência por
Eurípedes em comparação com Ésquilo e com Sófocles. Tanto foi
assim que das 74 peças que escreveu 19 sobreviveram, enquanto das
94 de Ésquilo somente 7 se conservaram e das 123 (ou mais) de
Sófocles somente 7 chegaram até nós. (KURY, 2001, p. 11)
Tal aceitação se deve talvez ao fato de termos em Eurípedes uma grande
dessacralização do mito, em um período em que o homem precisava se firmar
conscientemente enquanto um representante do logos. Brandão o classifica como o
campeão da amargura, por ser dotado de uma sensibilidade inestimável. Percebeu que a
diminuição do papel do coro fez com que as suas personagens principais ganhassem
maior destaque, desvendando o coração humano que segundo os seus críticos é o maior
laboratório do trágico, como podemos encontrar na sua peça de maior destaque: Medéia,
mãe enfurecida com o marido que a traiu é capaz de matar os próprios filhos como
vingança da perfídia.
Destarte, o teatro estabelece a função de pedagogo, uma vez que levava ao
público, condições de repensar as suas relações sociais/culturais/políticas. Segundo
Aristóteles esse processo era tido como catarse, ou seja, a purificação ou purgação de
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um modo de pensar para outro renovado. Por meio do teatro, os gregos tiveram a
possiblidade de apreender a totalidade das manifestações e ideias humanas. Assim,
nossa escolha foi feita, na medida em que percebermos a amplitude e a força tanto por
um cunho de entretenimento quanto um caráter moralizador com que a tragédia do
período clássico trata a condição humana traduzindo em ações fictícias, fatos sobre a
realidade que estava sendo vivenciada. Fica a pergunta para refletimos. E hoje, o nosso
teatro nas suas mais variadas formas possibilita-nos essa reflexão?
REFERÊNCIAS
ARISTÓFANES. As nuvens; Só para mulheres; Um deus chamado dinheiro.
Tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2000.
BRANDÃO, Junito de Souza. TEATRO GREGO: Tragédia e Comédia. Petrópolis:
Editora Vozes, 1990.
ÉSQUILO. ORÉSTIA: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Tradução, introdução e
notas de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
LESKY, Albin. História da literatura Grega. Tradução de Manuel Losa. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
ÉSQUILO. Os persas/Équilo. Electra/Sófocles. Hécuba/Eurípedes. Tradução,
introdução e notas de Mário da Gama Kury. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
EURÍPEDES. Medéia; Hipólito; As troianas. Tradução, introdução e notas de Mário
da Gama Kury. 5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
NAGEL, L. H, Dançando com os textos gregos: a intimidade da literatura com a
educação, Maringá, EDUEM, 2006.
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ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2010.
VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa Freire
d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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