LESÃO POR ESFORÇO REPETITIVO E A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO1 Marly Helena Guelfi2 Neide Tiemi Murofuse3 RESUMO As novas exigências do mundo do trabalho tendem a ocasionar diferentes doenças do trabalho e dentre elas as Lesões por Esforços Repetitivos (L.E.R.). Com o intuito de investigar a interferência do processo de trabalho nas manifestações da L.E.R. foi desenvolvido o presente estudo, numa abordagem qualitativa, com o objetivo compree nder a relação entre a L.E.R. e a organização do trabalho. A população foi constituída pelos 210 filiados ao Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Públicas, Empresas de Economia Mista, de Estacionamento Regulamentado e Fundações do Município de Cascavel (SITEP). A coleta de dados foi através de entrevistas semi-estruturadas, co m quatro filiadas ao SITEP, com L.E.R.. Os depoimentos foram agrupados em duas c ategorias: “Processo de Trabalho” e “A L.E.R. como doença do trabalho”. Os resultado s apontam que o processo de trabalho atuou como fator determinante para o adoecim ento, devido às exigências excessivas em relação à quantidade de notificações e regularizações emitidas, às condições de trabalho submetidas e à pouca participação nas decisões, bem como à ausência de pausas e a competição existente entre as trabalhadoras. Constatou-se ainda a existência de dificuldades com o diagnóstico da d oença, o posicionamento da empresa frente a doença e as limitações trazidas pela L. E.R. na vida profissional e pessoal destas trabalhadoras, já que depois da cronificação da doença as expectativas em relação ao futuro ficaram restritas. Concluímos com o estudo que a prevenção desta patologia passa necessariamente pela mudança no pro cesso e na organização do trabalho no modo de produção capitalista. 1 2 3 Extraído da monografia apresentada ao Curso de Especialização em Saúde Pública com ênfase em Saúde Mental da Unioeste. Psicóloga, Especialista da Prefeitura Municipal de Cascavel. E-mail: [email protected]. Telefone: 3035 – 7345. Professora, Doutora do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Cascavel. E-mail: [email protected]. PALAVRAS CHAVES: trabalho, adoecimento, Lesão por Esforço Repetitivo – L.E.R.. INTRODUÇÃO: O trabalho tem sido estudado como forma de organização e manifestação da condição humana, porém, na maioria das vezes é visto como algo natural. Compreender o trabalho e o trabalhador inseridos num modo de produção como processo histórico e social, mas não natural, faz a diferença. Ao falar em trabalhadores e doenças relacionadas ao trabalho, o enfoque predominante é a perspectiva do trabalho no modo de produção capitalista e a exploração do homem pelo homem como a única forma possível de organização do trabalho, sendo natural obter lucros pela expropriação da força de trabalho. Fazendo a correlação do processo saúde/doença com o trabalho, podemos perceber como as diferentes formas de compreensão a respeito do trabalho interferem de maneira direta na concepção da saúde do trabalhador. A organização do trabalho no modo de produção capitalista define o ideal de trabalhador. As exigências estabelecidas desconsideram as características individuais e podem levar ao adoecimento por um processo que envolve condições somáticas, cognitivas, emocionais, sociais e ambientais. Para esta compreensão devemos perceber como o trabalho é visto e entendido em nossa sociedade. No final do século XX, tornou-se comum o discurso das mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho. O trabalhador de hoje deve ser diferente do trabalhador de alguns anos atrás, a necessidade de envolvimento e comprometimento com os objetivos da empresa se mostra como essencial, compreendemos a tentativa, não como sinônimo de mudança como se quer fazer entender, mas como forma, quase sempre bem sucedida, de exatamente manter as coisas como elas estão, uma relação de dominação e submissão. Para Guareschi e Grisci (1993), os mecanismos sociais, apesar de transformarem-se com o passar do tempo, permanecem com o objetivo de fazer com que um trabalhador trabalhe mais, ou seja, de forma mais dócil e eficiente, acreditando que não existe outra alternativa a não ser enquadrar-se no padrão desejado. Através da crença criada de que existe uma obrigação moral de trabalhar, de que é natural que uns tenham o controle sobre os outros, legitima-se as relações de submissão e coerção. De acordo com Dejours apud Araujo (1998), o sofrimento frente à organização do trabalho pode ser patogênico ou criativo. Pode ser patogênico quando o que prevalece no trabalho é a repetição, a frustração, o aborrecimento, o medo e o sentimento de impotência, levando o trabalhador a uma descompensação mental ou psicossomática e, conseqüentemente, para a doença. Já como força criativa, o trabalho beneficia a identidade do trabalhador, dando-lhe resistência à desestabilização psíquica e somática, tornando o próprio trabalhador um mediador para sua saúde. A presente investigação visa compreender como os elementos de uma organização do trabalho interferem na manifestação de uma doença do trabalho como a Lesão por Esforço Repetitivo (L.E.R.) tendo em vista que trata-se de doença do trabalho envolta em controvérsias. Para Oliveira (1998), a L.E.R. manifesta-se a partir de condições em que o trabalho é exercido pelos indivíduos enquanto seres sociais, estando também ligada à organização do trabalho e às relações sociais e econômicas existentes na sociedade. Por sua vez, a L.E.R., é uma doença decorrente de uma dada organização do trabalho que afeta a saúde do trabalhador, a produtividade (OLIVEIRA, 1998) e manifesta-se a partir das condições em que o trabalho é exercido, numa determinada realidade econômica e social. OBJETIVOS: compreender a relação existente entre a doença e a organização do trabalho, na visão dos portadores de L.E.R. do município de Cascavel, Paraná. METODOLOGIA: Trata-se de um estudo que se insere no campo da pesquisa social, desenvolvido numa abordagem qualitativa que tem por objeto um nível de realidade que não pode ser quantificado. Conforme a proposta de Minayo (1999) a abordagem qualitativa visa aprofundar no mundo dos significados das ações e relações humanas. A população do presente estudo foi composta pelos 210 filiados ao Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Públicas, Empresas de Economia Mista, de Estacionamento Regulamentado e Fundações do Município de Cascavel (SITEP). A amostra foi constituída por seis portadoras de L.E.R. da Companhia Cascavelense de Transporte e Tráfego (CCTT), concursados como orientadora de tráfego. Os aspectos éticos foram observados e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Unioeste. Os dados foram coletados através de entrevista semi-estruturada, com roteiro contendo duas partes: a primeira com dados de identificação (cargo, função, idade, tempo de empresa, diagnóstico), e na seqüência duas questões abertas contendo a descrição das atividades profissionais (rotina, exigências, forma de controle, forma de supervisão e relacionamentos), e a doença (início, sintomas apresentados). As entrevistas foram gravadas em fita cassete e transcritas logo após, sendo que as mesmas foram realizadas no período compreendido entre os meses de outubro de 2000 a janeiro de 2001 e encerrada com a repetição e a saturação dos dados. Houve muita relutância por parte dos participantes da pesquisa, devido ao receio em se expor, pelo desgaste provocado pela doença e pelas dificuldades vivenciadas na instituição e nas relações com colegas de trabalho e familiares. Foi necessária a intervenção do presidente do Sindicato para que os trabalhadores concedessem as entrevistas. Os conteúdos das entrevistas foram organizados a partir da leitura dos depoimentos transcritos que foram agrupadas conforme a semelhança das idéias apresentadas nos seguintes aspectos: carga horária, quantidade de trabalho, descrição da atividade, exigências, condições de trabalho, surgimento dos sintomas, reação da empresa frente à doença, limitações, posicionamento da chefia, descrição da doença e reação apresentada. Após a releitura dos conteúdos agrupados as idéias foram reagrupadas em duas categorias: “Processo de trabalho” e a “A L.E.R. como doença do trabalho”. Os conteúdos das duas categorias empíricas foram analisadas à luz do referencial teórico adotado no presente estudo. RESULTADOS E DISCUSSÃO: Na categoria denominada “Processo de trabalho” utilizou-se os conceitos referentes à organização do trabalho no modo de produção capitalista para analisar o desenvolvimento do processo de trabalho das entrevistadas. Inicialmente apresenta-se a caracterização dos participantes do estudo e os elementos da organização do trabalho. As entrevistadas eram todas do sexo feminino e que, como orientadoras de tráfegos, desenvolviam atividades na área de estacionamento regulamentado de Cascavel denominado Zona Azul. A idade variou entre vinte e sete e quarenta anos e o tempo de serviço entre cinco a sete anos. A rotina de trabalho das entrevistadas era estar nas ruas notificando veículos estacionados irregularmente; sem o cartão de autorização ou com o tempo expirado, bem como regularizar após a notificação, recebendo do usuário o valor referente ao período estacionado. A carga horária de trabalho era de oito horas diárias, de segunda a sexta-feira, com intervalo de duas horas para almoço e sem pausa durante a jornada. A avaliação do trabalho das participantes do estudo ocorria através da verificação da quantidade de notificações e regularizações emitidas por elas. Com o passar do tempo houve intensificação do trabalho já que a meta inicial de 50 avisos/dia foi aumentada para 150 avisos e 150 regularizações ao dia. O horário registrado nas notificações servia também como forma de controle do trabalho, por parte do supervisor, e quando o tempo de notificação gasto por carro ultrapassava um minuto era motivo de questionamento e cobrança. A ausência de pausas durante a jornada de trabalho aliada à avaliação quantitativa dos avisos emitidos ou de regularizações efetuadas pode levar ao desgaste físico, principalmente dos membros superiores, devido a especificidade da atividade desempenhada. A ênfase na quantidade destitui do sujeito o sentido mais amplo do trabalho, como possibilidade de transformar a si e ao mundo e torna-o alienado. Esta visão está em conformidade com o modelo taylorista de organização do trabalho que, ao enfatizar a atividade manual desconsidera o trabalho intelectual, parcializa as tarefas e exige o cumprimento de metas relacionadas à quantidade, como forma de controle e dominação. Outra forma de controle e dominação, entre as orientadoras de tráfego, ocorria através da competição existente entre elas. A disputa entre as trabalhadoras era acirrada como forma de diminuir as cobranças e vigilância exercida sobre elas, ficar em boa situação com a chefia e como forma de manter o emprego. Estas formas, aparentemente contraditórias de vivenciar o trabalho, ou seja, por um lado a cobrança explícita, por outro a responsabilidade de cada um em realizar suas tarefas como cobrança implícita, são formas diferenciadas de manutenção da organização do trabalho no modo de produção capitalista. A competição entre os trabalhadores é uma das formas encontradas pelos administradores para conseguir maior produtividade de cada um, conseguindo, além desta produtividade, algo que traz um ganho talvez maior que esta, a individualização dos trabalhadores, competindo entre si não fazem mais parte de um mesmo grupo, devem, portanto procurar atender interesses individuais, manterse no emprego, ser um bom empregado e bem quisto pela administração. A existência do controle do tempo necessário para cada tarefa em relação ao montante arrecadado, aliado à idéia de que quem produz mais é melhor evidenciava, entre as entrevistadas, a continuidade do conceito de “homem padrão” em que se estabelecem metas para o trabalho, sem considerar as características individuais, mas visando exclusivamente o aumento da produtividade. Esta perspectiva de que quem produz mais é melhor, atende a uma determinada concepção de trabalho e de trabalhador; em que o próprio trabalhador, com objetivo de destacar-se dos demais, assume o controle do próprio trabalho, tendo assim a impressão de que é ele que está no comando de suas atividades, e não mais a chefia, dando a falsa sensação de ter recuperado a sua subjetividade na atividade profissional desenvolvida, bem como sua autonomia. Porém, ficou claro nos depoimentos que isso ocorre com único objetivo do aumento da produtividade, já que o trabalho continua a ser medido, através da quantidade e velocidade da atividade desempenhada. O resultado da análise do processo de trabalho evidenciou o predomínio do trabalho repetitivo, ritmo intenso, exigências de cumprimento de metas quantitativas, num ambiente sem espaço para participação nas decisões ou manifestações de insatisfação. Trata-se de um conjunto de elementos que infligem ao trabalhador sofrimento que além do físico, atinge a autoimagem, a auto-estima e o universo simbólico. A condição de não planejar o que faz, não participar dos destinos de sua produção, não compreender as relações de dominação e exploração no contexto de trabalho pode levar ao sofrimento psicológico (GUARESCHI, 1993), pois a alienação do trabalhador em relação a seu trabalho, traz como conseqüência o sofrimento (CODO, 1997). Na segunda categoria “A L.E.R. como doença do trabalho” são abordadas as alterações físicas e as interferências no ritmo de trabalho decorrentes dessa doença. Por ocasião das entrevistas as trabalhadoras estavam afastadas de suas funções pela L.E.R.. O inicio dessa doença foi associado à mudança no ritmo de trabalho pela limitação física apresentada. A dor e a perda da sensibilidade dificultaram a escrita e restringiu o movimento para destacar as notificações e recibos. A progressão dos sintomas levou a diminuição da resistência física, do ritmo e da produtividade, ocasionando sofrimento às trabalhadoras. O desgaste vivido na tentativa de cumprir as metas exigidas e suas conseqüências sobre a saúde era percebido pelas entrevistadas, porém as mesmas obrigavam-se a extrapolar os limites físicos a fim de manter-se empregadas e com boa imagem perante o empregador. Segundo Dejours apud Tractenberg (1999), a organização científica do trabalho veio acompanhada de exigências fisiológicas até então desconhecidas, gerando novos padrões em relação ao tempo e ritmo de trabalho, fazendo com que o corpo seja o principal ponto de impacto e causa de adoecimento. Esta situação ficou demonstrada entre as entrevistas quando referiram que ocorreram alterações físicas que acabaram interferindo em seus ritmos de trabalho, mas que mesmo assim não podiam parar de notificar. Ao assumir condições desfavoráveis e inadequadas o trabalhador além de vender sua força de trabalho vende também sua saúde para permanecer empregado (BERLINGUER, 1983). Os resultados obtidos evidenciaram que o adoecimento das trabalhadoras foi decorrente das condições desfavoráveis da organização do trabalho marcada pela ausência de intervalos, exposição ao sol e temperaturas elevadas, falta de local adequado para higiene e hidratação. Acrescente-se ainda a convivência cotidiana com a tensão gerada pelos conflitos decorrentes da relação estabelecida com os usuários. Na atividade desempenhada como orientadoras de tráfegos recai sobre as trabalhadoras a imagem que os usuários do serviço fazem delas, visto que suas atividades acarretam ônus aos mesmos e assim muitas vezes eles acabavam por destratá-las, considerando-as como representantes da instituição. Os depoimentos evidenciaram que a organização do trabalho resulta em diferentes padrões de adoecimento dos trabalhadores, em função das condições de trabalho a que estão expostos os trabalhadores e as estratégias que estes utilizam para lidar com estas situações. De acordo com Berlinguer (1983) o trabalhador além de vender sua força de trabalho vende também sua saúde, submetendo-se às condições de trabalho desfavoráveis, porém, necessárias para sua permanência no emprego. Na situação estudada verificou-se que as condições desfavoráveis da organização do trabalho e das condições oferecidas para o desempenho das atividades, ocasionaram o adoecimento das trabalhadoras, mesmo que a doença aqui referida, a L.E.R., por vezes nem seja considerada real, mas uma invenção, fingimento ou mentira do trabalhador. Para as entrevistadas, as causas da doença relacionavam-se com as condições de execução das atividades, pois o preenchimento dos formulários ocorria sobre pranchetas, apoiadas no próprio braço, que interferia no posicionamento do punho da mão. Em função do desconhecimento em relação à gênese da doença e à própria discriminação existente, muitos trabalhadores relutaram em relacionar os sintomas iniciais com a doença, já que admiti-la significaria admitir também a diminuição da sua capacidade de trabalho e arcar com todas as conseqüências que isso poderia acarretar, assim o que ocorre inicialmente é a negação dos sintomas que acabam retardando o diagnóstico e o tratamento da L.E.R.. A dificuldade aumenta em relação á identificação dos sintomas em função do posicionamento de muitos profissionais da medicina que, também têm resistência em diagnosticar a doença como tendo sido causada pelo trabalho. A L.E.R. é uma síndrome que engloba diversas doenças já conhecidas da ortopedia, reumatologia e clínica médica que são decorrentes do uso excessivo das estruturas osteomusculares em condições especiais e inadequadas em que o trabalho foi executado, portanto, a denominação L.E.R. indica apenas a origem laboral da síndrome e ela aponta as contradições fundamentais do modo de produção capitalista (OLIVEIRA, 1998). O diagnóstico dessa doença do trabalho é fundamentalmente clínico e não apresenta, como outras doenças, a possibilidade de ser comprovada através da realização de exames complementares. Muitos profissionais médicos emitem prováveis diagnósticos e procuram explicar as suas causas no próprio individuo e desconsidera a relação da doença com o trabalho desempenhado. Entretanto, o diagnóstico inadequado resulta da falta de investigação do possível nexo existente entre a doença e a atividade desempenhada. Ao desconsiderá-la como uma doença do trabalho a explicação é buscada no indivíduo, que acabou sendo responsabilizado pelo próprio adoecimento, sendo sua gênese atribuída a fatores emocionais, genéticos ou de gênero. Outra tendência existente entre os médicos, verificado através dos depoimentos, foi caracterizar a L.E.R. como um problema psicossomático, ou seja, uma doença que teria sua origem em problemas emocionais do individuo e se manifestaria através de sintomas físicos, desvinculando assim a doença da atividade profissional e novamente responsabilizando o individuo por seu problema de saúde. A L.E.R. caracteriza-se por ser uma doença com um quadro clínico em que ocorre o predomínio dos sintomas com poucos sinais, tornando-a uma doença “invisível” e freqüentemente são motivos de dúvidas e acusações de simulação. Em função destas dificuldades quando o trabalhador percebe o aparecimento dos sintomas iniciais ele faz diversas tentativas de solucionar, individualmente, as dores apresentadas e assim evitar maiores sofrimentos decorrentes das acusações de simulação (MUROFUSE,2000). Trata-se de uma situação marcada por muita angústia e busca estratégias para solucioná-los, já que a possibilidade de ser visto como alguém que simula uma condição de sofrimento também é geradora de sofrimento. Quando a doença atinge um estágio que possibilita sua detecção através de exames de radiografias e ultrassonografias, os trabalhadores já estão apresentando limitações não só em suas atividades profissionais, mas também em atividades da sua vida diária. As entrevistadas relataram que devido ao preconceito e a discriminação muitos negaram a doença até impossibilitar o trabalhando. Tendo a capacidade laborativa comprometida, a L.E.R. afeta também as perspectivas em relação ao futuro pessoal e profissional, já que os entrevistados dependem exclusivamente de seu trabalho para garantir sua sobrevivência, sendo isto mais um motivo de sofrimento causado pela doença. A falta de perspectiva de reabilitação profissional e de alternativas que possam ser oferecidas pela empresa levam ao sentimento de abandono e desespero em relação ao futuro. O sentimento de abandono e desespero em relação ao futuro surgiu pela falta de perspectiva de reabilitação profissional e de alternativas na empresa. Os depoimentos corroboram os achados de Oliveira (1998, p.27) sobre o aspecto de que a L.E.R. “[...] cronificada tem uma faceta social terrivelmente excludente. Marginaliza o individuo.” Isto ocorre pelo fato de o individuo ser retirado do processo de produção, causando revolta e problemas emocionais, estes entendidos aqui como conseqüências da doença e não causa dela. Ao terem a clareza de que a doença da qual são portadoras tem como causa o processo de trabalho a que estão submetidas, as trabalhadoras entrevistadas passam a ter este sentimento de revolta e desânimo em relação ao trabalho e à empresa. Compreendem a condição de exploração a que foram submetidas e responsabilizam a empresa, conseguindo, assim, ainda maior hostilidade por parte desta, demonstrando um processo de conscientização em relação aos seus direitos como trabalhadoras. Como pudemos perceber através da analisa das falas das entrevistadas, a L.E.R. é uma doença relacionada ao trabalho, às condições em que ele é exercido, portanto, diretamente ligado à organização do trabalho no modo de produção capitalista, em que a exploração de um homem pelo outro permeia as relações de trabalho e determina a condição de vida do trabalhador. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A investigação realizada evidenciou que a organização do trabalho favoreceu o desenvolvimento da L.E.R., seu agravamento e o surgimento de novos casos. Os elementos comuns do processo de trabalho foram as excessivas exigências em relação à quantidade de atividades, condições de trabalho desfavoráveis e ausência de participação do trabalhador mesmo nas decisões que interferem diretamente em sua vida e, sobretudo, em sua saúde. Ao permanecer a lógica da exploração da “mão-de-obra” com vistas à produtividade, o adoecimento será uma constante seja como L.E.R. ou outras formas de manifestação. Contextualizando a relação de trabalho aqui estudada inserida, no modo de produção capitalista, em que o trabalhador é visto como mercadoria de compra e venda, ocorre o confronto entre quem compra o trabalho, e quer usufruir ao máximo da mercadoria comprada, e entre quem vende seu trabalho, que quer preservar sua força de trabalho para então poder vendê-la novamente, possibilitando assim sua sobrevivência, porém percebemos nesta luta a desigualdade de forças, como afirma Marx apud Oliveira (1998, p.179) “uma antinomia direito contra direito, ambos apoiados no intercâmbio de mercadorias. Entre direitos iguais, decide a força”. Na maioria das vezes a força maior, aqui referida, está nos compradores da mercadoria, restando ao trabalhador, vendedor desta mesma mercadoria, ceder nesta relação de forças. Quando os envolvidos num processo de trabalho concebem o modo de produção capitalista como natural e imutável, tornando também natural a venda e compra da força de trabalho, ao surgirem manifestações de falhas neste sistema, logo elas são vistas como devidas à falta de compreensão e adaptação do indivíduo, nunca do sistema. A justificativa para a ocorrência de falhas seria atribuída, ao trabalhador que por não estar adaptado, não saberia como exercer sua função sem adoecer, ou ainda como se fosse decorrente de seu estado emocional a causa que o estaria levando a ter problemas com sua produção ou ao seu adoecimento. Individualizar o problema ou desconsiderar a fala do trabalhador, parece ser este o caminho encontrado para que as coisas permaneçam como estão. Ao não conseguir, neste conflito de forças desiguais, impor suas defesas quanto aos excessos impostos à sua resistência física e psíquica, o trabalhador adoece. Vimos nos depoimentos que por vezes houve a tentativa de mudar a forma de trabalho imposta, porém, como não cabia aos trabalhadores este poder de decisão, restava-lhes apenas executar o determinado. O adoecimento, aqui especificamente falamos da L.E.R., veio então agravar a situação de trabalhadores expostos a condições de trabalho com exigências excessivas. O que percebemos nesta pesquisa é que a L.E.R. aponta as contradições capital/ trabalho ao relacionar o adoecimento do trabalhador à organização do trabalho e, também as contradições na questão saúde/ doença, ao considerar esta patologia como um problema individualizado e, mais ainda, por ter como sintomas iniciais a dor, e ser esta subjetiva, então difícil de ser comprovada e atestada, os profissionais da saúde encontrem-se também num momento de conflito dentro do seu conhecimento tradicional. Considerando-se os problemas trazidos pela doença, acreditamos que a prevenção é o caminho mais lógico a ser seguido, porém quando falamos em prevenção não estamos pensando em estratégias direcionadas ao indivíduo somente, como ginásticas laborais, técnicas de relaxamento, ou medidas ergonômicas, como observamos freqüentemente, e que originou o interesse por este estudo. Fazem-se necessárias aqui medidas mais abrangentes, referentes principalmente ao processo de trabalho e à organização do trabalho de maneira mais complexa. As questões em comum encontradas nos depoimentos, referentes à organização do trabalho, demonstram que o adoecimento do trabalhador não é um processo exclusivamente fisiológico, mas com uma faceta social determinante, a forma social de utilização do corpo, definida aqui pela organização do trabalho no modo de produção capitalista. Ouvir o trabalhador, considerar sua experiência, pensar o trabalho como processo construtivo e não condição de luta e exploração “natural” da organização do trabalho, parece ser um caminho possível para evitar novos sofrimentos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, J.N.G.; LIMA, M.E.A.; LIMA, F.P.A. (orgs.). L.E.R.: dimensões ergonômicas e psicossociais. Belo Horizonte: Health,1998. BERLINGUER, G. A saúde nas fábricas. São Paulo: CEBES-HUCITEC, 1983. CODO,W. O que é alienação São Paulo: Brasiliense, 1997. GUARESCHI, P. A.; GRISCI, C.L.I. A fala do trabalhador. Petrópolis: Vozes, 1993. MINAYO, M.C.S. (org) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1999. MUROFUSE, N.T. Mudanças no trabalho e na vida de bancários ocasionados por Lesões por Esforços Repetitivos-L.E.R. Ribeirão Preto, 2000. 204p. Dissertação (Mestrado), Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. OLIVEIRA, C.R de e Cols. Manual prático de LER. 2.ed. 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