1 NÃO MALEFICÊNCIA ... PARA O MÉDICO Max Grinberg Pacientes têm o direito de emitir sua opinião e aceitar ou rejeitar o que o médico lhes propõe; pacientes devem ser resguardados de danos desnecessários. Resumimos assim os princípios da autonomia e da não maleficência. Eles são pilares da Bioética aplicados em prol do bem-estar do paciente. No estado de São Paulo, o respeito à autonomia do paciente foi colocado na força da lei 10241/99: art. 2° inciso VII- consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem nele realizados; Há o outro lado da moeda. Vamos inverter e focar o bem -estar profissional: o médico tem o direito de emitir sua opinião sobre o que o paciente (inclui os que o influenciam- familiares, convênios, por exemplo) lhe propõe, inclusive rejeitar solicitações que sejam contrárias a sua consciência; o médico deve se resguardar de danos profissionais. Sintetizamos assim a autonomia e a não maleficência aplicáveis ao médico. Partimos do princípio que o médico exerce a sua profissão com uma gama de predicados como solidariedade, accessibilidade, espírito de amizade, honestidade, compaixão, tolerância e transparência. Por mais que a atitude do médico represente humanismo ou abnegação, assim mesmo ele estará sujeito a sofrer danos profissionais. Não existe médico sem paciente, ambos objetivam a beneficência do conhecimento científico e a capacitação operacional; a prática se faz numa relação humana plena de fatores psicológicos tão fortes quanto não explícitos, que exercem influência capital na qualidade da chamada aliança terapêutica. O médico que freqüenta a beira do leito vai se familiarizando com a diversidade das reações próprias da natureza humana face a vivências de angústias. Muitas contingências, acertos e erros de percepção trazem amadurecimento ao processo de interação com pessoas que se são idênticas no coletivo da condição de paciente, são desiguais na individualidade, algo que a natureza nos quer dizer através dos bilhões de combinações diferentes da impressão digital em todo o universo e que os cientistas atuais reforçaram no conceito do DNA. Na complexidade da relação médico-paciente, fortalece-se a consciência do médico sobre o valor de não descuidar das atitudes preventivas de lhe causar dano profissional. Há o código de ética, há as leis da sociedade e há a consciência, principalmente. Promover-se não maleficência significa o médico qualificar-se para o atendimento e habilitar-se para a comunicação, preocupar-se não somente com os fatores objetivos, mas também com os subjetivos. Neste sentido, não maleficência para o médico inclui: (1) SÓ FALAR SOBRE O QUE SABE; (2) SÓ FAZER O QUE ESTÁ CAPACITADO; (3) RESPEITO À PRÓPRIA AUTONOMIA; (4) JUSTIFICAR A NÃO APLICAÇÃO DE CONDUTA DIAGNÓSTICA /TERAPÊUTICA HABITUAL; (5) COMUNICAR-SE NUM QUANTUM SATIS CONTINUUM SOBRE O QUE ESTÁ ACONTECENDO; (6) REINVINDICAR INFRAESTRUTURA ADEQUADA. (1) SÓ FALAR SOBRE O QUE SABE Dizem que muitos podem falar os primeiros três minutos sobre qualquer assunto, o problema é do quarto minuto em diante. Expor assuntos dos quais não tem vivência, portar-se como “papagaio de literatura”, fazer análises críticas sobre situação que não está sobre sua condução são maleficentes para a imagem do médico perante os seus pares. Aqueles cinco minutos de exposição aos holofotes sem o devido mérito podem causar danos senão imediatos (ganhos até são conseguidos), certamente a médio ou longo prazo. Ampliar o seu saber constantemente beneficia a não maleficência sobre o que o médico fala, entretanto a velocidade com que surgem as novas informações científicas direciona o conhecimento para mais profundidade de menos assuntos. 2 É a tendência natural da nossa profissão, um processo de afunilamento a reboque do amadurecimento profissional, já a partir da formatura com a opção da residência médica. Logo vem a conscientização dos limites do ser médico, o que foi muito bem traduzido por um observador arguto na frase “não sou recém-formado para saber tudo”. (2) SÓ FAZER O QUE ESTÁ CAPACITADO A legislação é muito clara, o médico de posse do número do CRM pode praticar Medicina como um todo, independente de especialidadeatualmente há 52 reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina. A especialização é uma vantagem a serviço da sociedade, uma referência profissional; o título de especialista antecipa ao paciente que há capacitação, mas não há força legal para impedir atendimentos pelo não-especialista- não haveria, assim, a consideração de imperícia pré-estabelecida. Contudo, o médico responde ética e legalmente por tudo que porventura venha a praticar, ou seja, em qualquer ato, ele precisa evitar a imprudência de fazer o que não deveria ou a negligência de não fazer o que deveria. Forças de códigos e leis à parte, é de se esperar que o médico se atenha ao que se capacitou, até porque um dos prérequisitos da sociedade moderna para qualificar o bom médico é a honestidade profissionalalém de humildade e compaixão. É importante que cada médico, antes de tudo, e a título de não maleficência para si, defina para si próprio quais são os seus limites; inclui as especialidades a que tem direito pela legislação e suas subdivisões de atuação. A situação do clí nico geral ou médico de família é um exemplo na medida em que ele deve estar capacitado para cuidar de muitas situações inerentes a várias especialidades; ele necessita se valer de bom senso para reconhecer até que ponto pode controlar convenientemente a manifestação clínica sem necessidade de outras opiniões ou encaminhamento a uma atenção com maior infra-estrutura. O trabalho em equipe pode ser entendido como uma forma de não maleficência para o médico desde que organiza com um sentido multiplicador a capacitação individual, em prol da eficácia. (3) RESPEITO À PRÓPRIA AUTONOMIA A posse do diploma universitário- e do número do CRM- não obriga o formado médico a ser um agente da Medicina, há vários exemplos notórios. Uma vez na profissão, o médico não está sempre obrigado a conduzir um caso. O médico não renuncia a seus princípios quando se mostra prudente em relação a certas conseqüências para si do que faz para o paciente. Há ainda a figura da valorização profissional. Recorde-se o parágrafo 1º do artigo 61 do Código de Ética Médica: ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou seu responsável legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder. O conceito de autonomia profissional é complexo e até ambíguo e precisa ensejar reflexões no tocante à não maleficência para quem cuida de um bem maior chamado saúde. Há o estímulo à liberdade de opinião e de ação, mas há vínculos éticos e legais, há fuga do controle técnico e administrativo das mãos do médico e há necessidades de ordem econômica. Ademais, como ocorre uma reestratificação quanto a atuar sob contrato tácito da chamada medicina liberal ou sob contrato formalmente estabelecido não diretamente com o paciente, há os vínculos de ordem trabalhista. Por outro lado, a autonomia do médico transita também na dualidade entre o conhecimento refinado e idealizado sob forma de diretriz e a liberdade técnica necessária para satisfazer o conceito que cuidamos de um cidadão que está com uma doença e não de uma doença que acomete um cidadão. As generalizações inevitáveis são o calcanhar de Aquiles das diretrizes, até porque nem sempre o nosso paciente reproduz “o caso de livro”. Muitas combinações nosológicas ficam órfãs das recomendações I e IIa e necessitam essencialmente da perícia adquirida no feedback da beira do leito. 3 A autonomia do médico é garantida e limitada por códigos de ética. O Código de Ética Médica brasileiro há 15 anos fundamenta o comportamento ético com 19 princípios fundamentais. O 7° deles nos diz que “ o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem não deseje salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente” Ambulatório, enfermaria, pronto socorro, domicílio, via pública, urgência ou não, concordâncias ou divergências de opinião médico-paciente. Estas variáveis combinam lugares, quadros clínicos e posturas diferentes às muitas situações do nosso dia-a-dia profissional. Para cada uma delas aplica-se- ou não- o ponto de vista do consentimento pelo médico. Ele também deve ser livrepara aceitar ou não uma segunda opinião de colega, por exemplo-, esclarecido- sobre motivos do paciente, por exemplo- e com direito a renovar ou revogar a opinião de continuar assumindo o caso. Assim como o paciente pode definir o seu grau de tolerância à redução da humanização que costuma acompanhar o progresso científico, o médico também pode demarcar o quanto pode abdicar do que seria a conduta ideal, em prol da referida humanização. Destaque-se que tolerância deve ser entendida como a virtude de aceitar o que pode causar algum tipo de dano para si e que só deve ser aplicada às questões de opinião. Deve ficar bem claro que o médico não é escravo de exigências intoleráveis. Ele tem o dever-convicção acima de tudoético de se recusar a emitir um atestado inverídico; ele tem direito a sentir falta de empatia e expressá-la, até em nome da prudência, dispensando-se de um novo atendimento àquele paciente. Ressalvemse, obviamente, certos aspectos adjuntos relativos à responsabilidade perante risco à vida. A iniciativa pela busca da permissão ligada ao princípio da autonomia traz reflexões quanto ao conceito de território pessoal. A disposição para reconhecer que o outro é um ser humano implica na necessidade de aguardar que este franqueie acesso ao espaço que lhe cabe. O território do paciente é fundamentalmente o seu corpo que não deve ser invadido sem o consentimento; o seu ambiente habitual de vida pessoal ou profissional é dificilmente objeto de invasão, diretamente pelo médico. O território do médico é o seu ambiente de trabalho, que o paciente não deve invadir sem aviso- marcar uma consulta- e consentimento- consulta agendada; não se aceita que um paciente entre nem na sala de consulta ou no Centro Cirúrgico sem ser chamado. Ressalte-se, ainda, que o médico entende que não precisa de prévia autorização para entrar no quarto do internado, habitat provisório do paciente, mas que funciona como território do médico. Há diferentes distâncias de aproximação e afastamento na interrelação de territórios. Na relação médicopaciente, um extremo é representado pela mão do cirurgião dentro da barriga do operado e outro pela conversa telefônica. Na década de 60, o antropólogo Edward Hall publicou Proxemics- a study of man´s image in Medicine and Anthropology. Este autor com base em estudos desenvolvidos na Northwstern University identificou quatro zonas distintas da relação humana: íntima, pessoal, social e pública. Aplicadas à interação médico-paciente, cada modalidade pode ter um significado distinto em relação ao consentimento inerente ao princípio da autonomia. A distância íntima compreende 1545 cm e é aquela necessária para o exame físico ou para uma intervenção; emergências à parte, ela é consentida após um processo de comunicação. A distância pessoal corresponde àqueles 45-120 cm em que não fica natural o toque no outro e é observada na obtenção da anamnese ou conversa à beira do leito; é aquela utilizada para o diálogo sobre sintomas e condutas. A distância social é aquela onde predomina o contato visual, sem chance de um toque no outro, por exemplo um plantonista de UTI atento aos vários leitos; a comunicação verbal fica naturalmente prejudicada e subentende predomínio da atitude de observação do que foi instituído sobre a prática da execução. A distância pública situa aquela em que é impraticável a aproximação em curto espaço de tempo; ela permite a comunicação ao mesmo tempo que resguarda uma sensação de incolumidade do próprio território. É a observada no uso de algum veículo de comunicação, 4 telefone por exemplo. Nesta distância, eliminam -se as evidências da linguagem corporal, o olho no olho e há mais facilidade para se praticar dissimulações e recuos estratégicos. Para uma mesma relação médicopaciente, o consentimento livre e esclarecido pode resultar distinto nas várias distâncias. O paciente aceita a distância pessoal que permite manter a conversa que lhe propõe um tratamento cirúrgico, mas rejeita a íntima da intervenção; o médico consente em não realizar um toque ginecológico por peculiaridades de momento, mas rejeita dar alguma conduta por telefone, pela falta dos dados do exame adiado. No direito de expressar sua opinião sobre a do outro, o fundamental é que haja o reconhecimento das suas possibilidades de se adaptar apesar do desagradável, compreender embora discorde e de fazer até sacrificando as preferências, mas sem concessões à dignidade. (4) JUSTIFICAR A NÃO APLICAÇÃO DE CONDUTA DIAGNÓSTICA /TERAPÊUTICA HABITUAL: O artigo 57 do Código de Ética Médica preceitua que é vedado ao médico deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente. Uma série de condutas está cada vez mais organizada em diretrizes dentro do Trial-Guideline Education Process. Na prática, a diretriz funciona como recomendação de uma Sociedade de Especialidade aos seus membros e subentende uma racionalização a favor da qualidade do atendimento; a diretriz, contudo, adquire “status técnico-legal” sobre o que é para fazer e dá margem a controles sobre a ideologia e a prática. Assim, a diretriz facilita aplicar conhecimentos e ao mesmo tempo a cobrança de frias palavras independente do calor da beira do leito. Mas diretriz não significa gesso no raciocínio ou que estamos iludidos sobre a experiência que adquirimos. O cotidiano do aprendizado em serviço nos revela que cada paciente é uno e cuidamos um de cada vez. Os 85% de probabilidade de bom resultado da estratégia A maior do que os 60% da estratégia B é altamente válido para o coletivo, mas não beneficia aquele paciente que se encaixa nos 15% de insucesso com a estratégia A e ao mesmo tempo nos 60% de sucesso com a estratégia B. Aplicar esta reflexão, contudo, é difícil e implica em sucessão de tentativas. Condutas que “seriam para utilizar” podem ser inoportunas pelas circunstâncias, por isso não maleficência para o médico inclui justificar a não aplicação de conduta diagnóstica/terapêutica habitual, informando verbalmente para o paciente/família. Adicionalmente, é não maleficente deixar tudo por escrito no prontuário do paciente para que fique registrado que não se tratou de desconhecimento ou negligência, mas sim de uma decisão fundamentada. (5) COMUNICAR-SE NUM QUANTUM SATIS CONTINUUM SOBRE O QUE ESTÁ ACONTECENDO: O artigo 59 do Código de Ética Médica reza que é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal. Não maleficência para o médico inclui precaver-se do questionamento representado pela expressão “não fui informado”, muitas vezes seguida de “se soubesse não teria feito”. Como em geral estas palavras são ditas em situação de mau resultado, representam um agravante de mal-estar para o médico. Ademais, não maleficência para o médico é jamais garantir como 100% o bom resultado ou desvalorizar riscos, que por mais 0,...01% que sejam, acontecerão de novo com alguém como o caso “impossível” que influiu na base de cálculo. Argumentações estatísticas não necessariamente revertem insatisfações por expectativa frustrada pelo paciente/família. A má qualidade da comunicação médico-paciente/família é a principal causa de denúncias presumindo erro médico. Se é não maleficente fazer as comunicações verbalmente e por escrito no prontuário do paciente, há também que se fazer uma seleção nas palavras. A triagem do vocabulário é de ordem quantitativa- falar sem escassez ou excesso- ou qualitativa- termos inteligíveis 5 pelo leigo, evitando-se estilos obscuros e contradições. O processo de comunicação é sempre um continuum, mas o quantum satis a cada ocasião varia, idealmente de acordo com a sensibilidade do médico perante o paciente. Nunca mentir, talvez omitir é um princípio adotado por muitos que respeitam o direito do paciente de estar bem informado sobre os acontecimentos. Outros adotam a comunicação ao paciente por escrito, mas nem sempre há garantia se o que é lido resulta num real esclarecimento. O quantum satis continuum é facilitado pela confiança desenvolvida pela longevidade da relação médico-paciente. A convivência norteia os caminhos para uma comunicação com a adequada seleção de informações e escolha de momentos. Em conseqüência, criam-se as condições favoráveis para que a forma da comunicação benéfica para o paciente ajuste-se a não maleficência para o médico. (6) REINVIDICAR ADEQUADA: INFRA-ESTRUTURA A responsabilidade do médico passa por fatores ligados à infra-estrutura do ambiente de exercício profissional. O capítulo II do Código de Ética Médica indica que é um direito do médico ter boas condições de trabalho. Consideramos a Medicina uma atividade de meios, mas não basta prescrever ou operar corretamente para “vacinar-nos” contra não maleficência para o médico; causas do mau resultado tem sido atribuídas a quem deveria ter tido maior zelo em supervisionar certos tipos de obrigação institucional. Precisamos ter consciência que eventuais questionamentos refletirão diretamente na imagem do profissional. Exemplo é o do anestesista que não deve colocar a ventilação pulmonar do paciente sob sua responsabilidade sem antes fazer uma verificação sobre o funcionamento dos equipamentos de suporte. Por outro lado, há fatores que só serão percebidos depois do dano causado, como os ligados à infecção hospitalar. Outro aspecto que merece reflexão é a redefinição de condutas por políticas administrativas que circunscrevem os recursos e desta maneira criam variantes institucionais de diretrizes. Além disto, é importante não esquecer que não maleficência para o médico é lutar pelo direito exposto no artigo 8° do Código de Ética Médica: “ o médico não pode, em qualquer circunstância ou sob qualquer pretexto, renunciar a sua liberdade profissional, devendo evitar que quaisquer restrições ou imposições possam prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho”. Cada um certamente sabe o quanto pode fazer para compatibilizar o exercício da profissão e a liberdade profissional, mas ao mesmo tempo mostrar-se sensível a certos aspectos intervenientes, como os econômicos. O que o médico não pode é se sentir refém de uma má organização e falta inexplicável de recursos. Não maleficência para o médico neste aspecto significa que ele precisa se assegurar da existência de boa infra-estrutura, colaborar para a sua preservação e lutar pelo constante aperfeiçoamento.