EVOLUÇÃO CONCEITUAL E DISTINÇÃO ENTRE CIDADANIA

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EVOLUÇÃO CONCEITUAL E DISTINÇÃO ENTRE
CIDADANIA POLÍTICO-ELEITORAL, CIDADANIA
FISCAL E CIDADANIA PENAL AOS 16 ANOS
Manuella da Silva Nonô
2005
Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados
Centro de Documentação e Informação
Coordenação de Biblioteca
http://bd.camara.gov.br
"Dissemina os documentos digitais de interesse da atividade legislativa e da sociedade.”
EVOLUÇÃO CONCEITUAL E DISTINÇÃO ENTRE
CIDADANIA pOLíTICO-ELEITORAL, CIDADANIA
FISCAL E CIDADANIA PENAL AOS 16 ANOS
Manuella da Silva Nonô
Consultora Legislativa da Área I
Direito Constitucional, Eleitoral, Municipal,
Direito Administrativo, Processo Legislativo e Poder Judiciário
Câmara dos Deputados
Praça 3 Poderes
Consultoria Legislativa
Anexo III - Térreo
Brasília - DF
I - Evolução Histórica do conceito de cidadania
3
A cidadania na civilização greco-fomana: fase exclusivamente política
3
A cidadania individualista do Estado liberal...
5
A nova cidadania no Estado social
7
11 - Distinção entre cidadania político-eleitoral, cidadania fiscal e cidadania penal (aos 16 anos) 11
© 2005 Câmara dos Deputados.
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EVOLUÇÃO CONCEITUAL E DISTINÇÃO ENTRE
CIDADANIA pOLíTICO-ELEITORAL, CIDADANIA
FISCAL E CIDADANIA PENAL AOS 16 ANOS.
Manuela da Silva Nonô
I - EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE CIDADANIA
Para que se possa compreender em toda sua substância como se põe hoje
a questão da cidadania, é indispensável refletir sobre o curso da sua evolução histórica. As
instituições jurídico-políticas, como expressões da vida cultural, só adquirem sentido quando
examinadas no contexto da História.
A cidadania na civilização greco-romana: fase exclusivamente política.
Como ressalta Fábio Konder Comparato ', a etimologia já revela a
essência da origem histórica: pólites, que os romanos traduziram por cives, é o sócio da polis ou
civitas. Cidadãos são apenas os homens que participam do funcionamento da cidade-Estado, os
titulares de direitos políticos, portanto. Essa participação se fazia de forma direta, sem a mediação
de representantes, e basicamente na votação das leis e no exercício de funções públicas,
especiahnente a judiciária.
Na democracia ateniense, a prerrogativa essencial do cidadão foi a
isegoria, ou seja, a igual liberdade de palavra nas assembléias do povo, muito mais que a isonomia
ou submissão às mesmas leis, independentemente da divisão do povo em demoi e fratrias.
Assim, a cidade grega exigia, de seu cidadão, uma série de atividades
públicas que o absorviam quase que inteiramente e o tornavam, em tudo, co-responsável pela vida
da comunidade, podendo-se, assim, afirmar que o conceito de cidadania (politéia, em grego),
constitui uma das mais importantes realizações da pólis. Definia-se, então, a participação política,
não por meio das relações do indivíduo com o Estado, mas do indivíduo com a comunidade de
seus concidadãos. Da parte do indivíduo, avultavam as obrigações para com essa comunidade
COMPARATO, Fábio Konder. A Nova Cidadania. In: "Direito Público - Estudos e Pareceres". São Paulo: Saraiva,
1996, p. 3.
1
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que, por sua vez, coletivamente, assegurava seus direitos. A linha demarcadora dos limites entre
tais direitos e deveres variava de pólis para pólis. Os termos da participação de cada cidadão,
porém, eram claramente definidos por concordância geraf
O grau de participação do povo romano na atividade política foi bem
inferior ao do povo ateniense, mas, mesmo assim, não deixou de ser importante, considerados os
padrões modernos. No campo legislativo, as feges rogatae, votadas pelo povo reunido em comícios
(um para cada cúria) por proposta de um magistrado, parecem ter sido mais importantes que as
leges datae no período republicano. Em 286 a.c., a lex Hortensia estendeu a força vinculante dos
plebiscitos também aos patrícios. No campo judiciário, igualmente durante toda a república, os
juízes eram qualquer do povo e o instituto da provocatio ad populum permitia ao condenado a penas
graves recorrer diretamente ao julgamento popular.
Note-se que essa característica de status activus da cidadania greco-romana,
composta de poderes e não de meros direitos subjetivos, levava à criação de um sistema de
responsabilidades próprio do direito público. Pela curiosa instituição do grafê paranomon, por
exemplo, introduzida em Atenas no curso do 5.° século a.C. e de lá estendida a outras pofis gregas,
como Agrigento, qualquer cidadão podia citar outro perante um tribunal, pelo fato de haver
proposto à eclesia uma lei que se revelou inconveniente ou inútil. O cometimento de certos crimes
políticos era punido
COlTI
a atimia, isto é, a degradação cívica, total ou parcial, ainda que o
criminoso não fosse um agente público ou magistrado.
É claro que, quanto maior a intensidade dessa cidadania, maiores as
dificuldades para sua realização nas grandes sociedades políticas. Em Atenas, por exemplo, além
dos escravos, não eram cidadãos as mulheres, os estrangeiros (metecos), os artesãos e os
comerciantes (que, segundo Aristóteles, não teriam tempo suficiente para se dedicar aos negócios
públicos). Dos cerca de duzentos e cinqüenta mil habitantes de Atenas, calcula-se, hoje, que
apenas uns dez mil gozassem do direito de cidadania. No tempo do filósofo, a assembléia reuniase normalmente quarenta dias por ano.
Em contraste com a pujança do status político, o indivíduo na civilização
greco-romana não gozava de nenhuma liberdade privada, pertencia inteiramente à cidade, tanto
na guerra, quanto na paz. Não havia, praticamente, vida privada. Muitas cidades gregas proibiam
o celibato; outras, o trabalho manual ou, contraditoriamente, a ociosidade. Até a moda era objeto
de regulação pública: a legislação espartana determinava o penteado das mulheres e a de Atenas
proibia que elas levassem em viagem mais que três vestidos. Em Rodes, a lei impedia os homens
de se barbearem e em Esparta eles eram obrigados a raspar o bigode.
2
CAVALCANTI, Rosa Maria Niederauer Tavares. Conceito de Cidadania: Sua Evolucão na Educado Brasileira a
~P~a~rtI~·r~d~a~R~e~l'~ú~b~h~c~a.~fu::·o~d:e:..:.Jan::e:i~ro~:~S:E:N:.:.:AI:.:/:D:N:..:.:,:D:'~·VI:·s:::ãoã Pesquisas, Estudos e Avaliação, 1989, p. 24.
Tanto
a religião
quanto a educação
eram
assuntos
de
exclusiva
competência dos Poderes Públicos, pois tratava-se de moldar o caráter dos cidadãos para o
serviço da polis.
E concluindo, mais uma vez com Fábio Konder Comparato: "em suma, a
vida privada do mundo greco-romano, matriz da civilização ocidental, era o espaço social da sujeição e do poder
absoluto, em contraste com a liberdade ativa que prevalecia na esferapolítica. A pr6pria etimologia é reveladora
dessa dicotomia social Déspotes (ou domínus, em latim) designava o chefe da família; em seguida, por
extensão, o vocábulofoi usado para qualificar os monarcas orientais, que dominavam - no sentido próprio - seus
súditos, isto é, comportavam-se comoproprietários e não como chifespolíticos."
A cidadania individualista do Estado liberal
Com a decadência e o desaparecimento da civilização greco-romana, o
mundo ocidental atravessou vários séculos de supressão da cidadania. O status civitatis foi
substituído por um complexo de relações hierárquicas de dominação privada.
A sociedade medieval tornou-se, no decorrer dos séculos XI e XII,
grandemente estratificada. Data dessa época a formulação de três ordens, constituídas pelos que
guerreaValTI (nobreza), oravam (clero) e trabalhavam (súditos). O poder político concentrava-se
nas mãos do clero e da nobreza, cabendo aos súditos apenas obedecer à autoridade dos grandes
senhores diretamente relacionados com o soberano.
o
renascimento da vida política fundada na liberdade entre iguais deu-se
apenas a partir do século XI, nas cidades-Estado da península itálica, e com características muito
semelhantes às da cidadania antiga: o grupo dos que tinham direitos políticos era composto por
uma minoria burguesa, sob a qual labutava toda uma população de servos e trabalhadores
manuais, destituídos de cidadania.
O movimento de centralização e expansão territorial do poder político, a
culminar com a instauração do regime de absolutismo monárquico, suprimiu esse espaço limitado
de liberdades. Foi contra ele que se forjou, pela via revolucionária, o mundo político moderno.
Como fruto da "crise de consciência européid', despontou antes de tudo o
indivíduo e não derivados do grupo social a que pertence. Tratava-se, no fundo, de uma velha
idéia cristã, exposta anacronicamente em época histórica incapaz de compreendê-la e vivê-la. Ao
mostrar a seus discípulos gentios que "não há judeu nem grego, não há escravo nem homem livre, não há
homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesul'(Ga 3, 28), o apóstolo Paulo dava início à
destruição dos fundamentos do mundo antigo, feitos de submissão do indivíduo ao grupo social,
como parte em relação ao todo. Ao mesmo tempo, lançava as bases para ereção do sistema dos
COMPARATO, Fábio Konder. A Nova Cidadania. In: "Direito Público - Estudos e Pareceres". São Paulo: Saraiva,
1996, p. 5.
3
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direitos humanos, os quais pressupõem a igualdade de todos os indivíduos na comum dignidade
de pes soa humana.
A
consciência
da
cidadania
no
mundo
ocidental
moderno
é
contemporânea ao incremento do mercantilismo, ao nascimento da burguesia como classe social
e ao surgimento, no plano econômico, do sistema capitalista.
Os revolucionários ingleses e franceses, ao mesmo tempo em que
procuraram restabelecer a cidadania política abolida pelo absolutismo monárquico, reconheceram
em todo indivíduo, de qualquer sexo ou condição social, a titularidade de direitos naturais, que o
Estado deve respeitar, em todo tempo e lugar. A afirmação da naturalidade dos direitos humanos,
implica, correlatamente, a de sua universalidade.
A Assembléia Nacional Francesa teve de enfrentar, desde o início de seus
trabalhos em 1789, o problema político-ideológico suscitado pela confluência de duas correntes
de pensamentos. Durante todo o debate sobre a Declaração de Direitos, vários oradores
manifestaram-se, reiteradamente, em favor de seu alcance universal; de onde a utilização
preferencial do termo "homem", em lugar de "cidadão". Essa visão do mundo, que remonta ao
naturalismo antigo e foi, de certa maneira, consagrada por John Locke, reputa que os cidadãos de
qualquer país, de qualquer época, têm os mesmos direitos fundamentais, ainda que não
reconhecidos pelo Estado. Em sentido contrário, uma outra corrente de pensamento, mais ou
menos influenciada por Rousseau, entende que no "estado civil", contrariamente ao "estado da
natureza", "todos os direitos são fixados pela lei", como expressão da vontade geral.
É à luz desse choque de opiniões, o qual se acha, de resto, na origem da
controvérsia contemporânea sobre o positivismo jurídico, que podemos entender o fato de que a
Declaração de 1789 diga respeito, como autêntica fórmula de compromisso, aos direitos do homem e
do cidadão. A nova cidadania comporta, pois, duas dimensões: uma universal e outra nacional.
Todo homem é, doravante, protegido em seus direitos naturais, independentemente de sua
nacionalidade; mas somente os nacionais são titulares de direitos políticos.
Ademais e sobretudo, o valor básico da cidadania moderna - a liberdade
- adquire um sentido também muito diverso daquele vigente no mundo antigo. Como assinalou
Benjamin Constant já em 1819, em famosa conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris, na
civilização greco-romana só se consideravam livres os homens que participavam diretamente da
gestão da coisa pública, decidindo sobre a paz e a guerra, votando as leis, exilando um cidadão ou
julgando da responsabilidade dos magistrados
4
Mas esses cidadãos, soberanos na esfera política,
eram súditos obedientes da coletividade em sua vida privada. No mundo moderno, ao contrário, a
liberdade consiste não em participar da gestão
da coisa pública, mas em não ser molestado
abusivamente pelo Estado na vida privada. A essa independência individual, que constitui um fato
Aristóteles afirma: ((Di=<!}mos que é cidadão de um E stado
E stado" (Política, L I1I, Capo I, 1275, 15-20).
4
que tem acesso ao Conselho ou àsfunçõesjudiciárias deste mesmo
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sem precedentes na História, corresponde não propriamente uma servidão política, mas um
estado de passividade.
Pôs-se, então, a ruptura entre a cidadania civil e a cidadania política, a
primeira entendida como afirmação da soberania individual e a segunda, como delegação da
soberania coletiva. Disse "delegação", quando Benjamin Constant, que fazia no entanto o elogio
do sistema representativo, não hesitava em empregar o termo "abdicação". A representação
política como praticamos hoje era totalmente desconhecida do mundo antigo. A eleição expressa
o consentimento do eleitorado a que o eleito exerça determinada função pública. Mas isso não
significa que, ao exercer essa função, o eleito deva agir por conta e no interesse dos que o
elegeram, ou seja, como seu representante. As eleições antigas nunca foram mecanismos de
representação, pois os eleitos agiam sempre em nome próprio. No curso da Revolução Francesa,
houve uma completa separação entre o mandato civil e o mandato político. Os deputados eleitos
pelo povo representam "a nação" e não as pessoas que os elegeram.
Acontece que a "nação", enquanto titular da soberania, só pode exercê-la
pela manifestação da vontade do povo; e este não é composto, em sua totalidade, de pessoas
juridicamente capazes. Acresce ainda que, segundo as convicções da época, nem todos os homens
juridicamente capazes são socialmente aptos a concorrer ao exercício da soberania política. A
Constituição francesa de 1791,
COlTIO
várias outras que a tornaram por modelo no curso do século
XIX, notadamente a nossa Carta Constitucional de 1824, instituiu um sistema de eleição indireta
para o órgão legislativo, de modo que a soberania nacional, restrita exclusivamente à designação
de representantes, desdobrava-se ainda em duas instância eleitorais.
A esses direitos singularmente limitados de manifestação de hberdade
política os primeiros constituintes franceses atribuíram a qualificação paradoxal de "cidadania
ativa", sendo imitados pelo constituinte brasileiro de 1824. A admissão do chamado sufrágio
universal, com a extensão do voto às mulheres e aos analfabetos, não alterou, substancialmente, o
esquema. No terreno político, os cidadãos do Estado liberal são condenados à passividade, não
podendo intervir, de modo direto e oficial, no funcionamento das instituições públicas. A
soberania - quer seja atribuída à nação, quer ao povo - tem o seu exercício monopolizado pelos
representantes eleitos. Foi este o preço, como bem salientou Benjamin Constant, que o cidadão
da era moderna teve que pagar para resgatar a sua hberdade privada.
A nova cidadania no Estado social
o advento da sociedade de massas e o fenômeno de subdesenvolvimento
econômico e social levaram, em todos os quadrantes, à superação da cidadania liberalindividualista. Trata-se, exatamente, de uma superação no sentido hegeliano (AujhebuniJ, isto é, de
uma conservação dos elementos positivos, acompanhada de uma substituição dos negativos, sem
que haja, portanto, negação pura e simples do passado.
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A sociedade de massas instaurou o predomínio das relações impessoais e
simbólicas e pôs em foco, por isso mesmo, os chamados interesses difusos, isto é, não encarnados
especificamente num grupo ou classe social. Com isto, falseou-se o tradicional mecanismo de
representação
política,
que
implicava
o
relacionamento
pessoal
entre
representante
e
representados. Nas sociedades subdesenvolvidas, por outro lado, a essa impessoalidade da relação
política acresceu-se o pronunciado desnível sócio-econômico entre regiões geográficas, setores
econômicos e classes sociais, ocasionando o falseamento do sistema tradicional de garantia das
liberdades individuais. A liberdade e a igualdade, como se sabe desde há muito, não são valores
sociais iguahnente garantidos, tanto aos ricos quanto aos pobres.
o
sentido da "democracia" mudou e, com ela, o sentido da "cidadania".
A doutrina portuguesa ressalta que, desde o fim do século :XX, passou-se, sem se dar conta disso,
de uma democracia de representação para uma democracia de controle. Para o cidadão de hoje,
não basta eleger representantes de certo em certo tempo; há também que controlar como se
garantem e promovem os programas, bem como intervir e sancionar, direta ou indiretamente. A
cidadania é, assim, antes de mais nada, um sentido plurifacetado para compreender seus últimos
desenvolvimentos: cidadania política, civil, econômica, social. Subjaz uma relação de direitos e
deveres entre o indivíduo e a comunidade política na qual se insere. Como, em linguagem
simplificada, lembram Cyro de Barros Rezende Filho e Isnard de Albuquerque Câmara Neto,
"hqje, uma variedade de atitudes caracteriza a prática da cidadania. Assim, entendemos que um cidadão deve
atuar em benifício da sociedade, bem como esta última devegarantir-lhe os direitos básicos à vida, como moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre outros'", A cidadania implica também instrumentos,
para garantir direitos e sobretudo promover e controlar a eficácia do direito. E é, ainda,
exigência de acesso aos órgãos do poder, às instituições e à informação.
A idéia mestra da nova cidadania consiste, assim, em fazer com que o
povo se torne parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção social: é a idéia de
participação.
Segundo Fábio Konder Comparato, ela deve instaurar-se em cinco
,
6
nrveis :
a) na distribuição dos bens, materiais e imateriais, indispensáveis a uma
existência socialmente digna;
A idéia de que a proteção da pessoa humana não se realiza apenas pelas
liberdades públicas (pedra angular do Estado liberal), mas exige também a promoção compulsória
da igualdade social, permeia todo o direito constitucional contemporâneo. Em países
5 REZENDE FILHO, Cyro de Barros e cÂlvrARA NETO, Isnard de Albuquerque. A Evolucão do Conceito de
Cidadania. Artigo difundido pela internet pelos membros do Departamento de Ciências Sociais e Letras da
Universidade de Taubaté.
6 COMPARATO, Fábio Konder. A Nova Cidadania. In: "Direito Público - Estudos e Pareceres". São Paulo: Saraiva,
1996, pp. 10-11.
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subdesenvolvidos, cuja sociedade é profundamente desarticulada pela desigualdade, a questão dos
chamados direitos sociais é crucial.
De qualquer modo, o grande problema dos direitos sociais não está em
sua declaração, mas em sua garantia constitucional. Para concreta realização dessas garantias,
suscitam-se sérias objeções, tanto formais quanto materiais, que encontram diferentes respostas
da doutrina.
o
argumento de ordem formal contra a administração de uma garantia
constitucional dos direitos sociais costuma tomar a forma dilemática. Diz-se que, se os direitos
sociais são vinculantes (bindendJ, eles levam a uma transferência inconstitucional da política social,
do Legislativo para o Judiciário; se não o são, não seriam propriamente direitos fundamentais, por
não vincular a ação de todos os Poderes estatais. Sob o aspecto formal, ainda, salienta-se que a
realização dos direitos sociais pressupõe uma necessária equação financeira, e que o órgão
constitucionalmente competente para decidir sobra a matéria de finanças públicas é e sempre foi
o Parlamento, não o Judiciário. A objeção de ordem material seria uma suposta colisão entre os
direitos sociais e as liberdades individuais.
b) na proteção dos interesses difusos ou transindividuais;
Na definição corretamente dada pela Lei n." 8.078, de 11 de setembro de
1990, interesses difusos ou transindividuais são aqueles "de natureza indivisível, de que seja»: titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato" (art. 81, I). No sistema do direito liberalindividualista, tais interesses raramente eram protegidos; hoje, passaram ao primeiro plano. Daí a
necessidade de remodelar o sistema jurídico, no que diz respeito aos mecanismos de proteção a
essa espécie de interesses, com a revisão do tradicional princípio da legitimidade no exercício de
pretensões e ações judiciais, com a ampliação da competência dos agentes estatais, notadamente
do Ministério Público, e a introdução ou alargamento do princípio da defesa privada do interesse
público.
Nesse último aspecto, o primeiro instrumento de proteção dos interesses
difusos entre nós adveio com a admissibilidade de ajuizamento da ação popular para anular os
atos lesivos de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico (Lei n."
4.717, de 29.6.1965, art. 1.0, § 1.0). A Lei n. O 7.347, de 24 de julho de 1985, veio ampliar essa
proteção, ao criar a ação civil pública de responsabilidade, por danos causados ao meio ambiente,
ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico,
individualmente considerado, mas preferiu atribuí-lo a associações civis, constituídas há pelo
menos um ano, cujo objeto social seja a proteção daqueles bens. A Lei n." 8.078/90 ampliou essa
legitimidade ativa por substituição processual, ao admitir que o requisito da pré-constituição das
associações
CiViS
possa ser dispensado pelo juiz (art. 82, § 1.0) para a proteção de interesses
individuais homogêneos.
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c) no controle do poder político, englobando as prerrogativas da tomada
de decisões políticas fundamentais, a correção dos abusos da representação política e a censura
dos Poderes Públicos;
As decisões políticas fundamentais são as que dizem respeito à estrutura
da sociedade politicamente organizada ou ao desenvolvimento de políticas públicas. Os
instrumentos clássicos de participação do povo em tais decisões são o referendo/plebiscito e a
iniciativa popular legislativa, acolhidos pela Constituição de 1988.
No tocante à correção dos abusos da representação política, há autores
que defendem a introdução - ou reintrodução -, em nosso direito político, do recall e do mandato
imperativo.
Por sua vez, a censura pode ser de ordem jurídica ou ética. A censura
direta dos atos dos governantes, pela via judicial, é feita pela ação popular, que tem entre nós,
tradicionalmente, o efeito de anulação do ato praticado. A Constituição de 1988 introduziu
importante inovação no instituto, passando a também constituir objeto da anulação visada pela
ação popular os atos que lesem a "moralidade administrativa" (art. 5.°, LXXIII). A doutrina tem
defendido a instituição de Conselhos de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e Tribunais de
Ética Política, compostos, uns e outros, de cidadãos indicados pelas entidades representativas da
sociedade civil; a possibilidade de ação penal privada subsidiária da pública contra qualquer
agente, funcionário ou autoridade pública, magistrado ou membro do Poder Legislativo; e melhor
regulamentação do impeachment.
d) na administração da coisa pública;
Este é um campo praticamente inexplorado, embora seja sobejamente
conhecida a relevância da atuação administrativa do Estado Social.
A Constituição brasileira
adotou o princípio participativo no campo da seguridade social, assegurando o "caráter democrático e
descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores,
empresários e aposentados" (art. 194, VII).
e) na proteção dos interesses transnacionais.
o
despontar
das
pessoas
privadas
como
sujeitos
de
direitos
internacionais é um fenômeno incoativo, cuja primeira manifestação ocorreu com a criação da
Organização Internacional do Trabalho, no âmbito da qual são
admitidas reclamações
apresentadas por sindicatos patronais ou de trabalhadores, pelo não-cumprimento de uma
convenção coletiva de trabalho (Constituição da OIT, arts. 24 e 25).
A Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950, admitiu que a Comissão Européia de
Direitos do Homem possa conhecer de petição dirigida ao Secretário-Geral do Conselho da
Europa por qualquer pessoa singular, entidade não-governamental ou grupo de particulares, que
-----------IIlIr------------
se considere vítima de uma violação dos direitos reconhecidos na Convenção (art. 25).
Analogamente, dispõe a Convenção Americana sobre os Direitos do Homem, de 22 de
novembro de 1969 (art. 44).
Em todas essas hipóteses, a pessoa privada apresenta-se como vítima de
uma violação de direitos. O passo seguinte na constituição dessa cidadania universal consiste no
reconhecimento da legitimidade ativa de pessoas privadas para a defesa dos direitos humanos de
terceira geração, isto é, os que têm por objeto bens ou interesses de natureza transnaciona1. Esse
direcionamento tem-se feito sentir, sobretudo, em matéria de proteção ao meio ambiente, com o
clamor da opinião pública mundial sobre a necessidade e urgência de proteção do património
ecológico de toda a humanidade. O que falta agora é consagrar, no plano do direito internacional,
essa legitimidade substitutiva das pessoas privadas, para a defesa de bens que não pertencem a
nenhum país em particular.
11 - DISTINÇÃO ENTRE CIDADANIA POLÍTICO-ELEITORAL, CIDADANIA
FISCAL E CIDADANIA PENAL (AOS 16 ANOS)
Nos termos do Dicionário Parlamentar e Político", a palavra cidadania é
utilizada em três sentidos intimamente correlacionados: designa a qualidade ou estado de ser
cidadão; todos os cidadãos, coletivamente; e o conjunto de direitos e deveres inerentes àquela
qualidade.
Cidadão, por sua vez, é o membro de uma comunidade nacional, no gozo dos
direitos individuais e coletivos - políticos, sociais, econômicos -, assegurados pela Constituição
e/ou pelas leis do país, e sujeito às obrigações e limitações impostas por elas.
O Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (1986, p.
177) define cidadania como estatuto do relacionamento entre o indivíduo e a sociedade política, o
Estado. O indivíduo deve obediência ao Estado que, por sua vez, deve-lhe proteção. Em outro
verbete, define cidadania como o estatuto do cidadão numa sociedade, estatuto baseado na regra
da lei e no princípio da igualdade.
Deve-se distinguir cidadania de nacionalidade, posto que" esta supõe mera
qualidade de pertencer a uma nação, enquanto que o conceito de cidadania pressupõe a condição de ser membro
ativo do Estado para tomar parte em suas funções. A nacionalidade é um fato natural e a cidadania obedece a
uma espécie de contrato" (p. 178). Assim, o cidadão é dotado de uma qualidade e de um direito
expressos pela cidadania; possui uma condição jurídica com relação ao Estado a que pertence e,
em decorrência deste fato, deve submeter-se à autoridade e às leis, ao mesmo tempo que tem
assegurado o livre exercício dos seus direitos. Cada nação possui leis que regulam a concessão e o
exercício da cidadania, produto exclusivo da lei interna do país. Nacionalidade é, pois, o vínculo
7 FARHAT, Said. Dicionário Parlamentar e Político: o processo político e legislativo no Brasil. São Paulo:
Melhoramentos, 1996, p. 119.
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jurídico pessoal que prende um indivíduo a um Estado membro da comunidade internacional;
enquanto cidadania é o vínculo político, apropriado ao nacional no gozo dos direitos políticos.
o
título de cidadão só se completa e aperfeiçoa no ato do alistamento
eleitoral. A cidadania se exerce, entre outras formas, por meio do voto direto e secreto, com igual
valor para todos (CF, art. 14), bem como pelos instrumentos do plebiscito, do referendo e da
iniciativa popular das leis (incisos do art. 14).
O principal direito político do cidadão é o de votar e ser votado para
qualquer cargo eletivo, observadas as condições e requisitos de elegibilidade (CF, art. 14, § 3.° e
seus incisos e § 8.°), e não incorrendo o interessado nos casos de inelegibilidade ou
incompatibilidade dos §§ 4.° a 7.° do mesmo art. 14, ou, ainda, citados na Lei de Inelegibilidade
(LC n." 64/90). Ao lado dos direitos de votar e ser votado, a Constituição dedica os 77 (setenta e
sete) incisos e 2 (dois) parágrafos do art. 5.° à especificação de direitos e garantias à disposição
dos brasileiros e estrangeiros residentes no País, que igualmente se encontram em outras normas
constitucionais, a exemplo dos capítulos referentes à ordem social e à ordem econômica.
Dessa forma, a
cidadania derivada do
Direito
Constitucional
clássico toma o cidadão como o nacional com direitos políticos perante o Estado (de
votar, ser votado, de participar de concursos para preenchimento de cargos públicos), cidadania
que surge com o alistamento eleitoral (Constituição Federal, art. 14).
A cidadania é, pois, a expressão que indica a qualidade da pessoa que,
estando na posse da plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e no gozo de
seus direitos políticos." Possui duas dimensões: a ativa, que se traduz na capacidade pessoal de
compartilhar do exercício do sufrágio; e a passiva, que permite ter legítimo acesso a cargos
públicos, não apenas os de provimento eletivo, expresso no direito de disputar o sufrágio para
obtenção de mandatos representativos.
Na doutrina comum à maior parte dos manuais de direito constitucional
no Brasil, que reduz a cidadania à questão de caráter político-representativo, o analfabeto não é
um cidadão completo, posto que, embora possa inscrever-se como eleitor, tornando-se cidadão
ativo, não se pode tornar cidadão passivo, por não ter elegibilidade.
Como se pode ver da parte I deste estudo, o conceito de cidadania em
seu enfoque clássico deixou de satisfazer plenamente à realidade da sociedade contemporânea.
Daí o desenvolvimento de outras noções de cidadania, entre as quais a cidadania fiscal e a
cidadania penal, ambas objeto da consulta que nos foi dirigida.
MICHELS, Vera Maria Nunes. Direito Eleitoral de acordo com a Lei
Advogado, 2002, p. 13.
8
li.o
9.504/97. 2.a ed. Porto Alegre: Livraria do
-----------IIr------------
- Cidadania fiscal
Consiste
constitucionais
(CF,
arts.
145
a
a
ordem
162),
tributária
leis
no
complementares
conjunto
e/ou
de
dispositivos
ordinárias,
decretos,
regulamentos, atos administrativos, etc., destinado a implementar o direito, assegurado ao Estado
pela Constituição, de impor tributos. Tais dispositivos habilitam o Estado a cobrar impostos,
taxas, contribuições de melhoria, contribuições sociais, incidentes sobre salários, receitas,
despesas, lucros, propriedades, consumo, produção e circulação de mercadorias e serviços,
negócios, transações e outros atos de natureza privada, praticados pelos cidadãos - entre si,
individuahnente, ou reunidos em empresas e outras formas de sociedade -, sujeitos ao poder de
polícia do Estado ou por este regulamentados.
Compreende a ordem tributária, por parte dos cidadãos: o dever de
pagar os tributos legalmente impostos e, por parte do Estado: (1) observar as limitações
constitucionais e legais ao seu poder de tributar, (2) efetivar a repartição das rendas públicas, nos
termos determinados pela Constituição, e (3) empregar os recursos arrecadados, segundo suas
finalidades, na busca do bem comum do maior número possível de cidadãos.
Compete ao Estado observar certos princípios - como o da "não surpresa
do contribuinti', cuja violação torna ilegal, na prática: exigir tributos sem lei que os institua, fazê-los
incidir sobre atos e fatos ocorridos antes da vigência da lei que os instituir ou aumentar, cobrá-los
no mesmo exercício em que instituídos, e arrecadá-los antes da vigência da lei orçamentária anual
que incluir a respectiva receita - nova ou ampliada.
Completam a ordem tributária os meios à disposição do Estado para, de
um lado, coibir os atos praticados pelo fisco, com abuso de poder ou desvio de finalidade e, de
outro, punir as infrações praticadas pelos contribuintes contra as respectivas leis. O direito do
Estado de criminalizar as violações da ordem tributária tem fundamento no destino do dinheiro
arrecadado. Isto é: a sonegação, a retenção criminosa, a evasão são crimes contra o Tesouro.
A boa ordem tributária tem alguns corolários, como a obrigação do
Estado de empregar os recursos retirados da sociedade somente a bem dos seus interesses.
Agridem a ordem tributária os atos que representem favoritismo ou paternalismo ou, de qualquer
forma, instituam tratamento desigual entre contribuintes em igual situação; beneficiem ou
prejudiquem o contribuinte, em razão de ocupação profissional por ele exercida; ou criem tributo
com efeito de confisco, isto é, que esgote o valor da renda ou da coisa tributada; limitem ou
embaracem o tráfego de pessoas ou bens por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais.
Em seu artigo "Ética Tributária e Cidadania Fiscal", Roberto Wagner
Lima Nogueira, após discorrer sobre as alterações do Estado e do Direito atuais, voltando-se para
a abertura da ciência do Direito Financeiro e Tributário, com o reexame de temas como a justiça
fiscal, a redistribuição de rendas, o federalismo financeiro e a moralidade nos gastos públicos,
leciona:
-----------IIIr------------
"Ética éjustiça, portanto ética tributária éjustiça tributária, e serjusto, como bem já
ensinou ARISTÓTELES no Livro V de sua Ética a Nicômaco, é serproporcional, e ser injusto é violar a
proporcionalidade, o meio-termo entre os dois é, como bem disse ARISTÓTELES, o igual. Chamamos dejustiça
tributária, então, a justiça que será o meio-termo entre as necessidades de recursos públicos por parte do Fisco e a
capacidadede contribuirporparte do cidadiio'~.
Ainda segundo Roberto Wagner Lima Nogueira
lO
,
para falarmos em
justiça tributária numa sociedade democrática é essencial a presença de pelo menos duas
características básicas: I - uma forte regulação na distribuição de bens na estrutura básica da
sociedade, e II - cidadãos-contribuintes que em uma democracia constitucional pagam tributos e
mantêm um fundo comum público, destinado a garantir a oferta de bens e serviços impossíveis
de serem assegurados com eqüidade a todos os cidadãos, se entregues ao mercado. A garantia da
oferta básica de tais bens materiais e imateriais passa inexoravelmente pela intributalidade do
mínimo existencial (= bens primários, necessários
e
sobrevivência digna: moradia, escola,
saneamento básico, alimentação, saúde, etc.), e a ausência de oferta desses bens à camada pobre
da população redunda na perda do sentido humano, na perda da dignidade no âmbito econômico,
político, social e jurídico- fiscal.
Podemos falar hodiernamente no Direito Tributário em duas éticas: uma
ética fiscal 'privada, ética que norteia o cidadão-contribuinte que tem o dever fundamental de
pagar tributos conforme a sua capacidade contributiva, e outra ética fiscal pública, informada
por quatro valores superiores: (1) a liberdade, que consiste na aceitação da opção fiscal a ser
adotada pelo contribuinte, desde que respeitada a sua capacidade contributiva; (2) a igualdade,
no sentido de que todos os que estiverem na mesma situação haverão de sofrer a mesma
tributação; (3) a segurança, que pugna pela não-tributação de surpresa, irracional, etc.; e a
solidariedade, ápice da efetivação dessa ética.
Nesse contexto, cidadania fiscal é o conjunto de deveres e direitos (ou
direitos e deveres) dos cidadãos frente ao Fisco Brasileiro.
A relação jurídica tributária que se estabelece entre o Fisco e o cidadão
deve ser contemporaneamente pensada sobre dois prismas. Do ponto de vista dos efeitos desta
relação jurídica, podemos dizer que ela é unilateral porquanto o cidadão-carente é protegido
neste liame pela intributalidade do mínimo existencial (ou mínimo social, índice justo de bens de
primeira necessidade), isto é, o cidadão-carente na cidadania fiscal unilateral tem unicamente a
posição de sujeito credor da solidariedade do Estado, e o Estado tem unicamente a posição de
sujeito devedor desta solidariedade.
Já
na cidadania fiscal bilateral, a relação jurídica entre
Fisco e cidadão-contribuinte quanto a seus efeitos é bilateral, ou seja, há obrigação para ambas as
9 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Ética Tributária e Cidadania Fiscal. In: Revista de Estudos Tributários, ano V,
n." 27. São Paulo: Síntese. Set-out. 2002. P. 23.
10 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Op. cit., p. 26.
-----------IIIr------------
partes, deveres e direitos do Fisco, ética tributária, deveres e direitos dos cidadãos-contribuintes,
ética fiscal privada. Para que possa haver uma cidadania fiscal unilateral, uma proteção fiscal aos
cidadãos desprotegidos, há que haver uma atuação ética do Fisco, solidária e justa, bem como
existirem recursos, adquiridos por meio de uma redução drástica nos excessos de renúncias
fiscais
ll
e do pagamento de tributos por parte daqueles cidadãos em melhores condições
socioeconômicas, portadores de uma cidadania fiscal bilateral, que lhes garante o direito de pagar
tributos
segundo
sua
capacidade
contributiva
e
o
dever
constitucional
de
contribuir
financeiramente para o aperfeiçoamento e aprimoramento da cidadania fiscal unilateral.
Tributaristas modernos têm, pois, defendido que afirmar a existência de
uma cidadania fiscal bilateral é pensar outra perspectiva, que não aquela tradicional de dar
somente importância à discussão sobre a licitude ou a ilicitude da conduta do contribuinte, isto é,
se a conduta se materializou antes ou depois da fatispécie econômica: "o que se deve verificar
hodiernamente é se o contribuinte adotou uma forma jurídica para pagar o imposto, proporcionalmente e
razoavelmente de acordo com a sua capacidade contributiva. Se assim o JeiJ utilizou-se dos meios jurídicos
adequadamente; se assim não agiu, abusou dos meios jurídicos para sofrer carga tributária inJerior à sua
capacidade econômica, epor esta razão, deve ser desconsiderada a jormajurídica dada à jatispécie econômicd' 12.
Por outro lado, o que deve balizar a conduta do administrador não é a
maio r ou meno r onerosidade fiscal, lTIaS SllTI a capacidade contributiva da ernpresa-'contribuinte,
ou seja, se a empresa tem condições de contribuir com mais, é obrigada a isso por força do
preceito constitucional da capacidade contributiva (CF, art. 145, § 1.0, "sempre que possível.."), se
assim não o fizer escudando-se em formas desproporcionais à sua capacidade econômica, estará
se sujeitando à imposição fiscal de ofício. A presunção constitucional é da liberdade de se autoorganizar, todavia citada liberdade está umbilicalmente atrelada à perspectiva de que toda autoorganização é permitida desde que feita na direção de pagar tributos segundo a capacidade
econômica do contribuinte ':'.
Por outro lado, podemos entender, com Paulo Euclides Rang d
4
,
a
cidadania fiscal (lembrando-a raiz histórica da forma democrática de governo, consubstanciada no
princípio no taxatíon wíthout representatíon) significando contribuir mediante regras claras,
estáveis, uniformes, iguais para todos que se encontrem em situações equivalentes; poder
controlar a idoneidade dessas regras; poder informar-se satisfatoriamente sobre as performances
fiscais dos parceiros sociais, em cuja constatação se reforçam os fundamentos dessa relação de
Incentivos fiscais e facilidades a empresas na criação de pólos e distritos industriais, freqüentes nos países em
desenvolvimento, penalizam o cidadão-contribuinte, que acaba subsidiando estes beneficios.
12 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Op. cit., p.p. 38-9.
13 NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Op. cit., p. 39.
14 RANGEL, Paulo Euclides. Balanco Social e Cidadania Fiscal. In: Tributação em Revista: Anulabilidade do
Lançamento por Vício Formal. Ano 5, n." 21, jul.-set./97. p 55
11
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parceria, ou seja, cimenta-se a coesão social; controlar a neutralidade, imparcialidade, probidade,
eficiência da Administração Fiscal.
- Cidadania penal
A cidadania penal envolve os direitos dos cidadãos relativamente ao
Judiciário penal, princípios que regem o processo e o procedimento na jurisdição penal, como a
verdade real, a acusação pública, o juízo natural e permanente, o contraditório, o devido processo
legal, a publicidade do processo, a igualdade entre as partes, a presunção de inocência, o exame
imediato da legalidade da prisão provisória, a retroatividade da lei em benefício do réu, a
individualização da pena e de seu cumprimento, a assistência judiciária, a não-identificação
criminal, a proibição da pena de morte, de penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de
banimento e de penas cruéis, o respeito à dignidade dos presidiários, a soberania do Tribunal do
Júri, o direito público subjetivo à despenalização, o direito à suspensão do processo, o direito
imediato à liberdade provisória, com ou sem fiança, o direito de calar-se.
Sob o enfoque da idade, a discussão sobre a cidadania do menor que já
completou 16 anos envolve a contraposição da sua possibilidade de votar (cidadania políticoeleitoral ativa - CF, art. 14, § 1.°, c) e da sua imputabilidade penal.
Com efeito, o menor com 16 anos pode alistar-se eleitoralmente e votar
em seus candidatos, assumindo responsabilidades no tocante aos destinos do país. Mas é
penalmente inimputável, não podendo ser responsabilizado pelos crimes eleitorais que cometer,
ou mesmo por crimes mais graves, inclusive contra a vida. A presunção é de que falta ao menor
capacidade para distinguir o lícito do ilícito, o certo do errado, posicionamento inaceitável nos
dias atuais, em que a idade mínima de 18 anos para a imputabilidade penal gera frustrações e
senso de impunidade. Embora se saiba que uma maior severidade das penas não diminui a
criminalidade, o senso de impunidade em relação aos menores contribui para o aumento da
violência, sobretudo urbana.
Desde a entrada em vigor do Código Penal, que é de 1940, só os maiores
de 18 anos podem ser responsabilizados criminalmente. É o que estabelecem o artigo 27 do
referido diploma legal, o artigo 228 da Constituição Federal de 1988 e o artigo 104 do Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA (Lei n." 8.069/90).
A partir da vigência do ECA, os menores de 18 anos que forem autores
de crime ou contravenção estão sujeitos à medidas previstas nesse diploma legal: medidas de
proteção para as crianças, de O a 12 anos (art. 101) e medidas socioeducativas para os
adolescentes, de 12 a 18 anos (art. 112).
São medidas socioeducativas: advertência, obrigação de reparar o dano,
prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. E, para que
essas medidas sejam aplicadas ao adolescente autor de ato infracional (crime ou contravenção
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penal), é imprescindível que se instaure um processo judicial, com "acusação formal", onde o
jovem possa exercer o seu constitucional direito à ampla defesa e valer-se dos recursos cabíveis
(arts. 171 a 190).
Dentre essas medidas, destaca-se a de internação. Trata-se de medida
princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, aplicáveis a
adolescentes (12 a 18 anos) nas seguintes hipóteses:
privativa
de
liberdade,
a)
de
finalidade
pedagógica,
sujeita
aos
tratar-se de ato infracional cometido mediante agrave ameaça ou
violência a pessoa;
b)
por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
c)
por
descumprimento
reiterado
e
injustificável
da
medida
anteriormente imposta.
Nas hipóteses "a' e "b" acima, a internação não pode exceder a três anos,
sendo revista periodicamente, enquanto na situação prevista no item "c", a internação não pode
ultrapassar três meses (art. 121, § 3.° e art. 122, § 1.0).
Portanto, na pior das hipóteses, por mais horrendo que tenha sido o ato
infracional praticado pelo adolescente, a sanção mais grave prevista pelo ordenamento jurídico
pátrio ê a internação na FEBEM pelo prazo de três anos.
Independentemente da discussão mundial acerca da idade adequada ao
início da imputabilidade penal, certo ê que a internação de adolescente autor de ato infracional tal
como hoje está prevista na lei não se mostra justa, eficiente ou pedagógica. Acaso é justa, é
pedagógica, medida privativa de liberdade de três anos para socioeducar um adolescente que, por
exemplo, tenha cometido três latrocínios com idade de 17 anos e 11 meses, máxime quando se já
tivesse completado 18 anos estaria sujeito a pena de reclusão de 15 a 30 anos por cada crime?! O
tempo de internação deve poder ser maior e é necessário que se construam novas unidades para a
internação de adolescentes autores de atos infracionais, onde se cumpram os mandamentos do
Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura alojamento em condições adequadas de
higiene e salubridade, escolarização, profissionalização, esporte, lazer, cultura e assistência
religiosa.
Na prática, as unidades de internação - tal como nossos estabelecimentos
prisionais - funcionam como "escolas do crime", não restabelecendo quaisquer de seus internos.
Assim, a pura e simples redução da idade para a maioridade penal não irá resolver o problema da
violência, podendo, ao contrário, conduzir para o mundo do crime uma população cada vez mais
jovem. A maioria dos países do mundo globalizado de hoje adotam a idade de 18 anos para a
responsabilização penal (de fato, de 57 legislações pesquisadas por Tulio Kahn!5, apenas 17%
delas adotam idade menor do que 18 anos como critério para definição legal de adulto, podendo-
se citar Bermudas, Chipre, Estados Unidos, Grécia, Haiti, Índia, Inglaterra, Marrocos, Nicarágua,
São Vicente e Granadas).
Em resumo, como já foi adiantado por ocasião das informações
enviadas em março do corrente ano, ao longo da história, pelo menos três visões distintas de
cidadania se sucederam: a visão medieval, a liberal ou moderna e a atual. Na Grécia Antiga,
cidadania era considerada em seu sentido estrito, segundo o qual o cidadão é somente aquele que
pode votar e ser votado ("cidadania política") - cidadão era apenas o homem, livre e nãoestrangeiro. Com o fim do Império Romano desapareceu o Estado e, com ele, a liberdade,
alterando-se o conceito de cidadania. Da ausência de submissão pessoal (libertação da escravidão)
nas cidades medievais, passou-se à noção de simples titularidade de direitos ( em um Estado
regido por leis, em contraposição à simples e ilimitada submissão a um soberano), e desta à atual,
concernente ao gozo efetivo dos direitos individuais, coletivos, sociais e políticos (ou de
participação na vida política), todos embasados na nacionalidade, o direito a ter direitos.
A cidadania derivada do Direito Constitucional clássico (políticoeleitoral) toma o cidadão como o nacional com direitos políticos perante o Estado (de votar,
ser votado, de participar de concursos para preenchimento de cargos públicos), cidadania que
surge com o alistamento eleitoral (Constituição Federal, art. 14) e que, portanto, já existe, em
sua forma ativa, para os menores de 16 anos.
Cidadania fiscal envolve as garantias constitucionais dos cidadãos no
que concerne ao sistema tributário. A cidadania fiscal unilateral é a proteção fiscal aos cidadãos
carentes, pela intributalidade do mínimo existencial, índice justo de bens de primeira necessidade,
garantidores de uma vida digna. A cidadania fiscal bilateral, por sua vez, garante aos cidadãoscontribuintes o direito de pagar tributos segundo sua capacidade contributiva.
Por fim, cidadania penal aos 16 anos envolve a idéia de imputabilidade
penal, que hoje permanece a partir dos 18 anos. O menor está sujeito, no máximo, à medida
socioeducativa de internação por até três anos, e deveria encontrar na unidade de internação um
ambiente assecuratório de alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade,
escolarização, profissionalização, esporte, lazer, cultura e assistência religiosa.
Sendo o que nos cabia, por ora, informar, colocamo-nos à inteira
disposição para quaisquer outros esclarecimentos que a solicitante entender necessários.
15
IECCRlM n." 104, Ano 9, julho/2001, P: 11.
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