III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA “TRANSTORNOS DA IDENTIDADE SEXUAL” – A MEDICINA LEGAL DEFINE A HOMOSSEXUALIDADE, LESBIANIDADE E TRANSGÊNEROS. SABRINA GUERRA GUIMARÃES1 LINA MARIA BRANDÃO DE ARAS 2 RESUMO O presente artigo discute as terminologias ainda utilizadas em alguns dos livros recentes de Medicina Legal em seu ramo da Sexologia Forense ao tratar a homossexualidade, lesbianidade e transgêneros como distúrbios ou transtornos as orientações e identidades sexuais dos indivíduos, inclusive ainda utilizando o sufixo “ismo” remetendo essas categorias a doenças. Portanto, acreditamos que essas discussões auxiliarão na crítica a uma ciência hegemônica, androcêntrica e heteronormativa ao percebermos que esses livros acabam por legitimar a patologização num momento em que se busca a despatologização das identidades trans e a já despatologizada identidade homo. Palavras-chave: Medicina legal; Homossexualidade; Lesbianidade; Transgêneros; Feminismos. APRESENTAÇÃO A escrita deste texto se deu a partir de uma inquietação que surgiu quando, ao pesquisar o objeto da dissertação que trata da primeira médica legista do Brasil a Dra. Maria Theresa de Medeiros Pacheco, recorremos aos livros de medicina legal para entendermos como a pesquisada desenvolvia suas atividades profissionais. Com nossa formação na área de História e a pós-graduação voltada para Mulheres, Gênero e Feminismo e com o suporte teórico que ambas fornecem, lançamos um olhar crítico para o que líamos. Conforme íamos folheando as páginas de alguns destes livros, sem nenhum entendimento sobre as práticas da Medicina Legal e nem das áreas que ela 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em História (UCSAL). Bolsista FAPESB. [email protected] 2 Doutora em História e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA atende, isto é, a medicina e o direito, propusemos tratar especificamente de uma subparte que abarca exatamente o que interessa no desenvolvimento da questão proposta. Para dar uma visão mais ampla é preciso remeter o/a leitor/a, a breves definições da Medicina Legal. A Medicina Legal é uma ciência de largas proporções e de extraordinária importância no conjunto dos interesses da coletividade, porque ela existe e se exercita cada vez mais em razão das necessidades da ordem pública e do equilíbrio social. Não chega a ser propriamente uma especialidade médica, pois aplica o conhecimento dos diversos ramos da medicina às solicitações do direito. Mas pode se dizer que é ciência e arte ao mesmo tempo […] A Medicina Legal não se preocupa apenas com o individuo enquanto vivo. Alcança-o ainda quando ovo e pode vasculhá-lo muitos anos depois da escuridão da sepultura. É muito mais uma ciência social do que propriamente um capítulo da medicina devido à sua preocupação no estudo das mais diversas formas de convivência humana e do bem comum. (FRANÇA, 2011:1) A Medicina Legal se divide em inúmeros ramos e dentre elas está a Sexologia Forense e ora também tratada por Sexologia Criminal que é o ramo da Medicina Legal que estuda a atividade sexual humana relacionada às questões jurídicas, cíveis e criminais. “Se dedica ao estudo dos fenômenos relacionados com a reprodução humana, desde a concepção até o puerpério”. (DEL-CAMPO, 2005:187). A sexologia forense foi dividida em áreas para atender as demandas e são elas: Himeneologia forense- estuda toda questão médico-legal voltada para o casamento, desde o seu estabelecimento (momento do ato), suas finalidades (proteção a família, o dever de consumar as relações sexuais, procriação, proteção e educação da prole, fidelidade e outros). Obstetrícia forense- estuda toda questão médico-legal voltada para a mulher no período gestacional, do parto até o puerpério. Como também a investigação da paternidade através do DNA. Erotologia forense- estuda os crimes sexuais, a prostituição, o perigo e contágio e também os “distúrbios ou transtornos do instinto sexual” e é nesse ponto que iremos nos ater e que versará este trabalho, utilizando alguns livros da área para identificarmos a linguagem utilizada por eles que nunca contemplou e continua a não contemplar as chamadas “minorias”: homossexuais, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros e outros. Faremos, portanto, uma análise pautada nas teorias feministas que nos darão suporte para entender os discursos que legitimaram tais posicionamentos, assim como discutir a dificuldade da sociedade ainda munida de preconceitos e alicerçada por uma III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA ciência que só consegue admitir uma lógica baseada e presa no biológico: pênis (macho) vagina (fêmea) sem perceber as inúmeras possibilidades de gênero que nos são postas diariamente. Objetivamos colaborar para que se pense numa forma de analisar e monitorar esses livros que são lidos por alunos em formação no curso de Direito e na especialização em Medicina Legal e que compõem a gama de conhecimento dos futuros médicos legistas, advogados, juristas. Enfim, formadores de opiniões e regentes hierárquicos na sociedade. DOS LIVROS Em meio a discussões e seminários pela despatologização das identidades transgêneros somos remetidos/as a luta que também foi cunhada pelos homossexuais em relação à retirada do código 302.0 da CID (Classificação Internacional de Doenças) que caracterizava o “homossexualismo” como doença, DISTÚRBIO e perversão. A militância festejou a vitória em 17 de maio de 1990 quando em Assembléia-Geral da OMS (Organização Mundial de Saúde) foi retirada o "homossexualismo" da Classificação Internacional de Doenças. A partir daí seria adotado o termo homossexualidade referindo-se a comportamento e não mais o sufixo “ismo” que passava a ideia de doença. Perguntamos: porque a maioria dos livros de Medicina Legal ao tratar da Sexologia Forense ainda utiliza o sufixo ismo ao se referir à homossexualidade e lesbianidade? Por ter consciência da infinidade de obras/autores que tratam da Medicina Legal, trataremos de alguns exemplos para contribuir com essa discussão. Cada vez mais, acreditamos que podemos lutar e, dessa forma, conseguiremos uma sociedade mais igualitária, que respeite a sexualidade dos indivíduos. Portanto, traçaremos de início, um quadro onde se trata a homossexualidade e a lesbianidade como distúrbios ou transtorno do instinto sexual. Começarei analisando uma das edições mais atuais: Faz parte da sexualidade de um individuo seu instinto sexual. Esta qualidade se manifesta pela atração sexual que ele tem por outra pessoa levando em conta certos valores culturais positivos construídos como um patrimônio durante toda sua existência.Se este instinto se equilibra dentro dos padrões de normalidade, teremos o ideal. Todavia, vez por outra, surgem distúrbios, III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA transtornos, perversões e alterações da identidade sexual capazes de comprometer a segurança das pessoas e o equilíbrio da sociedade. A sexualidade é sempre um assunto que, ao ser tratado, impõe um certo cuidado. Ultimamente vem-se notando uma irrefreável inflação dessa forma de literatura, cujo interesse é atrair os menos avisados a veredas da sexomania e do erostismo. Tem sido comum falar de sexo a qualquer pretexto, ao até sem pretexto algum utilizando-se falsos conceitos científicos ou escamoteados por propósitos pouco recomendáveis.No relacionamento sexual do homem e da mulher, não existe apenas a satisfação da posse carnal. Há, isto sim, uma compensação afetiva que ultrapassa a simples exigência instintivo material e que oferece significações maiores.O perigo está no fato de que a juventude ávida de inovações, impregnada de sexo e erotismo, possa deixar-se arrastar por uma ideologia sexual, definida por alguns como forma de realização, mas que, na maioria das vezes, leva-os a terríveis frustrações. (FRANÇA, 2011:271) De fato, inicialmente acreditamos que os sufixos “ismos” e a referência a transtornos e distúrbios, poderia ser um problema de edição ou que fosse mesmo um pensamento vigente, mas não esperávamos encontrar numa edição de dois mil e onze pensamentos sexistas. O autor (FRANÇA) que será analisado mais longamente traz na sua obra uma classificação feita pela: Associação Americana de Psiquiatria em seu Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, quando equaciona os “transtornos sexuais e da identidade sexual” em três tipos: 1-Transtornos sexuais. Encerram as disfunções sexuais, como as alterações do desejo, mudança na resposta sexual convencional mal estar ou conflitos interpessoais. São eles: a)Transtornos do desejo sexual (desejo sexual hipoativo ou aversão ao sexo). b)Transtornos da excitação sexual (na mulher e na ereção do homem); c)Transtornos orgásmico feminino e masculino (ejaculação precoce); d)Transtornos sexuais devido a dor (dispareunia e vaginismo); e)Transtorno sexual devido a uma enfermidade, provocada por medicamentos ou não especificado. 2-Parafilias. São impulsos sexuais, fantasias ou comportamentosrecorrentes e intensos que implicam condutas pouco habituais. Entre as mais comuns destacam-se:exibicionismo, fetichismo, clismafilia, zoofilia, necrofilia, coprofilia, froutterismo, pedofilia, masoquismo, sadismo e voyerismo. 3-Transtornos da identidade sexual. A identidade sexual é a consciência imutável que alguém tem de pertencer a um ou outro sexo. Seu transtorno, portanto, consiste na identificação persistente com o outro sexo e um malestar com o seu próprio, querendo ser do sexo oposto. Esse é um assunto que vem causando muitos desafios devido à sua delicadeza e complexidade. (Id. Ibidem, 2011:271-272). Quando ele afirma que esse é um assunto que vem causando muitos desafios, ele está se referindo a causa já ganha dos homossexuais de não serem mais considerados doentes e a luta dos transgêneros e transexuais pelo mesmo objetivo. Mesmo assim ele acaba por se contradizer em muitos momentos e é por esse motivo que optamos por uma III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA descrição mais alongada da sua obra, quando ele analisa o item 3-“Transtornos da identidade sexual” começando pelo excessivo sufixo ismo: Travestismo- é um transtorno da identidade sexual. Pode ocorrer entre indivíduos heterossexuais, que se sentem impelidos a vestir-se com roupas de pessoas do sexo oposto, fato esse que lhes rende gratificação sexual. Em geral nesse tipo de erotopatia, o individuo é reservado e comedido e se traveste de maneira discreta e quase furtiva; muitos deles, apenas no recato dos seus lares e para satisfação somente sua. Havia um deles cujo prazer era apresentar-se aos seus amigos, em sua casa, vestido de bailarina. -Homossexualismo masculino- chamado também de uranismo ou pederastia, é uma das formas mais comuns de transtorno da identidade sexual. No entanto o problema do homossexualismo continua a desafiar, principalmente pela sua repercussão e pelo seu crescimento em todas as partes. A psicologia e a psicanálise disputam a primazia da elucidação e da justificação desta opção sexual. Seja qual for a sua etiologia, o homossexual tem de ser encarado como alguém que fez uma opção sexual e não como antes, um caso estritamente médico. Há necessidade de que se faça distinção entre homossexualismo, o intersexualismo, o transexualismo e o travestismo. No intersexualismo ou sexo dúbio, o individuo apresenta-se com a genitália externa e/ou a genitália interna indiferenciada como se a natureza não tivesse se definido sobre o sexo. No transexualismo, o individuo é um inconformado com seu estado sexual. Geralmente, não admite a prática homossexual. No travestismo, a pessoa sente-se gratificada com o uso de vestes, maneirismos e atitudes do sexo oposto. São tendentes ao homossexualismo. Homossexualismo feminino- também chamado de safismo, lesbianismo ou tribadismo. É muito mais comum do que se pensa. Vai desde os ciúmes perseguidores até a prática de atos libidinosos. Existem como na inversão masculina, graus variados que vão desde os tipos masculinizados (feições, hábitos, disfarces e maneiras de se portar) até os tipos femininos, delicados e ternos, nos quais jamais se poderia pensar numa inversão sexual. Também se distingue em ativas e passivas. Começa essa inversão muitas vezes em colégios, internatos, presídios, conventos e até nos prostíbulos, pelas amizades estreitas e continuadas. Não é raro encontrar-se uma lésbica, com filhos assumindo uma dupla personalidade, muitas vezes sem nenhuma aparência. A promiscuidade, o receio da gravidez, as decepções com os homens, os maus-tratos dos maridos, a educação moderna, a nova literatura, o comportamento masculino na atualidade, aproximando-se do unissexo, e a solidão podem ser considerados, entre outros, como elementos da gênese dessa anomalia. A chamada emancipação da mulher através dos princípios definidos pelos movimentos feministas e o exagero da liberdade que se apregoa têm determinado, sem dúvida, o aumento assustador do safismo. (Id. Ibidem, 275- 276). Nesta citação fica evidente que o discurso de ordem de gênero patriarcal ainda persiste na sociedade. Atacando o movimento feminista que aparece entre essas linhas de forma banalizada, sem importância, como se fosse um movimento solto sem teorias, III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA práticas e objetivos, como uma quimera que surgiu para abalar o modelo que deveria ser inabalável o da heterossexualidade. E o autor prossegue: As particularidades mais curiosas e constantes são: a aversão pelo sexo masculino e um amor violento, fustigado por ondas incessantes de ciúme passional quando se vêem abandonadas. Ciúme que deixa de ser prova de amor para se constituir em ódio e inveja. Mas um pecado que já nasce perdoado porque nasce no coração. Muitas vivem juntas e felizes numa águafurtada ou apartamento de luxo, dividindo o amor e a alegria. Outras terminam a convivência de maneira trágica e passional traídas pelo ciúme e pelo abandono. (Id. Ibidem, 276-277). Após explanar de forma infundada e preconceituosa a homossexualidade feminina o autor retoma a discussão sobre o transexualismo. De todos os transtornos da identidade sexual, o transexualismo ou síndrome de disforia sexual é aquele que mais chama atenção, pela sua complexidade e por seus desafios às questões morais, sociais e jurídicas. Roberto Farina (In transexualismo, São Paulo: Editora Novolunar, 1982) define-o como uma pseudossindrome psiquiátrica, profundamente dramática e desconcertante, na qual o individuo se conduz como se pertencesse ao gênero oposto. Trata-se, pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de cura por meio da cirurgia de reversão genital, assumindo, assim, a identidade do seu desejado gênero. (Id. Ibidem, 2011:275). França ao se referir dos aspectos médicos legais traz a diferenciação entre eles: Antes de qualquer análise, é necessário que se faça uma distinção entre transtorno da preferência sexual, transtorno da identidade sexual e perversão sexual. Na primeira situação, o individuo faz opção por certas práticas sexuais que, na identidade, são toleradas sem maiores censuras como a mixoscopia e o onanismo. No transtorno da identidade sexual, a pessoa se identifica sexualmente com o mesmo sexo, imitando o sexo oposto ou agindo como se fora igual, como nos casos do homossexualismo e do travestismo, que a sociedade começa aceitar como questão da preferência de cada um. E a perversão sexual, a manifestação mais abjeta da sexualidade, cuja prática denota um comprometimento moral e psíquico muito grave, e que justifica maior interesse médico-legal, como nos casos do bestialismo, da necrofilia e da pedofilia. (Id. Ibidem:279) Apesar de parecer amenizado os aspectos voltados para o transtorno da identidade sexual, ele categoricamente sentencia as escolhas feitas pelos indivíduos que não aceitam a sua identidade de gênero e também quem realiza a mudança de sexo: Na verdade o que se faz comumente nessas cirurgias é tão só a emasculação e a castração, com aproveitamento de retalhos de pelo do pênis e do saco escrotal para a confecção de uma aparente genitália feminina. Essa prática resume-se, pois, na confecção de um canal revestido de tegumento em III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA comunicação com o reto. Em suma, uma rude mutilação e uma disfarçada oficialização para uma pseudo- heterossexualidade, que- sob qualquer pretexto- tema representação de homossexualismo. Castrar e emascular um individuo, querendo valer-se de um suposto “sexo psicossocial”, parece-nos, à primeira vista, um método apressado e simplista de resolver uma situação complexa que deixa suas raízes num psiquismo alterado. Uma coisa é certa: pode-se até mudar o “sexo-civil”. No entanto, ninguém poderá transformar realmente, um sexo em outro: nem o endocrinologista, nem o psiquiatra, nem o juiz, nem mesmo Deus. (Id. Ididem: 280). De posse de mais quatro livros para analisar, fazemos a seguinte pergunta: como o/a discente de Medicina, de Direito e outros profissionais que se preparam para concurso público recebem essas informações postas nessas obras? Com uma base já imposta desde o seu nascimento de que pênis e vagina se completam e que algo fora desse padrão é anormal, esses livros acabam por reforçar essa noção já pré-concebida e forçosamente concebida. Outro autor, Flaminio Fávero, apesar de falar em travestismo e disfarcismo não trata a homossexualidade como homossexualismo, mas diz que são doentes psíquicos. Na forma congênita chamada de uranismo, o individuo bem conformado sexualmente é um doente psíquico; tem ele pendor homossexual, pudor também homossexual, consciência absoluta do ato sexual invertido, mas sendo conduzido a ele por verdadeira obsessão. Além disso entrega-se preferivelmente ao exercício de profissões do sexo oposto ao seu do qual, ainda assume, certas particularidades de caráter, atitude, vestes (travestismo ou disfarcismo). (FÁVERO, 1991: 811) O livro de Celso Martins é voltado para concursos públicos e não se diferencia dos demais nas abordagens: Os conceitos de transtornos de personalidade devem considerar a sociedade dominante. Alguns casos devido à agressão moral e/ ou física que produzem, enquadram-se exclusivamente como aberrações, chegando à condição de psicopatias; outros, embora firam ainda alguns padrões sociais enquadram-se em desvios sexuais. (MARTINS, 2010:114). E também utiliza o sufixo ismo para denominar “homossexualismo masculino ou uranismo ou pederastia; Homossexualismo feminino ou safismo, lesbianismo ou tribadismo”. (Id. Ibidem:115). Outro livro analisado é um de bolso e, também, voltado para provas de concursos de Ricardo Bina e traz as seguintes informações: III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Distúrbios Sexuais: são doenças, ou transtornos relacionados aos atos libidinosos que podem não ter causa apenas psicológica, mas também psiquiátricas. Nesse caso, podem figurar como doenças mentais. Alguns desses transtornos despertam interesses apenas para a medicina. Outros já provocam ações antissociais punidas pelo direito, despertando interesses médico-legais. P. 133. São distúrbios sexuais: Transexualismo: é a negação do próprio sexo. A pessoa não aceita seu corpo. Mais comum em homens que gostam de se passar por mulheres. Pode estar associado a distúrbios mentais, mas também pode ter causa genética e hormonal.Algumas pessoas nascem com corpo de homem, mas apresentam caracteres femininos ou vice-versa. Muitos países discutem a legalização de cirurgias de mudança de sexo. P. 135/136. Homossexualismo: é a atração sexual por alguém do mesmo sexo. Nos homens recebe o nome de pederastia ou uranismo. Nas mulheres de safismo, lesbianismo ou tribadismo. (BINA, 2009:136). Analisando mais um livro, na edição de 2009, Eduardo Del-Campo nos traz o seguinte esquema: Transtorno do desejo sexual hipoativo Transtorno da aversão sexual Transtorno da excitação sexual feminino DISFUNÇÕES SEXUAIS Transtorno erétil masculino Transtorno orgásmico feminino Transtorno orgásmico masculino Ejaculação precoce Vaginismo Dispaurenia Transtorno decorrente de uma condição médica geral disfunção sexual induzida por substância TRANSTORNOS SEXUAIS TRANSTORNOS DA IDENTIDADE DE GÊNERO Elencadas no DSM-IV PARAFILIAS Transexualismo Homossexualismo egodistônico Exibicionismo Fetichismo Frotteurismo Pedofilia Masoquismo Sadismo Voyeirismo ou mixocospia Parafilias sem outra especificação Outras parafilias apontadas na doutrina médico-legal, e novas terminologias. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Nesse contexto, nos propomos analisar o que se encontra no esquema acima, esse autor cita homossexualismo e homossexualidade ao mesmo tempo: Transtorno da identidade de gênero ou homossexualismo No transtorno da identidade de gênero propriamente dito ou transexualismo, existe uma forte e persistente insatisfação com o próprio sexo, acompanhada de uma identificação com o gênero oposto. O individuo possui corpo masculino, mas tem o desejo de ser ou até mesmo insiste que pertence ao gênero e feminino (transexual de homem e mulher), ou apresenta caracteres sexuais femininos, mas sente-se como homem (transexual de mulher a homem), chegando, inclusive, à transformação sexual cirúrgica. O transexual é um inconformado com seu estado sexual e não admite ser um homossexual. A homossexualidade (preferência pelo mesmo sexo) não é mais aceita como desvio sexual ou anormalidade, antes correspondendo a um modo de expressão sexual alternativa. Exceção deve ser feita em relação à forma egodistônica (CID-10-F 66.1), em que o homossexual mostra se descontente com sua situação e procura a terapia, quer para superar a insatisfação, quer para modificar padrão de comportamento. (DEL-CAMPO, 2009:50). Diante da análise desses livros fica evidente que todos eles ainda estão numa elaboração arcaica e desconectada dos debates atuais, pois a homossexualidade e lesbianidade não são mais consideradas doenças e, por isso, o sufixo ismo já não os cabe. Estamos diante, portanto, de uma sociedade cada vez mais doente de preconceitos seja ela de ordem de gênero patriarcal, religiosa e de falta de informação e educação, precisamos rever tais conceitos e fazer uma crítica concisa a essas leituras que já não se encaixam no século XXI, portanto, nesse caso, é de suma importância tratarmos essas questões e fomentar as discussões que estão sendo feitas no campo feminista e queer que trazem contribuições fundamentais para trabalharmos de forma contundente tais críticas. NOVOS FEMINISMOS E A TEORIA QUEER Em tempo de discussões sobre as despatologização das identidades trans é mister falar da importância dos novos feminismos nesse campo. Concordando com Ella Sohat quando cunhou o termo feminismo no plural, essa autora, assim como outras, nos chama a atenção para: III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA […] Ver o feminismo como área de pesquisa de genealogias múltiplas. Essa formulação vai a contrapelo de uma narrativa feminista eurocêntrica que simplesmente situa a emergência do feminismo na Europa e nos Estados Unidos. Também vai a contrapelo de uma narrativa difusionista iluminista que só consegue ver o feminismo no interior do projeto de modernidade. (MALUF E COSTA, 2001:159). É exatamente nesse sentido que sabemos das discussões acirradas dentro dos movimentos feministas. Sem dúvida, essa tarefa seria bem menos problemática para todas nós se o pensamento feminista não fosse uma arena de tensões, onde se embatem posicionamentos plurais e polêmicos, quando não conflitantes. É claro que essa diversidade de olhares e de posturas certamente enriquece nossos discursos críticos sobre a sociedade e a ciência, como uma de suas expressões; contudo, as divergências entre feministas tornam impossível falarmos de “epistemologia feminista” no singular. (SARDENBERG, 2002:98). Nessa linha de pensamento em pluralizar o feminismo que me remeto a Gayle Rubin em Pensando o Sexo, quando denuncia a forma como o feminismo lidava inadequadamente com as práticas sexuais não convencionais. O feminismo sempre foi vitalmente interessado no sexo, mas houve duas correntes do pensamento feminista sobre a matéria. Uma tendência tem criticado as restrições aos comportamentos sexuais das mulheres e denunciado os custos altos impostos à mulher por ser sexualmente ativa. Esta tradição do pensamento sexual feminista tem conclamado a libertação sexual que funcionaria para mulheres e homens. A segunda tendência considerou a liberação de ser inerentemente uma mera extensão do privilégio masculino. Essa tradição ressoa como os discursos anti-sexuais e conservadores. Com o advento anti-pornografia, atingiu hegemonia temporária sobre a análise feminista. (RUBIN, 1984:35). De fato a resistência do movimento feminista sofreu inúmeras críticas e ao deixar em aberto uma lacuna, deu espaço para a chamada Teoria Queer que foi influenciada por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, pelas suas análises do poder, do discurso e desconstrução. A Teoria Queer acaba por se recusar a classificar os indivíduos de forma universal como: homem, mulher, homossexual e heterossexual, pois as diferenças de comportamentos sexuais são muitas e não se encerram em termos binários, fazendo uma ampla discussão para as possibilidades de gênero não os universalizando também, mas trazendo-os para o bojo da sociedade, informando a existência destes enquanto indivíduos dentro um universo sexista e heteronormativo, ou III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA seja, “as minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer”. (PRECIADO, 2001:14). A crítica radical do sujeito unitário do feminismo, colonial, branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta em marcha. Se as multidões queer são pós-feministas não é porque desejam ou podem atuar sem o feminismo. Pelo contrário, elas são o resultado de um confronto reflexivo do feminismo com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher” hegemônico e heterocêntrico.(Id. Ibidem:17). Voltando a Rubin, essa autora é categórica ao dizer que o feminismo não deveria ser o campo privilegiado para trabalhar a sexualidade e que esta deveria ser distinta do gênero, mas apesar das criticas que faz ao movimento feminista, ela fala dessa arena de tensões e a sua contribuição. A liberação sexual foi e ainda é um dos objetivos feministas. O movimento de mulheres talvez tenha produzido parte do mais retrógrado pensamento sexual lado a lado com o vaticano. Mas também produziu uma defesa excitante, inovadora e articulada do prazer sexual da justiça erótica. Este feminismo “pró-sexo” tem sido encabeçado por lésbicas cuja sexualidade não se conforma ao modelos de pureza (primariamente lésbicas sadomasoquistas e lésbicas do modelo sapatão/ feminina), por heterossexuais sem remorso, e por mulheres que aderiram ao feminismo radical ai invés de versões revisionistas de celebração da feminilidade, que se tornaram tão comuns. (RUBIN, 1984:37). A autora chama a atenção para a Medicina e a Psiquiatria que multiplicaram as categorias de má conduta sexual (Id.Ibidem:14), assim como chamamos a atenção para a Medicina Legal. Ela faz uma análise trazendo como exemplo uma pirâmide para explicar a estratificação sexual para assim poder contestá-las, onde em seu topo encontram-se: Heterossexuais maritais e reprodutivos estão sozinhos no topo da pirâmide erótica. Clamando um pouco abaixo se encontram heterossexuais monogâmicos não casados em relação conjugal, seguidos pela maioria de heterossexuais. O sexo solitário flutua ambiguamente[...]Casais lésbicos e gays estáveis, de longa duração, estão no limite da respeitabilidade, mas sapatões de bar e homens gays promíscuos estão pairando um pouco acima do limite daqueles grupos que estão na base da pirâmide. As castas sexuais mais desprezadas correntemente incluem transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas, trabalhadores do sexo como as prostitutas e modelos pornográficos, e abaixo de todos, aqueles cujo erostismo transgride as fronteiras geracionais. (Id. Ibidem, 13:14). III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Retorno a Preciado para citar a sua explanação sobre o que busca a multidão queer: A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, transhistórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a ação política. A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”... Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”. (PRECIADO, 2011:18). É fundamental trazer para essa discussão o pensamento de Judith Butler e sua teorização sobre a identidade performativa que têm sido descritas como indispensáveis ao feminismo pós-moderno, afirmando que há modos de construir a nossa identidade que irá perturbar a quem interessa manter oposições existentes: macho/fêmea, masculino/feminino, gay/hétero e outras possibilidades, para ela todo gênero é, por definição, não natural. Não há uma relação necessária entre o corpo de alguém e o seu gênero. É possível ser uma fêmea “masculina” ou um macho “feminino” e, também, outras possibilidades. Nessa perspectiva ela faz uma crítica ao feminismo que não amplia o seu campo de visão que acaba por essencializar como forma de estratégia política. Critica também a ciência que tem como verdade e matriz a heterossexualidade. As relações de poder que permeiam as ciências biológicas não são facilmente redutíveis, e a aliança médico-legal que emergiu na Europa do século XIX gerou ficções categóricas que não poderiam ser antecipadas. A própria complexidade do mapa discursivo que constrói o gênero parece sustentar a promessa de uma convergência inopinada e generativa dessas estruturas discursivas e reguladoras. Se as ficções reguladoras do sexo e do gênero são, elas próprias, lugares de significado multiplamente contestado, então a própria multiplicidade de sua construção oferece a possibilidade de uma ruptura de sua postulação unívoca. (BUTLER, 2003:58) O conceito central no pensamento de Butler é direcionado a performatividade que ela explica significar uma prática repetitiva (reiterativa) e citacional (que cita/nomeia), como exemplo: de tanto repetir uma forma de comportamento e um nome que associa aquela que tem vagina ao nome de menina, acaba-se criando a feminilidade e o mesmo ocorre com os meninos e essas práticas reprimem as diversas possibilidades. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A linguagem e o discurso é que “fazem” o gênero. Não existe um “eu” fora da linguagem, uma vez que a identidade é uma prática significante, e os sujeitos culturalmente inteligíveis são efeitos e não causas dos discursos que ocultam a sua atividade. É nesse sentido que a identidade de gênero é performativa. (SALIH, 2012:91). Portanto, essas discussões demonstram o quanto à ciência é autoritária e arbitrária ao trazer a heterossexualidade como algo natural, pronta, finalizada e perfeita e qualquer pensamento que fira a sua integridade é considerado anormal, ocasionando ruptura dos padrões desejáveis. Então é necessário que se faça uma crítica a essa ciência excludente e preconceituosa, como bem ressaltou Edgar Morin que além de citar todas as virtudes e importância da ciência para a humanidade, também destaca o seu caráter duplo: “essa ciência libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terríveis de subjugação. Esse conhecimento vivo é o mesmo que produziu a ameaça do aniquilamento da humanidade”. (MORIN, 2008:16). Feyerabend faz uma discussão da necessidade de se questionar a ciência, seus métodos e suas aplicações. A unanimidade pode indicar uma redução de consciência crítica: a crítica permanece fraca enquanto apenas uma opinião está sendo considerada. Esta é a razão pela qual uma unanimidade que depende apenas de considerações “internas” acaba sendo errônea. (FEYERABEND, 2011:110) Seguindo esse raciocínio encerramos nosso artigo, ainda preocupadas da mesma maneira como no seu início, porém acreditando que a partir dele e outros tantos que possam aparecer, que de alguma maneira consigamos monitorar, propondo uma discussão para que esses livros de Medicina Legal possam ser reestruturados e dialoguem com outras matrizes teóricas correntes no século XXI, onde não dá mais para conceber preconceitos e qualquer tipo de discriminação. REFERÊNCIAS BINA, Ricardo. Medicina Legal. São Paulo: Saraiva, 2009. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero – feminismo e subversão da identidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003. DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina Legal. São Paulo: Saraiva, 2005. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA DEL CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina Legal II. São Paulo: Saraiva 2009. FÁVERO, Flamínio. Medicina Legal: Introdução ao estudo da medicina legal, identidade, traumatologia. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. FEYERABEND, P. Parte II – A ciência em uma sociedade livre. In.: _____. A ciência em uma sociedade livre. São Paulo: UNESP, 2011. MALUF, Sonia; COSTA, Claudia. Feminismo fora do centro: Entrevista com Ella Sohat. Estudos Feministas, N. 01, 2001. MARTINS, Celso. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. MORIN, E. Parte I- Ciência com consciência. In.:_____. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1):312, janeiro-abril/2011 - disponível em: http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/27062011-060716p-1120-preciado.pdf RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the Politics of sexuality. In VANCE, Carole. Pleasure and danger: exploring female sexuality. Pandora Press, (1984). (Há uma tradução para o português disponível na internet: Pensando o sexo: notas para uma teoria Radical das Políticas da Sexualidade, por Felipe B.M. Fernandes). SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. SARDENBERG, Cecília M. B. Da crítica feminista à ciência a uma ciência feminista? In: Sardenberg, Cecília Maria. Bacellar. Feminismo, ciência e tecnologia. Salvador: Redor. (Coleção Bahiana). 2002.