CENTRO UNIVERSITÁRIO METODISTA IZABELA HENDRIX CURSO DE SERVIÇO SOCIAL GLEISON HENRIQUES DA SILVA PEREIRA DILEMAS E PERSPECTIVAS DO SERVIÇO SOCIAL NO TRABALHO COM O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI OU AUTOR DE ATO INFRACIONAL BELO HORIZONTE 2012 GLEISON HENRIQUES DA SILVA PEREIRA DILEMAS E PERSPECTIVAS DO SERVIÇO SOCIAL NO TRABALHO COM O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI OU AUTOR DE ATO INFRACIONAL Trabalho de Conclusão de curso apresentado ao curso de Serviço Social do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, como avaliação parcial da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso II. Linha de pesquisa: Serviço Social, Política Social e Estado. Orientador (a): Sther Mendes Cunha BELO HORIZONTE 2012 GLEISON HENRIQUES DA SILVA PEREIRA DILEMAS E PERSPECTIVAS DO SERVIÇO SOCIAL NO TRABALHO COM O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI OU AUTOR DE ATO INFRACIONAL Trabalho de Conclusão de curso apresentado ao curso de Serviço Social do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, como avaliação parcial da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso II. Linha de pesquisa: Serviço Social, Política Social e Estado. Aprovada em 11 de dezembro de 2012. Profª. Especialista Sther Mendes Cunha Orientadora Profª. Jaqueline Lago Homem Antunes Docente Examinador 1° Prof.ª Klauze Silva Docente Examinador 2° AGRADECIMENTOS Nesses quatro anos, no Curso de Serviço Social, fui “bombardeado” com informações que jamais imaginava ter acesso e isso foi permitindo que vendas que obstruíam meus olhos caíssem ao chão a cada etapa desse caminho. E nesse caminho, muitas pessoas contribuíram para o meu crescimento humano, social, político e profissional. Sinto-me privilegiado por pessoas assim terem cruzado meu caminho e por fazerem parte da minha história. Se você está lendo essa mensagem, sinta-se privilegiado (a), pois você faz parte da minha história e dessa conquista. Obrigado por tudo! Essa conquista não seria possível sem os protagonistas da minha história, que foram a minha família, os amigos, os professores e companheiros formandos. Agradeço a minha orientadora Sther Mendes Cunha pela competência e sabedoria. Gostaria de agradecer também ao MTD - Movimento dos Trabalhadores Desempregados, ao Coletivo da Juventude Olga Benário, a eterna CIA Teatral Alvorada, ao Grupo Fragmentos, ao Programa “Fica Vivo!” Núcleo Jardim Felicidade, ao Centro de Saúde Campo Alegre, à AVSI, às Obras Educativas Padre Giussani, à Casa de Acolhida Novella e aos colegas de estágio do SAMRE/ TJMG. Sou muito grato a todos, vocês são parte do meu universo e de uma forma ou de outra, sempre estiveram comigo e me deram força para lutar! Qualidade de vida, o que vem a ser? “Ter, de fato, liberdade de se expressar. Por onde quer que eu vá, dúvidas vou encontrar. Tenho sede, estou faminto. De igualdade, de equidade. Trabalhar, pescar, filosofar, Marx disse. Alguns acham que é tolice. Trabalho, saúde, moradia, educação, lazer, segurança e assistência. Todos garantidos por lei, mas para funcionar com qualidade, necessita-se muita luta e persistência. Busca pela paz, luta pela sobrevivência. Busque formação, pois necessitamos de transformação. Atue com consciência”. (Gleison Henriques) RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso aborda os dilemas e perspectivas do Serviço Social no trabalho com adolescentes em conflito com a lei. O objetivo geral da pesquisa foi apontar os dilemas e perspectivas do trabalho do Serviço Social junto a este segmento social. A questão social, os marcos legais e a construção histórica dos direitos do adolescente em conflito com a lei configuraram-se como referenciais teóricos. Este trabalho foi organizado da seguinte forma: histórico do trabalho do Serviço Social na área sociojurídica, da gênese a contemporaneidade; Serviço Social no Brasil, do Conservadorismo à Intenção de Ruptura; O Serviço Social na contemporaneidade; O contexto sociojurídico; Revisão literária das políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei; a questão da inimputabilidade, a perspectiva dos códigos de menores de 1927 e 1979; O adolescente em conflito com a lei como sujeito de direitos, a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como reflexão sobre o tema, constatou-se que questões de responsabilidade do Estado “caem” muitas vezes sobre a responsabilidade jurídica, uma vez que, o Serviço Social atuando na linha de frente do atendimento e do acompanhamento das medidas socioeducativas, se vê limitado frente às expressões da “questão social”, visto que o sistema de proteção integral previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ainda é ineficiente. Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente. Proteção Integral. Adolescente em Conflito com a Lei. Serviço Social Sociojurídico. ABSTRACT This conclusion of course work addresses the dilemmas and prospects of Social Work in working with adolescents in conflict with the law. The overall goal of the research was to point out the dilemmas and prospects of Social Work along this social segment. Social issues, legal frameworks and historical construction of the rights of adolescents in conflict with the law configure themselves as theoretical. The paper is organized as follows: history of work in the area of Social sociojurídica, the genesis contemporaneity; Social Services in Brazil, the Conservatism of Intent to Break; Social work in contemporary society; Context sociojurídico; Review literary policies care to adolescents in conflict with the law, the question nonimputability, the prospect of smaller codes of 1927 and 1979, the teen in conflict with the law as a subject of rights, the Constitution of 1988 and the Statute of Children and Adolescents. As a reflection on the subject, it was found that issues of state responsibility "fall" many times over legal liability, since the Social Service working on the front line of care and monitoring of educational measures, is seen limited ahead to expressions of the "social question", since the system of integral protection under the Child and Adolescent (ECA) is still inefficient. Keywords: Statute of Children and Adolescents. Full Protection. Adolescents in Conflict with the Law Social Sociojurídico. LISTA DE SIGLAS ABC Ação Básica Cristã (ref. Cruzada do ABC) ABEPSS Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social ABESS Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social ART Artigo AASPTJ Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça BH Belo Horizonte CEDEPSS Centro de Documentação e Pesquisa em Políticas Sociais e Serviço Social CF/1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CFESS Conselho Federal de Serviço Social CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CONESS Comissão de Especialistas de Ensino em Serviço Social CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social DC Desenvolvimento de Comunidade DCA Direitos da Criança e do Adolescente EC Emenda Constitucional ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FEBEM Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor FUNABEM Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada LA Liberdade Assistida LBA Legião Brasileira de Assistência MC Média Complexidade MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MEC Ministério da Educação e Cultura MJ Ministério da Justiça MNMMR Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização MSE Medida Socioeducativa OEA Organização dos Estados Americanos ONG Organização Não Governamental ONU Organização das Nações Unidas ORG Organizadores PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNBEM Política Nacional de Bem-Estar do Menor PR Presidência da República PSC Prestação de Serviços à Comunidade PSE Proteção Social Especial PUC/MG Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais REF Referência ou Referente RJ Estado do Rio de Janeiro SAM Serviço de Assistência ao Menor SEDH Secretaria Especial dos Direitos Humanos SESO Serviço Social SESU Secretaria de Educação Superior SGD Sistema de Garantias de Direitos SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SNAS Secretaria Nacional de Assistência Social SP Estado de São Paulo SPDCA Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente SSE Sistema Socioeducativo TIAR Tratado Inter-Americano de Assistência Recíproca TJ Tribunal de Justiça UNB Universidade de Brasília UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Número de Adolescentes segundo o sistema socioeducativo e a população total de adolescentes de 12 a 18 anos – Brasil – 2000 .......................................................................... 27 Tabela 2 - Perfil dos adolescentes em cumprimento das medidas socioeducativas semiliberdade, internação e internação provisória no Brasil - 2004......................................... 28 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Registro de marcos legais das políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional no âmbito sociojurídico e seus rebatimentos no Serviço Social no Brasil - 1927 a 2012 ................................................................................................. 46 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13 2 BREVE REVISÃO DE LITERATURA SOBRE AS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI OU AUTOR DE ATO INFRACIONAL .............................................................................................. 15 2.1 O adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional e a questão da inimputabilidade ................................................................................................................ 15 2.2 Adolescentes “delinquentes e em situação irregular”: a perspectiva dos Códigos de Menores de 1927 e 1979 ................................................................................................... 17 2.3 O adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional como sujeito de direitos: a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) .............. 22 3 A HISTORICIDADE DO TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL NA ÁREA SOCIOJURÍDICA: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE ............................. 30 3.1 Serviço Social no Brasil: do Conservadorismo à Intenção de Ruptura .............................. 30 3.2 O Serviço Social na Contemporaneidade ........................................................................... 37 3.3 O campo sociojurídico e a atuação do Serviço Social no trabalho com adolescente autor de ato infracional .................................................................................................................... 40 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 48 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 52 13 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho de conclusão de curso de Serviço Social pretende realizar um estudo, de cunho bibliográfico, cujo objetivo geral consiste em apontar os dilemas e as perspectivas do trabalho do Serviço Social com o adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional. A respeito do adolescente com conflito com a lei ou autor de ato infracional, várias questões são suscitadas, pois se esbarram em valores, em questões aprendidas e apreendidas na vida, repassadas culturalmente e historicamente, confrontando-se, assim, com o posicionamento ético, político e ideológico do Serviço Social. Para a reflexão da produção sobre os dilemas e as perspectivas no cerne do exercício profissional com adolescentes autores de atos infracionais, se faz necessária uma breve e sintética visitação ao percurso histórico do Serviço Social e as políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional. O interesse pelo tema justifica-se por dois motivos: o primeiro pela possibilidade de contribuir para o debate acerca do tema, que merece grande atenção do Serviço Social, entre outras áreas do conhecimento, para que o exercício profissional possa ultrapassar os limites impostos pelo sistema capitalista, visando profissionais mais criativos e pró-ativos, a fim de, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, principalmente no que diz respeito aos direitos da criança e do adolescente. A escolha do tema é fruto da experiência de estágio supervisionado realizado no início do segundo semestre de 2011 até outubro de 2012 na Vara Infracional da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na Comarca de Belo Horizonte. Tal aproximação instigou a compreensão de conceitos e minúcias referentes ao tema de pesquisa. A metodologia utilizada para a construção deste estudo partiu de uma pesquisa exploratória sobre a temática e se fundou em uma pesquisa bibliográfica, tomando como referência autores importantes da área do Serviço Social, como Iamamoto, Carvalho, Netto, Fávero, Rosa, e Wanderley; e ainda, da área das Ciências Sociais, como Volpi. É uma pesquisa bibliográfica, cujo objetivo maior é apontar os dilemas e as perspectivas do Serviço Social no trabalho com o adolescente em conflito com a lei. Pretende-se elucidar reflexões a cerca do tema, sendo “dedicada a reconstruir a teoria, conceitos, ideias, ideologias, polêmicas, tento em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos” (DEMO, 2000, p. 20). Os dados qualitativos obtidos foram alcançados através de trabalhos já produzidos, como 14 artigos, livros, legislações e fichamentos realizados a partir das leituras sobre o conteúdo, a fim de, melhor contribuir para a compreensão do tema (GIL, 2002). Também foram utilizados como fonte, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). O primeiro capítulo realiza uma breve revisão de literatura das políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, introduzindo o leitor a conceitos, a fim de conduzi-lo a reflexão proposta. O primeiro subcapítulo trata da questão da inimputabilidade do adolescente em conflito com lei. O segundo subcapítulo realiza o resgate histórico das políticas de atendimento na perspectiva dos códigos de menores de 1927 e 1979. O terceiro subcapítulo aborda o adolescente em conflito com a lei como sujeito de direitos, tendo a Constituição da República Federativa de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como norteadores, a fim de, conceber a criança e o adolescente como detentores de direitos integrais, cujas responsabilidades são da família, sociedade e Estado. O segundo capítulo buscou esboçar a historicidade do trabalho do Serviço Social na área sociojurídica, desde a gênese até a contemporaneidade. O primeiro subcapítulo, busca resgatar importantes elementos pós I Guerra Mundial (1914-1918) que contribuíram para a emergência do Serviço Social como profissão no Brasil, tendo a “questão social” como principal objeto de intervenção. O segundo subcapítulo, ilustra o cenário atual da profissão, trazendo importantes marcos legais que contribuíram para renovação crítica da profissão. O terceiro subcapítulo trata do contexto sociojurídico e o trabalho do Serviço Social no acompanhamento das medidas socioeducativas. Por fim, nas considerações finais pretende-se expor reflexões a cerca do tema, apontando minúcias da profissão que se esbarra em questões políticas e históricas. Pretende-se também, indicar a profissão importantes compromissos com a democracia, a igualdade, a liberdade e a justiça social, a fim de, vislumbrar a efetivação das políticas de atendimento a infância e a juventude, fazendo jus ao sistema de proteção integral previsto pelo ECA e pela Constituição Federal de 1988. 15 2 BREVE REVISÃO DE LITERATURA SOBRE AS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI OU AUTOR DE ATO INFRACIONAL “Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome E eu não tinha nem nome pra lhe dar Como fui levando, não sei lhe explicar Fui assim levando ele a me levar E na sua meninice ele um dia me disse Que chegava lá Olha aí Olha aí Olha aí, ai o meu guri, olha aí Olha aí, é o meu guri” (O Meu Guri – Chico Buarque/1981). 2.1 O adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional e a questão da inimputabilidade Até o início da década de 90, o adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, ficava a margem da sociedade. O mesmo era visto como “menor” no sentido de inferioridade, de abandonado e de delinquente. Essas questões suscitam, ainda nos tempos atuais, bastante repercussão nos meios de comunicação e tem dividido muitas opiniões na sociedade. Na tentativa de elucidar alguns conceitos, entretanto, se faz necessário algumas ponderações a respeito do adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, na questão da inimputabilidade e na redução da maioridade penal. De acordo com o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre a faixa etária no que diz respeito à infância e a adolescência, há o seguinte critério: “[...] considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (BRASIL. Lei 8.069/1990). Levando em consideração que, “[...] adolescente é uma pessoa em desenvolvimento físico e psíquico e que, portanto, não tem condições de entender em sua totalidade à ilicitude do fato e todas as suas conseqüências [...]”, funda-se o conceito de inimputabilidade (ROSA, 2001). O ECA explicita em seus artigos 103 e 104 sobre o ato infracional e a inimputabilidade: “[...] Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou 16 contravenção penal; [...] São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos [...]” (BRASIL. Lei 8.069/1990). O conceito inimputável é novo do ponto de vista histórico-jurídico, sendo este conceito, oriundo de imputável: Imputabilidade é a condição pessoal de maturidade e sanidade que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar segundo esse entendimento. Em suma, é a capacidade genérica de entender e querer, ou seja, de entendimento da antijuricidade de seu comportamento, que tem o maior de 18 anos (Fragoso, 1978 apud ROSA, 2001, 186). Assim, pode-se compreender que inimputável é, [...] a incapacidade para apreciar o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com essa apreciação. Se a imputabilidade consiste na capacidade de entender e de querer, pode estar ausente por que o indivíduo, por questão da idade, não alcançou determinado grau de desenvolvimento físico ou psíquico (Jesus, 1977 apud ROSA, 2001, 186). Portanto, é importante desmistificar o equívoco que há com relação à inimputabilidade, sendo um conceito das novas legislações, dele soa o mito de que os adolescentes autores de atos infracionais não são responsabilizados por seus atos. Faz-se necessário compreender que são vários os fatores que podem levar um adolescente a atuar infracionalmente, do mesmo modo, pois as medidas socioeducativas são aplicadas conforme o ato infracional cometido. Para Volpi (1997), “[...] toda criança e adolescente não nascem autores de ato infracional, essa é uma identidade que é construída por influência do meio social em que vive”. As construções dos marcos jurídicos que fundamentam as políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional giram em torno de reflexões sobre o adolescente e o nível de compreensão do mesmo sob as suas próprias ações. No que se refere ao debate sobre a redução da maioridade penal, é fundamental levar em consideração as questões abordadas anteriormente, pois o adolescente está em seu processo de formação e de acordo com o ECA, a família, a sociedade e o Estado, possuem grande responsabilidade para com os mesmos. Nesta perspectiva Rosa (2001, p. 198) ressalta que: 17 [...] Existe ainda o mito de que “prendendo” mais cedo o adolescente infrator, a sociedade estaria mais segura. Estudos demonstram que a pena privativa da liberdade não reeduca, muito menos ressocializa. Ao contrário, perverte, deforma e não recupera. No Brasil, o sistema, além de ineficaz, constitui-se de um dos maiores fatores de reincidência e de criminalidade violenta (ROSA, 2001, p. 198). O debate a cerca do adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional é de grande relevância ao Serviço Social, uma vez que, o ensejo desses adolescentes a ilicitude refletem na ineficiência, precarização e sucateamento de políticas públicas de atendimento a infância e a adolescência, oriundas das relações capitalistas de produção e reprodução das relações sociais. 2.2 Adolescentes “delinquentes e em situação irregular”: a perspectiva dos Códigos de Menores de 1927 e 1979 No intuito de compreender as políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional no âmbito sociojurídico, segue um esboço cronológico a partir do primeiro código de menores de 1927. É importante considerar que, mesmo antes do primeiro código de menores a expressão “menor” já incidia no vocabulário judicial da República como ressalta Rosa (2001). A fim de responder tal categoria inferiorizada, denominada de “menores”, o Estado instaura medidas paliativas no campo da política: A partir de 1902, começou-se a pensar na criação de instituições destinadas a albergar as crianças abandonadas e as julgadas criminosas; [...] criadas a fim de prevenir a criminalidade. A década de 1920 opera da simples repressão para o afastamento das crianças dos focos de contágio, que consistia basicamente na ideia de que elas deveriam ser retiradas das ruas para ser submetidas a medidas preventivas e corretivas, que estariam a cargo de instituições públicas (ROSA, 2001, p. 189). Nesse contexto, havia a necessidade de uma legislação que regulamentasse e sistematizasse como seria a intervenção do Estado junto a questões como o “pátrio poder” 1 e ao aumento da idade para até 18 anos para a inimputabilidade penal. Tais questões emergentes desse contexto são oriundas de adolescentes que eram presos junto a adultos em 1 O pátrio poder refere-se ao poder que o homem detinha como chefe da família, sendo aquele tomava as decisões referentes à mesma. A lei vigente revoga o pátrio poder e institui o poder familiar, legitimando o poder de decisão e de “chefia” relacionados à família independente do sexo. De acordo com o art. 226, § 5º da CF/1988 “[...] os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Portanto, cabe ao casal, a responsabilidade de criar, educar, guardar, manter e representar os filhos. 18 estabelecimentos prisionais comuns e a decorrente destituição do poder familiar (ROSA, 2001). Vale ressaltar que mudanças nessa conjuntura começaram a partir da Lei Orçamentária nº 4.242, de 5 de janeiro de 1921, que autorizou a criação do Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e aos Delinquentes. Essa mesma lei, no que se refere à inimputabilidade sofre mudanças a partir de sua regulamentação em 20 de novembro de 1923, pelo Decreto nº 16.272. No “[...] art. 3º, parágrafo 16, excluiu o menor de qualquer processo ainda que não tivesse completado 14 anos” (ROSA, 2001, p. 190). Em 12 de outubro de 1927, foi promulgado o decreto n.º 17.943-A, popularmente conhecido como o Código de Mello Mattos (foi o primeiro juiz de “menores” do Brasil e da América Latina). Essa legislação reforçava em seu primeiro artigo que [...] o menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código (BRASIL. Decreto nº 17.943-A). Diante desse marco jurídico, GOHN (1997 apud ESTELITA e RAFAELLA, 2010) afirma que: [...] o novo Código disciplinava sobre o trabalho das crianças, principais vítimas da exploração selvagem das indústrias de um Estado até então sem legislação trabalhista, a exemplo da Inglaterra no século XVIII e XIX. O Código de 1927 definia também o “menor perigoso” decorrente da situação de pobreza. [...], transforma a categoria menor, tida antes como termo jurídico para se referir a uma dada faixa etária, em uma categoria exclusiva da infância pobre. E não se trata de diferença apenas terminológica, pois a criança tida como “normal” (leia-se não pobre) passa a ser objeto de atenção na Vara da Família, quando da solução de algum conflito, e a criança pobre passa a ser objeto de atenção do Juizado de Menores (GOHN, 1997, p. 115). Para Rosa (2001), diante o cenário da infância e adolescência, “[...] o regime nascido da Revolução de 19302 – em sua fase mais autoritária – cria em 1942 o Serviço de Assistência ao Menor - SAM”. Esse órgão do Ministério da Justiça, equivalente ao Sistema Penitenciário, tinha um posicionamento de repressão e correção, e o atendimento do SAM consistia em internar adolescentes autores de infração penal e patronatos para “menores” carentes e abandonados (ROSA, 2001, p. 191). 2 A Revolução de 1930 foi "[...] um movimento armado dirigido por civis e militares da federação, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba [...]" que depôs o presidente da República Washington Luís. (CARVALHO, J. M., 2008, p. 89). “[...] Essa revolução foi à expressão política da quebra do domínio do setor agrário-exportador, ocorrendo à derrubada das oligarquias rurais do poder político. Essa situação oportunizava o surgimento de um Estado autoritário, com características corporativas, que fez das políticas sociais o instrumento de incorporação das populações trabalhadoras urbanas ao projeto nacional – período conhecido como Estado Novo” (ROSA, 2001, p. 191). 19 Rosa (2001) enfatiza ainda que, “[...] neste período, também muitas entidades federais são criadas de atenção à criança e ao adolescente [...]”, dentre elas estão: - Legião Brasileira de Assistência (LBA): uma agência nacional de assistência social voltada para o apoio aos combatentes na II Guerra Mundial e suas famílias e, [...] população carente de modo geral; - Fundação Darcy Vargas: organismo de cooperação financeira que apoiava a implantação de hospitais e serviços de assistência materno-infantil em diversos pontos do país; - Casa do Pequeno Jornaleiro: programa de atenção a meninos de famílias de baixa renda baseado no trabalho informal (venda de jornais) e no apoio assistencial e socioeducativo; - Casa do Pequeno Lavrador: programa de assistência e aprendizagem rural para crianças e adolescentes filhos de camponeses; - Casa do Pequeno Trabalhador: programa de capacitação e encaminhamento ao trabalho de crianças e adolescentes urbanos de baixa renda. - Casa das Meninas: programa de apoio assistencial e socioeducativo a adolescentes o sexo feminino com problemas de conduta (ROSA, 2001, p. 192). A respeito dessas políticas, também, faz-se necessário entender que, o SAM “[...] passou a ser conhecido como ‘universidade do crime’ e ‘sucursal do inferno’”. Tal imagem foi a público dessa forma pela imprensa de oposição ao governo, que mostrou a sociedade o “caráter repressivo e desumanizante do SAM” (ROSA, 2001, p. 193). Com o golpe militar de 1964, houve um retrocesso no que se refere às políticas sociais e aos direitos civis. De acordo com Rosa (2001, p. 193), “[...] muitos dos programas sociais desse período tinham um claro sentido do controle social das populações pobres, reduzindo-as a objeto passivo da intervenção do Estado”. A autora também conclui que “[...] tinham um o efeito político desmobilizador, através da sistemática sonegação da iniciativa e da criatividade das bases comunitárias” (Ibidem). Segundo Volpi (2001, p. 28), nesse período, o regime militar manifestava o interesse em “[...] acabar com o SAM e produzir uma Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM)”. Emanado desse contexto histórico bastante influenciado de uma ideologia militar que visava à segurança do país, através da Lei. 4.513, em 1º de outubro de 1964, foi criado a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM). A Política Nacional de Atendimento Bem-Estar do Menor (PNBEM) tinha como foco “[...] as crianças e adolescentes pobres vistos como ‘carente bio-psico-sócio-cultural’, o atendimento passou a se pautar pela tentativa de restituir a eles tudo que lhe havia sido sonegado no âmbito das relações sociais” (ROSA, 2001, p. 193). 20 No entanto, a PNBEM, vinha escondendo práticas inaceitáveis e de extrema violência, já denunciadas pelo SAM, onde crianças e adolescentes sofriam abuso sexual, tratamento humilhante e diversas outras formas de violência3. Com o fim do regime militar, ressurgem os movimentos populares, “[...] ganha força o movimento em defesa dos direitos do ‘menor’, sendo debatidas pela sociedade, Estado e Igreja, melhores condições dignas de vida para os mesmos”. Contrapunha-se ao modelo de atendimento da PNBEM, “[...] diferentes grupos de técnicos, educadores, agentes sociais [...]” (VOLPI, 2001, p. 29). Nesse momento, houve grande interesse desses grupos em conhecer melhor a realidade enfrentada pelos “menores”, a fim de compreender a escolha deles em ter a rua como um espaço de convivência e moradia: Ao mergulhar na realidade da rua perceberam um mundo absolutamente diferente: sem horários, com valores diferentes, linguagem diferentes, diversões diferentes, novidades, dinâmico e com outros padrões morais. Estar na rua, para os meninos, significava estar no seu campo de domínio, com seus códigos, suas estratégias de sobrevivência, seus aliados e inimigos, enfim, sua “casa”. Mas significava também estar exposto a um conjunto de interesses e de exploração que vai desde o tráfico de drogas até o abuso sexual. Mesmo sobrevivendo nesse paradoxo, parecia ser mais suportável que ter que conviver na favela com núcleos familiares desmontados, famintos, explorados e por isso violentos. “Os pais apanham da vida e os filhos apanham dos pais” e vão às ruas (VOLPI, 2001, p. 29). Por todo o Brasil, no início da década de 1980, havia iniciativas de vários segmentos da sociedade que pensavam alternativas para o atendimento aos meninos e meninas de rua, produzindo novas metodologias que atendesse crianças a adolescentes que viviam nas ruas, tornando-se conhecidas como “Educação Social” (VOLPI, 2001, p. 30). Foram criados “[...] Associações de engraxates, cooperativas de picolezeiros, grupos comunitários [...]” e ainda nessa década, surge, “[...] o Projeto de Alternativas de Atendimento aos Meninos e Meninas de Rua, com o objetivo de colocar em contato diferentes experiência, promover o intercâmbio de ideias, analisar processos e somar esforços no atendimento a esse público” (Ibidem). Esses grupos organizados no início da década de 1980 decidiram criar, em 1985, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), nascendo assim, um “[...] um espaço de articulação dos programas de atendimentos e dos educadores comprometidos nas áreas, e organização dos meninos e meninas de rua” (VOLPI, 2001, p. 30). Em 10 de outubro de 1979, torna-se presente a Lei nº 6.697, o novo Código de Menores que revoga o código de menores de 1927. Porém, esse mantém a mesma ideologia 3 Atitudes que não são permitidas no ECA, art.5: “[...] nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (BRASIL. Lei 8.069/1990). 21 excludente, representando a legitimação da violação de direitos, pois referenciava “[...] os problemas, as injustiças sociais e a exclusão [...]” como disfunções que seriam necessárias a readaptação (VOLPI, 2001, p. 32). Corroborando com as palavras do autor, o artigo 2º da referenciada lei, definia os “menores em situação irregular”, como aqueles que, tivessem “[...] desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária” (BRASIL. Lei 6.697/1979). O Código de Menores de 1979, foi originado “[...] no contexto da Doutrina da Segurança Nacional4 [...]” ainda no período ditatorial, que atribuía ao “menor” “[...] um tratamento indiferenciado (não importava se fosse pobre, abandonado, infrator, carente...), com caráter punitivo e extremamente arbitrário”. Volpi (2001) acrescenta que, com relação aos interesses do “menor”, a esse eram definidos, “[...] pela autoridade judiciária, o que tornava esse princípio pleno de arbítrio e discricionariedade”. O autor chama a atenção para única palavra direito que consta nessa lei, especificamente no “[...] artigo 119: ‘o menor em situação irregular terá direito a assistência religiosa’” (VOLPI, 2001, p. 31). Vale ressaltar que, da “Doutrina da Situação Irregular” que traz essa lei, nota-se que infância é dividida em duas categorias distintas: [...] as crianças e adolescentes normais que vivem em suas famílias, e os menores, entendidos como aqueles que estão fora da escola, são órfãos, abandonados, carentes, infratores; [...] Centraliza todo o poder de decisão sobre as questões da infância no juiz de menores; [...] Transforma questões sociais em jurídicas; [...] Colabora com a impunidade ao atribuir ao juiz a declaração da relevância dos delitos; [...] Criminaliza a pobreza ao possibilitar a privação de liberdade por motivos econômicos; Reduz a infância a objeto de proteção; Nega os direitos Constitucionais, criando uma legislação discriminatória; [...] Constrói sistematicamente uma semântica eufemística que condiciona o funcionamento do sistema à não verificação empírica de suas conseqüências reais (GARCIA MENDEZ, 1994 apud VOLPI, 2001, p. 33). Segundo Cunha (2010), pode-se perceber também nessa legislação o: 4 A “Doutrina de Segurança Nacional” “[...] compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva [...]", garantindo, assim, os “[...] objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos como externos” (BRASIL. DECRETO-LEI nº 314, 13/03/1967). 22 [...] traço conservador que a caracteriza tanto nas práticas que institucionaliza, quanto nas próprias expressões contidas na legislação, ao utilizar termos como “perigo moral”, “ambiente contrário aos costumes“, “desvio de conduta”, “inadaptação familiar”; [...] o problema não era a situação de miséria e abandono das quais são vitimas as crianças e adolescentes, o problema maior era sua presença perambulando pelas ruas, “manchando” a paisagem das cidades, chegava ser considerado imoral e eticamente intolerável, sendo o afastamento a melhor forma de responder a este problema. [...] a tendência predominante na vigência do Código de Menores era a repressão e o isolamento, assim resolvia-se um grande problema, e não teríamos que conviver cotidianamente com esta situação que tanto “agredia” a moral de nossa sociedade [...] (CUNHA, 2010, p. 33). Ao que se refere ao Código de Menores e a “Doutrina de Situação Irregular” vale ressaltar o que havia de mais perverso nesses, nas palavras de Volpi (2001), era a homogeneização da camada ‘menores’, “[...] em que adolescentes autores de infrações penais e adolescentes vítimas de todo tipo de abusos e exploração eram tratados igualmente por uma ação concreta de caráter penal eufemisticamente denominada tutelar” (VOLPI, 2001, p. 31). Complementando a afirmação de Volpi (2011), vale ressaltar a diferença dos marcos legais5 referenciados (Códigos de Menores de 1927 e 1979) para o outro marco a ser esboçado no próximo subtítulo (2.3), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os códigos de menores de 1927, baseados na “Doutrina de Situação Irregular” e de segurança nacional, de forma homogênea, tratavam das diversas questões co-relacionadas às crianças e adolescentes, sejam “violências sofridas” e “violências cometidas”. Através do ECA, que construído de maneira muito peculiar, com o apoio de diversos grupos da sociedade, insere em um novo patamar de garantia dos direitos da criança e do adolescente, tratando cada questão de maneira específica, porém, vistas à um só objetivo, a proteção integral de seus direitos. 2.3 O adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional como sujeito de direitos: a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Das considerações mencionadas, vale destacar dois importantes marcos legais que demarcam a ampliação dos direitos da criança e do adolescente no Brasil: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Eles foram estabelecidos sob forte influência de organismos internacionais e militantes que defendem os direitos da criança e do adolescente. Dentre elas, Rosa (2001) destaca: 5 Os marcos legais, ou também marcos jurídicos, aqui citados referem-se às leis, legislações, decretos e resoluções. 23 [...] a Declaração de Genebra de 1924, que determinava a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial; da mesma forma a que a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (Paris, 1948) apelava ao direito aos cuidados e assistência especiais; na mesma orientação, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto São José, 1969) alinhava, em seu art. 19: ‘toda criança tem direito às medidas de proteção que na sua condição de menor requer [...] (ROSA, 2001, p. 196). Em 05 de outubro de 1988, é promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil (CF/1988), um grande instrumento elaborado com forte influência das bases populares. Segundo Volpi (2001, p. 31), “[...] um amplo movimento social impõe-se como desafio o panorama legal. Começa um processo intenso de articulação, que tem um ponto alto na Constituinte de 1988, quando se obtém a primeira vitória e se insere [...]” o artigo 227: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). A partir desse marco jurídico é instaurada uma nova concepção a seguimentos societários até então marginalizados pelas legislações anteriores. Apesar da CF/1988 ter sido uma conquista para a sociedade brasileira na perspectiva dos direitos sociais, esse novo marco legal se sucede paralelo ao “[...] projeto neoliberal [...]” ganhando “[...] força como projeto político nacional, o que desencadeia um processo de desmonte da seguridade social e a inviabilização das políticas sociais [...]” (CUNHA, 2010, p. 28). O artigo 227 da CF/1988 é “[...] baseado na Doutrina da Proteção Integral6, originada na proposta de Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança da ONU (1989) [...]” (VOLPI, 2001, p. 31). O artigo 227 da carta magna acima apresentada retifica a concepção legal do “menor” e traz novos precedentes na perspectiva da proteção integral: 6 “Os três princípios fundamentais da Convenção que representam a base da Doutrina de Proteção Integral são: o conceito de cidadania como sujeito de direito e que tem condições de participar das decisões que lhe dizem respeito; o princípio do interesse superior da criança, isto é, que os direitos da criança devem estar acima de qualquer outro interesse da sociedade; e o princípio da indivisibilidade dos direitos da criança, ou seja, não se trata de assegurar apenas alguns direitos e sim, todos” (VOLPI, 2001, p. 32). 24 A elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente inicia por romper com essa divisão entre infância e menoridade, pois ele: a) Conceitua criança e adolescente como cidadãos, sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e merecedores de prioridade absoluta no atendimento aos seus direitos; b) Descreve de forma clara e inequívoca todos os direitos da criança e do adolescente atribuindo responsabilidades para a família, o Estado e a sociedade; c) Estabelece que o atendimento aos direitos da criança e do adolescente será garantido por um conjunto articulado de políticas elaboradas, debatidas e deliberadas com a participação da sociedade através dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente nos âmbitos nacional, estadual e municipal; d) Desjudicionaliza as questões sociais criando em cada município um Conselho Tutelar, escolhido pela comunidade, e responsável por garantir os direitos no cotidiano, podendo para isso inclusive requisitar serviços públicos; e) Indica uma mudança fundamental na metodologia de atendimento, estabelecendo a prevalência de um processo socioeducativo, em que a criança e o adolescente sejam respeitados na sua dignidade e subjetividade e estimulados a desenvolver sua criatividade e capacidades (VOLPI, 2001, p. 34). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) revoga o Código de Menores (Lei nº 6.697/1979). O estatuto garante, promove e defende os direitos da criança e do adolescente, criando condições para que ele assuma com responsabilidade seus atos, de modo consciente e autêntico, dando oportunidade de crescer e desenvolver-se. Sendo desde modo, um instrumento legal de proteção integral a criança e ao adolescente, baseados nos direitos fundamentais à pessoa humana em desenvolvimento mediante a efetivação de políticas sociais públicas que promovam oportunidades de superação das condições de vulnerabilidade social e pessoal assumindo a condição de cidadãos críticos e participativos dos espaços públicos. O ECA (Lei 8.069/1990) regula não apenas as medidas protetivas7, como também as medidas socioeducativas - maneira como a justiça responsabiliza adolescentes que cometem atos infracionais. A presente Lei, sobre as medidas socioeducativas prevê em seu art. 112 que: 7 As medidas protetivas (art. 101) são aplicadas pela autoridade competente (Juiz, Promotor, Conselheiro Tutelar) a crianças e adolescentes que tiverem seus direitos fundamentais violados ou ameaçados. As medidas são as seguintes: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar; IX colocação em família substituta. Os incisos VII, VIII e IX foram alterados pela Lei nº 12.010, de 2009 (Lei 8.069/90. ECA). 25 [...] verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços a comunidade; IV – liberdade asssistida; V – inserção em regime de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional (BRASIL. ECA. Lei. 8.069/90). Tratando-se de adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, o ECA, de forma inovadora perante as legislações anteriores “[...] considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal [...]” e que “[...] são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei” (BRASIL, Lei. 8.069/1990). Assim, as autoras Sartório e Rosa (2010), afirmam que com o ECA: [...] o ordenamento jurídico-estatal passou a ser baseado na responsabilização do adolescente, por meio da instauração do devido processo legal, com ritos próprios, cujos princípios legais enfatizam que é por causa da infração-crime que se inicia o processo judicial (SARTÓRIO e ROSA, 2010, p. 5). O ECA significa um salto histórico, onde as crianças e adolescentes passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos. O artigo 6º dessa lei manifesta esse avanço político: Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (BRASIL. ECA. Lei. 8.069/90). Essa mesma lei reforça que esses adolescentes autores de atos infracionais, até então vistos como “delinquentes e em situação irregular”, possam ser reconhecidos como detentores de “[...] direito à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis [...]”, independente da sua inserção na ilicitude (BRASIL. Lei 8.069/1990. Art. 15). Cunha (2010) enfatiza que é “[...] importante ressaltar a singularidade do ECA e seu significado como construção coletiva do conjunto da sociedade, o que o diferencia de outras leis”. O ECA em sua construção teve a participação de diversos segmentos societários, diferenciando das leis criadas por “[...] advogados ou por juristas [...]”, tendo “[...] a participação efetiva de profissionais de diversas áreas (Serviço Social, Pedagogia, Psicologia e Direito) [...]” (CUNHA, 2010, p. 37). 26 Afirma Cunha (2010) que a promulgação do ECA: [...] instituiu um novo paradigma jurídico- institucional e ético, constituindo o eixo e o cerne das políticas para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, como os adolescentes em conflito em a lei, conforme explicita seu artigo 228, que fala da inimputabilidade dos menores de 18 anos e da existência de uma legislação especial para normatização do ato infracional. A partir deste momento fica a cargo do ECA, e não do Código Penal, a aplicação de medidas de caráter educativo e não simplesmente punitivo, ao adolescente infrator da lei penal (CUNHA, 2010, p. 38). Com o intuito de concretizar os direitos que constam na legislação e efetivar a plena cidadania dos adolescentes em conflito com a lei ou autor de ato infracional, em 12 de outubro de 1991 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). O Conanda é responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e adolescência, bem como busca cumprir seu papel normatizador e articulador, ampliando os debates e sua agenda com os demais do Sistema de Garantia de Direitos8 (SGD) (SINASE, 2009, p. 17). Por conseguinte, o CONANDA em 2004 e demais órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente como a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), por meio da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA), com apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) construíram e sistematizaram uma proposta do Sistema Nacional do Sistema Socioeducativo (SINASE) (SINASE, 2009, p. 17). O SINASE consiste, portanto, em uma diretriz do ECA sobre a natureza pedagógica da medida socioeducativa que propõe um caminho para o Sistema Socioeducativo9 (SSE). Este sistema possui bastante influência dos acordos que o Brasil firmou internacionalmente sobre direitos humanos, principalmente, na área dos direitos da criança e do adolescente (SINASE, 2008). Em 12 de janeiro de 2012, o SINASE é instituído como lei, em que regulamenta a execução das medidas socioeducativas para adolescentes que cometem ato infracional. Para tanto, Sales (2007) reforça a importância desse marco legal: 8 Compõem o SGD subsistemas internos como: Saúde, Educação, Assistência Social, Justiça e Segurança Pública. “Nele incluem-se princípios e normas que regem a política de atenção a crianças e adolescentes, cujas ações são promovidas pelo Poder Público em suas 03 esferas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), pelos 03 Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e pela sociedade civil, sob três eixos: Promoção, Defesa e Controle Social” (SINASE, 2008, p. 39). 9 “O termo Sistema Socioeducativo refere-se ao conjunto de todas as medidas privativas de liberdade (internação e semiliberdade), as não privativas de liberdade (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade) e a internação provisória; [...] ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa” (SINASE, 2008, p. 32). 27 [...] o Sinase constitui-se no conjunto ordenado de princípios, regras e critérios de caráter jurídico, político, pedagógico financeiro e administrativo para as práticas sociais de apuração do ato infracional e de execução da medida socioeducativa. Sua premissa é a garantia dos Direitos Humanos e sua Defesa é o alinhamento conceitual, estratégico e operacional para as medidas de atenção aos adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional (SALES, 2007, p. 15). A partir do Levantamento Estatístico da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescentes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (MURAD, 2004 apud SINASE, 2008, p. 32), foi identificado que no Brasil cerca de 39.578 adolescentes se encontravam em cumprimento de medida socioeducativa de um total de 25.030.970 de adolescentes na idade de 12 a 18 anos (Tabela 1). Desse total de adolescentes no sistema socioeducativo, “[...] 70% (setenta por cento), [...] se encontravam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços a comunidade)” (SINASE, 2008, p. 32). Tabela 1 - Número de Adolescentes segundo o sistema socioeducativo e a população total de adolescentes de 12 a 18 anos – Brasil – 2000 Adolescentes no População de 12 a 18 anos ** Sistema Socioeducativo * Brasil 39.578 25.030.970 Centro-Oeste 3.601 1.704.139 Sudeste 22.022 9.790.356 Sul 6.413 3.406.985 Norte 2.048 2.180.849 Nordeste 5.494 8.417.089 Fonte: *Dados da SEDH/ SPDCA (Murad et ali, 2004) e **Censo Demográfico (IBGE, 2000) Caracterização da população – Resultados da amostra. Regiões No Brasil, de acordo com Rocha (2002 apud SINASE, 2008, p. 33), havia 9.555 adolescentes em cumprimento da medida socioeducativa de internação e internação provisória. Segundo Fuchs (2004, apud, SINASE, 2008, 33), existiam 1.260 adolescentes em cumprimento da medida socioeducativa de semiliberdade. A tabela (Tabela 2) demonstrada a seguir foi construída a partir do perfil dos adolescentes em cumprimento das medidas socioeducativas traçadas por Fuchs (2004) e Rocha (2002). 28 Tabela 2 - Perfil dos adolescentes em cumprimento das medidas socioeducativas semiliberdade, internação e internação provisória no Brasil - 2004 Adolescentes em cumprimento de MSE de Internação e Internação Provisória (1) Perfil de adolescentes Adolescentes em cumprimento de MSE de Semiliberdade (2) 9.555 TOTAL 1.260 90% Sexo masculino 96,6% 76% Idade entre 16 e 18 anos (3) (3) Idade entre 15 e 17 anos 68,5% 63% Não eram brancos (3) 97% Afrodescendentes 62,4% 51% Não freqüentavam a escola 58,7% 90% Não concluíram o ensino fundamental (3) 49% Não trabalhavam 75,7% 81% Viviam com a família quando praticaram o ato infracional 87,2% 12,7% Viviam em famílias que não possuíam renda mensal (3) 66% Viviam com famílias com renda mensal de até dois salários mínimos (3) 85,6% Eram usuários de drogas 70% Fonte: Elaboração do pesquisador (2012). Notas: (1) Dados de Rocha (2002, apud SINASE, 2008, p. 33). (2) Dados de Fuchs (2004 apud SINASE, 2008, p. 33). (3) Dados não mencionados (SINASE, 2008, p. 35). Tratando-se de uma estratégia que incide em reverter à tendência de internações de adolescentes, o SINASE priorizou as medidas socioeducativas em meio aberto (Prestação de Serviço à Comunidade - PSC e Liberdade Assistida - LA) em detrimento das restritivas de liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento educacional). De acordo com o SINASE (2008, p. 22), essa estratégia “[...] não tem melhorado substancialmente a inclusão social dos egressos do sistema socioeducativo”. A fim de garantir o direito à convivência familiar e comunitária10, os programas de meio aberto foram municipalizados e o os programas de meio fechado foram regionalizados. Enquanto um sistema integrado, o SINASE (2008, p. 23) “[...] articula os três níveis de governo11 para o desenvolvimento desses programas de atendimento, considerando a intersetorialidade e a coresponsabilidade da família, comunidade e Estado”. Esse sistema ainda estabelece as responsabilidades e competências dos conselhos da criança e do adolescente, e o diálogo 10 11 Direito previsto no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Os três níveis de governo referem-se ao municipal, estadual e federal. 29 direto com demais integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, tais como o Poder Judiciário e o Ministério Público (Ibidem). A ampliação dos direitos da criança e do adolescente evoluíram sob o ponto de vista ideológico e conceitual dos marcos legais. Esse avanço é perceptível e fundamental, porém, a prática não caminha no mesmo ritmo em que as leis são criadas, sendo assim, a concretude desse processo é resultante de uma construção histórica e para que avanços sejam crescentes, são necessários mais estudos, debates, pressão popular, vontade e força política. 30 3 A HISTORICIDADE DO TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL NA ÁREA SOCIOJURÍDICA: DA GÊNESE À CONTEMPORANEIDADE “Desde os primórdios Até hoje em dia O homem ainda faz O que o macaco fazia Eu não trabalhava Eu não sabia Que o homem criava E também destruía... Homem Primata Capitalismo Selvagem” (Homem Primata – Titãs/1987). 3.1 Serviço Social no Brasil: do Conservadorismo à Intenção de Ruptura A gênese do Serviço Social na América Latina e no Brasil perpassa pelas décadas de 1920 e 1930 e, surge atrelada aos acontecimentos históricos que contribuíram para a emergência do Serviço Social como profissão. Corroborando com essa ideia, Netto (2001, p. 69), afirma que, “[...] é somente na intercorrência do conjunto de processos econômicos, sócio-políticos e teórico-culturais que tangenciamos nas seções precedentes que se instaura o espaço histórico-social [...]”, onde o Serviço Social ganha espaço como profissão. A atuação do Serviço Social no contexto brasileiro foi originando-se sob forte influência externa como assinala Ander Egg (1975 apud CASTRO, 2008, p. 31): [...] 1925 pode ser considerado como o “ano de nascimento” do Serviço Social na America Latina, já que marca a criação da primeira escola da especialidade num país latino-americano. Desde o seu nascimento, o Serviço Social latino-americano recebeu forte e decisiva influência externa. Não é surpreendente que a sua concepção tenha sido, basicamente, a de um mero reflexo. Entre 1925 e 1940, aproximadamente, foi tributário da Europa, em especial sob o influxo belga, francês e alemão; a partir de 1940, passou a ter o exclusivo selo norte-americano (ANDER EGG, 1975, apud CASTRO, 2008, p. 31). As primeiras escolas de Serviço Social surgem após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Nesse período, os “[...] movimentos operários de 1917 a 1921 tornaram patente para a sociedade a existência da “questão social” e da necessidade de procurar soluções para resolvê-la, senão minorá-la”. As referidas escolas se multiplicaram na Europa, refletindo assim, na criação das primeiras instituições assistencialistas e escolas de Serviço Social no Brasil, sendo pioneiros os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse momento, a Igreja 31 reagia na divulgação do seu pensamento social, “[...] da formação das bases organizacionais e doutrinárias do apostolado laico” (IAMAMOTO E CARVALHO, 2008, p. 166). Os pioneiros do Serviço Social são denominados pelos autores (p. 213) de “[...] modernos agentes da justiça e da caridade [...]”, pois afirmam que houve uma progressão quanto à assistência, onde há a tentativa de se fazer justiça e assistir aos que necessitam de uma maneira mais organizada. A visão primordial da profissão pautava-se sob a “Doutrina Católica” 12 , sob a égide do capitalismo13. Para se compreender a historicidade da profissão, não deve se entender como uma cronologia de fatos, mas, a relação com contexto amplo da sociedade e com a história dos processos econômicos, das classes e das próprias ciências sociais (SILVA, 1995). No início do século XX, o trabalho do Serviço Social consistia em abrigar os órfãos, em hospitalizar os enfermos e, por conseguinte, surgiam os sem-trabalho, os viciados, as mulheres abandonadas e os “menores delinquentes” (IAMAMOTO E CARVALHO, 2008). De acordo com os autores referenciados, o Serviço Social tinha um discurso doutrinário, atuando sob a perspectiva da caridade e do assistencialismo, suavizando a desigualdade e aliviando as tensões decorrentes da exploração capitalista. Nesse contexto, é notável a preponderância da Igreja sob o Serviço Social no Brasil: O Serviço Social está intimamente vinculado a iniciativas da Igreja, como parte de sua estratégia de qualificação do laicato, especialmente de sua parcela feminina, vinculada predominantemente aos setores abastados da sociedade, para dinamizar sua missão política de apostolado social junto às classes subalternas, particularmente junto à família operária (IAMAMOTO E CARVALHO, 2008, p. 83). Tendo como base essas especificidades, fica evidente no trabalho desses profissionais no Brasil, a suavização das “expressões da questão social” 14, propiciando soluções paliativas, “[...] jogando para frente o problema insolúvel, [...] nos limites do modo de produção vigente” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2008, p. 312). 12 Entende-se por “Doutrina Católica” a manifestação do Magistério da Igreja que tem por finalidade estabelecer princípios, critérios e diretrizes referentes à organização social e política das nações e dos povos. 13 “Capitalismo é o modo de produção baseado na concentração e centralização da riqueza e da renda que exclui, na atualidade, uma grande parte da classe trabalhadora do próprio sistema formal da produção, ao mesmo tempo em que amplia cada vez mais o número de sujeitos relegados à informalidade do mundo do trabalho” (TRASPADINI, 2006 p. 14). 14 Pode ser entendido como expressão da questão social, o difícil contexto em que “[...] vem interpelando o Serviço Social frente às novas manifestações” em decorrência do avanço do capitalismo, como: “[...] o aprofundamento da desigualdade social, o desemprego estrutural e a precarização das relações de trabalho, a reforma conservadora do Estado, os processos de redefinição dos sistemas de proteção e da política social” (RAICHELIS, 2009, p. 1). 32 O termo “questão social” é advindo das grandes transformações sociais, políticas e econômicas fomentadas pelo processo de industrialização que: [...] acompanhada da urbanização, constituiu o processo desencadeador da questão social, no qual as relações sociais e econômicas pré-industriais foram substancialmente desmanteladas pelo avanço da forças produtivas que respondem, primariamente, pelas mudanças estruturais. A pobreza resultante desse processo não constituiu em si a questão social, como é comumente entendido, e nem construíra em nenhum outro momento histórico. Ela foi (e é) a pré-condição estrutural da questão social que, para ser explicada como tal, precisou ser politicamente problematizada por atores sociais dotados de poder de pressão e capacidade de ameaçar a coesão do sistema. Sem essa problematização, a pobreza, o desemprego, a “exclusão social”, mesmo produzindo efeitos delatérios e devastadores sobre a humanidade, não constituirão a questão social na sua inteireza (PEREIRA, 2003, p. 43). Diante o exposto, se faz relevante à compreensão do conceito questão social: A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão (IAMAMOTO e CARVALHO, 2008, p. 77). E ainda: A “questão social”, seu aparecimento, diz respeito diretamente à generalização do trabalho livre numa sociedade em que a escravidão marca profundamente seu passado recente. Trabalho livre que se generaliza em circunstâncias históricas nas quais a separação entre homens e meios de produção se dá em grande medida fora dos limites da formação econômico-social brasileira. (IAMAMOTO e CARVALHO, 2008, p. 125). Assim, pode-se afirmar que a inserção do Serviço Social nas estruturas sócioocupacionais o leva a intervir nos mecanismos elementares da preservação e do controle da força de trabalho, a mercê da burguesia, não desempenhando funções produtivas, mas se inserindo nas atividades que se tornam auxiliares dos processos especificamente monopólicos da produção, da acumulação e valorização do capital (NETTO, 2001). Deve-se ainda, frisar que “[...] é só a partir da concretização das possibilidades econômico-sociais e políticas segregadas na ordem monopólica (concretização variável do jogo das forças políticas) que a ‘questão social’ se põe como alvo de políticas sociais [...]” (NETTO, 2001, p. 29). Como supracitado pelo autor, a “questão social” se põe como alvo das 33 políticas sociais quando essas já se encontram segregadas e quando há vontade e interesse político aliado aos interesses econômicos do Estado. O exercício profissional do Serviço Social, frente à “questão social”, tem como importante marco as leis sociais15, que foram relevantes no momento em que as terríveis condições de trabalho da classe proletária foram expostas a sociedade brasileira por meio de movimentos populares que lutavam a fim de conquistar a sua cidadania. Frente ao contexto apresentado, o Serviço Social, segundo Iamamoto e Carvalho (2008, p. 126), passa a ter grande importância no trabalho com as “[...] diversas classes e frações de classe dominantes, subordinadas ou aliadas ao Estado e a Igreja”. Há também de se chamar a atenção para um período bastante significativo para o Serviço Social, posterior a Segunda Guerra Mundial. Através das Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional (São Francisco, 1945) e da celebração do Tratado Inter-Americano de Assistência Recíproca (TIAR), no Rio de Janeiro (1947), os Estados Unidos passa a se organizar como “[...] hegemonia a nível mundial” (CASTRO, 2008, p. 133). Para Castro (2008, p. 134), “[...] esse estímulo ao planejamento, ao desenvolvimento da comunidade [...]” dos países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos, devem ser vistos como estratégia, pois “[...] procuravam criar as condições (políticas, administrativas e culturais) mais propícias para integrar e dinamizar o desenvolvimento do capitalismo e o mercado latino-americano sob a hegemonia financeira [...]”. Nota-se, portanto, que o Serviço Social, a mercê dos interesses capitalistas, passa a ter contribuição significativa pós década de 50, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) e grupos internacionais – estrategicamente – se esforçam em divulgar e sistematizar o Desenvolvimento de Comunidade16 (DC) com o intuito de integrar a população aos planos de expansão do capital (CASTRO, 2008). Desenvolve-se então, “[...] uma complexa trama de vínculos e compromissos de crescente dependência em face à potência do norte [...]”, através dos departamentos técnicos, entre eles a seção de Serviço Social, sob a divisão de Assistentes Sociais, através da qual a Organização dos Estados Americanos (OEA): 15 Sobre as leis sociais, o próximo subcapítulo pretende destacar as que tiveram relevância para a profissão. “Consideramos o Desenvolvimento de Comunidade como parte integrante do conceito mais amplo, mais geral e completo de Desenvolvimento, e o entendemos como método e técnica que contribui positiva, real e efetivamente ao processo de desenvolvimento integral e harmônico, respondendo fundamentalmente a certos aspectos extra-econômicos, em particular psico-sociais, que intervêm na promoção de atitudes, aspirações e desejos para o desenvolvimento” (ANDER EGG, 1977 apud CASTRO, 2008, p. 144). 16 34 [...] desenvolveu diretamente a sua influência na formação e na prática dos Assistentes Sociais latino-americanos, viabilizando ideológica, política e economicamente a proposta norte-americana do desenvolvimento da comunidade como técnica e como campo de intervenção profissional (CASTRO, 2008, p. 134). No início da década de 1960, o Brasil foi marcado pela “[...] gestação da consciência nacional-popular, pelo engajamento de amplas camadas sociais nas lutas por reformas estruturais, pelo entusiasmo com a abertura político-ideológica e pelo crescimento econômico” (AMMANN, 1991 apud WANDERLEY, 1998, p. (?)). Diante esse cenário político, era possível, portanto, perceber a plena efervescência de diversos grupos organizados, visando à garantia dos direitos civis, políticos e sociais. O acelerado crescimento da participação política das “camadas sociais”, envolvidas nas diversas lutas por direitos culminou “[...] em 1964 a uma reação defensiva e à imposição de [...] um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos foram restringidos pela violência” (CARVALHO, J. M., 2008, p.157). Essa forma de restrição, como cita o autor, se dá através dos atos institucionais17. Dentre eles, é importante ressaltar que, o que se divulgava por esse regime autoritário, com base nos atos institucionais, era a suposta intenção de “[...] dar ao país, um regime que [...]” atendesse “[...] as exigências de um sistema jurídico e político [...]” de assegurar a “[...] autêntica ordem democrática, baseado na liberdade ao respeito à dignidade da pessoa humana” (BRASIL. Ato Institucional nº 5, 1968). Desse modo, nota-se que em nome da liberdade, instaurou-se um regime bastante violento, que havia premissas que não saiam do papel. Wanderley (1998) ressalta que, com “[...] o objetivo de neutralizar a ação e os efeitos dos programas anteriores [...]”, as iniciativas e “[...] as práticas populares são desmanteladas, destruídas em sua origem”. Assim, “[...] surgem novos programas [...]”, criados e “[...] implantados pelo governo militar [...]” que “[...] traziam em seu bojo uma concepção utilitária de desenvolvimento de comunidade”. Dentre esse programas podem ser citados a Cruzada do ABC (Ação Básica Cristã) e o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) (WANDERLEY, 1998, p. 33). Já Ammann (1991), diz que essa concepção e os novos programas geravam a ilusão de que os problemas dos “carentes” viriam a ser resolvidos. No entanto, esses problemas, “[...] são utilizados enquanto conduto de veiculação e sanção dos interesses e da ideologia 17 “Os instrumentos legais da repressão foram os ‘atos institucionais’ editados pelos presidentes militares. O primeiro foi introduzido logo em 9 de abril de 1964 pelo general Castelo Branco. Por ele foram cassados os direitos políticos, pelo período de dez anos, de grande número de líderes políticos, sindicais e intelectuais e de militares. Além das cassações, foram também usados outros mecanismos, como a aposentadoria forçada de funcionários públicos civis e militares” (CARVALHO, J. M., 2008, p. 160). 35 dominantes, inoculados nos modelos de desenvolvimento brasileiro” (AMMANN, 1991, 192193 apud WANDERLEY, 1998, p. 33). Tendo em vista as várias formas de censura e de repressão sofridas diretamente por algumas classes decorrentes da Ditadura Militar, Carvalho (2008) destaca que: A censura à imprensa eliminou a liberdade e opinião; não havia liberdade de reunião; os partidos eram regulados e controlados pelo governo; os sindicatos estavam sob constante ameaça de intervenção; era proibido fazer greves; o direito de defesa era cerceado pelas prisões arbitrárias; a justiça militar julgava crimes civis; a inviolabilidade do lar e da correspondência não existia; a integridade física era violada pela tortura nos cárceres do governo; o próprio direito à vida era desrespeitado. As famílias de muitas vítimas até hoje não tiveram esclarecidas as circunstâncias das mortes e os locais de sepultamento. Foram anos de sobressalto e medo, em que os órgão de informação e segurança agiam sem nenhum controle (CARVALHO, J. M., 2008, p.163-164). Em face à situação esboçada, o Serviço Social passar por diversas transformações. Assim, Netto (2009) afirma que o Serviço Social passa por um processo de renovação, definindo-a em três vertentes: “Perspectiva Modernizadora”, “Reatualização do Conservadorismo” e a “Intenção de Ruptura”. Essas vertentes possuem grande influência no direcionamento teórico-metodológico-ético-político do exercício profissional do Serviço Social. A “Perspectiva Modernizadora” foi uma vertente adotada pelo Serviço Social, cristalizada pelos Seminários de Araxá - MG (entre 19 e 26 de março de 1967) e de Teresópolis - RJ (entre 10 e 17 de janeiro de 1970). Sua fundamentação teórica era baseada na teoria positivista18. O perfil do profissional consistia em “ajustar” os desajustados, de forma que, as pessoas, não questionassem o sistema vigente. Discutia-se novas formas de atuação dos assistentes sociais, a microatuação (executar de políticas prontas, sem participar de sua construção) e a macroatuação (elaborador e planejador das políticas, ou seja, participa da construção) (NETTO, 2009, p. 164-201). A “Reatualização do Conservadorismo” foi uma vertente proposta por um grupo de profissionais do Serviço Social que sugeria a retomada dos princípios sociais da Igreja e uma mudança de base teórica. Essa vertente é reflexo das formulações dos seminários de Sumaré – RJ e do Alto Boa Vista – RJ (entre 20 à 24 de novembro de 1978). Sua base teórica era 18 O positivismo é uma linha teórica da filosofia e sociologia, criada pelo francês Auguste Comte (1798-1857) “[...] que professa, de um lado, o experimentalismo sistemático e, de outro, considera anticientífico todo estudo das causas finais [...]; [...] admite que o espírito humano é capaz de atingir verdades positivas ou da ordem experimental, mas não resolve as questões metafísicas, não verificadas pela observação e pela experiência” (RIBEIRO JUNIOR, 1994, p. 15). 36 voltada para a teoria fenomenológica19, com vistas às relações interpessoais. Ela trabalha na perspectiva de ajudar as pessoas a encontrarem uma maneira de perceberem o problema está nelas e não no sistema. Dessa maneira, o perfil do assistente social era de intervir no problema das pessoas mostrando e ajudando as pessoas a encontrarem o caminho para resolverem sua situação na perspectiva individualista (NETTO, 2009, p. 201-246). O enfraquecimento do regime militar, o retorno e o aprofundamento do processo de redemocratização20 (1979 a 1989), contribuíram para a emergência da perspectiva “Intenção de Ruptura” do Serviço Social no Brasil, dando mais visibilidade à profissão que se via passiva frente à autocracia burguesa. Netto (2009) demarca que, com o aprofundamento da democratização, as elaborações dessa perspectiva impulsionaram o Serviço Social a uma postura mais radical e contrária ao capitalismo (NETTO, 2009, p. 247-308). A sua emergência se deu na estrutura universitária brasileira, tendo a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG) (entre 1972 e 1975), sua formulação inicial e mais ampla. Os profissionais adeptos a perspectiva “Intenção de Ruptura”, através dessas formulações, demarcavam notória oposição à ditadura militar. O autor define esse movimento como “Método BH”. Esse método foi uma iniciativa através do grupo de docentes da PUC de Belo Horizonte que elaboraram uma crítica alternativa ao tradicionalismo profissional que se encontrava a profissão. Foi uma elaboração teórico-metodológica que pretendeu expressar os interesses das classes exploradas, percebendo assim, que o Serviço Social tradicional é inadequado a realidade brasileira (década de 1970), trazendo críticas21 com relação à aparente neutralidade do SESO, que ao contrário serve aos interesses do Estado autocrático exercendo um papel conservador (NETTO, 2009, p. 247-308). 19 “A fenomenologia surgiu no final do século XIX, com Franz Brentano, cujas principais ideias foram desenvolvidas por Edmund Husserl (1859-1958). Outros representantes foram: Heidegger. Max Scheler, Hartmann, Binswanger, De Waelhens, Ricoeur, Merleau Ponty, Jaspers, Sartre. Seu postulado básico é a noção de intencionalidade, pela qual é tentada a superação das tendências racionalistas e empiristas surgidas no século XVII. Pretende-se “[...] realizar a superação da dicotomia razão-experiência no processo de conhecimento, afirmando que toda consciência é intencional. Isso significa que, contrariamente ao que afirmam os racionalistas, não há pura consciência, separada do mundo, mas toda consciência tende para o mundo; toda consciência é consciência de alguma coisa”. Essa teoria também afirma que “[...] não há objeto em si, já que o objeto só existe para um sujeito que lhe dá significado. Com o conceito de intencionalidade a fenomenologia se contrapõe à filosofia positivista do século XIX, presa demais à visão objetiva do mundo” (ARANHA, 1993, p. 205-206). 20 “A década de 1979 a 1989 situa-se numa conjuntura de ‘abertura política’ e de redemocratização da sociedade brasileira, quando os novos movimentos sociais e sindicais emergem e se constituem sujeitos políticos de uma forte luta social contra a ditadura militar, implantada no país em 1964” (SILVA, 2009, p. 602). 21 O autor acrescenta que, ao Serviço Social tradicional, os desenvolvedores do método BH, elaboraram as seguintes críticas: a) crítica ideopolítica com relação à aparente neutralidade do SESO, que ao contrário, serve aos interesses do Estado autocrático exercendo um papel conservador; b) crítica teórico-metodológico em relação à concepção fragmentária da realidade, diferenciando a realidade social de seu grupo; c) crítica operativo funcional, quando o SESO tradicional se propõe a eliminar disfunções e condutas desviantes (NETTO, 2009, p. 277-278). 37 A vertente “Intenção de Ruptura” diferencia-se das demais vertentes por seu caráter renovador, por se desvincular do positivismo e das bases católicas atribuídas pela fenomenologia, por criticar e questionar o modelo político vigente, por traçar uma metodologia que propusesse participação mais ativa no cenário político do país, enfim, pelo rompimento com tradicionalismo profissional. 3.2 O Serviço Social na Contemporaneidade A nova paisagem no cenário político, econômico e social brasileiro das décadas de 1980 e 1990, reflete um conjunto de mudanças paradigmáticas no exercício profissional do Serviço Social. O processo de renovação crítica do Serviço Social foi “[...] fruto e expressão de um amplo movimento de lutas pela democratização da sociedade e do Estado no país, com forte presença das lutas operárias que impulsionaram a crise da ditadura militar: a ditadura do grande capital” (IANNI, 1981, apud IAMAMOTO, 2010, p. 4). Segundo Couto (2004), no que se refere a essas mudanças, afirma que: De um lado, desenvolveu-se um processo singular de reformas, no que se refere à ampliação do processo de democracia – evidenciada pela transição dos governos militares para governos civis – e à organização política e jurídica – especialmente demonstrada no desenho da Constituição promulgada em 1988, considerada, pela maioria dos teóricos que a analisaram, como banalizadora da tentativa do estabelecimento de novas relações sociais no país. Por outro lado efetivou-se um processo de recessão e contradições no campo econômico, onde ocorreram várias tentativas de minimizar os processos inflacionários22 e buscar uma retomada do crescimento, tendo como eixo os princípios da macroeconomia expressa na centralidade da matriz econômica em detrimento da social (COUTO, 2004, p. 140). No que diz respeito ao avanço dos direitos civis, políticos e sociais, a promulgação da carta magna segue como um significativo marco e conquista histórica para a sociedade brasileira. Sendo “[...] no contexto de ascensão da Carta Constitucional de 1988 e da defesa do Estado de Direito, que a categoria de assistentes sociais, foi sendo questionada pela prática de diferentes segmentos da sociedade civil” (IAMAMOTO, 2010, p. 4). Em 05 de outubro de 1988, é então, promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, um grande instrumento elaborado com forte influência das bases populares. É um marco na formação sócio-histórica do Serviço Social, principalmente nas políticas sociais, pois a partir desta carta, o Estado passou a ser responsabilizado no campo 22 Sobre os processos inflacionários: “O período de 1980 a 1990 assistiu a vários planos econômicos, com diversificados matizes de princípios orientadores: a) Plano Cruzado e Plano Cruzado II (1986); b) Plano Bresser (1987); c) Plano Verão (1989); d) Plano Collor e Plano Collor II (1990); e Plano Real (1993). Sobre esse assunto, consultar Reis (1997)” (COUTO, 2004, p. 139). 38 social e a partir daí, diversas legislações foram criadas com o objetivo de ampliar as ações no campo social do Estado brasileiro. Nesse sentido, “o Serviço Social contemporâneo” se volta “[...] à defesa do trabalho e dos trabalhadores, do amplo acesso a terra para a produção de meios de vida, ao compromisso com a afirmação da democracia, da liberdade, da igualdade e da justiça social”. Como afirma Iamamoto (2010, p. 4), “[...] nesse lapso de tempo, o Serviço Social construiu um projeto profissional radicalmente inovador e crítico, com fundamentos históricos e teóricometodológicos hauridos na tradição marxista [...]”. Assim, Iamamoto (2010), acrescenta que: Ele ganha materialidade no conjunto das regulamentações profissionais: o Código de Ética do Assistentes Social (1993) e a Lei de Regulamentação Profissional (1993) e as Diretrizes Curriculares norteadoras da formação acadêmica (ABESS/CEDEPSS, 1996, 1997ª, 1997b; MEC-SESU/CONESS/Comissão de Especialistas de Ensino em Serviço Social, 1999; MEC-SESU, 2001) (IAMAMOTO, 2010, p. 5). Ao que tange o compromisso ético profissional do Serviço Social, que passa a nortear o exercício profissional, o novo Código de Ética do (a) Assistente Social, aprovado em 13 de março de 1993 através da Resolução CFESS (Conselho Federal de Serviço Social) nº 273, rege-se por seus princípios fundamentais, tais como: I. Reconhecimento da liberdade [...]; II. Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo; V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social [...] VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças; VIII. Opção por um projeto profissional [...] de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero; XI. Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física (BRASIL. CÓDIGO DE ÉTICA DO/ A ASSISTENTE SOCIAL, 2011, p. 23-24). Assim, afirma Barison (2007): O projeto ético-político, materializado no Código de ética do assistente social, aponta, dentre outros, para a defesa intransigente dos direitos sociais, políticos e humanos, situando o profissional como facilitador e mediador do acesso da população a estes direitos, mediados pelas políticas sociais (BARISON, 2007, p. 52). Segundo Lewgoy (2009, p.122) “[...] o projeto neoliberal encontra nas práticas assistencialistas a estratégia para dar conta da pobreza, ao passo que o projeto ético-político 39 propõe o combate à desigualdade pela via do direito”. A autora toca no que há de mais importante para compreendermos a distinção desses dois projetos. Ao que se refere à legitimidade da profissão, em 07 de julho de 1993, o/a Assistente Social ganha reconhecimento legal através da Lei nº 8.662. A sua aprovação representa a superação das práticas tradicionais e a afirmação de um novo perfil técnico profissional que trabalha sobre a perspectiva do direito e a efetivação do projeto ético-político da profissão. Essa mesma lei trata algumas competências e atribuições provenientes dessa nova perspectiva profissional. Dentre as principais competências (art.4º), destacam-se: “[...] encaminhar providências, e prestar orientação [...]; [...] orientar indivíduos e grupos de diferentes segmentos sociais no sentido de identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos [...]”. Sobre as atribuições privativas (art. 5º) destacam as seguintes: “[...] coordenar, elaborar, executar, supervisionar e avaliar estudos, pesquisas, planos, programas e projetos na área de Serviço Social; [...] realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres” (BRASIL. Lei 8662/1993). Esses profissionais, amparados por instrumentos legais, passam a se inserir em diversos espaços ocupacionais legitimados pelo Estado, como afirma Iamamoto (2010): Os espaços ocupacionais do assistente social têm lugar no Estado – nas esferas do poder executivo, legislativo e judiciário -, em empresas privadas capitalistas, em organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e na assessoria a organizações e movimentos sociais (IAMAMOTO, 2010, p. 5). E ainda acrescenta que: Nesses espaços profissionais os (as) assistentes sociais atuam na sua formulação planejamento de políticas públicas, nas áreas de educação, saúde, previdência, assistência social, habitação, meio ambiente, entre outras, movidos pela perspectiva de defesa e ampliação dos direitos da população (IAMAMOTO, 2010, p. 5). Os assistentes sociais inseridos nesses espaços ocupacionais, “[...] realizam assessorias, consultorias e supervisão técnica; contribuem na formulação, gestão e avaliação de políticas, programas e projetos [...]”, desenvolvendo atividades voltadas para mobilização social e de práticas educativas. A autora chama a atenção para a área sociojurídica, afirmando que: “[...] atuam na instrução de processos sociais, sentenças e decisões, especialmente no campo sociojurídico [...]” (IAMAMOTO, 2010, p. 6). 40 A área sociojurídica, onde se concentra a aplicação das medidas socioeducativas, no intuito de responsabilizar adolescentes autores de atos infracionais, será aprofundada no próximo subcapítulo. 3.3 O campo sociojurídico e a atuação do Serviço Social no trabalho com adolescente autor de ato infracional O campo sociojurídico, segundo Fávero (2005, p, 10) refere-se às [...] áreas onde a ação do Serviço Social articula-se “[...] de natureza jurídica, como o sistema judiciário, o sistema penitenciário, o sistema de segurança, os sistemas de proteção e acolhimento como abrigos, internatos, conselhos de direitos, dentre outros”. Nesse sentido, “[...] o Serviço Social aplicado ao contexto sociojurídico configura-se como uma área de trabalho especializado, que atua com as manifestações da ‘questão social’, em sua interseção com o Direito e a justiça na sociedade” (CHUAIRI, 2001, p. 137). Nesta perspectiva faz-se necessário destacar alguns marcos legais importantes para a compreensão da atuação do Serviço Social junto ao Poder Judiciário23. Dentre eles, podem ser destacados os Códigos de Menores de 1927 e de 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1993. O primeiro refere-se ao Código de Menores de 1927 (Lei nº 17.943-A, de 12 de outubro), que previa “[...] o auxílio dos então chamados comissários de vigilância24 [...]. Esses comissários atuavam junto ao Poder Judiciário, tendo como suas atribuições como consta em seu art. 152 (lei 17.843-A), a responsabilidade de “[...] proceder a todas as investigações relativas aos menores, seus pais, tutores ou encarregados de sua guarda, e cumprir as instruções que lhes forem dadas pelo juiz”. A inserção25 do assistente social no Poder Judiciário é datada da década de 1940, prioritariamente nos Juizados da Infância e Juventude: 23 São órgãos do poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal; o Conselho Nacional de Justiça; o Superior Tribunal Federal; os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; os Tribunais e Juízes do Trabalho; os Tribunais e Juízes Eleitorais; os Tribunais e Juízes Militares; os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e os Territórios (CF/1988. Art. 92. EC nº 45/2004). 24 São chamados de comissários de vigilância os “[...] atuais voluntários da infância e juventude, ainda mantidos em algumas Varas da Infância e da Juventude – sem a obrigatoriedade de formação em alguma área profissional específica” (FÁVERO, 2005, p. 19). 25 “A primeira assistente social a obter um emprego, no campo da intervenção direta, foi no Judiciário paulista, no início dos anos 1940” (FÁVERO, 2005, p, 10). 41 Já em 1935, é criado o Departamento de Assistência Social do Estado de São Paulo (Lei nº 2.497, de 24/12/1935), [...] responsável pela estruturação dos Serviços de Menores, Desvalidos, Trabalhadores e Egressos de Reformatórios, Penitenciárias, Hospitais e da Consultoria Jurídica do Serviço Social. O Decreto Estadual nº 9.744, de 19/11/1938, que reorganiza o Serviço Social de Menores, institui como privativos de assistentes sociais os cargos de subdiretor de vigilância, de comissários de menores e monitores de educação (AASPTJ, 2003 apud IAMAMOTO, 2009). Ainda sobre o Departamento de Serviço Social do Estado de SP, Iamamoto e Carvalho (2008, p 191), afirmam que “[...] os Assistentes Sociais atuarão como comissários de menores no Serviço Social de menores – menores abandonados, menores delinquentes, menores sob tutela da Vara de Menores [...]”, onde desenvolveriam atividades no campo da “[...] Assistência Judiciária a fim de reajustar indivíduos ou famílias cuja causa de desadaptação social se prenda a uma questão de justiça civil” (IAMAMOTO E CARVALHO, 2008, p. 191). Acrescenta Fávero (2005) que: [...] ao iniciar o trabalho no âmbito da Justiça da Infância e da Juventude, em São Paulo – nos idos dos anos 1940 – passou a ocupar o espaço de perito da área social, atuando inicialmente como estagiário ou como membro do Comissariado de Vigilância (FÁVERO, 2005, p. 20). No contexto sociojurídico, o Serviço Social firma-se “[...] como profissão, estreitamente integrado ao setor público em especial, diante da progressiva ampliação do controle e do âmbito da ação do Estado junto à sociedade civil” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2008, p. 79). Nesse sentido, o Serviço Social passou a ter espaço privilegiado de ação na Justiça da Infância e da Juventude, deixando progressivamente os cargos de comissariado, passando a ocupar no final dos anos 1940, “[...] espaço formal de trabalho no então denominado Juizado de Menores de São Paulo [...]”, ampliando sua “[...] ação para além da perícia, investindo na ação social [...] com envolvimento de vários segmentos da sociedade” (FÁVERO, 2005, p. 20). Outro marco legal importante a ser ressaltado, refere-se ao segundo Código de Menores, promulgado em 1979 (Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979). De acordo com Fávero (2005), essa lei dispunha em seu art. 1º sobre a “[...] assistência, proteção e vigilância a menores [...]” e que, “[...] o profissional de Serviço Social passou a ser integrado em maior número no interior do Judiciário [...]”. A sua atuação consistia na aplicação da lei, levando em conta os seguintes elementos do art. 4º, como “[...] ‘o contexto sócio-econômico e cultural em que se encontrem o menor e seus pais ou responsável’, bem como ‘estudo de cada caso’ 42 deveria ser realizado ‘por equipe pessoal técnico, sempre que possível’” (FÁVERO, 2005, p. 21). O terceiro marco e indispensável para a reflexão sobre a atuação do Serviço Social no âmbito sociojurídico, principalmente no trabalho com autores de atos infracionais é a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei 8.069, de 13 de julho de 1993). O Serviço Social no âmbito sociojurídico passa a ter funções mais bem definidas como preconiza os arts. 150 e 151: “[...] assessorar a justiça da infância e da juventude; e de oferecer subsídios para a autoridade judicial” (BRASIL. Lei 8069/1990). A partir do ECA, [...] o ordenamento jurídico-estatal passou a ser baseado na responsabilização do adolescente, por meio da instauração do devido processo legal, com ritos próprios, cujos princípios legais enfatizam que é por causa da infração-crime que se inicia o processo judicial (SARTÓRIO e ROSA, 2010, p. 558). Diante desse novo ordenamento jurídico, “[...] ao Serviço Social, concretamente, vem sendo delegado o papel de realizar os estudos sociais26, que são reconhecidos como material que vai subsidiar as decisões dos juízes acerca da matéria de cada processo (BARISON, 2007, p. 56). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o SINASE na contemporaneidade configuram-se como marcos legais que orientam o Serviço Social no trabalho com o adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional. Para Freitas (2011, p. 31) toma-se o campo sociojurídico como “[...] espaço de trabalho para o assistente social [...]” atuando na “[...] execução das medidas socioeducativas (MSE’s), seja no âmbito municipal, como a liberdade assistida (LA) e a prestação de serviços à comunidade (PSC), seja no estadual, como a semiliberdade e a internação” (FREITAS, 2011, p. 31). A advertência é a MSE mais branda das medidas e consiste (art. 112 do ECA) “[...] na admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada”, não necessitando de um acompanhamento via judiciário. Já reparação do dano (art. 116 do ECA) consiste em fazer com que o adolescente se responsabilize através de ressarcimento ou compensação decorrente do dano proporcionado. De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, a Proteção Social Especial (PSE) de Média Complexidade (MC), dentre outros serviços, inclui os 26 “O Estudo Social é um processo metodológico específico do Serviço Social, que tem por finalidade conhecer com profundidade, e de forma crítica, uma determinada situação ou expressão da questão social, objeto de intervenção profissional” (FÁVERO, 2005, p. 42-43). 43 Serviço de Proteção Social, fornecendo orientação e acompanhamento a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de LA, e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Ambas as medidas, são executadas pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social27 (CREAS). A MSE de PSC (art. 117 do ECA) consiste na responsabilização do adolescente pela “[...] realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais” (BRASIL. Lei. 8.069/1990). A referida MSE possui caráter pedagógico e socializante, não podendo impedir ao adolescente em estudar e/ou trabalhar. O Serviço Social na execução da MSE de PSC, juntamente a equipe que compõe, “[...] deve realizar o acompanhamento social ao adolescente e identificar, no município, os locais de prestação de serviços, cujas atividades sejam compatíveis com as habilidades dos adolescentes e com seus interesses” (BRASIL. ORIENTAÇÕES TÉCNICAS, 2011). No âmbito municipal, a MSE de LA (Art. 118) “[...] será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente” (BRASIL. ECA. Lei. 8.069/90). A lei também prevê que o orientador, deve realizar as seguintes atividades descritas no art. 119: I – Promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social; II – supervisionar a freqüência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula; III – diligencia no sentido da profissionalização do adolescentes e de sua inserção no mercado de trabalho; IV – apresentar relatório do caso (BRASIL. ECA. Lei. 8.069/90). Assim, referindo-se a MSE de LA, são de suma importância as “[...] parcerias que ofereçam cursos, estágios e atendimentos de saúde [...]”, acompanhamento educacional, de lazer e convivência, “[...] seja para o adolescente, seja para a família [...]” (CUNHA, 2010, p. 58). Essa fragilidade da rede de atendimento é apontada por Vargas (2008 p. 158) citado por Cunha (2010, p. 58), colocando em relevância a experiência de Belo Horizonte, onde técnicos (assistentes sociais e psicólogos): 27 O CREAS “[...] constitui-se numa unidade pública estatal, de prestação de serviços especializados e continuados a indivíduos e famílias com seus direitos violados, promovendo a integração de esforços, recursos e meios para enfrentar a dispersão dos serviços e potencializar a ação para os seus usuários, envolvendo um conjunto de profissionais e processos de trabalhos que devem ofertar apoio e acompanhamento individualizado especializado” (BRASIL. ORIENTAÇÕES TÉCNICAS, 2011). 44 [...] foram enfáticos nos que diz respeito ao funcionamento precário e à má organização dessa rede. Observam que no interior da própria Prefeitura não há interação entre grupos e áreas fundamentais como a da saúde, e da educação. Tais críticas são corroboradas pelo grande número de falas sobre a dificuldade de sucesso no encaminhamento para cursos, estágios e empregos e até mesmo a reinserção do jovem na escola [...] (VARGAS, 2008, p. 158 apud CUNHA, 2010, p. 58) A MSE em regime de semiliberdade possibilita ao adolescente que receber essa medida, realizar atividades externas, sem a necessidade de autorização judicial, porém a liberação do mesmo a essas ocorrerá com o consentimento da equipe técnica (ECA, Lei 8.069/1990, art. 120). O assistente social atua nessas unidades, através de equipe interdisciplinar, acompanhando o adolescentes no cumprimento da referida medida. Nessas casas, os adolescentes dormem, realizam refeições, participam de oficinas e atividades escolares, podendo visitar seus familiares nos finais de semana. A MSE de internação em estabelecimento educacional, segundo o ECA (1990) “[...] constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoal em desenvolvimento”. Vale ressaltar que na referida MSE, o adolescente que a receber por ter cometido ato infracional grave (como grave ameaça ou violência a pessoa, por descumprimento reiterado e justificado da medida anteriormente imposta) poderá ser cumpri-la no mínimo seis meses e no máximo três anos (BRASIL. ECA. Lei. 8.069/1990, art. 121). Na execução da MSE de internação, Freitas (2011) afirma que o assistente social compõe uma equipe técnica, junto a psicólogos, acompanhando os processos dos adolescentes, visando a “[...] garantia do atendimento integral [...]”, permanecendo nessas unidades em horário comercial. De acordo com a autora, destacam-se funções comuns aos dois cargos, “[...] realizar o acolhimento dos adolescentes e familiares, participar da elaboração do projeto político-pedagógico da unidade, elaborar relatórios com informações destinadas ao Poder Judiciário”. Assim, quanto ao discernimento dessas duas áreas do conhecimento, “[...] cabe ao assistente social atuar de acordo com sua especificidade, garantido o diálogo interdisciplinar, sem perder de vista o que é particularidade do Serviço Social” (FREITAS, 2011, p. 38). Na execução das MSE’s, deve-se chamar a atenção para a consolidação da rede de atendimento visando melhor atendimento aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa (MSE). 45 Nota-se que, o percurso histórico das políticas de atendimento, os antigos e atuais marcos legais, foi moldando e remoldando o Serviço Social na sua trajetória profissional. O quadro (quadro 1), construída através de legislações28 e autores29, esboça de maneira sintética algumas mudanças significativas no exercício profissional do Serviço Social proporcionada por marcos legais: 28 Legislações: CF/1988, ECA 8.069/1990, SINASE 12.594/12; Código de Menores 6.697/79; PNBEM Lei nº 4.513; Decreto Estadual nº 9.744; Código de Menores 1927, Decreto nº 17.943-A. 29 Autores: Netto, 2009; Iamamoto e Carvalho, 2008; Iamamoto, 2009; Fávero, 2005; Rosa, 2001; Volpi, 2001; Freitas, 2011. 46 Quadro 1 - Registro de marcos legais das políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional no âmbito sociojurídico e seus rebatimentos no Serviço Social no Brasil - 1927 a 2012 ANO 1927 1935 1938 Marcos Legais Rebatimentos no Trabalho do Serviço Social Código de Menores 1927. Decreto nº 17.943- Comissários de vigilância: investigavam sobre a vida dos menores, pais, tutores ou encarregados de sua A de 12 de Outubro de 1927. guarda, e cumpriam as instruções que lhe forem dadas “Menor, abandonado, delinquente”. pelo juiz. Departamento de Assistência Social do Preservação e controle dos desajustados sociais. Estado de São Paulo. Lei nº 2.497, de 24/12/1935. Caritativo e assistencialista. Cargos privativos de assistentes sociais: - subdiretor de vigilância; - comissário de menores; Decreto Estadual nº 9.744, de 19/11/1938 – - monitor de educação. Serviço Social de Menores. Estruturadores dos Serviços Sociais de Menores. Reajustares de indivíduos ou famílias que se prendesse a alguma questão de justiça civil. Peritos da área social. 1942 Serviço de Assistência ao Menor - SAM 1964 Política Nacional de Bem Estar do Menor PNBEM Criação da FUNABEM e FEBEM. Lei nº 4.513, de 1 de dezembro de 1964. 1979 1988 1990 2012 Exerciam o controle social das populações pobres e desmobilizavam as bases comunitárias em detrimento dos interesses burgueses. Trabalhadores técnicos das FEBEM’s. No âmbito da PNBEM a assistência, proteção e vigilância de menores. Através da política vigente, tentava-se restituir o que havia sido sonegado no âmbito das relações sociais, praticando a readaptação de disfunções daqueles com desvio de conduta em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária. Com a crise da ditadura militar e a abertura política, o Constituição da República Federativa do exercício profissional permanece na órbita dos direitos Brasil de 1988. sociais, tornando-se responsáveis em sua viabilização e no acesso aos meios de exercê-los. Atuação baseada no conceito de Doutrina de Proteção Integral: Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Crianças e adolescentes como sujeitos de direitos; seus Lei 8.069/90 interesses acima de qualquer outro interesse da sociedade; todos os direitos assegurados sem indivisibilidade. Código de Menores. Lei nº 6.697, de 10 de Outubro de 1979. “Menor em situação irregular”. SINASE Assessorar a justiça da infância e da juventude e oferecer subsídios para a autoridade judicial. Acompanhar situação processual. Garantir atendimento integral. Fonte: Elaboração do pesquisador (2012). Cabe mencionar que, desde o surgimento do Serviço Social no Brasil e de sua inicial atuação junto ao Poder Judiciário, o adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, ficava a margem da sociedade, sem o desenvolvimento de um trabalho adequado que considerasse o momento de transição desses adolescentes para a vida adulta e seu 47 contexto social, sendo enxergados como “menores” no sentido de inferioridade, de abandonado e delinquente (IAMAMOTO, 2008). Atualmente, depois do advento do ECA, esses passam a ser considerados como sujeitos de direitos, mesmo estando em cumprimento de medida socioeducativa. 48 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS “Enquanto houver um pobre sonhando com pão, família, escola e proteção, haverá um rico dedicado à economia, ao individualismo e a exploração. Os burgueses se mantém da exploração dos “desprovidos”, e esses sem pão, família, escola, proteção, sobrevivem das “migalhas” daqueles que lhes exploram e que sempre lhe dizem não” (Gleison Henriques). O presente trabalho teve como objetivo realizar um estudo, de cunho bibliográfico, sobre os dilemas e perspectivas do Serviço Social no trabalho com o adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, especialmente aqueles em cumprimento de medida socioeducativa. Nota-se que, na trajetória da política de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, o Serviço Social na linha de frente dessas, incorporava em suas práticas, o papel controlador e coercitivo do Estado, principalmente no período ditatorial. A partir da Constituição Federal de 1988, houve um salto na perspectiva dos direitos humanos. Materializadas no ECA e no SINASE, as políticas de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional possuem estreita relação ao Poder Judiciário, sendo este, aquele que tenta através da aplicação da medida socioeducativa, responsabilizar o adolescente autor de ato infracional. Referente à descrição a apontada, há de se considerar quanto à garantia dos direitos da criança e do adolescente, que não cabe somente ao judiciário a responsabilidade por tal segmento, sendo este um dos três poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário). Na contemporaneidade, há um dilema quanto ao atendimento do judiciário ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, principalmente, no que diz respeito ao atendimento das demandas individuais e segmentadas. Segundo Volpi (2001, p. 119), frases de ditos populares foram criadas para denunciar “[...] a discricionariedade da justiça. ‘Rico quando rouba é cleptomaníaco, pobre é ladrão; ‘Rico corre para se exercitar, pobre para fugir da polícia’; e ‘Adolescente rico tem desvio de conduta, adolescente pobre é menor infrator’”. O autor ainda destaca algumas questões em torno da naturalização da “questão social”, permeada de afirmativas que soam de forma negativa, reduzindo eminências dos problemas sociais à condição de classe. Essa questão impõe-se como um dilema para a atuação do Serviço Social no exercício da garantia de direitos do adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional. 49 Outra questão de bastante relevância refere-se ao desfinanciamento das políticas sociais. Para Doher (2000, p. 93), no exercício da profissão, o assistente social se depara com esse dilema, haja vista que, cada vez mais políticas sociais demonstram incapazes de responder às demandas da população usuária, sendo a “[...] escassez de recursos públicos [...] a principal justificativa do governo para este esvaziamento de ações [...]”. Assim, pode-se dizer que, no atual contexto sócio-histórico, o profissional assistente social não dispõe de equipamentos públicos de qualidade, para que através do acompanhamento as medidas socioeducativas, às ações preventivas e aos encaminhamentos através da rede socioassistencial constituam de maneira eficiente, como prevê os princípios de brevidade preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 121. ECA). Essa questão, portanto, se põe como um dilema para o Serviço social, que no cerne das políticas sociais, se vê limitado diante tais desfinanciamentos, interferindo tanto no exercício profissional, quanto na ressocialização do adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional. Há de se considerar que, a presente política de atendimento ao adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, demonstra uma grande evolução na perspectiva dos direitos humanos ao prever a proteção integral, porém esta, não exime a responsabilidade do Estado junto às demais esferas do poder em realizar ações preventivas e de garantir os direitos fundamentais previstos no ECA em sua integralidade. Trata-se de um mesmo movimento que Iamamoto e Carvalho (2008) citam em sua obra, quando se referem a jogar para frente “o problema insolúvel”. Através dessa citação, reforça-se a necessária atenção a cerca da infância e a adolescência. O profissional por mais que possa intersetorialmente atuar frente “a questão social”, paralelamente, atuará subordinado ao modelo de produção e reprodução do capital que insiste em investir em ações “remediativas” do que preventivas. Para Iamamoto (1999, p.20) um dos desafios da profissão na contemporaneidade consiste em “[...] decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e não só executivo”. Neste cenário, um dos maiores dilemas do Serviço Social no trabalho com o adolescente conflito com a lei ou autor de ato infracional é a efetivação das garantias previstas nas legislações que preconizam a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes e, por conseguinte, a efetivação do Código de Ética do (a) Assistente Social. A teoria não é o suficiente para uma intervenção eficaz, pois é necessário uma vivência com as pessoas para conseguir fazer uma correlação prática e teórica. 50 Com relação às perspectivas do Serviço Social no trabalho com o adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, estão correlacionadas ao fortalecimento do trabalho interdisciplinar, que pode proporcionar um olhar mais amplo sobre a realidade do adolescente atendido e seu grupo familiar, possibilitando uma intervenção que possa contribuir para emancipá-lo em seu crescimento humano, político e social, longe das atividades ilícitas. Atualmente, o mercado de trabalho pensa no profissional do Serviço Social como aquele que deve executar intervenções para amenizar “problemas”, assim os profissionais que entram no mercado são “engessados” e passando a atuar, apenas como executor. Existem perspectivas esculturadas pelo mercado e outra totalizante, sendo esta última a perspectiva que mais me agrada. De acordo com o Código de Ética do (a) Assistente Social, há um princípio (IV) que correlaciona bastante com essa questão: “Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida” (BRASIL. CÓDIGO DE ÉTICA DO/ A ASSISTENTE SOCIAL, 2011, p. 23). Tal relação se dá a perspectiva totalizante, no que diz respeito ao reconhecimento do sujeito político historicamente construído. Se há uma Constituição Federal que prega a universidade dos direitos e se a forma de governo é pautada na democracia - que significa o povo no poder -, o povo pode e deve intervir cada vez mais politicamente por qualidade de vida e por uma sociedade menos desigual. Por meio desse trabalho de conclusão de curso, percebeu-se que, se não houver a garantia das proteções previstas no ECA e o fortalecimento nas políticas públicas básicas para a qualidade de vida de crianças e adolescentes, tal segmento aqui tratado de adolescente em conflito com a lei ou autor de ato infracional, se perpetuará por longas datas, sem avanços significativos. Outra questão refere-se às históricas limitações do Serviço Social frente a adolescentes que cometem aos infracionais. A profissão dispõe de leis que regem, regularizam, que propõe, porém, não merecem a devida atenção na sua plenitude, sendo priorizadas no campo da política iniciativas para o desenvolvimento capitalista em detrimento dos direitos humanos, políticos e sociais. Indica-se ao Serviço Social, primeiramente, a formação contínua, que seja propositivo e ousado em propor novas alternativas, podendo cumprir no acesso aos direitos, à formação e a informação, utilizando as três dimensões investigativas: teórico-metodológica, éticopolítica, técnico-operativa, afirmando assim, o compromisso com a democracia, a liberdade, a igualdade e a justiça social, e por fim, vislumbrar a efetivação das políticas de atendimento a infância e a juventude, fazendo jus ao sistema de proteção integral. 51 Enfim, os parâmetros éticos como democracia, liberdade, equidade, emancipação humana e justiça social devem ser levados em consideração em toda e qualquer iniciativa, seja daqueles que estejam na linha de frente, quanto aqueles que planejam e gerenciam as políticas sociais públicas ou privadas. 52 REFERÊNCIAS AASPTJ-SP – Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 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