Rev bras ecocardiogr imagem cardiovasc. 2012;25(3):232-235 ISSN 1984 - 3038 RELATO DE CASO Origem Anômala de Artéria Coronária: O Papel da Angiotomografia Multislice – Relato de Caso e Revisão da Literatura* Anomalous Origin of Coronary Artery: The Role of Multislice CT Angiography - A Case Report dnd Literature Review Márcio Vinicius Lins Barros2; Daniel Rocha Rabelo1; Maria do Carmo Pereira Nunes1; Maria Helena Albernaz Siqueira3 1 . Médico Assistente do Setor de Ecocardiografia do Hospital Mater Dei. Belo Horizonte-MG, Brasil. BR. 2 . Médico Chefe do Setor de Ecocardiografia e Ecografia Vascular do Hospital Mater Dei. Belo Horizonte-MG, Brasil. BR. 3 . Médica Assistente do Setor de Radiologia do Hospital Mater Dei. Belo Horizonte-MG, Brasil. BR. RESUMO A origem anômala das artérias coronárias é uma entidade relativamente rara, podendo apresentar-se de várias formas clínicas e evoluir de forma adversa. Recentemente, a angiotomografia das artérias coronárias tem demonstrado papel importante no diagnóstico e manejo dessas anomalias. Apresentamos o caso de uma paciente jovem, sexo feminino, sem comorbidades importantes, que apresentou quadro de parada cardiorespiratória, sendo reanimada por equipe do serviço de atendimento móvel de urgência. Após realização de angiotomografia multislice das artérias coronárias, foi observada origem anômala do tronco de coronária esquerda, em seio coronariano direito, sem sinais de compressão extrínseca. A paciente recebeu um cardiodesfibrilador implantável e não apresentou intercorrências seguimento realizado. A angiotomografia multislice representa método propedêutico minimamente invasivo, que permite detectar a origem e trajeto das artérias coronárias, possibilitando alternativa ao cateterismo cardíaco, na avaliação de pacientes com origem anômala das artérias coronárias. Descritores: Anomalias dos Vasos Coronários/diagnóstico, Diagnóstico por Imagem, Desfibriladores Implantáveis SUMMARY Anomalous origin of coronary arteries is a relatively rare entity and can present different clinical forms. Recently, CT angiography of the coronary arteries have demonstrated an important role in the diagnosis and management of these anomalies. We present the case of a young female without significant comorbidities who presented with cardiopulmonary arrest, being revived by a team of customer service mobile emergency. After completion of multislice CT angiography of the coronary arteries was observed anomalous origin of left main coronary artery in the right coronary artery, no signs of extrinsic compression. Patient received a defibrillator and had an uneventful follow-up performed. Multislice CT angiography is minimally invasive diagnostic methods to detect the origin and trajectory of the coronary arteries, allowing an alternative to cardiac catheterization for evaluation of patients with anomalous origin of coronary arteries. Descriptors: Coronary Vessel Anomalies/diagnosis; Diagnostic Imaging; Defibrillators Implantable * Trabalho premiado como melhor pôster do 23o Congresso Brasileiro de Ecocardiografia, 1o Congresso do Departamento de Imagem Cardiovascular realizados em abril de 2.011, Brasília-DF. BR Instituição: Hospital Mater Dei. Belo Horizonte-MG, Brasil. BR. Correspondência: Marcio Vinícius Lins Barros. Rua Carangola 57 apto 1201 Belo Horizonte-MG, Brasil. BR. CEP: 30330240 [email protected] Recebido em: 28/09/2011 - Aceito em: 26/10/2011 232 Barros MVL, et al. Origem anômala de artéria coronária: o papel da angiotomografia multislice – relato de caso e revisão da literatura Introdução A origem anômala de artéria coronária (OAAC) é uma entidade relativamente rara, sendo que a sua incidência está estimada em cerca de 1,5% da população geral1-3. A evolução da OAAC é muito variável, podendo ser benigna ou apresentar quadros potencialmente graves, como infarto e morte súbita. Dentre os métodos propedêuticos disponíveis, a angiotomografia multislice das artérias coronárias apresenta grande potencial na avaliação anatômica dessas artérias4. O objetivo deste estudo é apresentar um caso de origem anômala de artéria coronária, diagnosticada pela angiotomografia coronariana, descrevendo o quadro clínico e a evolução do paciente. Relato de caso Paciente do sexo feminino, 39 anos de idade, sem história de comorbidades, com história familiar de doença arterial coronariana (mãe apresentou infarto agudo do miocárdio, aos 42 anos de idade), apresentou, segundo familiares, quadro súbito de dor precordial, sem irradiação, associada à dispneia evoluindo para parada cardiorespiratória. Iniciada prontamente massagem cardíaca (sob orientação dos médicos do serviço de atendimento móvel de urgência, via telefone) e, após 20 minutos, iniciado o suporte avançado de vida pelos médicos da mesma equipe. Após 8 minutos de manobras, a paciente evoluiu com boa resposta, apresentando ritmo sinusal regular, estabilidade hemodinâmica e sem necessidade de aminas vasoativas, sendo encaminhada para o hospital para propedêutica e monitorização intensiva. Mantida sedada para realização de propedêutica, foi realizado inicialmente eletrocardiograma que não demonstrou alterações significativas (ritmo sinusal regular, ÂQRS= 30º, frequência cardíaca= 76bpm, alterações inespecíficas de repolarização ventricular). Ecodopplercardiograma demonstrou ventrículo esquerdo (VE) com dimensões normais, hipocinesia difusa e depressão leve a moderada da função sistólica global (FEVE= 47%), associado a grau I de disfunção diastólica. Levada para a realização da angiotomografia multislice das artérias coronárias, utilizando-se tomógrafo de 64 canais (Aquilion, Toshiba Medical Company). As Figura 1: Angiotomografia coronariana demonstrando tronco de coronária esquerda originando-se do seio coronariano direito. TCE: tronco de coronária esquerda; CD: coronária direita. imagens de todo o coração foram adquiridas em apnria de 08 segundos, infusão venosa de 85ml de contraste iodado (Iopamiron 350), em bomba de infusão à vazão de 05ml/s. Todos os dados foram analizados por médicos experientes no método, usando reformatação multiplanar e reconstrução 3-D pela técnica de renderização de volume. O estudo demonstrou que o tronco coronariano esquerdo originava-se do seio coronariano direito, com trajeto entre a aorta e a pulmonar, sem sinais de compressão extrínseca ao repouso e sem evidências de ateromatose (Figura 1). A paciente apresentou boa evolução na unidade de terapia intensiva, havendo necessidade transitória do uso de noradrenalina. Foi extubada no segundo dia de internação, apresentando bom padrão respiratório, sem déficits motores. Após discussão do caso com equipe multidisciplinar, optou-se pela realização de teste funcional para comprovar a presença de isquemia miocárdica e justificar possível cirurgia. Realizada cintilografia miocárdica, que não mostrou sinais de isquemia, foi feita opção pela implantação de cardiodesfibrilador implantável. Paciente evoluiu sem qualquer intercorrência, sendo realizado novo ecodopplercardiograma, 8 dias após o 233 Rev bras ecocardiogr imagem cardiovasc. 2012;25(3):232-235 evento, e observada melhora da função global do VE (FEVE= 61%), sem déficits segmentares e mantendo grau I de disfunção diastólica. Após alta hospitalar, a paciente foi acompanhada por consultas clínicas e contatos via telefone, não apresentando intercorrências no seguimento de 2 anos. Discussão A anatomia coronariana normal é caracterizada por dois óstios localizados de maneira central, nos seios de Valsalva direito e esquerdo, cujo diâmetro deve ser igual ou maior do que o diâmetro da artéria coronária que dele se origina, sendo que o tronco coronariano origina-se do seio coronariano esquerdo e, usualmente divide-se na artéria descendente anterior (DA) e circunflexa (Cx), ou poderá apresentar uma trifurcação (37% dos indivíduos), dividindo-se em DA, Cx e um ramo mediano ou intermédio. A coronária direita (CD) origina-se do seio coronariano direito e segue pelo sulco atrioventricular direito. Qualquer alteração nesse padrão (número de óstios, trajeto) deve ser considerada como uma anatomia coronariana anormal. As anomalias das artérias coronárias resultam em distúrbios que ocorrem na terceira semana do desenvolvimento fetal, podendo ser classificadas como anomalias de origem, trajeto e/ou terminação5. A origem e o trajeto proximal das artérias coronárias anômalas são os principais fatores preditivos de gravidade na OAAC6. Atualmente, constitui a segunda causa mais frequente de morte súbita de origem cardiovascular em atletas competitivos7, podendo também ser causa de insuficiência cardíaca e morte em lactentes8-9. Após suspeição clínica, o exame de imagem mais utilizado, até pouco tempo, para diagnóstico era a cineangiocoronariografia convencional, porém, esse método tem as suas desvantagens, por seu caráter invasivo, análise das imagens, na maioria das vezes, em 2 dimensões o que pode gerar erros de interpretação e, também, pela possibilidade de cateterizar-se determinada coronária, após a origem de uma outra coronária. Sendo assim, ao se injetar o contraste, a possível coronária anômala, que está logo antes do cateter, não é preenchida, contribuindo para o não diagnóstico. A angiotomografia computadorizada multislice com 64 , por sua vez, vem ganhando espaço na prática 234 clínica diária, pois permite detectar de maneira rápida, acurada e minimamente invasiva (utiliza-se apenas veia periférica para a administração de contraste) a origem, curso e terminação das artérias coronárias, sendo demonstrada a sua superioridade em relação a cineangiocoronariografia convencional na demonstração da origem ostial e do trajeto proximal dessas artéiras10-12. A origem anômala da artéria coronária descrita, onde a origem do tronco de coronária esquerda se dá a partir do seio coronariano direito, é uma entidade raríssima e pode relacionar-se à morte súbita, em 59% dos casos, precedida por atividade física em 81% dos eventos13. Apesar de ser causa de isquemia miocárdica, os exames indutores de isquemia podem ser normais. Essa anomalia pode apresentar quatro trajetos: anteriormente à artéria pulmonar; posteriormente à aorta; intrasseptal entre a aorta e a artéria pulmonar; e interarterial entre a aorta e a pulmonar14 (como o caso relatado). Todos os subtipos dessa anomalia têm sido associados à morte súbita, mas a variação interarterial, que é o padrão mais comum, tem uma relação mais forte com sequelas catastróficas14,15. O alto risco de evolução desfavorável, geralmente é decorrente de isquemia miocárdica em surtos cumulativos que, com o tempo, resultam em fibroses esparsas do miocárdio, predispondo a arritmias ventriculares letais, por criar um substrato miocárdico eletricamente instável. Admite-se que os mecanismos envolvidos sejam: • Origem em ângulo agudo e dobra ou oclusão pela angulação da emergência das artérias coronárias. • Espasmo coronariano pelo seu movimento de torção. • Compressão mecânica da artéria anômala entre os troncos das artérias pulmonar e aórtica durante o esforço. A porção inicial da artéria pode ser intramural (dentro da túnica média da aorta), o que pode agravar ainda mais a obstrução coronariana, especialmente, com a expansão aórtica durante o esforço. Conclusão A origem anômala das artérias coronárias é uma entidade relativamente rara, potencialmente letal se não diagnosticada e tratada precocemente, podendo apresentar-se de várias formas clínicas e evoluir de for- Barros MVL, et al. Origem anômala de artéria coronária: o papel da angiotomografia multislice – relato de caso e revisão da literatura ma adversa, como a morte súbita (apresentado nesse trabalho). Sendo assim, é importante, em casos de precordialgia, lipotímia, síncope ou outros sintomas inespecíficos, principalmente em jovens e/ou atletas, pensarmos na possibilidade desse diagnóstico, sendo que a angiotomografia coronariana multislice proporcionanos, de forma rápida e acurada, a chance de detectar a origem e curso das artérias coronarianas, colaborando no raciocínio clínico e proporcionando melhor planejamento terapêutico. 7. 8. 9. 10. Referências 11. 1. 2. 3. 4. 5. 6. Hayashi JH, Abreu Fº LM, Sumita MK, Takimura CK, Hotta VT, Forte AAC. Incidência de anomalias coronárias em hospital geral. Rev Bras Cardiol Invas. 2002;10 (3):26-32. Yamanaka O, Hobbs RE. Coronary artery anomalies in 126.595 patients undergoing coronary arteriography. Cathet Cardiovasc Diagn. 1990;21(1):28-40. Leberthson RR, Dinsmore RE, Bharati S, Rubenstein JJ, Caulfield J, Wheeler BO, et al. Aberrant coronary artery origin from the aorta. Diagnosis and clinical significance. Circulation. 1974;50(4):774-9. 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